Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3483/03TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 06/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 563º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O nosso direito não acolheu o sistema de repartição de causas, com a mitigação do grau de responsabilização do autor de uma delas, como sucedeu com a disciplina para a concorrência de vários responsáveis a título de culpa ou risco.

2. Daí que, ao contrário da tese sufragada pela sentença, se antolhe como sem apoio na lei a declarada redução da responsabilidade dos RR. por efeito da invocada concorrência de outras causas para os danos.

3. Causa adequada do dano é, afinal, aquele facto pelo qual o respectivo autor agrava o risco ou possibilidade física do nascimento desse mesmo dano.

4. Em consonância com a matéria de facto provada nos autos, foi na verdade a obstrução levada a cabo pelos RR. que conduziu à acumulação das águas no telhado e a posterior infiltração na fracção ocupada pela A.. Ou seja, só por si, o temporal que se formou no local não seria capaz de provocar as infiltrações de água que atingiram a fracção da A. Foram aquelas obras dos RR. o factor de especial favorecimento da inundação constatada, cujo risco agravaram significativamente. Sem essa causa os danos não se teriam provavelmente produzido.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A.... intentou no 2º Juízo do Tribunal da Comarca da Figueira da Foz uma acção declarativa com processo ordinário contra B... e mulher C... pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de € 36.588,67, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de € 6.030,67 por cada ano em que o seu estabelecimento se mantiver cessado por falta de condições de funcionamento.

Para tanto, alega:

Que é arrendatária - por virtude de trespasse - de determinado estabelecimento de comércio de roupa de criança, sito no rés-do-chão de um prédio urbano, contíguo a um outro estabelecimento, no mesmo piso, a sul, sendo este propriedade dos Réus;

Que há já alguns anos, os ora Réus taparam um cano que se encontrava na parede comum que separa os dois estabelecimentos, cano que se destinava ao escoamento das águas pluviais do prédio desde a caleira existente no telhado;

Que, dessa forma, a cada chuvada mais intensa, a água acumulava-se no telhado do edifício, penetrando neste e danificando o estabelecimento da A.;

Que tendo caído na cidade uma violenta tempestade de granizo e chuva, em finais de Outubro de 2002, as águas respectivas, mercê da obstrução do aludido cano, entraram pelo tecto do rés-do-chão do edifício, passando às paredes interiores e danificando essas zonas - além de mobiliário e mercadorias – cifrando-se tal prejuízo em € 25.558,00; com isso ficou também impossibilitado o exercício da actividade comercial aí levada a cabo, a partir de 2003 e até à respectiva recuperação, com uma perda de rendimento anual de € 6.030,67;

Que a A. sofreu grave transtorno psíquico, que lhe criou forte ansiedade e preocupação, cuja reparação computa em € 5.000,00.

Contestaram os Réus, defendendo-se dizendo que não taparam qualquer cano, devendo-se a inundação do estabelecimento da A. ao carácter excepcional do temporal que se abateu sobre a Figueira da Foz em Outubro de 2002 e à vetustez e degradação geral do prédio, que não resistiu às fortes investidas de granizo e chuva então ocorridas; por excepção, alegam a prescrição do direito accionado, uma vez que as obras efectuadas pelos RR. remontam ao ano de 1991. Terminam assim com a improcedência da acção.

Replicou a A. à matéria da excepção, pugnando pela respectiva improcedência.

Decidido no despacho saneador que o crédito invocado pela A. não estava prescrito, foi a final proferida sentença a julgar a acção parcialmente provada e procedente, condenando-se os Réus a pagar à A. a quantia de € 17.500,00 (sendo € 15.000 de danos emergentes e € 2.500 de danos não patrimoniais), acrescida da importância de € 2.500 por cada ano decorrido desde 2003 até ao pagamento da quantia de € 15.000 (relativa aos estragos verificados no estabelecimento da A.). No mais foram os RR. absolvidos.

Irresignados com este veredicto, dele interpuseram recurso os RR., recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

                                                                              *

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância:

1 - Por escritura pública lavrada na Secretaria Notarial da Figueira da Foz no dia 28 de Junho de 1986, D... declarou trespassar a A..., ora demandante, que declarou aceitar, o estabelecimento comercial denominado“Casa X...”, instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito na praça ...., inscrito na matriz urbana da freguesia de São Julião sob o artigo 3.831, com os números de polícia 32 e 33 (documento de fls. 7 a 9 dos autos, ora dado por integralmente reproduzido no respectivo teor);

2 – Nesse estabelecimento exerce a demandante o comércio de roupa de criança;

3 – Os Réus são donos de um outro estabelecimento comercial, instalado no mesmo prédio, também ao nível do rés-do-chão, contíguo àquele, para sul, sendo arrendatários do local onde o mesmo funciona;

4 – Há já alguns anos, os demandados levaram a cabo obras no seu estabelecimento;

5 – As obras que os Réus fizeram no seu estabelecimento ocorreram no ano de 1991;

6 – Em finais de Outubro de 2002, uma violenta tempestade com queda de granizo e chuva caiu sobre a Figueira da Foz;

7 – Aquando do temporal referido, centenas de casas na Figueira da Foz foram fortemente afectadas pelo granizo e chuva, destruindo janelas, telhados, entupindo canos, não poupando sequer prédios novos;

8 – Existe no piso do estabelecimento comercial dos Réus, a cerca de 40 centímetros da parede comum ao estabelecimento da A., uma “meia-cana” em grés, a qual, em consequência das obras realizadas pelos Réus no seu estabelecimento, ficou totalmente cheia de brita e areia, material que serviu de base ao assentamento da betonilha e sobre a qual foram aplicados os mosaicos de revestimento do piso do estabelecimento dos Réus, obstruindo aquela brita e areia o escoamento e a passagem das águas pelo ramal em grés com orientação de saída para debaixo do piso do mesmo estabelecimento dos demandados (ramal esse que serve de derivação da tubagem de queda interior que desemboca no estabelecimento da A.);

9 – A tubagem mencionada no ponto 8 tinha início na caleira existente no telhado, passava pela parede do lado da rua do estabelecimento da demandante e depois entrava na referida parede comum que separa os estabelecimentos da A. e dos Réus, desembocando no estabelecimento da A., havendo também a derivação através do ramal referido no ponto 8 para o piso do estabelecimento dos Réus;

10 – O prédio onde estão instalados os estabelecimentos de A. e Réus é muito velho e encontra-se, sobretudo ao nível dos pisos superiores, em estado de avançada degradação (com tectos interiores quase inexistentes e madeiras podres, ao nível do segundo andar, gerando-se obstruções em alguns pontos da tubagem mencionada no ponto 8 e extravasão de águas, a carecer de obras estruturais de restauro (que há dezenas de anos não são feitas);

11 – Sobretudo após a realização das obras aludidas no ponto 8, na sequência de algumas chuvadas mais intensas, houve inundações do rés-do-chão ocupado pela demandante;

12 – Na sequência da tempestade referida no ponto 6, as águas pluviais foram tantas que, com o ramal mencionado no ponto 8 tapado, bem como a extravasão de algumas das águas pluviais pelas partes não seladas, ao nível do segundo andar do prédio, da tubagem também aludida no ponto 8, gerou-se então acumulação das águas no telhado, passando para o tecto do rés-do-chão e paredes interiores e inundando todo o piso do estabelecimento da A.;

13 – Em consequência, o estuque do tecto e o reboco das paredes do estabelecimento da demandante caíram, a instalação eléctrica ficou inutilizada, o piso restou completamente estragado, assim como os móveis (o balcão, as estantes, as vitrinas);

14 – A mercadoria da loja ficou, na sua totalidade, sem qualquer utilidade para o comércio;

15 – A A. havia adquirido a mercadoria mencionada no ponto 14 (destes factos provados) pelo preço de € 13.327,99;

16 – A reparação dos estragos aludidos nos pontos 12 e 13 ascende a € 22.558;

17 – Em consequência dos estragos supra aludidos a demandante deixou de poder utilizar o seu estabelecimento e exercer a sua actividade;

18 – Devido aos estragos mencionados nos pontos 12 e 13, e não tendo meios financeiros para a realização de obras, a demandante encerrou o seu estabelecimento em 2003;

19 – Nos últimos quatro anos (considerando a época da propositura da acção), com a exploração do seu estabelecimento a A. teve um rendimento médio anual de € 6.030,67;

20 – O encerramento do seu estabelecimento e o facto de estar em uma situação de inactividade têm causado à demandante ansiedade e preocupação.

                                                                           *

A apelação.

Podem enunciar-se do seguinte modo as questões que aparecem levantadas na formulação conclusiva que culmina a alegação dos RR., ora apelantes:

- A alteração da decisão sobre a matéria de facto – conclusão 4ª.

- A ausência de nexo de causalidade entre o facto imputado aos Réus e os danos invocados pela A. – conclusões 1º e 2º e 4ª a 15ª.

- A inexistência de lucros cessantes a indemnizar – conclusões 16ª a 23ª.

- O excesso dos montantes indemnizatórios arbitrados à A. pelos danos patrimoniais e não patrimoniais provados – conclusões 24ª a 26.

                                                                          *

Sobre a almejada modificação da matéria de facto.

Invocam os recorrentes contradição entre a matéria constante dos nºs 10 e 12 dos factos provados, propondo a alteração do facto consignado no nº 12 para não provado.

Este facto resultou da resposta ao nº 4 da base instrutória, enquanto aquele emergiu, por seu turno, da resposta ao nº 18.

A apontada incompatibilidade carece de fundamento.

Impõe-se aqui lembrar que a eventual contradição entre as mencionadas respostas, porque inseridas na matéria de facto objecto de discussão e julgamento, daria lugar, não à respectiva modificação, necessariamente segundo o arbítrio ou a solução proposta pela parte interessada, mas à anulação do julgamento pela Relação, mesmo oficiosamente, nos termos do art.º 712, nº 4, do CPC, tendo em vista a harmonização global da decisão.

Ora não há qualquer espécie de conflito entre os pontos de facto em questão.

Com efeito, é este o teor do facto provado em 10:

"o prédio onde estão instalados os estabelecimentos de A. e Réus é muito velho e encontra-se, sobretudo ao nível dos pisos superiores, em estado de avançada degradação (com tectos interiores quase inexistentes e madeiras podres, ao nível do segundo andar, gerando-se obstruções em alguns pontos da tubagem mencionada no ponto 8 destes factos assentes e extravasão de águas), a carecer de obras estruturais de restauro (que há dezenas de anos não são feitas)".

Enquanto é o seguinte o teor do facto provado em 12:

"Na sequência da tempestade referida no ponto 6, as águas pluviais foram tantas que, com o ramal mencionado no ponto 8 tapado, bem como a extravasão de algumas das águas pluviais pelas partes não seladas, ao nível do segundo andar do prédio, da tubagem também aludida no ponto 8, gerou-se então acumulação das águas no telhado, passando para o tecto do rés-do-chão e paredes interiores e inundando todo o piso do estabelecimento da A.".

Ali afirma-se que o estado de degradação geral do prédio ocasionou obstruções em alguns pontos da tubagem e extravasão de águas. Aqui formula-se um juízo concreto sobre a causa de uma anormal acumulação de águas no telhado do edifício que teria sido propiciada pela conjugação de duas ocorrências: a tempestade e o tapamento da tubagem (com as obras dos Réus em 1991 referidas no facto nº 6). O que além – no facto 10 – se não diz é que aquelas obstruções decorrentes da idade do edifício seriam capazes de desencadear a dita acumulação de águas e a inundação que se lhe seguiu na fracção da A.; apenas que provocavam a extravasão ou fuga de água - porventura em quantidades ou em valores insusceptíveis de danificar  ou mesmo atingir esta fracção. 

Donde que não se vislumbrem motivos para se declarar a pretensa contradição e daí extrair as pertinentes consequências processuais. 

  

Sobre o nexo de causalidade entre a conduta imputada aos RR. e os danos invocados pela A.

Os recorrentes propugnam o entendimento de que a verdadeira causa do aparecimento da água na fracção onde a A. tinha instalado o seu estabelecimento deveria ser procurada, em primeira linha, nas deficientes condições de escoamento das águas pluviais provenientes da parte superior do edifício. Para isso, haveria que ter em mente as obstruções que se verificavam na canalização do imóvel, e, bem assim, a extravasão de águas que nesse circunstancialismo era possível (de harmonia com a já enfatizada matéria do nº 10 dos factos provados). Numa segunda linha – que também se poderá chamar de retaguarda – argumentam com a dimensão excepcional e devastadora da tempestade que se deu na cidade em Outubro de 2002.

No outro pólo na dialéctica por eles desenvolvida, aparece a desvalorização dos efeitos supostamente potenciados pelos RR. com o acto de tapar a "meia cana" que vem descrita em 8 dos factos provados. Trata-se aqui de refutar as consequências que a A. conexiona com a deposição de brita e areia nesse local, aquando das obras efectuadas pelos RR. em 1991, com o que estes teriam impedido a passagem de águas "pelo ramal em grés com orientação de saída para debaixo do piso do respectivo estabelecimento" (cfr. o facto provado em 8).

Neste conspecto, sobrelevam ainda os recorrentes o facto de, ao longo daquele lapso temporal de 11 anos – que mediou entre as obras e os danos - não ter sido reclamada qualquer entrada de água na fracção ocupada pela A. (v. a conclusão 11ª).

A sentença ora sob censura concluiu por um jogo de concausas para a produção dos danos, que ponderou dever ser "tido em conta na fixação do quantum indemnizatório".

Nesse concurso causal incluiu as sobreditas obras dos RR. de 1991 (nº 8 dos factos provados).

Contra isto se rebelam agora os apelantes, refutando que tenha havido influência das obras realizadas na produção dos danos no tal concurso causal, que a sentença qualifica como reunião de concausas.

Vejamos.

O aresto sob o enfoque do vertente recurso, a este respeito, principiou por afirmar – e bem – que a nossa lei e, em particular, o art.º 563 do Código Civil, estatui que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Nesta matéria, no nosso ordenamento vingou a doutrina dita da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstracto, se mostre adequada à produção desse dano, diante das regras da experiência comum, ou outras concretamente conhecidas do agente. A ideia fulcral desta doutrina é a de que se considera causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostra idónea a produzi-lo. Torna-se necessário, portanto, não só que o facto se revele, em concreto, condição necessária do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada a sua produção. E sem dúvida que constitui questão simultâneamente de direito e de facto, o determinar se, no plano geral e abstracto, a condição verificada podia ou não ser causa adequada do dano e, posteriormente, se isso também ocorreu na realidade concretamente apurada.

Donde que se tenha que reconhecer que o nosso direito não acolheu a teoria da chamada condição sine qua non – em função da qual toda a condição imprescindível ao dano seria relevante – e, muito menos, a da causa virtual – dado que não abdicou do funcionamento em concreto da condição a eleger.

Mas também não recebeu um sistema de repartição de causas, com a mitigação do grau de responsabilização do autor de uma delas, como sucedeu com a disciplina para a concorrência de vários responsáveis a título de culpa ou risco – cfr. os art.ºs  497, nº 2 e 596 do C.C..

Daí que, ao contrário da tese sufragada pela sentença, se antolhe como sem apoio na lei a declarada redução da responsabilidade dos RR. por efeito da invocada concorrência de outras causas para os danos.

 

Sabido que a nossa lei não perfilhou a teoria da condição sine qua non, pela mão da qual qualquer facto que naturalísticamente interferisse de modo essencial na produção do resultado poderia ser considerado causa jurídica relevante deste, acarretando a responsabilidade do seu autor, veio, no entanto, e concomitantemente, exigir ainda que - face ás circunstâncias (entrando aqui as conhecidas do lesante e às cognoscíveis por um observador experiente) fosse expectável que, pelo curso normal das coisas, aquele resultado viesse a desencadear-se pela ocorrência do facto em apreço.

É causa do dano aquela condição sem a qual este não podia verificar-se, mas que é oriunda daquela acção ou intervenção humana que teve especial influência na génese do mesmo dano.

Por assim ser é que há quem apropriadamente diga que a teoria da causalidade é sobretudo uma teoria da imputação objectiva[1], não sendo alheia a essa perspectiva a consideração de que entre todas as condições naturalísticas que concorreram na produção de um dano será apenas causa juridicamente relevante aquela (ou eventualmente aquelas) que como condição imputável a determinada pessoa se interpôs decisivamente no processo que conduziu ao resultado danoso.

Esta imputação não se confunde, portanto, com a imputação de valor ou o juízo de censura sobre o autor de facto que integra já a noção de culpa.

Traduz tão só a necessidade de avaliação objectiva de todo o contexto razoável em que surge o facto supostamente causante.

Tem entendido a doutrina que basta até uma causa meramente indirecta, requerendo-se apenas que todos os factos ulteriores correspondam ao curso esperado ou normal das coisas ou tenham sido especialmente favorecidos pelo comportamento do agente. Como se exarou no Ac. do STJ de 15/04/93 (CJ/STJ, 1993, 2º - 59) a condição deixa de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a sua produção e só se tornou condição dele em virtude de circunstâncias extraordinárias.

Isto é, se dada a sua natureza geral, e em função de curso esperado da vida, a condição era de todo irrelevante para que dela se pudesse esperar a manifestação do dano, que só provocou em virtudes de circunstâncias excepcionais, anormais ou extraordinárias que hajam intercedido no caso concreto, ela não deverá se eleita como a causa do dano.         

Circunstâncias extraordinárias não equivalem a circunstâncias meramente externas e não controláveis para o causante.

Nunca serão circunstâncias extraordinárias ou excepcionais no processo dinâmico do dano aquelas que o autor do facto conhecia ou com as quais devia contar como passíveis de estarem ou virem a desenrolar-se no momento em que o praticou.

O risco de verificação de um resultado danoso existe em qualquer momento da actividade humana. Todo o resultado danoso é o produto de uma concatenação imensa de causas ou condições, sendo umas indispensáveis e outras não. Só que é o facto ou acção do causante que vai agravar ou potenciar especialmente o risco respectivo, ainda que por força de um contexto, que, sendo dele conhecido ou cognoscível, o propicia. O facto do causante apenas o facilita particularmente, acabando por determiná-lo. 

Nas lúcidas palavras do Prof. Galvão Tellles[2], de resto, oportunamente citadas na decisão, não obstante toda a condição do prejuízo poder integrar, em princípio, uma sua causa adequada, adquire irrelevância como tal sempre que, diante das circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática da acção, esta não se apresenta de molde a agravar o risco de verificação do dano.

Causa adequada do dano é, afinal, aquele facto pelo qual o respectivo autor agrava o risco ou possibilidade física do nascimento desse mesmo dano.

Das considerações expostas pode, por conseguinte, retirar-se que a intempérie de Outubro, apesar da respectiva violência - traduzida na destruição de janelas, telhados, entupimento de canos - não se apresentou como uma circunstância extraordinária para um homem médio posicionado na situação dos RR., no sentido de que com a obstrução (ou eliminação) do escoamento das águas pluviais advindas do telhado, nunca fosse de conjecturar uma tal possibilidade. E, não sendo de modo algum de excluir mas antes de admitir a hipótese de se desencadear um temporal idêntico ao que efectivamente se deu, não era igualmente razoável que, num tal cenário, a sua acção não viesse a ter uma influência crucialmente negativa no escoamento da água do edifício e na integridade do património que compunha as fracções do rés-do-chão e o equipamento dos estabelecimentos nele instalados.

Importa notar que, em consonância com o provado em 12, foi na verdade a obstrução levada a cabo pelos RR. que conduziu à acumulação das águas no telhado e a posterior infiltração na fracção ocupada pela A.. Ou seja, só por si, o temporal que se formou no local não seria capaz de provocar as infiltrações de água que atingiram a fracção da A. Foram aquelas obras dos RR. o factor de especial favorecimento da inundação constatada, cujo risco agravaram significativamente.

Do mesmo modo, nada na matéria provada inculca que o estado de degradação geral do edifício – que os RR. obviamente conheciam, e que nada indica que já não se verificasse em 1991 – tenha estado na razão directa da penetração da água no rés-do-chão e no estabelecimento da A. É que, não fora o obstáculo ao escoamento das águas, é natural que, mesmo nas condições atmosféricas que se desencadearam, estas se tivessem disseminado pelas zonas superiores do prédio, sem a acumulação que acabou por ter lugar. Aliás, é esta mesma realidade que está inequívocamente subjacente ao nº 12 dos factos provados, matéria que – como acima já se explicitou – não pode deixar de ser compaginada com a que se mostra consignada em 10. Desta se depreende que haveria perdas de águas pluviais pelos diversos andares do edifício, mercê do seu estado, decorrentes da sua má retenção e escoamento. Mas também daquela se retira que terá sido o obstáculo criado pelos RR. o facto que, embora em circunstâncias particularmente adversas (embora não inimagináveis) acentuou e agravou a já frágil capacidade de expulsão do sistema existente.

Sem essa causa os danos não se teriam provavelmente produzido.

Donde que soçobrem as conclusões do recurso no tocante a esta questão da exclusão do nexo de causalidade.

Sobre a inexistência de lucros cessantes no objecto da indemnização.

Insurgem-se os recorrentes contra a sua condenação no pagamento à A. da quantia de € 2.500,00 a partir da propositura da acção, por cada ano que decorra até ao recebimento dos € 15.000 correspondente aos prejuízos emergentes no estabelecimento da A.

Estão em apreço os lucros cessantes da A. na exploração do estabelecimento, ou sejam, benefícios que a A. deixou de auferir em consequência da lesão.

Entendem agora que, compulsada a prova constante dos autos, designadamente as declarações fiscais da A. de 1999 e 2000, o estabelecimento desta, em vez de lucros trazia-lhe tão só prejuízos.

Contudo, já se vê que também não podem lograr qualquer êxito com esta questão.

É que o complexo factual apurado não mereceu impugnação das partes, pelo que a reapreciação das provas é neste momento um problema definitivamente arrumado.

E atentando no elenco acima consignado, dele se colhe que "nos últimos quatro anos (considerando a época da propositura da acção), com a exploração do seu estabelecimento a A. teve um rendimento médio anual de € 6.030,67" – cfr. o facto provado em 19.

Há que interpretar esta afirmação como reportando-se naturalmente ao rendimento líquido (de encargos), de harmonia com a convicção formada pela 1ª instância, expressa na motivação de fls. 404, em que se refere a conjugação das declarações fiscais da A. juntas ao processo com a restante prova produzida.

A sentença até veio a condenar os RR. no pagamento, não naquele valor, mas de apenas em € 2.500,00 (anuais).

Em todo o caso, com os factos apurados, retirar à A. o crédito indemnizatório pela paralização do estabelecimento e frustração do rendimento comprovado nos autos, constituiria uma flagrante violação dos princípios advenientes dos art.ºs 562 e 564 do C. Civil.

Pelo que improcedem as conclusões atinentes.    

            

Sobre o excesso dos montantes indemnizatórios fixados pelos danos patrimoniais e não patrimoniais da A.

Advoga a apelante que não há danos não patrimoniais que assumam a dignidade ressarcitiva que lhes foi conferida, uma vez que na hipótese vertente eles se reduziriam à dimensão lúdica da A..

A decisão ora impugnada arbitrou, não a verba indicada pelos apelantes - € 5.000 – mas apenas a de € 2.500, observando que a A. ficou privada de um "entretém".

Ora, salvo o devido respeito, os danos reflectidos no acervo fáctico nenhuma afinidade têm com a perda de um entretém da lesada. Antes patenteiam o desgosto e transtorno por esta sofridos com a destruição do seu meio de subsistência, pelo que revestem gravidade bastante para que lhes seja concedida a tutela prevista no nº 1 do art.º 496 do CC. O M.mo Juiz, entendeu por justa a atribuição à A., a este título, de uma parcela indemnizatória de € 2.500, por efeito de uma atenuação da responsabilidade dos Réus decorrente do concurso de outras causas para os danos.

Simplesmente tal redução não acha respaldo de iure condito. Nem para o caso pode ser trazido o disposto no art.º 494 do C.C., atinente à limitação da indemnização fundada em mera culpa do responsável, dado que aqui se está perante uma norma excepcional, a regular a reparação do lesado apenas em função o grau de censura a impor ao acto do lesante. Não pode ser aplicada no plano da relação causal dos danos.

Atento que os recorrentes apenas dissentem do valor de € 5.000 (que erróneamente imputam à sentença, visto esta ter arbitrado apenas os aludidos € 2.500) não há motivo para alterar o decidido, face à fronteira traçada pelas conclusões do recurso, nos termos do art.º 684, nº 3 do CPC.

Propõem ainda os recorrentes a redução da indemnização para 60% do valor dos danos emergentes, constituídos pelos estragos provocados no estabelecimento da A..

A sentença recorrida, ao que parece, alterou o crédito da apelada pelos prejuízos materiais de € 25.558,00 para € 15.000,00, fazendo uso do mecanismo de redução já referido e rejeitado (concorrência de outras causas).

Não havendo, por isso, fundamento para reduzir a indemnização a arbitrar - abaixo do efectivo valor dos danos da A. – importaria até que os RR. fossem condenados ao pagamento da integralidade dos danos comprovados. No entanto, o princípio da proibição da reformatio in pejus que se encontra plasmado no art.º 684, nº 4 do CPC não o permite.

Donde o rotundo insucesso da questão suscitada.

Pelo exposto, embora por fundamentos não coincidentes, julgam improcedente a apelação, confirmando a sentença.

Custas pelos apelantes.


[1] Como anota A, Varela, em Das obrigações em Geral, Almedina, 2ª edição, 1973, a p. 745.
[2] Direito das Obrigações, 6ª ed., pág.s 404-405.