Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1522/02.4TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HEITOR VASQUES OSÓRIO
Descritores: IMPEDIMENTO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
Data do Acordão: 06/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – VARA MISTA.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 40.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I. - Está impedido para o julgamento de arguido acusado de crime de corrupção passiva para acto ilícito, o juiz que, na fase do inquérito e na qualidade de juiz de instrução criminal, aplicou a co-arguidos daquele, medidas de coacção previstas nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal, por existirem fortes indícios da prática, por estes, de crimes de corrupção activa em que o corrompido era aquele outro arguido, não tendo os corruptores sido acusados, antes tendo o processo suspenso provisoriamente, na condição de testemunharem no julgamento.
Decisão Texto Integral: 10

No processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, nº 1522/02.4TACBR, da Vara Mista de Coimbra, os arguidos, …, casado, funcionário público, e, …casado, reformado, .. e aí residente, foram acusados pelo Digno Magistrado do Ministério Pública pela prática de:
- O primeiro arguido, como autor imediato, na forma continuada e consumada, e em concurso efectivo e real, um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelos arts. 26º, 30º, nº 2, 65º a 68º, 372º, nº 1 (redacção da Lei nº 108/2001, de 28 de Novembro) e 386º, nº 1, a), do C. Penal, com referência aos arts. 3º, nºs 3, 4, a) e d), 8 e 9, e 26º, nº 4, b), do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos, e um crime de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, a), do Dec. Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro (alterado pelas Leis nº 65/98, de 2 de Setembro, 104/2001, de 25 de Agosto, 5/2002, de 11 de Janeiro e 10/2002, de 11 de Fevereiro e pelo Dec. Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro), agora p. e p. pelo art. 368º-A, nºs 1, 2 e 3, do C. Penal (redacção da Lei nº 11/2004, de 27 de Março;
- O segundo arguido, como autor imediato, na forma continuada e consumada, e em concurso efectivo e real, um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelos arts. 26º, 30º, nº 2, 65º a 68º, 372º, nº 1 (redacção da Lei nº 108/2001, de 28 de Novembro) e 386º, nº 1, a), do C. Penal, com referência aos arts. 3º, nºs 3, 4, a) e d), 8 e 9, e 26º, nº 4, b), do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos, e um crime de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, a), do Dec. Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro (alterado pelas Leis nº 65/98, de 2 de Setembro, 104/2001, de 25 de Agosto, 5/2002, de 11 de Janeiro e 10/2002, de 11 de Fevereiro e pelo Dec. Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro), agora p. e p. pelo art. 368º-A, nºs 1, 2 e 3, do C. Penal (redacção da Lei nº 11/2004, de 27 de Março;
- O terceiro arguido, como autor imediato, na forma continuada e consumada, um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelos arts. 26º, 30º, nº 2, 65º a 68º, 372º, nº 1 (redacção da Lei nº 108/2001, de 28 de Novembro) e 386º, nº 1, a), do C. Penal, com referência aos arts. 3º, nºs 3, 4, a) e d), 8 e 9, e 26º, nº 4, b), do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos.
Designado dia para julgamento, a fls. 1911 a 1913, o arguido …os requereu a declaração de impedimento da Senhora Juíza Presidente do Tribunal Colectivo, alegando que os autos se iniciaram com o Inquérito nº 1182/98.5JACBR, no qual foram constituídos arguidos, …, …, …., …. os quais, depois de sujeitos a interrogatório de arguido detido ficaram sujeitos, o primeiro, à obrigação de permanência na habitação, os segundo, terceiro e quarto, a apresentação semanal nos posto policial da área da residência e à proibição de contacto com ex-alunos das escolas de condução, e aos dois últimos foi imposta a suspensão do exercício das suas funções públicas de examinadores da DGV, medidas de coacção estas que foram aplicadas pela Senhora Juíza de Instrução Criminal com base nos indícios existente da prática de um crime de corrupção activa pelos quatro primeiros arguidos e de um crime de corrupção passiva pelos dois últimos arguidos, juízo que foi igualmente formado pelo Digno Magistrado do Ministério Público quando em 30 de Outubro de 2002 procedeu à divisão do processo, passando os arguidos …, …a cumprir as medidas de coação no novo inquérito, ao qual foi atribuído o nº 1522/02.4RACBRfuidos (os presentes autos), e mantendo-se os arguidos …, …no primitivo inquérito, sendo a Senhora Juíza de Instrução referida e a Senhora Juíza Presidente do Tribunal Colectivo, a mesma Magistrada Judicial, pelo que se verifica o impedimento previsto na alínea a), do art. 40º, do C. Processo Penal.
Aberta a audiência no dia 23 de Janeiro de 2008, pela Mma. Juíza Presidente foi proferido o seguinte despacho, que se transcreve:
“ (…).
Requerimento de declaração de impedimento com fundamento na realização de diversos actos durante o inquérito.
Compulsados os autos, verifica-se que autorizei a intercepção e gravação de escutas telefónicas – cfr fls 35, 53, 68, 87, 92 a 94, 111 a 113, 154 a 157 – e determinei a realização de buscas domiciliárias – cfr fls 299 a 308 – e apreensão de contas bancárias – cfr fls 605 – no âmbito de um inquérito que deu origem aos presentes autos por separação determinada com os fundamentos constantes de fls 365 a 367.
Sendo certo que determinei a prisão preventiva de arguidos – cfr fls 166 a 193 – no supra referido NUIPC 1182/98.5JACBR – de onde foram extraídas as certidões mencionadas a fls 1 – certo é também que relativamente aos arguidos deste processo apenas determinei a medida de coacção de suspensão do exercício de funções públicas de examinador da DGV ao abrigo do disposto no art. 199, nº 1 al. b), e nº 2 do CPP.
A simples leitura do disposto no artigo 40º do CPP afasta, pois, o alegado impedimento de participação no julgamento.
Não se me afigura, no caso concreto, que uma interpretação conjugada com os princípios constitucionais, nomeadamente a estrutura acusatória constante do art 32º da CRP, imponha conclusão diversa.
A jurisprudência superior, que se pronunciou sobre a questão – Acs STJ de 24-09-1998, de 15-01-1997, de 25-05-1995 e de 2-4-1998 (www.dgsi.pt) – entende que o referido art 40º é inconstitucional quando permite que o juiz de instrução que não tenha uma intervenção processual esporádica e perfunctória, participe no julgamento. Compreende-se que assim seja, pois o conhecimento profundo dos autos, em abstracto, é passível de comprometer a isenção e imparcialidade que com que o juiz deve actuar no julgamento.
Porém, no caso concreto, verifica-se que após a separação de processos não tive qualquer outra intervenção processual no processo até à prolação do despacho a designar data para julgamento. O que exclui o prévio conhecimento profundo dos autos.
Assim sendo, atento o disposto no art. 40º do CPP, indefere-se o requerido, não reconhecendo qualquer impedimento para efectuar o julgamento.
(…)”.
Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso, de imediato, o arguido …., que logo após, foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
No termo da respectiva motivação, o recorrente formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1.º Requereu o Arguido, ora Recorrente, a declaração de impedimento da Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo …, pedido esse que foi indeferido, fundamentando-se tal decisão no facto de que não existiu prévio conhecimento profundo dos autos. É de tal despacho que não reconheceu o impedimento que ora se recorre.
2.º Os presentes autos iniciaram-se em fase de inquérito como processo n.º 1182/98.5JACBR, nos quais foram constituídos arguidos …, …, …, …, e que, na sequência da execução de mandados de detenção, foram presentes ao Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra para interrogatório, tendo-lhes sido aplicadas, pela Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza de Instrução…, então Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, as seguintes medidas de coacção:
- ao arguido …foi aplicada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, prevista no art.º 201.º do CPP;
- aos arguidos …, …foi imposta a suspensão do exercício das suas funções públicas de examinadores da DGV;
- e aos arguidos …, …, … a obrigação de apresentação semanal no posto policial da sua área de residência e a proibição de contactos com ex-alunos das suas escolas de condução, previstas nos arts. 198.º e 200.º do CPP;
(tudo conforme consta do despacho proferido de fls. 336 a 338 dos presentes autos).
3.º Segundo consta expressamente do despacho que aplicou tais medidas de coacção, as mesmas fundamentaram-se, para os diversos arguidos, em indícios relativamente a factos idênticos, configurando para alguns dos Arguidos indícios da prática de um crime de corrupção activa (…, …, … ) e para outros indícios da prática de um crime de corrupção passiva (…, …).
4.º proferido despacho de acusação contra os Arguidos …, …, …. e não contra os demais por lhe ter sido aplicada a suspensão provisória do processo ao abrigo do disposto no art.º 9.º da Lei n. ° 36/94, de 29 de Setembro, precisamente para poderem ser ouvidos como testemunhas nos presentes autos), foi o mesmo distribuído à 1.ª Secção das Varas Mistas de Coimbra, tendo sido atribuída à Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza … a presidência do Tribunal Colectivo.
5.º Nos termos do art. 40.º, al. a), do CPP, na redacção dada pela recente entrada em vigor da nova reforma, nenhum juiz pode intervir em julgamento em que tiver aplicado medida de coacção previstas nos artigos 200.º a 202.º – o que sucede no caso concreto.
6.º Entendeu o Tribunal a quo diferentemente, afirmando que aos arguidos deste processo apenas foram aplicadas as medidas de coacção de suspensão do exercício de funções de examinador da DGV, ao abrigo do disposto no art.º 199.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP. No entanto, como acima defendemos, é de nossa opinião haver necessidade de analisar a presente questão em termos mais amplos.
7.º Na actual redacção do art.º 40.º do CPP, ao alargar o âmbito de aplicação do impedimento também para aqueles casos em que tenha havido a aplicação (e já não só aplicação e manutenção) das medidas de coacção de imposição de obrigações e de obrigação de permanência na habitação, o legislador pretendeu garantir que naqueles casos em que tenha havido já um juízo existência de indícios suficientes de tal forma forte que tenha motivado a aplicação de uma das três medidas de coacção previstas no 40.º, al. a), do CPP, seja garantido ao Arguido um julgamento por Tribunal imparcial, assegurando-se todas as suas garantias de defesa e afastando-se qualquer possibilidade de formulações de pré-juízos anteriores à produção de prova em julgamento, bem como a imparcialidade objectiva daquele Tribunal.
8.º Nos presentes autos foram aplicadas aos então arguidos medidas de coacção previstas nos art.s 200.º e 201.º do CPP. Nomeadamente, aos Arguidos …, … foram aplicadas medidas de coacção previstas no art.º 200.º do CPP, que ficaram obrigados a cumprir, após separação dos processos, à ordem dos presentes autos.
9.º O facto de aqueles então arguidos (bem como …) o já não serem (mas sim testemunhas pelas razões já alegadas), em nada invalida o impedimento consagrado no art.º 40.º do CPP. Efectivamente, existe uma correlação inapartável entre os indícios dos factos que fundamentaram a aplicação daquelas medidas de coacção e os indícios que sustentaram o proferimento de despacho de acusação contra os ora Arguidos.
10.º Ou seja, em ambas as situações, a aplicação das medidas de coacção baseou-se no mesmo juízo de culpabilidade indiciária. Não obstante a diferenciação entre os dois tipos de ilícito por que estavam os arguidos indiciados (corrupção activa para prática de facto ilícito e corrupção passiva para prática de facto ilícito), a verdade é que existe uma sobreposição inapartável entre ambos, podendo mesmo dizer-se que, no caso em concreto, são as duas faces da mesma moeda.
11.º Enquanto Juíza de Instrução, a agora Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo autorizou a intercepção e gravação das comunicações efectuadas pelos arguidos, bem como, buscas às residências e veículos dos mesmos (cfr. fls 122 e 123 e 297 a 314 dos presentes autos).
12.º Se atentarmos na acusação pública que será submetida a julgamento, a prova requerida pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público funda-se, precisamente, em diligências probatórias autorizadas e validadas pela agora Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo. As perícias financeiras e contabilísticas foram realizadas em consequência da apreensão das contas bancárias ordenada pela Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo, a fls. 650, bem como todas as escutas telefónicas realizadas nos presentes autos foram autorizadas e validadas pela Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo, a fls. 35,53,68,87,92 a 94, 111 a 113, 154 a 157, como também as buscas que foram realizadas, o foram por determinação da Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo, a fls. 299 e 308.
13.º Assim, a participação da Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza … na fase de inquérito dos presentes autos foi intensa, não tendo praticado um acto jurisdicional meramente pontual, mas sim vários, validando, determinando e/ou autorizando praticamente todas as diligências probatórias que a acusação requerer sejam produzidas em julgamento.
14.º Nestes termos, a participação reiterada em sede de inquérito e a aplicação a arguidos constituídos nos presentes autos das medidas de coacção previstas nos art.s 200.º e 201.º do CPP, importaria o reconhecimento da existência de um impedimento para a intervenção em julgamento por parte da Ex.ma Senhora Dr.ª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo.
15.º Ao não reconhecer qualquer impedimento para efectuar o julgamento, violou o Tribunal a quo o disposto no art.º 40.º, al. a), do CPP, bem como o disposto no artº 32.º da CRP.
16.º Acresce que uma interpretação da norma constante do art.º 40.º do CPP, segundo a qual não existe impedimento por parte do juiz, que interveio durante a fase de inquérito, validando, determinando e/ou autorizando a quase totalidade dos meios de prova requeridos na acusação pública, aplicando a co-arguidos medidas de coacção previstas nos arts. 200.º e 201.º do CPP, de intervir, no mesmo processo, em julgamento, é patentemente inconstitucional, por violação do princípio da estrutura acusatória do processo criminal, previsto no art.º 32.º, n.º 5, da CRP, bem como do princípio a um processo equitativo, conduzido por Tribunal imparcial, previsto no art.º 32.º, n.º 1, da CRP.
Termos em que e nos melhores de direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso, reconhecendo-se a existência do impedimento requerido, revogando-se, assim, a decisão de que ora se recorre.
(…)”.
Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1 Havendo separação de processos e sendo autonomizável o respectivo objecto, não está impedido de intervir no julgamento por força do artº 40º alª a) do CPP o juiz que, como juiz de instrução, tiver aplicado no processo original medidas de coacção previstas nos artºs 200º a 202º do CPP, posto que não tenha aplicado qualquer dessas medidas a nenhum dos arguidos que o são no processo separado.
2 O objecto destes autos de processo separado é autonomizável relativamente ao que permaneceu sendo o do inq. 1182/98.5JACBR tendo resultado, inclusivamente, na constituição de novos arguidos.
3 A intervenção da Juiz Presidente como juiz de instrução, no que respeita a estes autos limitou-se à aplicação ao recorrente e a outro arguido, antes da separação, de medidas de coacção não previstas nos artºs 200º a 202º do CP.
4 Como tal, foi esporádica e perfunctória, pelo que não bole com o princípio do acusatório e com o direito fundamental do arguido à defesa, constitucionalmente consagrados no artº 32º da CRP.
Bem andou, portanto, a Mª Juiz recorrida em indeferir o requerimento do recorrente no sentido de se declarar impedida.
(…)”.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, louvando-se na argumentação expendida pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, concluiu pela confirmação da decisão recorrida.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo o recorrente respondido, reafirmando o assumido na motivação do recurso.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões que urge decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A de saber se está ou não verificado o impedimento previsto no art. 40º, a), do C. Processo Penal;
- Sendo negativa a resposta dada à anterior questão, a de saber existe violação do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
Da verificação do impedimento por participação em processo
1. O nosso processo penal, por exigência constitucional – art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa – tem estrutura acusatória.
Essencial ao princípio do acusatório é a separação entre a entidade que investiga e acusa, e a entidade que julga o thema decidendum por aquela definido. Como doutrinam Gomes Canotilho e Vital Moreira “A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânica-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Ed. Revista, 522).
Só desta forma se harmoniza o interesse público da punição com a necessária imparcialidade do julgador, assim se alcançando um processo justo e equitativo.
Mas um processo penal assente numa estrutura acusatória comporta ainda assim diversos graus, em função da maior ou menor intervenção relativa, atribuída à entidade que investiga e acusa e à entidade que julga.
Nesta perspectiva, o nosso processo penal tem sido entendido como de base acusatória, flexibilizado ou moderado pelo princípio da investigação também na fase do julgamento.
1.1. A imparcialidade do juiz é, como vimos, uma exigência do processo justo mas também, um direito dos cidadãos enquanto destinatários da justiça.
Por isso a lei do processo, para garantir o princípio da imparcialidade, estabelece um regime de incompatibilidades, impedimentos, recusas e escusas do juiz. Aqui se prevêem situações objectivas – ligação do juiz com os intervenientes processuais, ou anterior intervenção do juiz no processo – que fazem legitimamente suspeitar da imparcialidade do juiz.
O art. 40º do C. Processo Penal, na redacção da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, dispõe:
Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.”.
Na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o art. 40º do C. Processo Penal passou a dispor:
Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores;
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.”.
Comparando as duas redacções podemos afirmar que mais uma vez – tendo em conta as alterações que o art. 40º do C. Processo Penal tem sofrido desde a sua versão original – o legislador assumiu como critério para definir as situações em que a imparcialidade do juiz que já participou em fase anterior do processo é objectivamente posta em causa, o do grau de intensidade da sua intervenção.
Para a concreta questão em apreço, releva a alínea a), do artigo citado, na actual redacção, segundo a qual, está impedido o para o julgamento, o juiz que no processo tenha aplicado medida de coação prevista nos arts. 200º a 2002º (na mesma redacção) ou seja, proibição e imposição de condutas (proibição de permanência, de ausência e de contactos, na anterior redacção), obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva.
Posto isto.
1.2. Preside ao julgamento que se iniciou com a audiência de julgamento do dia 23 de Janeiro de 2008 (fls. 1922), a Mma. Juíza, Sra. Dra. ….
A mesma Magistrada Judicial desempenhou funções de Juíza de Instrução Criminal no Inquérito nº 1182/98.5JACBR.
O Inquérito nº 1522/02.4TACBR – ou seja, os presentes autos – teve origem em certidão extraída daquele inquérito (fls. 1 a 364), ficando a separação a dever-se a razões de celeridade processual e a ter sido entendida como viável a distinção entre os factos ocorridos no Centro de Exames de Tábua (CET) e os factos ocorridos no Centro de Exames da DGV de Coimbra já que apenas teriam como ligação processual o facto de o então arguido … figurar como corruptor activo, quer em relação ao CET, quer em relação a dois examinadores do Centro de Exames da DGV de Coimbra (fls. 1652 e ss.).
No Inquérito nº 1182/98.5JACBR, e enquanto Juíza de Instrução Criminal, a Sra. Dra…., em diversos despachos:
- Solicitou facturação detalhada a uma operadora de telemóveis e determinou a intercepção e gravação de conversas (fls. 35);
- Considerou relevantes as gravações, ordenou a sua transcrição e prorrogou o prazo de intercepção e gravação (fls. 53 a 54, fls. 68 a 70, fls. 92 a 94 e fls. 111 a 113);
- Determinou a realização de buscas e a apreensão de contas bancárias, e prorrogou a autorização de intercepção e gravação de conversas (fls. 154 a 158);
- Validou as conversas gravadas (fls. 197);
- Prorrogou o prazo de intercepção e gravação (fls. 201 a 2029;
- Ordenou a transcrição de conversas e prorrogou o prazo de intercepção e gravação (fls. 218);
- Determinou a apreensão de contas bancárias e a realização de buscas (fls. 299 a 302).
No mesmo inquérito e na mesma qualidade, a Sra. Dra. … procedeu ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, dos arguidos:
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de apresentação periódica e proibição de contactar com ex-alunos das escolas de condução (fls. 166 e 190 e ss.);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 169 e 190 e ss.);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 171 e 190 e ss.);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 172 e 190 e ss.);
- …s, a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 175 e 190 e ss.);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de apresentação periódica, proibição de contactar com ex-alunos das escolas de condução, e suspensão de funções de examinador (fls. 177 e 190 e ss.);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 181 e 190 e ss.);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 183 e 190 e ss.);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de apresentação periódica e proibição de contactar com ex-alunos das escolas de condução (fls. 319 e 336 a 338);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de apresentação periódica e proibição de contactar com ex-alunos das escolas de condução (fls. 322 e 336 a 338);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de apresentação periódica e proibição de contactar com ex-alunos das escolas de condução (fls. 325 e 336 a 338);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de suspensão de função (fls. 327 e 336 a 338);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de suspensão de função (fls. 330 e 336 a 338);
- …, a quem foi aplicada a medida de coacção de permanência na habitação (fls. 332 e 336 a 338).
Quando, no Inquérito nº 1182/98.5JACBR é ordenada a separação de processos, nos termos que ficaram referidos, foi igualmente determinado que à ordem do referido inquérito continuariam os então arguidos …, …, …, …, todos em prisão preventiva, …, sujeito a permanência na habitação, e …, sujeito a apresentação periódica e proibição de contactos com ex-alunos das escolas de condução.
Ficando à ordem do novo inquérito – os presentes autos – os arguidos …e …, sujeitos a suspensão de função, … e …, sujeitos a apresentação periódica e proibição de contactos com ex-alunos das escolas de condução.
No inquérito separado que deu origem aos presentes autos foram constituídos arguidos outros cidadãos, mas já sem a intervenção da Sra. Dra. … como Juíza de Instrução Criminal (…, a fls. 1614, e …, a fls. 1618).
A fls. 1652 e ss., o Digno Magistrado do Ministério Público, nos termos do art. 281º, do C. Processo Penal e da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, propôs a suspensão provisória do processo relativamente aos arguidos – corruptores activos –…, …, …, …com a condição de, além de outras, consentirem em prestar depoimento na qualidade de testemunha, nos termos do art. 133º, nº 2, do C. Processo Penal, em julgamento que vier a realizar-se sobre a matéria investigada nos autos.
Esta proposta obteve a concordância da Mma. Juíza de Instrução Criminal (fls. 1662) – que não é já a Sra. Dra. … – pelo que o processo ficou suspenso provisoriamente, relativamente a tais arguidos.
E assim, foi apenas deduzida acusação contra os arguidos …, …, ….
1.3. Pretende o recorrente que a Mma. Juíza Presidente, Sra. Dra. … se encontra impedida de presidir ao julgamento nos termos do art. 40º, a), do C. Processo Penal, na actual redacção por, enquanto Juíza de Instrução Criminal, ter decretado a co-arguidos, a proibição de contactos com outras pessoas, a obrigação de permanência na habitação e a prisão preventiva.
Como consta do despacho do Digno Magistrado do Ministério Público que determinou a separação de processos, o elemento de conexão existente consistia em o arguido … surgir como corruptor activo, quer relativamente a examinadores do CET, quer relativamente a examinadores do Centro de Exames da DGV de Coimbra, mas nada mais se evidenciava, para além disto, pelo que eram autónomas as duas situações, e havia interesses atendíveis por parte de arguidos detidos preventivamente, tendo um deles efectuado já um pedido de aceleração processual.
Mas ao cessar a conexão e por isso, ao ser criado, com base em certidão do Inquérito nº 1182/98.5JACBR, um novo Inquérito, com o nº 1522-02.4TACBR não deixou a parte dos autos que é comum a ambos de integrar este último. E a ser assim, parece ser exacta a afirmação de que a Mma Juíza de Instrução, Sra. Dra. …aplicou nos autos a medida de prisão preventiva e a medida de permanência na habitação, se bem que a arguidos que, nos termos do despacho que determinou a separação de processos, tenham permanecido à ordem do primitivo processo, do Inquérito 1182/98.5JACBR.
Por outro lado, certo é também que, tendo sido aplicada pela Mma. Juíza de Instrução, Sra. Dra. …, no Inquérito nº 1182/98.5JACBR, ainda antes do despacho que ordenou a separação de processo, aos arguidos…, …, além de outras, a medida de proibição de contactos com ex-alunos, no mesmo despacho foi determinado que estes arguidos cumpririam tais medidas à ordem do novo inquérito ou seja, dos presentes autos.
Dúvidas não restam pois, de que a Mma. Juíza, enquanto Juíza de Instrução Criminal, aplicou no processo, medida de coacção prevista nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal.
Mas ainda assim a questão não fica solucionada.
No despacho recorrido pode ler-se, “aos arguidos deste processo apenas determinei a medida de coacção de suspensão de funções públicas de examinador da DGV ao abrigo do disposto no art. 199º, nºs 1, b) e 2, do C. Processo Penal. A simples leitura do disposto no art. 40º do CPP afasta, pois, o alegado impedimento de participação no julgamento.
A Mma. Juíza entendeu pois que a aplicação de medidas de coacção que determinam o impedimento do juiz de instrução para intervir no julgamento, tem que o ter sido a arguidos levados a julgamento, e não apenas a arguidos que, por qualquer razão, não serão julgados.
Com efeito, e como já se disse, o arguido … – que não obstante ter sido inicialmente determinado que ficaria à ordem do Inquérito nº 1182/98.5JACBR, veio a ficar nestes autos – a quem foi aplicada a medida de coacção de permanência na habitação (art. 201º, do C. Processo Penal), e os arguidos … e …, a quem foi aplicada, além de outras, a medida de coacção de proibição de contactarem com ex-alunos (art. 200º, do C. Processo Penal), já nestes autos (nº 1522/02.4TACBR) não foram acusados, antes viram suspenso provisoriamente o processo, na condição de testemunharem no julgamento que viesse a realizar-se sobre a matéria investigada nos autos ou seja, no julgamento que suscitou o impedimento em recurso.
Num primeiro momento, diremos que, apesar da lei não distinguir, o que pode criar dúvidas à comunidade sobre a imparcialidade do juiz e que por isso, determina objectivamente o seu impedimento, é a circunstância de ir julgar alguém sobre quem, em momento prévio e ao aplicar determinadas medidas de coacção, efectuou um juízo, mais ou menos exigente e intenso, sobre a sua culpabilidade relativamente á prática de determinado crime. Na verdade, a aplicação das medidas de coacção previstas nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal, depende sempre da existência de fortes indícios da prática de crime doloso, e não apenas, da existência de indícios.
E este juízo formulado numa fase processual anterior à do julgamento pode contaminar o juiz, afectando a sua imparcialidade para intervir naquele.
Assim, podemos dizer que, em regra, o impedimento do art. 40º, a), do C. Processo Penal, na actual redacção, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz de instrução criminal que, na fase do inquérito ou da instrução, lhe aplicou medida de coacção prevista nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal.
1.4. Mas casos podem existir em que, por identidade de razões com as que levaram o legislador a estabelecer o impedimento, se deva igualmente considerar a sua verificação, sobretudo quando são comportados pela letra da lei, e se assegura, sem margem para dúvidas, a estrutura acusatória do processo penal e consequentemente, o respeito pelo art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
E cremos que é, precisamente, o que sucede nos autos onde, como bem alertou o Exmo. Procurador da República junto da 1ª instância, nos encontramos numa situação limite.
Resulta da leitura da acusação, relativamente aos imputados crimes continuados de corrupção passiva por acto ilícito, p. e p. pelo 26º, 30º, nº 2, 65º a 68º, 372º, nº 1 (na redacção da Lei nº 108/2001, de 28 de Novembro) e 386º, nº 1, a), do C. Penal, aos arguidos …e …, e na parte em que agora releva, que quem os corrompeu, através de pedidos de facilitação em exames de condução, são os arguidos … que, enquanto dono de várias escolas de condução, tem um papel mais substancial, e os arguidos … e …, que dirigiam escolas de condução pertencentes ao ….
Assim, dentro de cada acção – considerando agora cada uma das concretas condutas que, nos termos da acusação, integram a continuação criminosa – naturalisticamente considerada, os arguidos …e/ou …. são os corrompidos, e os arguidos …e/ou … e/ou … são os corruptores.
Ainda que a teoria da bilateralidade da corrupção esteja definitivamente afastada, certo é que a concreta factualidade acusada permite concluir que as condutas ali imputadas aos arguidos … e …se relacionam directamente com as condutas atribuídas na mesma peça aos arguidos …, … e …, numa relação de causa e efeito ou, se se quiser, como se face e verso da mesma moeda se tratasse.
Desta forma, a intensidade do juízo formulado pela Mma. Juíza, enquanto Juíza de Instrução Criminal, relativamente aos arguidos…, … e …, que a levou a considerar existirem fortes indícios da prática por estes, de crime de corrupção activa para acto ilícito e, em consequência, a aplicar-lhes medidas de coacção que, hoje, determinariam o seu impedimento para os julgar, é indissociável do juízo que formulou relativamente ao outro lado do espelho, aos arguidos … e …, relativamente aos crimes de corrupção passiva para acto ilícito, pelos quais foram acusados e estão agora, a ser submetidos a julgamento.
E a tudo isto acresce a circunstância de, como resulta do que antes se deixou exposto, a Mma. Juíza, Sra. Dra. …., enquanto Juíza de Instrução, ter praticado diversos e relevantes actos no processo.
Deve pois, sob pena de violação do princípio do acusatório, ser estendido o impedimento da Mma. Juíza do julgamento, previsto no art. 40º, a), do C. Processo Penal (na redacção actual), à situação em apreço.
2. A procedência desta questão prejudica o conhecimento daquela outra suscitada no recurso.
Conclusão:
- Está impedido para o julgamento de arguido acusado de crime de corrupção passiva para acto ilícito, o juiz que, na fase do inquérito e na qualidade de juiz de instrução criminal, aplicou a co-arguidos daquele, medidas de coacção previstas nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal, por existirem fortes indícios da prática, por estes, de crimes de corrupção activa em que o corrompido era aquele outro arguido, não tendo os corruptores sido acusados, antes tendo o processo suspenso provisoriamente, na condição de testemunharem no julgamento.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, declaram o impedimento para o julgamento da Mma. Juíza Presidente do Tribunal Colectivo.