Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/06.7TAILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: PEDIDO CIVIL
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FALTA DA INDICAÇÃO DAS CONDIÇÕES PESSOAIS E SÓCIO-ECONÓMICA OU PROFISSIONAIS DO ARGUIDO
Data do Acordão: 11/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL - ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 410º, Nº 2 AL. A) CPP, 661º CPC
Sumário: 1. A liquidação em execução de sentença visa a economia processual relacionada com o tempo dos factos e o tempo da decisão.
2. Se no momento da decisão os danos existentes não estão quantificáveis porque circunstâncias várias só permitem a sua quantificação em momento posterior, aí justifica-se a sua liquidação em execução de sentença.
3. Se tais danos apenas não estão quantificáveis por inércia do requerente cível não se justifica a liquidação em execução de sentença. Não cabe ao tribunal beneficiar o infractor das regras processuais.
4. Ocorre o vício previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando se não consegue saber, com um mínimo de objectividade, se a razão diária fixada para a multa é justa ou não é justa e se os danos não patrimoniais estão fixados com equidade.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
No âmbito do processo comum singular supra numerado do Tribunal Judicial da comarca de Ílhavo, foi o arguido C…, projectista e decorador de interiores, residente na Av. … , Ílhavo, condenado pela prática em autoria material e em concurso real:

- de crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art° 256°, n° l, al. a) e b) e 3 do Código Penal, na pena de 180 dias de multa;

- de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º do Código Penal, na pena de 200 dias de multa;

- de um crime de usurpação de funções p. e p. pelo artigo 358º al. b) do C. Penal conjugado com o disposto no artigo 42º n.s 1 a 4 do Dec. Lei n. 176/98 de 3.07, na pena de 120 dias de multa.

- na pena única de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de 6,00€, o que perfaz a multa global de 1.800,00€.


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CM... e P..., ofendidos nos autos, vieram deduzir contra o arguido Pedido de Indemnização Civil, peticionando que o mesmo seja condenado a pagar aos demandantes a quantia 7.919,14 (sete mil, novecentos e dezanove euros e catorze cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e danos morais acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento à taxa legal.

A final decidiu a tribunal recorrido julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido e, consequentemente, condenar o demandado C… no pagamento aos demandantes P... e CM...;

- da quantia de 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a titulo de prejuízos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% contados desde a presente sentença e até integral pagamento;

- no pagamento aos demandantes da quantia de 3.000,00€ a título de prejuízos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados da notificação ao demandado do pedido de indemnização civil até integral pagamento;

- a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, nos termos do disposto pelo artigo 661º nº 2 do CPC, relativa aos prejuízos por estes sofridos atinente ao montante dispendido com os juros e despesas do crédito mais dispendioso que tiveram de contratar, nos termos e limites que acima ficaram explanados.


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O arguido, não se conformando com a decisão, interpôs o presente recurso e formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1 - O recorrente foi condenado, pela prática de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo artigo 256°, n° 1, alínea a) e b) e 3 do Cód. Penal, de um crime de burla, p.p. pelo artigo 271 ° do Cód. Penal e de um crime de usurpação de funções, p.p. pelo artigo 358°, alínea b) do Cód. Penal, conjugado com o disposto no artigo 42°, nºs 1 a 4 do Decreto-lei n° 176/98, de 03.07, na pena unitária de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de €: 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia global de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros].

2 - O recorrente foi ainda condenado no pagamento aos ofendidos da quantia de € 3.000,00 (tês mil euros) a título de danos patrimoniais, da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, relegando-se para liquidação em execução de sentença o valor acrescido dos juros e despesas bancárias alegadamente dispendido pelos ofendidos com a contracção de um crédito diferente do inicialmente previsto.

3 - Através do presente recurso pretende-se impugnar a douta decisão prolatada não só quanto à matéria de facto dada como provada, mas também quanto às consequências jurídicas daí extraídas, isto é a condenação do arguido.

4 - Pretende-se ainda impugnar, para a eventualidade de se vir a considerar que o Douto Tribunal "a quo" decidiu bem ao condenar o arguido pela prática dos citados crimes, a medida da pena que lhe foi aplicada, discordando-se ainda do montante indemnizatório a que foi condenado a pagar a titulo de danos não patrimoniais e do valor cuja quantificação foi relegada para liquidação em execução de sentença.

5 - Para fundar a sua convicção o Tribunal atendeu à admissão parcial que o arguido fez de alguma factualidade, aos depoimentos prestados pelos ofendidos P… e CM..., aos documentos juntos aos autos a fls. 6, 7, 28 a 32, 39 a 41, 42 a 52, 60 a 105, 144 a 149, 327 a 333, 338 a 342, aos depoimentos prestados pelas testemunhas R..., M..., A…, R…, N… e M…, e ainda aos documentos de fls., 217 a 227 e 283.

6 - Ora, apesar de em direito processual penal não existir um verdadeiro ónus da prova que recaia sobre o acusador ou sob o arguido, a verdade é que para haver uma condenação, a matéria da acusação tem de se verificar provada sem quaisquer margens para dúvidas.

7 - Porém, salvo o devido respeito, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não foi devidamente ponderada, já que se não teve em conta o depoimento do arguido, ora recorrente (que procurou desde o início esclarecer a verdade dos factos), valorizando-se, em detrimento do mesmo, as declarações prestadas pelos ofendidos, partes interessadas no presente processo.

8 - A ponderação e análise crítica de toda a prova produzida, na sua conjugação e valoração com as regras da experiência comum nas inferências que perante os dados objectivos delas se podem retirar, impunha que pelo menos o Tribunal "a quo" ficasse num estado de dúvida razoável que o impedisse de condenar o arguido.

9 - Assim, tendo em consideração o supra exposto, o Tribunal "a quo" não poderia ter decidido como decidiu, sendo seu dever, atendendo ao depoimento do arguido e aos demais elementos constantes do processo, absolvê-lo com recurso ao princípio do in dúbio pro reo, o que não fez, tendo, por isso, violado o citado princípio legal.

10 - Desta forma, o recorrente entende que os pontos 1, 2, 3, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 15, 16, 17, 26, 27 e 28 da matéria de facto provada se encontram incorrectamente julgados, o que resulta dos depoimentos do arguido, ofendidos e testemunhas, todos gravados em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

11 - Para se compreender os concretos pontos de facto que o recorrente considerou incorrectamente julgados, têm de se analisar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.

12 - Antes porém de o fazer, convém referir que o Douto acórdão, salvo o devido respeito, peca logo no seu início por omissão de factos que deveria ter dado como provados e o não fez, designadamente que o recorrente exerce a profissão de desenhador há cerca de trinta e seis anos, sem que tenha tido qualquer tipo de problema, que é prática comum um desenhador fazer projectos e, depois, dá-los a assinar a um arquitecto ou a um engenheiro, bem como que é usual as pessoas confundirem o desenhador com o arquitecto e com o engenheiro, factos que foram não só confirmados pelo recorrente, mas também pela Arquitecta R... nas suas declarações gravadas em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

13 - No entanto, o Douto Acórdão fez "tábua rasa" dos mesmos, em prejuízo do recorrente, quando, tendo em consideração designadamente as passagens transcritas, deveria ter dado como provada esta matéria que foi apurada em sede de audiência de discussão e julgamento e que não foi contraditada.

14 - Analisados os depoimentos prestados em sede de audiência de discussão c julgamento, designadamente o depoimento do recorrente, constata-se que o Tribunal "a quo" para decidir conforme decidiu desvalorizou o depoimento do mesmo (quando aquele depôs com clareza, sinceridade e com manifesta colaborado com a justiça no sentido de repor a verdade dos factos), em beneficio dos depoimentos dos ofendidos c das demais testemunhas de acusação.

15 - Contudo, não deixa de ser curioso que o depoimento do recorrente já tenha sido valorizado (embora de forma deturpada) em relação a determinados aspectos convenientes à prova dos factos alegados.

16 - Para tanto, basta atentar na parte em que o Douto Acórdão de que se recorre refere, na sua motivação, que o recorrente admitiu alguma factualidade, a saber:

a) a circunstância de ser conhecido como arquitecto e não fazer nada para alterar essa situação, nem sequer negar essa situação quando é qualificado como tal;

b) não ter dado conhecimento aos ofendidos de não ter entrado na Câmara com o primeiro projecto;

c) não lhes ter dito que o projecto ia ser assinado por um engenheiro;

d) ter rubricado na zona do projectista as cópias dos projectos entregues aos ofendidos.

17 - Ora, a verdade é que a alegada admissão parcial dos factos não existiu, pois que, analisado o depoimento do recorrente constata-se que o mesmo:

a) nada fez para o qualificarem como arquitecto; de facto, o arguido refere no seu depoimento que nunca se identificou como arquitecto, que não apresentava quaisquer sinais exteriores de o ser e que nunca foi apelidado de tal;

b) nega peremptoriamente ter informado os ofendidos que o processo já tinha dado entrada na Câmara;

c) refere que não achou necessário dizer que o projecto ia ser assinado por um engenheiro, quer porque nada lhe foi perguntado a esse respeito quer porque desconhecia que era condição essencial para os ofendidos ser um arquitecto a elaborar o projecto da casa; para o recorrente, condição essencial da celebração do contrato foi o ter sido ele a desenhar o projecto da casa que os ofendidos tinham visto e de que tanto tinham gostado e não o de ser ou não arquitecto.

d) esclarece que rubricou as cópias destinadas aos ofendidos, o que de igual modo fez relativamente ao projecto entregue na Câmara (este juntamente com o engenheiro Silvestre), sem que tivesse qualquer intenção de os ludibriar; (o que resulta das declarações do recorrente e dos ofendidos gravadas no sistema de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo").

18 - Assim, não se aceita que o Tribunal "a quo" tenha entendido que do depoimento do recorrente resultou uma admissão parcial dos factos acima relatados, estranhando-se ainda que o mesmo Tribunal aceite alguns factos que o recorrente descreve como verdadeiros (os analisados) e outros como não o sendo (os que infra se analisarão).

19 - Analisado o depoimento do recorrente constata-se que o mesmo nega ter-se apresentado como arquitecto, designadamente junto dos ofendidos, antes lhes tendo explicado a razão porque não tinha chegado a concluir a licenciatura em arquitectura, e que nunca os ofendidos o chamaram como tal, factos que os ofendidos, por terem interesse nisso, vieram deturpar na presente acção, tudo conforme declarações gravadas cm CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

20 - O Recorrente desconhecia que era condição deles para contratar o ele ser arquitecto, resultando do seu depoimento e das declarações prestadas pelos ofendidos que o que os levou a contactar o recorrente foi o terem tido conhecimento de que teria sido este a elaborar o projecto de uma casa de que tinham gostado muito, bem como o preço mais baixo pedido pela elaboração do dito projecto, declarações gravadas em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

21 -. O recorrente negou ter-lhes dito que o projecto já tinha dado entrada na Câmara no dia 12.07.2005, o que resulta do depoimento do recorrente gravado em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

Pergunta-se: porque voltou o Tribunal "a quo" a não valorar o depoimento do recorrente?

22 - O recorrente garante que deu conhecimento aos ofendidos, em Outubro de 2005, que só nessa data o projecto tinha dado entrada na Câmara, justificando ainda o porquê de o ter utilizado posteriormente o requerimento de fls. 41 e o motivo pelo qual só procederia à entrega do projecto naquela data, o que resulta das declarações que constam do depoimento do recorrente gravado em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

23 - O recorrente rubricou o projecto que entregou aos ofendidos; no entanto, fê-lo porque era o autor do projecto e tal cópia se destinava apenas a servir de base aos pedidos de orçamentos, não o tendo feito com intenção de ludibriar os ofendidos, levando-os a acreditar que ele era arquitecto, o que consta depoimento do recorrente gravado em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

24 - Não corresponde à verdade que a casa não estava implantada no local correcto já que foram os ofendidos que, mesmo após várias reuniões, e quando o projecto já estava concluído, decidiram alterá-lo, mudando o sítio de implantação da casa mais para a frente do terreno, situação que implicou a elaboração de um projecto completamente novo (só se aproveitou um corte longitudinal e um alçado), declarações que constam do depoimento do recorrente gravado em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

25 - É falso que o recorrente lhes tenha dito que a data da entrada do projecto se manteria, o que resulta, designadamente do seu depoimento e das declarações que constam do depoimento do recorrente gravado em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

26 - O recorrente nunca se arrogou da qualidade daquilo que não era, ou seja, de arquitecto, nunca tendo sido tratado pelos ofendidos como tal e nunca elaborou e assinou projectos como se fosse arquitecto, tudo conforme depoimento do recorrente gravado em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

27 - O recorrente nunca fez os ofendidos acreditarem que ele era arquitecto, até porque não sabia que o tinha de fazer, desconhecendo saber que os ofendidos pretendiam que fosse um arquitecto a elaborar o projecto da sua moradia, tanto que, no primeiro contacto o importante para os ofendidos foi saber se tinha sido ele a desenhar uma casa de que tinham gostado e na decisão da contratação aqueles tiveram também em conta o preço do serviço, conforme depoimento do recorrente gravado em CD através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal "a quo".

28 - O recorrente pretendia apenas, auferir os lucros económicos que lhe eram devidos por conta do serviço prestado e não quaisquer outros, não tendo qualquer intenção de burlar quem quer que fosse, designadamente os ofendidos, tendo-se até referido em julgamento que o montante pedido pelo recorrente era relativamente inferior ao valor de mercado, condição essa sim que, em bom abono da verdade, e conforme resulta do ponto anterior, poderá ter sido determinante para os ofendidos contratarem o recorrente.

29 - Na perspectiva do recorrente não se provou que os ofendidos tenham celebrado qualquer contrato promessa de compra e venda nem que, posteriormente, tenham mandado elaborar outro projecto.

30 - Tais factos carecem de prova documental, não se bastando com mera prova testemunhal, o que não foi feito.

31 - Não obstante, o Tribunal "quo", erradamente, bastou-se com uma prova falível (a testemunhal) quando, a serem verdadeiros os factos alegados, fácil seria aos ofendidos procederem à junção aos autos desses documentos.

32 - O recorrente nunca se intitulou como arquitecto e não manteve os ofendidos em erro quanto à sua qualificação profissional, tendo sido antes estes que partiram desse pressuposto porque assim o entenderam.

33- O recorrente não praticou actos próprios de outro ofício, já que ele se limitou a elaborar projectos e tem as habilitações necessárias para o fazer,

34 - Assim, o recorrente não cometeu o crime de usurpação de funções de que vinha acusado e pelo qual foi condenado.

35 - O recorrente nunca teve intenção de obter para si senão aquilo que lhe era devido, não induziu os ofendidos em qualquer erro ou engano (quando muito eles é que se enganaram a si próprios ... se é que enganaram ... ), não determinando os ofendidos à prática de actos que lhe causassem prejuízos patrimoniais.

36 - Deste modo, o recorrente também não cometeu o crime de burla pelo qual foi condenado.

37 - Parece-nos assim que o Tribunal "a quo"; salvo o sempre maior devido respeito, não ponderou com a exigida c devida atenção a prova que foi produzida ao longo das três sessões de julgamento, tendo-se inclusive cm nosso entender, salvo o maior c devido respeito, equivocado, fazendo "tábua rasa" de toda a prova produzida em julgamento, ao dar como provados factos que a nosso ver não ficaram suficientemente esclarecidos, tendo pelo menos ficado a dúvida instalada.

38 - Devia-se ter tido em conta o n° 2 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual em caso de dúvida o arguido se presume inocente, devendo ser absolvido, o que devia ter acontecido no presente caso.

39 - Concluindo, no entender do recorrente os pontos elencados encontram-se incorrectamente julgados, bastando atentar nos depoimentos transcritos para verificar que estes impõem decisão diversa, pelo que, deverá o recorrente ser absolvido dos crimes de usurpação de funções e de burla a que foi condenado.

40 - Relativamente ao pedido de indemnização civil entende-se que, na sequência, deverá também o recorrente ser absolvido do seu pagamento.

41 - Assim, em conjugação de tudo quanto se vem dizendo, a prova produzida impunha decisão diversa da recorrida.

42 - Desta forma, o Tribunal "a quo" violou, entre outros, o artigo 32°, na 2 da CRP.

43 - Sem conceder no supra explanado, mas por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que, a ser o recorrente condenado, a pena aplicada é excessiva,

44 - Conforme estipula o artigo 71°, nº 1 do Cód. Penal, a determinação concreta da pena far-se-á dentro dos limites da moldura penal abstracta fixada na lei, tendo em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes, de harmonia com os factores de ponderação ínsitos no n° 2 do citado artigo 71°, desde que tais factores não constituam elementos do tipo ou elementos qualificativos do crime.

45 - No caso dos autos, devemos ter em atenção que o recorrente é primário, contando já cerca de sessenta anos de vida e trinta e seis de exercício profissional da actividade de desenhador. Conforme também resulta dos autos o recorrente dedica-se à pintura, pouco valor retirando dessa actividade, e tem a seu cargo uma fi1ha deficiente.

46a- Assim, somos levados a crer (em cuja condenação do recorrente se não concede) que a pena encontrada pelo Douto Colectivo para o arguido é excessiva e violadora do princípio consagrado no artigo 710 do Cód. Penal.

47 - No modesto entender do recorrente deveria ter sido aplicada ao recorrente pena inferior à que foi aplicada, pelo que, na hipótese de se manter a condenação do recorrente pelos crimes a que foi condenado, deverá a medida da pena ser reduzida.

48 - Já quanto ao pedido de indemnização civil, entende-se que a quantia fixada a título de danos morais é manifestamente excessiva, atendendo à jurisprudência dominante, pelo que deverá tal valor ser reduzido para quantia inferior.

49 - Ainda quanto ao pedido de indemnização civil, o Tribunal "a quo" relegou para liquidação em execução de sentença a determinação da diferença do montante das despesas e juros entre o crédito que seria obtido e aquele que os demandantes obtiveram (alegadamente mais oneroso).

50 - Salvo o devido respeito, só podem ser relegados para liquidação em execução de sentença os danos que não sejam quantificáveis numa determinada acção, o que não é o caso, porque, a ser verdade a versão dos factos apresentadas pelos ofendidos, eles tinham conhecimento desses factos desde que apresentaram a respectiva queixa e o respectivo pedido de indemnização civil, pelo que a quantificação poderia ter sido efectuada na presente acção.

51 - Assim, decidiu mal o Tribunal "a quo" ao relegar para liquidação cm execução da sentença danos cujo apuramento e prova poderia e deveria ter sido efectuada no presente processo.

52 - Deste modo, tendo cm consideração o alegado no ponto anterior deverá ser alterado o Douto Acórdão na parte em que remete a quantificação dos restantes danos para liquidação em execução de sentença.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, com todas as consequências legais, devendo o arguido ser absolvido dos crimes de que ora se recorre e do pedido de indemnização civil, ou, para a hipótese de assim se não entender, deverá a pena aplicada ao recorrente ser reduzida, bem com o montante a que foi condenado a pagar a título de danos não patrimoniais, revogando-se, em qualquer das hipóteses, o douto acórdão na parte em que remete a quantificação de danos para liquidação em execução de sentença.


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Notificado da interposição de recurso e da sua admissão a Digna Procuradora junto do Tribunal de Ílhavo respondeu ao mesmo, pugnando pela sua improcedência.

Nesta Relação, o Exmº Srº Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer propugnando pela improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417º do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu.

Foi efectuado o exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada conferência.


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B - Fundamentação:

B.1.a) - Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

1) Pretendendo construir casa para habitação própria, os ofendidos, P... e CM..., ids. a fls. 2, encetaram diligências no sentido de averiguar nomes de arquitectos que a pudessem projectar.
2) Assim, tendo ouvido dizer que o arguido era arquitecto, marcaram uma reunião com este e, no início do mês de Abril de 2005, dirigiram-se ao atelier dele, situado na Rua …, em Ílhavo, onde verificaram que o arguido tinha uma placa na porta com o nome “ …’’
3) Uma vez ali, o arguido apresentou-se como arquitecto, dizendo que trabalhava, há mais de 30 anos, como arquitecto e que tinha interrompido o curso de arquitectura para fazer o serviço militar que concluiu depois de findo este serviço.
4) Nesse dia iniciaram conversações quanto ao negócio, tendo, os ofendidos, referido o tipo de habitação que pretendiam, mostrando ao arguido fotografias de casas que lhes agradavam e esboços feitos por eles e disseram-lhe que precisavam do projecto aprovado em data anterior a 23-10-2005 em virtude de o mesmo ser imprescindível para apresentação junto da instituição bancária onde iam obter empréstimo para aquisição do terreno onde a casa iria ser construída.
5) No dia 23-4-2005, crentes que o arguido era arquitecto, os ofendidos celebraram contrato com ele, que dataram de dia 24-4-2005 por motivos não concretamente apurados, pelo qual o ofendido P… adjudicava a “…” o projecto de habitação uni-familiar, com anexos, pelo preço de € 3.000,00, sendo a forma de pagamento 50% aquando da celebração do contrato e os restantes 50% com a entrada do projecto na Câmara Municipal e cópia com o cliente, e o tempo estimado para conclusão dos trabalhos era entre os 30 e os 45 dias úteis.
6) Para pagamento dos 50% iniciais o ofendido P… emitiu o cheque, cruzado, com o n.° 1887343140, referente à conta n.° 35054290001 do BPI, no montante de € 1500,00, datado de 23-4-2005, à ordem do arguido.
7) Na posse desse cheque, e pretendendo obter o pagamento do valor nele inscrito sem proceder ao depósito do mesmo, e apesar de bem saber que não podia nem devia fazê-lo e que tal conduta era proibida e punida por lei, o arguido inscreveu no verso os seguintes dizeres “autorizo o levantamento” e, imitando a letra do ofendido P… conforme a que estava na frente do cheque, ali colocou o nome daquele, “P….”, posto o que, no dia 27-4-2005, procedeu à apresentação do aludido cheque em balcão da área desta comarca, assim obtendo o respectivo pagamento imediato da quantia nele inscrita, tudo sem autorização nem conhecimento do P… e sabendo que colocava em crise a credibilidade que tal documento deve merecer no comércio jurídico.
8) No dia 14-7-2005, o arguido contactou com os ofendidos e disse-lhes que tinha dado entrada do projecto para aprovação na Câmara Municipal de Aveiro no dia 12-7-2005, e solicitou-lhes o pagamento dos € 1500,00 em falta, quantia que lhe foi paga de imediato, através de cheque da supra referida conta com o número 8887343143, datado de 13-7-2005, e assinado pela ofendida. Disse-lhes ainda que a Câmara Municipal deveria aprovar o projecto apresentado no prazo máximo de 45 dias úteis, pois, caso contrário, a aprovação do projecto seria tácita.
9) E, quando obteve o pagamento dos 50% restantes, o arguido procedeu à entrega de urna pasta contendo o projecto contratado com os ofendidos, devidamente rubricado pelo arguido no local destinado ao arquitecto que elaborou o projecto de arquitectura; a estimativa de custo da execução dos trabalhos, a calendarização da obra, relação dos pormenores a ter em conta pelos orçamentistas, tudo assinado pelo arguido no local destinado ao técnico, e ainda a memória descritiva e justificativa da obra.
10) Face a tal, os ofendidos acreditaram que o processo para aprovação do projecto estava em andamento na Câmara Municipal de Aveiro, como era intenção do arguido.
11) Entretanto, ao analisarem o projecto que lhes foi entregue pelo arguido, os ofendidos verificaram que a casa não estava implantada no terreno conforme haviam acordado com o arguido pelo que o contactaram para que ele procedesse às alterações necessárias.
12) Em meados de Agosto o arguido comunicou aos ofendidos que já tinha dado entrada, na Câmara Municipal de Aveiro, do pedido de alteração, dizendo-lhes ainda que o prazo de aprovação se contava desde a data da entrada do projecto na Câmara, em 12-7-2005.
13) Decorridos mais de 45 dias úteis sobre aquela data sem que tivessem notícias do estado do processo para aprovação do projecto de arquitectura, em Novembro de 2005, os ofendidos dirigiram-se à Câmara Municipal de Aveiro para se inteirarem do estado daquele, tendo então sido informados que o projecto em nome do ofendido P…, com o n.º 340/2005, só havia dado entrada no dia 21-10-2005 e que o mesmo não estava subscrito pelo arguido mas sim por um tal, CA…, engenheiro, e residente na Rua …, em Vagos, o qual tinha ali apresentado, também, os respectivos termos de responsabilidade técnica e civil.
14) Vieram os ofendidos, assim, a tomar conhecimento que o arguido não era arquitecto nem era o subscritor do projecto apresentado na Câmara Municipal de Aveiro, nem este havia sido apresentado para aprovação na data que lhes foi referida pelo arguido, 12-7-2005, mas sim 3 meses e 9 dias depois dessa data, mais precisamente em 21-10-2005.
15) O arguido sabia que não é, nem era arquitecto, e que arrogando essa qualidade e não a desmentindo a quem assim o tratava, bem como elaborando e assinando projectos de habitações como se fosse arquitecto e sem para tal estar habilitado nem licenciado, fazendo acreditar que o era, punha em causa o prestígio e reputação que aquela profissão deve merecer, o que conseguiu.
16) De igual modo, o arguido fez os ofendidos acreditarem que era arquitecto e apesar de saber que aqueles pretendiam contratar um arquitecto para lhes elaborar o projecto da sua futura casa, não os elucidou que não tinha tal profissão.
17) Ao agir da forma descrita o arguido pretendia, e conseguiu, auferir lucros económicos que não lhe eram devidos, e antes de cumprir os termos acordados com os ofendidos, apesar de bem saber que com tal conduta lhes causava prejuízos económicos ainda não ressarcidos.
18) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
19) O projecto elaborado pelo arguido e entregue na CMA na data acima referida não veio a ser aprovado, por não reunir as condições para tal.
20) Os ofendidos sentiram-se envergonhados, incomodados e angustiados, com a situação descrita, perante o promitente vendedor por não terem cumprido em tempo o contrato promessa, tendo vivido com grande angustia que aumentava à medida que o tempo passava sem que vissem o projecto ser aprovado; sentiram-se embaraçados perante a instituição bancária, que embora tendo explicado que não podiam apresentar o referido projecto por culpa do demandante, se sentiram constrangidos com a situação.
21) Sentiram-se constrangidos perante a Sociedade de Mediação Imobiliária junto da qual tinham procurado terreno, sentindo-se envergonhados com toda a situação, que se reflectia nos compromissos.
22) Tiveram dificuldade em se conseguirem decidir por uma pessoa, na qual pudessem depositar confiança, e sentissem, em conformidade, capazes de contratar para elaborar o novo projecto.
23) Viveram dias de ansiedade, que os fez perder noites de sono, e dias de trabalho para resolver todas as situações, nomeadamente as relacionadas com a Câmara de Aveiro, Tribunal, Instituição Bancária, às quais tiveram que se deslocar várias vezes.
24) Viram-se constantemente confrontados com os amigos e familiares, que lhes perguntavam sobre o andamento da moradia, o que lhes criava enorme mal estar.
25) Os ofendidos receavam perder o terreno pelo atraso verificado na aprovação do projecto da moradia, em consequência da actuação do arguido, o que não veio a suceder.
26) Os ofendidos tiveram que mandar elaborar outro projecto para a sua moradia, o qual veio a ser aprovado pela CMA, em data não concretamente apurada.
27) O demandado foi informado de que necessitavam de ter o projecto de arquitectura aprovado para que o Banco lhes concedesse o empréstimo para comprar o terreno, pois tinham assinado um contrato promessa de compra e venda com o proprietário do terreno onde seria implantada a casa, no contrato prometido até 23.10.de 2005.
28) Dado que o projecto não foi aprovado até ao prazo referido no número anterior, os demandantes não conseguiram obter o empréstimo bancário (crédito para habitação)que pretendiam a juros menos elevados.
29) Para cumprir o contrato promessa que tinham assinado, e não tendo ainda o projecto aprovado, os demandantes tiveram que a contrair um crédito pessoal a uma taxa de juro mais elevada, uma vez que sem o projecto aprovado o Banco não lhes concedeu o crédito pretendido.
30) Os demandantes contraíram assim em data não concretamente apurada do ano de 2005/2006, um empréstimo para a compra do terreno no valor de 27.500,00€ e subscreveram uma livrança no valor de 17.500,00€, para pagamento do terreno, respectiva escritura e demais despesas com a construção da referida habitação.
31) Os demandantes despenderam na aquisição do terreno, despesas de escritura e demais despesas para a sua aquisição quantia não concretamente apurada.
32) No ano fiscal de 2006 os demandantes pagaram um total de juros do crédito obtido, no montante de 1.547,62€.e no ano fiscal de 2007, pagaram um total de juros no montante de 964,42€, conforme documentos de fls. 227 e 272 , cujo teor se dá por reproduzido.
33) Os demandantes despenderam em despesas da livrança que subscreveram a quantia de pelo menos 2.366,06€.
34) A casa dos ofendidos encontra-se em fase de construção.
35) O arguido não tem antecedentes criminais.
36) O arguido actualmente dedica-se à pintura de artes plásticas, a esposa é professora do ensino secundário, tendo o casal a seu cargo uma filha deficiente.

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B.1.b) - E como não provados os seguintes:

- que em Maio de 2007, foi aprovado o projecto da moradia dos demandantes.


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B.1.c) - O tribunal recorrido fundamentou a matéria de facto, do seguinte modo:

A convicção do tribunal para dar os factos como provados alicerçou-se na ponderada conjugação e análise crítica da prova produzida, tendo em conta, essencialmente, a confissão integral e sem reservas do arguido no que se refere ao factos atinentes ao crime de falsificação de documento que lhe vem imputado, aliada no que se refere aos demais factos, à admissão parcial que fez de alguma da factualidade, mormente a circunstância de ser conhecido como arquitecto e não fazer nada para alterar tal situação, nem sequer negar essa situação quando é qualificado como tal; a admissão que fez da circunstância de não ter dado conhecimento aos ofendidos de não ter entrado na Câmara com o primeiro projecto, de não lhes ter dito que o projecto ia ser assinado por um engenheiro, de ter rubricado na zona do projectista as cópias dos projectos entregues aos ofendidos. Conjugada esta com os depoimentos prestados pelos ofendidos P... e CM..., os quais de forma clara, objectiva, contundente e esclarecedora, descreveram a forma e razões subjacentes ao contacto que tiveram com o arguido, o modo como este se apresentou como arquitecto no primeiro contacto que com ele tiveram, descrevendo o seu percurso académico, e como nos demais contactos sempre o trataram como arquitecto sem que ele alguma vez negasse tal qualificação; referiram ainda de modo pormenorizado e consentâneo com a prova documental junta aos autos, aquilo que foi com o arguido acordado, prazos e necessidade de os mesmos serem acautelados, forma de pagamento, bem como todos os factos que decorreram a partir da celebração do contrato. Esclareceram sobre o momento da entrega do 2º cheque e aquilo que lhes foi referido pelo arguido quanto à entrada do projecto na CMA, bem como sobre a subsequente constatação de um lapso na implantação do prédio e necessidade de alterar o projecto. Descreveram ainda o modo como tomaram conhecimento de que o projecto só havia dado entrada na CMA em Outubro, bem como sobre a forma como tomaram conhecimento de que o arguido afinal não era arquitecto, encontrando-se o projecto assinado por um engenheiro civil, facto que aquele nunca lhes havia dado conhecimento. Por último referiram também sobre todo o impacto que esta situação causou nas suas vidas, provocando-lhes danos de natureza patrimonial, atento o facto de terem tido necessidade de contratar um credito pessoal por forma a não perderem o terreno, bem como a necessidade de obterem um novo projecto aliados estes, aos danos de natureza não patrimonial que toda esta situação lhes causou.

Em conjugação com os depoimentos prestados, foram valorados na sua objectividade, os documentos juntos aos autos a fls.6 (contrato) , 7 (cheque),28, 29 e 30, 31 a 32, 39 a 41 sendo de salientar a data neste aposta e o respectivo teor quanto á entrada do projecto), 42 a 52, 60 a 105, 144 a149, 327 a 333, 338 a 343.

Foram ainda valorados na sua conjugação com os depoimentos dos ofendidos, os depoimentos prestados pelas testemunhas R..., arquitecta da C.M.A, departamento de obras particulares, a qual relatou o modo como teve conhecimento desta situação, contacto havido com os ofendidos, bem como com o arguido e admissão descontextualizada que este lhe fez sobre o facto de não ser arquitecto, referindo ainda sobre os problemas que apresentava o projecto apresentado por aquele; M…s, mãe do ofendido, referiu sobre a indicação que fez ao filho de que quem havia projectado uma determinada casa que aquele gostava tinha sido o arquitecto C…, qualificação da qual estava convencida por sempre ter ouvido dizer que o mesmo era arquitecto; referiu também sobre a necessidade que o filho tinha em que fossem cumpridos prazos por causa da compra do terreno e sobre os danos que toda esta situação causou ao casal (seu filho e actual nora); a testemunha A…, confirmou que também perante si o arguido se apresentou como arquitecto.

No que se refere aos danos e perturbação que esta situação causou aos ofendidos, foram também valorados os depoimentos prestados pelas testemunhas R…, irmão do ofendido P..., o qual referiu sobre o estado de perturbação em que andava o irmão por causa desta situação; N…, irmã da ofendida e M…, as quais confirmaram esse estado de perturbação, referindo ainda aquela última o desenho dos assistentes em realizarem uma casa projectada por um arquitecto.

Valorados ainda os documentos de fls. 217 a 227 e 283.

Valorado ainda o CRC do arguido junto aos autos.

No que se refere à situação pessoal do arguido alicerçou-se nas declarações por este prestadas.

No que se refere ao facto não provado resultou da ausência de prova consistente e suficiente sobre tal matéria.”


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Cumpre conhecer.

B.2 - A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

De acordo com esse dispositivo, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo de, mesmo que o recurso se limite à decisão proferida sobre a matéria de direito, se ter de conhecer oficiosamente dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do mesmo diploma legal.

Por outro lado, em obediência ao n.º 3, do art. 412º, do Código de Processo Penal o recorrente deveria especificar, sob pena de rejeição do recurso nos termos do art. 420º, n.º 1, do mesmo diploma, as provas que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, sendo certo que tal especificação haveria de fazer-se por referência aos respectivos suportes técnicos, conforme o preceituado no n.º 4 do citado preceito legal.

As menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do art. 412º do Código de Processo Penal estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão da matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre a matéria de facto.

O recorrente tinha, ainda, o ónus de especificar, relativamente a cada prova que considera­va impor uma decisão diversa da assumida pelo tribunal a quo, a parte concreta das declarações e/ou dos depoimentos produzidos em julgamento e gravados em fita magnética, com referência aos respectivos suportes técnicos.

Resulta das motivações e das longas conclusões de recurso, que o arguido não fez tal.

Resulta do disposto no art. 431º, b), do Código de Processo Penal, que havendo documentação da prova, como no caso se verifica, a decisão do Tribunal de 1ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o que não ocorre no caso em apreço.

Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 259/2002, de 18/6/2002, publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002, «quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 4l2º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos

A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.

Seguindo esta orientação, que se perfilha, o Tribunal Constitucional ainda recentemente no acórdão n.º 140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, n.º 91 de 17/4/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art. 412°, n.º 3, al. b) e n.º 4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.

Não há, desta forma, que pensar em despacho de aperfeiçoamento nos termos do decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, n.º 91 de 17/4/2004.

Assim sendo, estando esta Relação impossibilitada de modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto nesses pontos, cumpre tão só aferir, nesta sede, da existência dos vícios das alíneas do n.º 2, do art. 410º, do CPP pois, a existirem podem determinar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art. 426º, n.º 1, do citado diploma legal.

Teremos, pois, que nos ater ao texto da decisão recorrida.


*

Assim, são questões a resolver, abarcando todos os pontos referidos nas conclusões apresentadas nos recursos:

1 – Erro na apreciação da prova;

2 – Insuficiência de factos para a decisão;

3 – Do cometimento do crime de usurpação de funções;

4 – Do crime de burla;

5 – Do in dubio pro reo;

6 – Da pena aplicada, por excessiva;

7 – Do pedido cível (danos morais e relegação para liquidação em execução da sentença).

Vejamos então se, no caso em apreço, se verifica a existência dos aludidos vícios.


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B.3 - Convém recordar que o conceito de “erro notório na apreciação da prova”, como vício relevante em processo penal, é segundo a doutrina e jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

O erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa.» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325).

«Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).

Ora, o recorrente, sobre esta matéria apenas se insurge contra a apreciação que o tribunal recorrido fez das declarações do assistente e de duas das testemunhas.

Ora, estas razões revelam-se manifestamente insuficientes para inquinar a convicção do tribunal recorrido e afirmar a existência de erro notório na apreciação da prova.

A sentença recorrida, ao expressar a análise crítica da prova, contém suficiente fundamentação e não padece de qualquer erro notório na sua apreciação.

Porque, de facto, não há nada de ilógico, irracional, na apreciação feita pelo tribunal recorrido. Aquilo que desta ressalta é que o tribunal recorrido opta, de forma clara e expressa, por uma das duas possíveis posições a tomar na análise dos factos, no que à sua imputação ao arguido diz respeito.

Quanto à prova dos factos provados sob 1, 2, 3, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 15, 16, 17, 26, 27 e 28 a insatisfação do recorrente centra-se na maior valoração dada pelo tribunal recorrido às declarações dos ofendidos em detrimento das suas próprias declarações.

O recorrente é claro na sua afirmação de que a sua versão dos factos deveria ter sido preponderantemente atendida. Quase se diria, com carácter de exclusividade.

Esquece, no entanto que o tribunal não atendeu apenas às declarações dos ofendidos – e nada obstaria a que o fizesse se razões de ordem racional e psicológica o aconselhassem – mas também aos depoimentos de várias testemunhas e, maxime, aos documentos juntos aos autos.

Portanto, não foram apenas elementos de prova de carácter subjectivo - declarações e depoimentos (e mesmo esses poderiam bastar – como também elementos de carácter objectivo (documentos) que estiveram na base da convicção do tribunal, como bem resulta da sua motivação.

Assim, a convicção judicial não é, no caso concreto, criticável em sede de erro de apreciação factual.


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B.4 – Quanto ao não uso do princípio in dubio pro reo, a suficiente fundamentação factual do tribunal recorrido permite-nos afirmar que não restaram dúvidas sobre a imputação dos factos ao arguido.

Assim, a convicção do tribunal recorrido, fazendo apelo necessário a um convencimento subjectivo, a convicção psicológica de que os ofendidos e testemunhas estão a dizer a verdade, adjuvado pelos restantes referidos elementos objectivos, permite afirmar que não é patente, ostensivo (sequer minimamente indiciado), a necessidade de recurso ao princípio in dubio pro reo.

Ou seja, não se revela nos autos que a aplicação do princípio in dubio pro reo se imponha, pois que, avaliada a prova segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduziu à dúvida no espírito do tribunal sobre a existência do facto.

Mais, permite afirmar que o tribunal, numa apreciação positiva sobre o acontecer naturalístico, formulou um juízo para além da dúvida razoável.

Não há, pois, que censurar o tribunal recorrido na apreciação e fundamentação da prova por ele efectuada e pela não aplicação do princípio in dubio pro reo.

Não há, por outro lado, que alterar a posição jurídico-legal assumida pelo tribunal recorrido em função da improcedência das questões de facto que eram suporte das pretensões da recorrente. De facto, nenhuma dúvida subsiste de que o arguido praticou os crimes de usurpação de funções e burla.

E a argumentação do recorrente insurgindo-se pela sua condenação pela prática dos ditos crimes assentava, exclusivamente, na afirmação de existência de erro na apreciação da prova.


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B.5 – A condenação no que se liquidar em execução de sentença pressupõe a existência de danos provados mas não liquidáveis no momento em que se lavra a decisão.

Suposto é que o requerente cível tenha provado aquilo que lhe é possível provar até ao momento em que é lavrada a decisão.

Aparentemente foi isso que o tribunal recorrido fez. Só aparentemente, já que aquilo que resulta dos autos é que os requerentes cíveis negligenciaram a prova de factos já ocorridos e cuja quantificação era possível no momento em que formularam o pedido cível.

Afirma o tribunal recorrido em sede de fundamentação jurídica, nesta sede: “o prejuízo a indemnizar não poderá deixar de ser definido e limitado à diferença do montante de despesas e juros, entre o crédito que seria obtido (mais económico) e aquele que os demandantes obtiveram (com juros mais elevados). Apenas essa diferença constitui um dano indemnizável, porquanto os demandantes sempre teriam que pagar os juros do outro crédito.

Todavia escalpelizada a factualidade provada, constatamos não se mostrarem provados factos que são indispensáveis ao cálculo de tal montante, quais sejam o valor de juros e despesas a pagar num crédito normal; o valor exacto da aquisição do terreno e despesas com a mesma; bem como a data da aprovação do projecto na CMA. Tudo isso elementos indispensáveis ao cálculo acabado de referenciar.

Destarte comprovada a existência de danos, mas não se apurando o seu valor, deverá relegar-se a sua liquidação para execução de sentença, nos termos do disposto pelo artigo 661º n. 2 do CPC.”

Ora, todos estes factos estavam à “disposição” dos requerentes cíveis. Poderiam ter alegado e provado todos e cada um desses factos. Se o não fizeram, a sua inércia não pode ser premiada pelo tribunal recorrido com um relegar para liquidação de sentença de factos que já deveriam (e poderiam) estar provados.

A liquidação em execução de sentença visa a economia processual relacionada com o tempo dos factos e o tempo da decisão. Se no momento da decisão os danos existentes não estão quantificáveis porque circunstâncias várias só permitem a sua quantificação em momento posterior, aí justifica-se a sua liquidação em execução de sentença.

Se tais danos apenas não estão quantificáveis por inércia do requerente cível não se justifica a liquidação em execução de sentença. Não cabe ao tribunal beneficiar o infractor das regras processuais.

Haverá, portanto, que absolver o arguido da condenação no que se liquidar em execução de sentença e por referência aos danos que lhe estão na base.


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B.6 – Quanto à insuficiência da matéria de facto para a decisão, pretende o recorrente que se impunha apurar “que o recorrente exerce a profissão de desenhador há cerca de trinta e seis anos, sem que tenha tido qualquer tipo de problema, que é prática comum um desenhador fazer projectos e, depois, dá-los a assinar a um arquitecto ou a um engenheiro, bem como que é usual as pessoas confundirem o desenhador com o arquitecto e com o engenheiro”.

Se relativamente ao primeiro facto – “o recorrente exerce a profissão de desenhador há cerca de trinta e seis anos” – se entende haver razão para o considerar relevante, mas por razões diversas das alegadas pelo recorrente (que adiante se indicarão) já relativamente aos restantes eles são inúteis na economia dos factos provados ou contrários aos dados como provados.

Mais, um deles já está provado. A ausência de antecedentes criminais, facto dado como provado no facto 35). Daí se deduz que o recorrente não teve, anteriormente, qualquer tipo de problema. Pelo menos problemas que sejam relevantes para estes autos e em sede de direito penal. Dos restantes problemas que o recorrente possa ter tido, e seguramente muitos terá tido – como qualquer mortal – não curam estes autos.

Aquilo que é prática comum no meio profissional e o que é usual as pessoas confundirem não são factos mas sim apreciações genéricas.

E o recorrente nem alega usos profissionais concretos com relevo para os autos, já que as considerações genéricas arguidas são negadas – no caso concreto – pelos factos provados.

Daí que não haja, na nossa apreciação das razões do recorrente, insuficiência factual.

Mas esta ocorre por outras razões.

Quanto à situação económica e social do recorrente apenas se provou o facto 36): “O arguido actualmente dedica-se à pintura de artes plásticas, a esposa é professora do ensino secundário, tendo o casal a seu cargo uma filha deficiente”.

Para além deste facto sabe-se que o arguido é desenhador da construção civil. Nada mais.

Verifica-se que da matéria dada como provada não consta qualquer facto que elucide – ou sequer indicie – a situação económica e social do arguido.

Sequer na fundamentação factual se descortina grande preocupação do tribunal recorrido quanto às condições pessoais e socio-económicas ou profissionais do arguido.

Daqui decorre que o tribunal recorrido não dispôs de qualquer elemento objectivo suficiente para apuramento do quantum da multa aplicada.

Com a agravante de ser elemento – a situação económica e social do recorrente – que está no cerne do objecto do recurso e é determinante no apurar do montante da multa aplicada, é dizer, dos elementos que a determinam no seu quantum diário, segundo os critérios definidos no artigo 47º, nº 2, cuja aplicação fica, objectivamente, inviabilizada.

Nem se diga que o montante diário de multa fixado está próximo do mínimo (€ 6), pois que a diferença para o mínimo da pena em cúmulo ainda se situa em 300 €.

Por outro lado, enquanto responsável civil, a situação económica do arguido é determinante para a fixação dos danos não patrimoniais facto, aliás, realçado pelo tribunal recorrido. Mas não se percebe em que facto se baseou o tribunal recorrido para a utilização de tal critério.

Admite-se que o tribunal recorrido possa ter estabelecido um convencimento, naturalmente subjectivo, sobre as condições económicas e sociais do arguido. Se assim foi, esse convencimento não está objectivado em factos provados.

Sobrevém, pois, a impossibilidade de fazer aplicação do disposto no nº 2 do artigo 47º do Código Penal e no disposto no artigo 496º do Código Civil por ausência dos factos pertinentes.

Ocorre, pois, o vício previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que se não consegue saber, com um mínimo de objectividade, se a razão diária fixada para a multa é justa ou não é justa e se os danos não patrimoniais estão fixados com equidade.

Tal circunstância obsta ao conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações e determina o reenvio do processo ao tribunal recorrido, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal, o qual deverá reabrir a audiência exclusivamente para apurar os rendimentos efectivos ou médios do recorrente, após o que deverá ser lavrada nova sentença, optando-se então pela pena e pela indemnização por danos não patrimoniais que se venham a entender mais adequados à situação económica e social do arguido.


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C - Dispositivo:

Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra:

Em declarar o recurso improcedente no que respeita à alegação de erro na apreciação da prova, ao não uso do princípio in dubio pro reo, à alegação de não prática dos crimes de usurpação de funções e de burla e quanto aos danos patrimoniais;

Em absolver o arguido da condenação no que se liquidar em execução de sentença e por referência aos danos que justificaram tal condenação;

Em anular parcialmente o julgamento e, em consequência, em determinar o reenvio parcial do processo ao tribunal recorrido – nos termos da parte final do artigo 426 nº 1 do Código de Processo Penal - o qual deverá reabrir a audiência exclusivamente para apurar os rendimentos efectivos ou médios do recorrente, após o que deverá ser lavrada novo acórdão para fixação das penas e dos danos não patrimoniais.

Sem custas.

Coimbra, 04 de Novembro de 2009 (processado e revisto pelo primeiro signatário)

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes