Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
85/06.6YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
CASO JULGADO PENAL
Data do Acordão: 11/28/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 493º, Nº 2, 494º, AL. I), E 674º-A, DO CPC
Sumário: I – Como se fez constar no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12/12, adequou-se o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e da respectiva autoria.

II – O que está em causa na norma do artº 674º-A, do CPC, não é a eficácia do caso julgado penal, de distinta natureza do instituto processual civil correspondende, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória transitada em julgado.

III – A possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado, relativamente a quem já funcionou o princípio do contraditório, pelo que o julgamento da culpa, relativamente ao arguido, é definitivo.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I- RELATÓRIO
I.1- A..., residente no Sabugal, instaurou em 12.4.01 a presente acção declarativa de condenação, com forma de processo comum sumário contra, «B...», com sede na X..., Porto, pedindo a condenação desta ré a pagar-lhe a quantia de Esc. 1.846.655$00 acrescida de juros a partir da citação, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
Para tanto, alegou, em resumo, que no dia 25.09.2000, pelas 20h10, ao Km72 da Estrada Nacional 332, C... e D... procediam à travessia daquela estrada conduzindo um rebanho de 160 ovelhas. O rebanho efectuava aquela travessia de noite, após uma lomba e sem que fosse assinalada a sua presença na via pública. Em consequência da presença daqueles animais na via pública, o autor, que havia baixado as luzes do seu veículo de máximos para médios em virtude de ter avistado outro veículo que vinha em sentido contrário, colidiu com diversos ovinos e com o pastor D..., causando a morte deste. Em consequência do acidente a viatura conduzida pelo autor ficou danificada e o autor ficou seriamente afectado pela morte do pastor. O acidente ocorreu por culpa exclusiva dos pastores a quem incumbia a vigilância, guarda e condução do rebanho. O rebanho é propriedade dos ditos pastores e E.... Por contrato de seguro foi transferida a responsabilidade civil emergente dos danos causados pelos ditos animais para a ré «B...».
A ré contestou, impugnando a factualidade alegada e invocando as excepções de ilegitimidade passiva e de nulidade do contrato de seguro e/ou exclusão da cobertura.
Alegou designadamente que o contrato de seguro em causa respeita apenas às relações entre a ré e E..., não conferindo qualquer direito ou obrigação face ao autor. Por outro lado, o contrato de seguro em causa tinha por objecto um rebanho de 80 ovelhas propriedade de E... e não 160 ovelhas pertencentes a outras pessoas além do segurado.
O autor respondeu impugnando a matéria de excepção alegada e deduziu incidente de intervenção principal provocada de E... e de C....
Foi admitida a intervenção principal provocada do lado passivo de C... e de E... que foram regularmente citados.
E... apresentou contestação em que, motivadamente, impugnou a matéria de facto alegada pelo autor.
Foi proferido despacho saneador em que foram declaradas improcedentes as excepções de ilegitimidade passiva e de nulidade do seguro arguidas pela ré «B...», relegado para final o conhecimento da excepção de exclusão da cobertura e seleccionada a matéria de facto relevante que se considerou assente e a que constituiu a base instrutória, que foi objecto de reclamação quanto ao teor do quesito 25.º, deferida nos termos constantes de fls. 429.
Desta decisão interpôs a ré dois recursos, admitidos como agravo (na parte que conheceu da excepção da ilegitimidade) e de apelação (no segmento que apreciou a excepção peremptória da nulidade do contrato), ambos a subirem a final (fls.252) e que foram oportunamente minutados.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento em três sessões, com gravação da prova e inspecção ao local do acidente, sendo julgada a matéria quesitada pela forma constante do despacho de fls. 468 a 472, sem reparos das partes.
No decurso da 2ª sessão realizada no dia 8.4.05, foi proferido despacho a indeferir a pretensão do A. de ouvir em depoimento de parte à matéria constante dos quesitos 5º e 6º o interveniente C... (fls.443). Desse despacho recorreu o autor, recurso admitido como agravo (fls.450 e 463) e oportunamente minutado.
Por último proferiu-se em 31.8.05 sentença a julgar a acção improcedente por não provada, absolvendo-se a ré e os intervenientes do pedido.
I.2- Inconformados, apelaram o autor e subordinadamente a ré.
2.1- O A. terminou as suas alegações de recurso com estas úteis conclusões:
1ª- Atento o teor do depoimento prestado pela testemunha Ana Rosa, gravado na cassete 1 – lado B, não pode o tribunal dar como não provado o teor dos quesitos 5º e 6º;
2ª- Deve o tribunal como provado o facto alegado no art.8º da petição inicial;
3ª- Tendo o acidente ocorrido de noite, em período de lua nova, não pode o tribunal dar como provado que a travessia do rebanho era visível a mais de 100 metros para qualquer dos lados;
4ª- Não pode o tribunal deixar de dar por provado o quesito 7º, ou seja, que as ovelhas ocupavam toda a faixa de rodagem, atendendo ao número de ovelhas e ao depoimento da testemunha Ana Rosa;
5ª- O pastor encarregado da guarda do rebanho violou o disposto nos arts.3º/2, 11º/1 e 97º do C.E. vigente à data dos factos. Além de se poder aferir a responsabilidade do R. E..., proprietário das ovelhas, tendo por base o disposto no art.502º/C.C., tem pleno cabimento aferir da responsabilidade do R. C..., pastor que assumiu o encargo de vigiar os animais, nos termos do art.493º do mesmo diploma;
6ª- Não tem cabimento aferir a responsabilidade dos RR. nos termos do art.483º/C.C., pois os danos que resultam provados foram causados por animais.

2.2- A ré, por sua vez, concluiu assim as suas conclusões:
1ª- O art.674º-A/C.P.C. proíbe que o arguido condenado em acção penal, possa em acção cível conexa, ilidir a presunção de culpa já definida na acção penal;
2ª- Esse artigo estabelece a possibilidade dessa presunção ser ilidida mas apenas por terceiros, proibindo que o condenado penal possa pôr em causa a existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como os que respeitam ás formas do crime;
3ª- Na presente acção, estamos perante a excepção dilatória do caso julgado, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, devendo, pois, proceder a aludida excepção invocada pelo recorrente na audiência de julgamento

I.3- Houve contra-alegações nas apelações e nos agravos.
Foram sustentados os despachos agravados (fls.380 e 490).
No âmbito do exame preliminar pelo relator, foi decidido julgar deserto o recurso de agravo interposto pela ré, por desistência da mesma, nos termos do art.748º/1,C.P.C., e após prévia audição (despachos de fls.664 e 676)
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – São as seguintes, as conclusões das minutas dos recursos de agravo do autor e da apelação da ré.
Recurso de agravo.
1ª-Discutindo-se nos presentes autos uma questão de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, em que foram intervenientes um rebanho conduzido por pastores na via pública e um veículo automóvel, a fim de se apurar a quem cabe a culpa pela produção do acidente, é admissível depoimento de parte do pastor sobrevivo à matéria dos quesitos 5º e 6º, onde se perguntava se a travessia do rebanho se efectuava “sem que estivesse assinalada a entrada e condução de animais na via pública” (5º) e “sem a existência de dispositivo ou sinalização luminosa” (6º);
2ª- A matéria dos ditos quesitos tem virtualidade confessória e é passível de influenciar na decisão da causa;
3ª- Não tendo sido admitido o depoimento de parte do chamado C... à matéria dos ditos quesitos, nem tendo o A. sido notificado do despacho que indeferiu o dito depoimento, mostram-se violados os princípios consignados nos arts.3º, 517º, 264º, 552º/2 e 265º/3 do C.P.C., mostrando-se cometida ainda uma nulidade, cuja declaração se requer.
Recurso de apelação.
1º- O rebanho em causa é constituído por 160 ovelhas sendo propriedade de C..., D... e E...;
2ª- O contrato de seguro em causa foi subscrito apenas por E... para segurar 80 ovelhas;
3ª- Verifica-se uma omissão quer quanto aos proprietários das ovelhas, quer quanto ás quantidades das mesmas;
4ª- Trata-se de circunstâncias que são conhecidas do subscritor do contrato, que não as comunicou à recorrente, como seguradora, e que influem sobre a existência ou condições do contrato;
5ª- O contrato é, assim, nulo.
III – FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
A 1ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
1-D... faleceu às 20h10m do dia 25 de Setembro de 2000 –A).
2-No dia 25 de Setembro de 2000, ocorreu um acidente de viação, no qual interveio o veículo conduzido pelo autor –B).
3-A parte dianteira do veículo conduzido pelo autor embateu em diversos ovinos e no pastor D... –C).
4-Após a ocorrência do acidente e uma vez submetido ao teste de pesquisa de álcool, o autor apresentava uma taxa de alcoolemia no sangue de 1,39 g/l – D).
5-À data de 25 de Setembro de 2000, vigorava entre o chamado E... e a ré «B....», o contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil Animal, titulado pela apólice n.º 07-84-104197, através do qual aquele transferiu para esta a sua responsabilidade por danos causados a terceiros por oitenta ovelhas –E).
6-No dia 25 de Setembro de 2000, em período não concretamente determinado mas que se poderá situar entre as 20h00 e as 20h15, ao km 72 da Estrada Nacional 332, na freguesia de Nave de Haver, concelho de Almeida, C... e D... conduziam um rebanho de pelo menos 140 cabeças de gado –q.1º.
7-Tal rebanho procedia à travessia daquela Estrada Nacional, no sentido Poente – Nascente –q.2º.
8- De noite –q.3º.
9-Nesse momento o autor circulava no sentido Nave-de-Haver – Vilar Formoso, conduzindo a sua viatura «Nissan Terrano II», de matrícula 77-74-EM –q.10º.
10-O veículo conduzido pelo autor embateu em mais do que uma ovelha e no pastor, o que causou a morte do pastor D... e de mais do que uma ovelha –q.15º e 16º.
11-Em consequência directa do embate, a viatura Nissan, de matrícula 77-74-EM carece ser reparada –q.19º.
12-Sendo necessário substituir as seguintes peças, para assegurar o seu normal funcionamento:
- uma travessa Fica Frente Para choque, no valor de € 139,16;
- quinze molas segurar Forro do capot, no valor de € 9,28;
- um tubo do radiador inferior, no valor de € 30,73;
- duas buzinas, no valor de € 80,16;
- um moto ventilador Fica frente radiador, no valor de € 321,21;
- uma blindagem do radiador, no valor de € 59,09;
- um plástico cava roda direita, no valor de € 32,16;
- uma antena eléctrica, no valor de € 171,80;
- dez molas plástico roda, no valor de € 8,88;
- uma ventoinha, no valor de € 111,37;
- um térmico com bomba água, no valor de € 262,05;
- um jogo de faróis de nevoeiro, no valor de € 79,90;
- um capot frente, no valor de € 328,84;
- uma grelha da frente, no valor de € 102,80;
- uma frente completa, no valor de € 241,31;
- dois faróis da frente, no valor de € 345,80;
- dois farolins pisca, no valor de € 64,04;
- um emblema da grelha, no valor de € 27,32;
- um radiador, no valor de € 297,14;
- um radiador ar condicionado, no valor de € 476,96;
- um para choques frente, no valor de € 293,60;
- uma grelha frente em tubo, no valor de € 420,17;
- um guarda lamas direito, no valor de € 241,81;
- um aba guarda lamas direito, no valor de € 19,33;
- um forro capot, no valor de € 61,82;
- uma chapa matrícula, no valor de € 7,48;
- liquido radiador, no valor de € 19,95;
- duas lâmpadas H4, no valor de € 14,47;
- duas lâmpadas pisca, no valor de € 2;
- duas lâmpadas H3, no valor de € 6,48;
- uma lâmpada H1, no valor de € 6,48;
- carregamento ar condicionado, no valor de € 99,76 –q.20º.
13- Carecendo ainda, da seguinte mão-de-obra:
- bate chapas – 16h, no valor de € 239,42;
- pintura, no valor de € 374,10;
- mecânica, no valor de € 44,89;
- electricidade, no valor de € 59,86 –q.21º.
14-Em consequência do embate, a viatura do autor, Nissan de matrícula 77-74-EM, foi retirada do local do mesmo pelo pronto-socorro – q.22º a 25º.
15- Em consequência da morte do pastor, o autor ficou deprimido e muito angustiado –q.26º.
16- Passou a dormir mal –q.27º.
17- E perdeu o apetite –q.28º.
18- No rebanho dos autos 40 ovelhas pertenciam a E... –q.29º.
19- No momento do embate as ovelhas de E... estavam confiadas à guarda de C... e D... –q.30º.
20- Os pastores C... e D... apenas iniciaram a travessia da via depois de se certificarem de que à vista não circulava nenhum veículo –q.31º.
21- O local do embate é uma recta, asfaltada, com pelo menos 600 metros, situando-se o marco que assinala o km 72, aproximadamente a meio dessa recta –q.32º.
22- No momento do embate o piso estava limpo e seco –q.33º.
23- Com as respectivas faixas de rodagem sinalizadas –q.34º.
24- A travessia foi efectuada do lado esquerdo para o lado direito, considerando o sentido de marcha do veículo conduzido pelo autor –q.35º.
25- O rebanho era visível a mais de 100 metros para qualquer dos lados –q.36º.
26- No local do embate foram encontradas, após a ocorrência do mesmo, numa extensão de pelo menos 37,40 metros, 3 ovelhas e um cão mortos –q.38º.
27- Ao avistar o veículo conduzido pelo autor, o pastor C... fez repetidos sinais, com os braços, para que aquele reduzisse a velocidade –q.40º.
28- Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra transitado em julgado em 13.11.2003, no processo comum singular n.º 107/00.4GBALD deste tribunal, A... foi condenado como autor dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguês e de homicídio negligente do pastor D..., ocorrido no dia 25.09.2000, pelas 20h15, na estrada nacional 332 que liga Nave de Haver a Vilar Formoso.
29- Deu-se como provado no mencionado acórdão, além do mais, que: “O acidente ocorreu em virtude do arguido não colocar na condução a atenção e faculdades necessárias. Como devia e podia, devido à ingestão de bebidas alcoólicas, não se apercebeu do obstáculo que se lhe deparava na via”. - certidão de fls. 127 a 158.
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II.2 - de direito
De acordo com o que se dispõe no art.710º/1, C.P.C., iremos prioritariamente apreciar a apelação da ré interposta do despacho saneador.

II.2.1- Excepcionou a ré a nulidade do contrato de seguro ajuizado, alegando que o objecto do mesmo é a responsabilidade civil decorrente da utilização de 80 ovelhas de que o segurado E... declarou ser proprietário, e que o autor alegou que o rebanho era composto por 160 ovelhas pertencentes uma ao segurado, outras a C... e a D....
Na decisão em crise argumentou-se que a invocada circunstância não se enquadra ma previsão da cláusula 24ª das condições gerais da apólice, além de que a recorrente não alega qualquer nulidade decorrente de vício de forma, ou decorrente de qualquer outro vício.
Vem agora a recorrente dizer que com tal circunstância verificou-se uma omissão quer quanto aos proprietários das ovelhas, quer quanto à quantidade das mesmas, circunstância conhecida do subscritor do contrato, que não as comunicou à seguradora e que influem sobre a existência ou condições do contrato (conclusões 3ªa 5ª).
Trata-se, como é bom de ver, matéria nova por não alegada na contestação.
Mas vejamos então a suscitada questão da validade do seguro em função da apontada circunstância - ovelhas em quantidade superior e pertencente a mais de que um dono.
De acordo com o disposto no art.427º/C.Com., é pelas condições e cláusulas da respectiva apólice não proibidas por lei que se rege o contrato de seguro. Nos termos da ajuizada apólice, o seguro cobre a responsabilidade do proprietário das ovelhas (E...) até ao número de 80.
Ora, admitindo que o rebanho era constituindo por um número superior àquele de ovelhas, e que nem todas elas eram propriedade do segurado (o que de facto veio a provar-se – item II.1-1 e 18), esse facto, isoladamente ponderado, não assegura que o proponente/segurado tenha prestado no momento da celebração do contrato falsas declarações à seguradora em violação do disposto no art.429º/C.Com, impendendo sobre esta o ónus da prova do conhecimento por aquele da circunstância omitida ou alterada, o que aqui não ocorreu. Ademais, nem todas as declarações inexactas permitem a anulação do contrato de seguro. É indispensável que elas influam na existência e nas condições do contrato, de sorte que o segurador, se as conhecesse como tais, ou não contrataria, ou teria contratado com outras condições. Mas a este respeito nada foi alegado.
Ou então, a apontada circunstância, por si só, também não assegura que tenha havido uma alteração superveniente do risco, devendo o segurado comunicar previamente à seguradora.
Com efeito, e nesta última hipótese, o art.446º/C.Com., relativamente ao agravamento do risco, prevê a comunicação prévia ao segurador das alterações das circunstâncias que tornem o objecto segurado mais exposto ao risco, por forma que o segurador não os teria segurado ou exigiria outras condições antes de efectuar o seguro.
Também o art.9º das condições gerais da mesma apólice, dispõe no seu nº1-c) que o tomador do seguro e/ou segurado, é obrigado a «durante a vigência do contrato, comunicar à «B...», nos oito dias subsequentes ao do conhecimento da sua verificação, todos os factos ou circunstâncias susceptíveis de determinarem uma modificação do risco seguro».
Ora sobre isto nada ficou provado, nem tão pouco foi alegado, senão em sede de recurso (conclusão 5ª).
Consequentemente, e como bem se referiu na decisão recorrida, o número de animais que compunham o rebanho e a sua propriedade, a provarem-se, acarretariam consequências para a pretensão do demandante, mas já não a nulidade do contrato, seja por inexactidões ou omissões, seja por agravamento do risco.
Dito isto, improcede a apelação.
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Conhecendo agora do agravo interposto pelo autor do despacho proferido em audiência de julgamento (acta de fls.443-444).
Os elementos de facto a ter em conta são estes: por despacho proferido a fls.319, foi excluído o depoimento de parte do chamado, C..., requerido pelo A., aos quesitos 5º, 6º, 9º a 16º e 29º, com o argumento de que a matéria neles versada não tem virtualidade confessória, por não se referirem a factos pessoais do depoente ou relativamente aos quais este não tenha a obrigação de conhecer.
Deste despacho não foi o A. notificado.
Na 2ª sessão de julgamento ocorrida a 8.4.05 (acta de fls.443), o mandatário do A. requereu que o referido C..., após ter prestado depoimento de parte, depusesse à matéria constante dos quesitos 5º e 6º, uma vez que não fora notificado do indeferimento.
Esta pretensão foi também indeferida, mas agora com o fundamento em que tal questão já havia sido objecto de apreciação nos termos do aludido despacho, e que a designação da data de julgamento e notificações subsequentes fazem presumir o conhecimento da falta de notificação, irregularidade que assim estaria sanada.
Cremos estar correcta esta decisão.
Na realidade, para além da notificação da data de julgamento, o A. esteve presente através do seu advogado, na 1ª sessão realizada no dia 1.4.05 onde foi prestado o depoimento de parte do outro interveniente, e o referido C... só não foi ouvido porque não esteve presente.
Ora, a falta de notificação do indeferimento do depoimento de parte aos mencionados quesitos constitui nulidade secundária, que deveria ter sido arguida no prazo de 10 dias após notificação da data do julgamento, por se presumir que desta forma tomou conhecimento dessa nulidade (arts.201º e 205º do C.P.C.). Não o tendo sido, deve considerar-se sanada, razão pela qual estava o tribunal impedido de alterar a decisão contida naquele despacho de fls.319, deferindo agora a mesma pretensão.
Termos em que se decide negar provimento ao agravo, mantendo-se o despacho recorrido de fls.443-444.
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II.2.2 – Por último, importa apreciar as apelações interpostas da sentença, começando pela apelação subordinada da ré, já que a questão que nela suscita é da excepção dilatória do caso julgado.
No início da audiência de julgamento, a ré «B...» arguiu a excepção em referência, alegando ter transitado em julgado a decisão proferida no processo-crime n.º 107/00.4GBALD desta comarca, que, relativamente ao acidente que se discute nestes autos, condenou o autor como único culpado pela prática do crime de homicídio negligente do pastor D....
O autor contestou afirmando que as decisões proferidas em processo-crime constituem presunção ilidível em processo cível.
Constituindo o caso julgado excepção dilatória cujo conhecimento obsta à apreciação do mérito da causa (arts.º494º/al. i) e 493º/2 do CPC), foi a mesma conhecida previamente na sentença, julgando-se improcedente, por não se verificarem os requisitos do caso julgado previstos.
Vejamos.
O autor pretende como lesado, ser indemnizado dos danos que diz ter sofrido por causa de um acidente de viação, atribuindo a culpa aos pastores, D... e C... que conduziam um rebanho de 160 ovelhas que procedia à travessia da EN 332 por onde seguia.
Acontece que já depois de instaurada a presente acção, o autor foi condenado em sentença penal em 30.1.03, confirmada por esta Relação em 29.10.03, na qual foi julgado o único responsável pelo acidente em causa e condenado como autor material dos crimes de condução de veículo em estado de embriagues e de homicídio negligente.
Analisada a certidão de fls.127 a 158 relativa ao aludido processo-crime, constata-se ter sido dado como provado, em síntese, o seguinte: no dia 25.09.2000, pelas 20h15, na E.N.332, o arguido, aqui autor A..., conduzindo o seu veículo automóvel, embateu com a parte frontal do mesmo num rebanho de pelo menos 140 ovelhas e num dos respectivos pastores D..., que efectuava a travessia da faixa de rodagem. Em consequência do embate o pastor sofreu lesões que lhe provocaram a morte. O embate causou também a morte imediata de um cão e de 4 ovelhas. O acidente ocorreu em virtude do arguido não colocar na condução a atenção e as faculdades necessárias devido à ingestão de bebidas alcoólicas, não se tendo apercebido do obstáculo que se lhe deparava na via.
Sobre a questão da culpa, ponderou esta Relação que o arguido poderia ter evitado o acidente se tivesse tido atenção ao que se passava à sua frente, no espaço que normalmente é iluminado pelos faróis de um veículo, e que poderia ter visto os sinais do irmão da vítima, mas a nada reagiu, sendo que a presença dos animais e da vítima na estrada não foi nada de repentino. Em jeito de conclusão, escreveu-se que o arguido não parou, não reagiu no espaço visível, porque o seu estado de alcoolizado não lho permitiu. A sua actuação foi a única que pode explicar o acidente, cabendo-lhe por inteiro.
Ora, abstraindo desta condenação penal, quer o autor discutir novamente os pressupostos da sua responsabilidade, mas agora em acção cível.
A questão que se coloca será pois a de saber se o pode fazer, ou se a 1ª instância deveria ter acatado a referida sentença penal condenatória proferida contra o autor, com a eficácia que lhe é atribuída pelo art.674º-A/C.P.C..
Estabelece este normativo que “a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como os que respeitam ás formas do crime, em quaisquer acções cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção”.
Como se fez constar no preâmbulo do DL nº329-A/95, de 12.12 que introduziu o artigo em referência, adequou-se o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória ás exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e da respectiva autoria.
O que está em causa na norma do art.674º-A não é a eficácia do caso julgado penal de distinta natureza do instituto processual civil correspondente, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória transitada em julgado.[ Cfr. Acs. STJ de 14.2.02 e de 13.11.03 in www.stj.pt, e de 25.3.04 in CJstj I/04-141 a 145 ]
Por conseguinte, o predito normativo, visto que estabelece presunção legal a que se aplica o art.350º/C.C., é, na realidade, norma de direito probatório material. E o limite do efeito do caso julgado penal condenatório respeita, pois, tão só a “terceiros”, podendo estes, e só estes, nunca o condenado penal, ilidir a presunção desse julgado quanto aos aspectos expressos nesse art.674º-A.
Na hipótese em análise, a ré «B...» e os chamados não intervieram no processo penal, pelo que serão havidos como “terceiros”. Contudo, não têm interesse em ilidir a presunção da existência dos factos em que a condenação se baseou, que lhes é favorável.
A possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado, a quem já funcionou o princípio do contraditório. No caso presente, o autor teve a possibilidade de apresentar as respectivas razões de facto e de direito, de oferecer as suas provas no âmbito do aludido processo penal. Ou seja, quanto a ele ficou assegurado aquele princípio fundamental do processo civil. Daí que os factos assentes na sentença penal não possam ser objecto de discussão em acção cível, onde terão de ser dados por assentes.
Logo, o julgamento da culpa quanto ao ajuizado acidente era, relativamente ao autor, definitivo.
Consequentemente, os factos pertinentes e relativos ao desencadear do acidente e respectiva culpa, alegados pelo A. e levados à base instrutória, não poderiam ser objecto de novo julgamento.
Na sequência do exposto, há que reconhecer razão à recorrente, e decidir a questão, não com aplicação do disposto no aludido art.647º-A/C.P.C. porque o A. não é “terceiro” para efeitos deste normativo, mas sim por referência à autoridade de caso julgado que a sentença penal transitada respeitante à matéria da culpa, do ilícito e autoria releva.
Subsistindo intocada essa sentença, tem a mesma de ser acatada no que a tais matérias respeita, na acção cível
Deste modo - e entrando agora na análise da apelação interposta pelo autor - assente a culpa do mesmo pela eclosão do acidente, irrelevante se mostra a pretendida reapreciação da matéria de facto relativa aos quesitos 5º, 6º, 7º, 11º e 36º, nos quais se integraram factos relacionados com o eclodir do acidente.
A factualidade referente ás consequências do embate para o autor, não vêm impugnadas.
Quer dizer-se, então, que tendo o acidente sido ocasionado, em exclusivo, por actuação culposa do próprio demandante, excluída fica a responsabilidade cível fixada no art.503º/3,C.C., bem como excluída está, em face dos arts.505º e 570º do mesmo diploma, a responsabilidade dos demandados e consequente obrigação de indemnizar.
Nesta conformidade, a apelação do autor não pode deixar de improceder.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em:
1- Negar provimento ao agravo do autor e julgar improcedente a apelação da ré, que responderão pelas respectivas custas;
2- Julgar improcedente a apelação do autor, com custas por este;
3- Julgar procedente a apelação subordinada da ré se bem que com diferente fundamentação, confirmando a sentença apelada.
Custas desta apelação pelo autor.