Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
326/10.5T2AVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
CONCEITO JURÍDICO
PREJUÍZO
Data do Acordão: 12/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 238º, Nº 1, AL. D) DO CIRE
Sumário: I – O “prejuízo” que se exige no artº 238º, nº 1, al. d), do CIRE, pode consistir no avolumar da dívida de juros, não se restringindo à situação em que apenas exista um aumento do capital de dívidas contraídas pelo devedor em período posterior à ocasião em que este fica em situação de insolvência, ou quando ocorra dissipação de património pelo devedor nesse mesmo período.

II – A partir do momento em que, estando em situação de insolvência, não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica em que se encontram, a inacção dos devedores, ao não requererem tempestivamente a respectiva insolvência, redunda, em princípio, em prejuízo dos credores, pois que, para além de provocar o avolumar dos montantes em dívida a estes, por via do acumular dos juros remuneratórios e/ou moratórios, possibilita que o património se vá dissipando, diminuindo, assim, a garantia que este representa para tais credores.

III – Assim, sendo o prejuízo dos credores, em princípio, decorrência normal da circunstância de não se requerer a insolvência tempestivamente, nas ocasiões previstas na al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, a existência desse prejuízo é conclusão permitida por inferência fundada no princípio “id quod plerumque accidit”, que cumpre ser contrariada por factualidade que o requerente da exoneração do passivo restante deverá fornecer.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) - A... e mulher, B..., residentes na freguesia de ..., concelho de ..., vieram requerer, no Juízo de Comércio de Aveiro, em 11/02/2010, a sua declaração de insolvência, ao abrigo do disposto nos art.ºs 2º, nº 1, a), e 18° do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE)[1], mais requerendo, nos termos do art.º 235° e ss. do mesmo Código, a sua exoneração do pagamento do passivo restante.

2) - Por sentença de 09/03/2010, que transitou em julgado, foi declarada a insolvência dos Requerentes, tendo-se designado dia para reunião da assembleia de credores, para apreciação do relatório a que alude o artº 156° do CIRE e do requerimento de exoneração do passivo restante.

3) - O Sr. Administrador da Insolvência apresentou, com os respectivos anexos, o mencionado Relatório, nele propondo que fosse aprovado, por lhe parecer justificável, o referido pedido de exoneração do passivo, propondo, ainda, que o processo de Insolvência fosse encerrado, por insuficiência da massa insolvente, ao abrigo do artigo 232.° do CIRE.

4) - Na designada Assembleia de Credores, que teve lugar em 04/05/2010, o Banco C..., SA., invocando a sua qualidade de credor reclamante do montante global de € 134.631,19 e o disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º, do CIRE, veio opor-se ao pedido de exoneração do passivo.

B) - Por despacho proferido em 27/05/2010, a Mma. Juiz do Juízo de Comércio de Aveiro admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e, em função dessa admissão, estabeleceu o regime que entendeu adequado face ao que se dispõe nos art.ºs 239º e 240º do CIRE.

C) - Discordando dessa admissão liminar, veio o Banco C..., SA., interpor recurso desse despacho de 27/05/2010, terminando as alegações desse recurso - recebido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo - com as seguintes conclusões:

[…]

Terminou pedindo que se revogue o despacho recorrido e que, em seu lugar, se profira decisão indeferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

II - Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[2], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [3]).

Assim, a questão a solucionar consiste em saber se a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” deveria ter considerado verificada a situação prevista alínea d) do nº 1 do artigo 238º do CIRE e, consequentemente, indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.

III - Para além do que consta de I-A) e B) “supra”, importa considerar o seguinte no circunstancialismo fáctico-processual a atender:

a) - No requerimento inicial, alegaram os ora declarados insolventes, entre o mais:

«5. O requerente marido está desempregado, e inscrito no centro de emprego da sua área de residência sob o n.° …. (cfr. doc. n.° 5 que aqui se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais)

6. Antes de tal acontecer, o requerente marido dedicava-se, desde 1999 e na qualidade de trabalhador independente, à transformação de cortiça e venda de rolhas para o mercado nacional.

7. Sucede porém que, em meados de 2003/2004, o seu principal fornecedor /credor iniciou um conjunto de investidas acabando por conseguir penhorar tanto matéria-prima (rolhas) como maquinaria, criando sérios obstáculos ao normal" funcionamento da actividade desenvolvida pelo requerente marido.

8. Além disso, a conjectura económica mundial já apresentava naquela data fortes sinais de recessão provocando uma gradual e substancial diminuição de vendas.

9. Tais factos, vieram pois a culminar numa difícil situação económica dos requerentes para conseguirem fazer face às suas obrigações que iam aumentando.

10. Tudo desencadeando o surgimento de uma série de processos de execução - cfr. doc.n.º 6 - relação de acções/ execuções pendentes.

11. Pois bem, em Setembro de 2007, realizada a venda judicial da casa-de-morada de família, os requerentes ficam desprovidos de todos os seus bens.

12. Desde essa data, sem terem mais para onde ir, nem meios para poderem arrendar tão-pouco outro espaço, os requerentes passaram a viver de favor com o filho menor num quarto que ocupam em casa de uns familiares.».

(…)

15. É, pois, manifesta a inferioridade do activo comum do casal para fazer face ao passivo que aqui se relaciona sob o doc. n.° 7 - relação de credores.

16. Nem os bens próprios da requerente mulher (vencimento) se afiguram minimamente suficientes para fazer face às antes descritas e relacionadas responsabilidades.

17. É que, a requerente mulher tem já o seu vencimento penhorado (2/6) no âmbito das execuções referidas nas verbas n.° 1 e n.° 2 do passivo descrito sob o doc. n.° 6, encontrando-se a ser descontada do mesmo, actualmente, a quantia global (aproximada) de 900,00 euros (cfr. doc. n.° 4).

(…)

19. Ora, para além do referido vencimento, os requerentes não auferem quaisquer outros rendimentos, nem tão-pouco são proprietários de outros bens.

(…)».

b) - Da Relação de acções/execuções pendentes, junta pelos requerentes, bem como da Lista Provisória de Credores, junta pelo Sr. Administrador da Insolvência, resulta a referência dos seguintes processos executivos, entre outros:

- n.° 9738/05.5TBVFR, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, onde foi penhorado 1/3 do salário da ora insolvente;

- n.° 269/05.4TBEVR-A, onde foi penhorado 1/3 do salário da ora insolvente;

- Processos de execução fiscal;

- nº 1406/04.1TBVFR, do 4º juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.

c) - Do Relatório do Sr. Administrador da Insolvência consta, além do mais, o seguinte:

«(…) Actualmente, o Insolvente marido encontra-se desemprego e inscrito no centro de emprego de Aveiro desde 08 de Outubro de 2009.

A insolvente Mulher é Professora no Colégio ..., auferindo mensalmente o valor ilíquido de 1.718,46 €.

No entanto, e na sequência dos processos de execução n° 9738/05.5TBVFR que corre os seus termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira e n° 269/05.4TBEVR-A (…), o seu salário encontra-se penhorado em 2/6.

(…)».

d) - Da Lista Provisória de Credores junta pelo Sr. Administrador constam, discriminados, créditos sobre os insolventes que ascendem - sem contar com os créditos constantes das reclamações apresentadas pelos credores “ D...” e “Banco C..., S.A.”, nos valores de 32.136,20 € e de 134.631,19 €, respectivamente, que o Sr. administrador, na Assembleia de 4/5/2010, declarou ter recebido a tempo - ao montante global € 328.177,73.

e) - No Inventário de Bens anexo ao referido Relatório, consignou-se o seguinte. “Não existem bens passíveis de serem apreendidos com o valor económico.”.

f)- Das reclamações apresentadas, consta, entre outras, a de 30.257,44 €, do Instituto da Segurança Social, IP, que inclui, o montante de valor de 18.819,90 € por dívidas do ora insolvente, relativas a contribuições não pagas respeitantes a Agosto de 2003, Setembro de 2003, Novembro de 2003 a Dezembro de 2004.

IV - No caso de o devedor ser uma pessoa singular, permite o art.º 235º do CIRE que, nos termos do capítulo onde o preceito se insere, lhe seja concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

Todavia, a par de outras situações que no caso “sub judice” irrelevam, o art.º 238º do CIRE, prevê que se indefira liminarmente o pedido de exoneração se “O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica” (alínea d) do nº 1 do artigo).

A norma deste art.º 238º tem como uma das suas fontes de inspiração o art.º 290º do Estatuto da Insolvência Alemão (Insolvenzordnung), que no seu nº 4 consigna[4], em termos semelhantes com o que se consagra na citada alínea d), a descrição do circunstancialismo que leva a que seja recusada a exoneração do passivo restante.

Foi nesta alínea d) do nº 1 do referido art.º 238º que o ora Apelante se fundou para se opor ao pedido de exoneração do passivo restante, tendo a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” entendido não se mostrar preenchida a respectiva previsão, pois que, admitindo que se pudesse concluir pela verificação da situação de insolvência para além dos sessenta dias anteriores à sua apresentação “ (desde logo pelo alegado sob os arts. 10º e 11º da petição) ”, não existiam elementos que permitissem concluir que os credores, em resultado desse incumprimento, tivessem visto prejudicada a respectiva situação creditória.

Assim, dizemos nós, a Mma. Juiz não acolheu a posição defendida pelo credor, ora Apelante, essencialmente, porque entendeu que não se encontrava demonstrado nos autos o prejuízo para os credores, exigido na citada alínea d).

Não vemos, na norma que analisamos - nem, segundo nos parece, na correspondente norma do “Insolvenzordnung” - que o prejuízo dos credores a que a mesma se reporta tenha, como se defende na decisão impugnada, de se ver como restrito ao “…que resulta do capital de dívidas contraídas pelo devedor em período posterior ao momento em que a sua insolvência está consolidada e/ou que resulta de dissipação de património pelo devedor nesse mesmo período”.

De acordo com o artºs 3º, nº 1, do CIRE, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

Nas diversas alíneas do nº 1 do artº 20º são elencados factos presuntivos da insolvência, salientando-se, agora, os seguintes:

- Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas (alínea a));

- Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (alínea b));

- Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos (alínea g)):

i) Tributárias;

ii) De contribuições e quotizações para a segurança social.

A matéria alegada pelos ora insolventes no requerimento inicial evidencia, por si só, que muito mais de seis meses decorreram, deste que se verificou a situação da sua insolvência e até à data em que apresentaram o requerimento que deu início ao processo, não podendo eles ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Na verdade, tendo requerido a insolvência em Fevereiro de 2010, são os próprios Requerentes que afirmam que, tendo a actividade desenvolvida pelo requerente-marido, em 2003/2004, deparado com obstáculos ao seu normal desenvolvimento, situação essa que culminou com a instauração de diversas execuções contra ambos, “…em Setembro de 2007, realizada a venda judicial da casa-de-morada de família, os requerentes ficam desprovidos de todos os seus bens”, não tendo, deste essa data, sequer, meios para poderem arrendar outro espaço (Cfr. art.ºs 10º e 11º do requerimento inicial).

Remontando a instauração da esmagadora maioria dos processos de execução pendentes contra os ora Apelados ao período de 2003/2004 e 2005, reportando-se a 2003/2004, também, as contribuições em dívida pelo ora insolvente à Segurança Social, afigura-se-nos que será legítimo concluiu que em 2006 já aqueles se encontravam impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas, ou seja, em situação de insolvência, mas, ainda que assim não se entendesse, seguro é que essa situação se verificava em Setembro de 2007, ocasião esta em que, perdendo a casa de morada de família, deixaram, para além do vencimento da Requerente (penhorado em 2/6) de ter bens ou rendimentos que lhes permitissem solver as sua dívidas (cfr. III - a), 10,11 e 12, supra). É de concluir, assim, que, verificando-se a situação de insolvência dos Requerentes, seguramente, desde Setembro de 2007, estes se abstiveram de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação, não podendo ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

A partir do momento em que, estando em situação de insolvência, não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica em que se encontram, a inacção dos devedores, ao não requererem tempestivamente a respectiva insolvência, redunda, em princípio, em prejuízo dos credores, pois que, para além de provocar o avolumar dos montantes em dívida a estes, por via do acumular dos juros remuneratórios e/ou moratórios, possibilita que o património se vá dissipando, diminuído, assim, a garantia que este representa para tais credores.

Assim, sendo o prejuízo dos credores, em princípio, decorrência normal da circunstância de não se requerer a insolvência tempestivamente, nas ocasiões previstas na alínea d) do nº 1 do referido art.º 238º, do CIRE, a existência desse prejuízo é conclusão permitida por inferência fundada no princípio “id quod plerumque accidit”, que cumpre ser contrariada por factualidade que o requerente da exoneração do passivo restante deverá fornecer.

Só que factualidade alguma alegaram os Requerentes para afastar essa conclusão, nem esta é infirmada pelos elementos constantes dos autos.

Recorda-se que esta 3ª Secção da Relação de Coimbra entendeu já, no Acórdão de 09/07/2010 (Apelação nº 72/10.0TBSEI-D.C1) que “No incidente de exoneração do passivo restante, apurado que o requerente incumpriu o dever de apresentação à insolvência ou, não tendo tal dever, não se apresentou no prazo de seis meses previsto na al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, é lícito presumir judicialmente o prejuízo para os credores”.

Aí se explicitou que um tal entendimento ”… não acarreta a inutilidade da inclusão na al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE do requisito do prejuízo para os credores, já que tal inclusão permite ao devedor, ciente da apresentação tardia, alegar e provar factos que impeçam a utilização da aludida presunção judicial.”.

E, seguindo linha de pensamento idêntica, aqui aplicável “mutatis mutandis”, escreveu-se no Acórdão desta Secção de 17/12/2008 (Agravo nº 1975/07.4TBFIG.C1), Relatado pelo ora 1º Desembargador-Adjunto: «Deve mesmo presumir-se o prejuízo dos credores do facto de os requerentes da exoneração não se terem apresentado à insolvência, quando era manifesto que eles, desde há vários anos, não tinham bens em número e valor susceptíveis de satisfazer os créditos dos seus credores[…], e passados esses anos foram prestes a confessar a sua insolvência requerida por outrem[…].».[5]

Em suma: O que se passou no presente caso foi, pois, que os ora Apelados vieram requerer a insolvência, requerendo, em simultâneo, a exoneração do passivo restante, cerca de dois anos depois de se encontrarem em situação de insolvência, já sem bens e sem rendimentos disponíveis, sendo certo que, em Setembro de 2007, quando foi vendido o último bem que possuíam com expressão económica significativa - o imóvel onde tinham instalada a casa de morada de família - não podiam ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Em conformidade com o preceituado no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, deveria, pois, salvo o devido respeito, ter sido logo indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, indeferimento este que, revogando o despacho recorrido, ora cumpre determinar.

Do exposto afigura-se poder sumariar-se o seguinte:

«I - O “prejuízo” que se exige no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, pode consistir no avolumar da dívida de juros, não se restringindo à situação em que apenas exista um aumento do capital de dívidas contraídas pelo devedor em período posterior à ocasião em que este fica em situação de insolvência, ou quando ocorra dissipação de património pelo devedor nesse mesmo período.

II - A partir do momento em que, estando em situação de insolvência, não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica em que se encontram, a inacção dos devedores, ao não requererem tempestivamente a respectiva insolvência, redunda, em princípio, em prejuízo dos credores, pois que, para além de provocar o avolumar dos montantes em dívida a estes, por via do acumular dos juros remuneratórios e/ou moratórios, possibilita que o património se vá dissipando, diminuído, assim, a garantia que este representa para tais credores.

III - Assim, sendo o prejuízo dos credores, em princípio, decorrência normal da circunstância de não se requerer a insolvência tempestivamente, nas ocasiões previstas na alínea d) do nº 1 do referido art.º 238º, do CIRE, a existência desse prejuízo é conclusão permitida por inferência fundada no princípio “id quod plerumque accidit”, que cumpre ser contrariada por factualidade que o requerente da exoneração do passivo restante deverá fornecer.».

V - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação procedente e, revogando o despacho recorrido, indeferem o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos ora insolventes.

Custas pela massa insolvente.


Falcão de Magalhães (Relator)
Gregório Silva de Jesus
Martins de Sousa


[1] Código este aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03.
[2] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção introduzida pelo DL n.º 304/07, de 24/08.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[4] Norma que se reproduz, em inglês, extraída da tradução do “Insolvenzordnung” que pode ser consultada na página da Internet da co-responsabilidade do Ministério da Justiça Alemão em “http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_inso/index.html”: «4. the debtor by wanton act or gross negligence has impaired the satisfaction of the insolvency creditors in the last year prior to the request to open insolvency proceedings, or subsequent to this request, by entering into inappropriate obligations, by wasting property or by delaying the opening of the insolvency proceedings without any expectancy of an improved economic condition;». No original:«der Schuldner im letzten Jahr vor dem Antrag auf Eröffnung des Insolvenzverfahrens oder nach diesem Antrag vorsätzlich oder grob fahrlässig die Befriedigung der Insolvenzgläubiger dadurch beeinträchtigt hat, daß er unangemessene Verbindlichkeiten begründet oder Vermögen verschwendet oder ohne Aussicht auf eine Besserung seiner wirtschaftlichen Lage die Eröffnung des Insolvenzverfahrens verzögert hat,».
[5] Cfr. tb. Acórdão desta Relação, de 11/02/2010, (Apelação nº 570/10.5TBMGR-B.C1), consultável em  “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase” e Acórdão da Relação de Évora de 12/07/2010, na Col. Jur. Ano XXXV – 2010, Tomo III, pág. 294.