Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
537/09.6GBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
Data do Acordão: 10/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Legislação Nacional: ART.º 291º, N.º 1, AL. A), DO C. PENAL
Sumário: Não basta a existência do estado de embriaguez para o preenchimento do tipo de crime em causa (condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pela al. a), do n.º 1, do art.º 291º, do C. Penal), sendo ainda necessário que exista substrato factual do qual se extraia que a condução em estado de embriaguez foi causadora (na expressão da lei "criou") de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo comum singular nº 537/09.6GBPBL do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal o arguido A..., melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento mediante acusação pública da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291º, nºs 1, alíneas a) e b), e 3 e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal.

No decurso da audiência de julgamento foi comunicada eventual alteração da qualificação jurídica dos factos, susceptíveis de integrar a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
Findo o julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
(…) julga-se procedente a acusação e, em consequência:
a) Condena-se o arguido A... pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291.º, n.ºs 1, alínea a), e 3 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de 8 € (oito euros), o que perfaz a quantia de 720 € (setecentos e vinte euros);
b) Condena-se o arguido A..., ao abrigo do disposto no art.º 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 105 (cento e cinco) dias;
c) E ainda no pagamento das custas do processo, que compreendem 2 UC de taxa de justiça (artigos 513.º e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, 8.º, n.º 5 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido A..., rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:
1º O facto 3 dos factos provados, deveria ter sido dado como não provado, com base nas declarações do arguido e da testemunha B...;
2º Existe uma contradição insanável entre o ponto 3 dos factos provados e o facto 1 dos factos provados.
3º Ao ter condenado o arguido/recorrente, a douta sentença fez uma incorrecta aplicação do art. 291º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
4º Deverá, desta forma, ser alterada a douta sentença por outra, que absolva o arguido.
V.ªs Exªs Farão, Como Sempre, A Costumada Justiça!

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.
Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador- Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu réplica.
Corridos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.
***
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
Da sentença recorrida constam os seguintes fundamentos de facto e de direito:
Matéria de facto provada
Mostram-se provados com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
1. No dia …, por volta das …, o arguido A... conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, no sentido de trânsito Vila Cã/Outeiro de Moinho.
2. Em sentido contrário, seguia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, conduzido por C... .
3. A dada altura, os veículos conduzidos pelo arguido e por C... colidiram, tendo o veículo do arguido embatido na parte lateral esquerda traseira da viatura por aquela conduzida, daqui resultando estragos de valor não concretamente apurado.
4. Foi recolhida uma amostra de sangue ao arguido, cuja análise permitiu apurar que aquele conduzia a aludida viatura, nas referidas circunstâncias, com uma taxa de álcool no sangue de 1,25 g/l.
5. De facto, antes da condução, o arguido ingerira bebidas alcoólicas, sabendo do estado de alcoolemia em que se encontrava.
6. O arguido sabia que estava obrigado a circular na faixa da rodagem da direita, que não podia conduzir veículos sob o efeito do álcool e que ao fazê-lo punha em perigo todos os que ali transitavam, o que, não obstante, não o impediu de efectuar tal condução.
7. O arguido previu que ao actuar do modo descrito potenciava perigo de colisão com os demais veículos que circulavam na via pública e que, dessa forma, poderia colocar em perigo a vida e a integridade física dos seus condutores e passageiros, designadamente de C... ., bem como que poderia causar prejuízos de valor elevado, apesar de não se ter conformado com a realização de tais resultados.
8. Actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9. O arguido é casado e reside em casa própria com sua mulher (empregada de limpeza de profissão) e dois filhos (de 23 e de 18 anos de idade, o mais novo ainda estudante), ambos ainda dele economicamente dependentes.
10. Exerce a profissão de motorista em empresa de distribuição, auferindo um rendimento mensal de cerca de 600 €.
11. Tem como habilitações literárias o 7.º ano de escolaridade.
12. O arguido não tem antecedentes criminais.

Matéria de facto não provada
Por sua vez, não resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. O arguido A... invadiu com a sua viatura a via de trânsito de sentido contrário, tendo perdido o controlo do veículo influenciado pelo seu estado de alcoolemia, provocando a colisão.
2. C... . viu a sua integridade física afectada com a colisão, sendo que o seu veículo tinha valor superior a 5 000 €.

Motivação da decisão de facto
O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, desde logo nas declarações do arguido A..., o qual precisou as circunstâncias de tempo e de espaço descritas na acusação, reconhecendo que conduzia o veículo automóvel identificado na acusação, no sentido de trânsito ali apontado, tendo sido interveniente em acidente de viação, factos que em conformidade lograram ver-se, desde logo, demonstrados.
Admitiu também o arguido ter ingerido bebidas alcoólicas antes de efectuar a condução, sabendo que era legalmente vedada tal actuação no caso de ingestão de álcool em excesso, aduzindo, porém, ter ingerido bebidas em quantidade que à luz das regras da experiência comum não se coaduna com a taxa de alcoolemia apurada e que transparece do relatório de fls. 13.
Efectivamente, o arguido denotou nesta parte das suas declarações alguma hesitação, comprometimento e muito pouca confiança, bem patente na forma lacónica como respondeu às questões com que foi confrontado, não tendo apresentado justificação com solidez argumentativa e não respondendo, por vezes, de forma directa, ao que lhe foi questionado, motivos pelos quais não foi aqui merecedor de qualquer crédito.
O mesmo se diga do concreto local de embate por si apontado, ainda que também não tenha sido dada como provada a versão constante da acusação.
Com efeito, o arguido referiu sempre de forma peremptória, ainda que aos olhos do Tribunal de forma algo evasiva e sem muita segurança, escudando-se sempre nos mesmos argumentos, ter embatido na sua própria faixa de rodagem.
Já a testemunha C...., igualmente interveniente no acidente de viação, apesar de transparecer maior objectividade, com um discurso mais fluente e descomprometido, assim corroborando as circunstâncias de tempo e de espaço atrás referidas, o veículo que conduzia e o seu sentido de trânsito, acabou por reconhecer que o local é estreito, configura uma curva muito acentuada e não tem marcas no pavimento, não tendo assim o Tribunal alcançado, quanto ao apuramento do local do embate, apesar da testemunha ter referido que a colisão teve lugar na sua mão de trânsito, qualquer convicção segura e firme, acima de qualquer dúvida razoável, quanto à dinâmica da colisão descrita na acusação, fazendo-se aqui funcionar o princípio de valoração da prova in dubio pro reu, dando-se como não provado, consequentemente, que o arguido perdeu o controle do seu veículo e invadiu a via de trânsito em sentido contrário, provocando a colisão.
É que também a testemunha D..., militar da G.N.R. que acorreu ao local do embate e elaborou a participação do acidente de viação junta aos autos, confirmou aquelas características físicas, enunciando ainda com imparcialidade que não vislumbrou quaisquer vestígios no pavimento que indiciassem o preciso local da colisão. Limitou-se esta testemunha, por conseguinte, a confirmar o dia, hora, local, veículos intervenientes no acidente e respectivos condutores, fazendo-o de forma espontânea, ainda que com algum esforço de memória, atestando também a sujeição do arguido a análise sanguínea com vista ao apuramento da taxa de alcoolemia, contribuindo para o apuramento de tal factualidade.
Em todo o caso, a testemunha C... . denotou firmeza na descrição da parte do seu veículo embatida pelo arguido, respondendo sempre de forma peremptória, simples e natural, sem vacilar, tendo a correspondente matéria de facto constante da acusação resultado provada em conformidade com os esclarecimentos prestados em audiência.
Relativamente às condições económicas, familiares e profissionais do arguido relevaram as suas próprias declarações, prestadas nesta parte com maior naturalidade.
Devidamente conjugados com as declarações e depoimentos anteriores, baseou-se o Tribunal nos documentos de fls. 13 (no que respeita ao apuramento do resultado do teste de detecção de álcool no sangue efectuado ao arguido, do qual extraiu também o Tribunal a ilação do carácter culposo da sua conduta, face ao teor das declarações por ele prestadas, acima enunciadas, não podendo o arguido deixar de saber, mesmo à luz das regras da experiência comum, que havia bebido em demasia e as consequências gravosas que daí podiam resultar, ao nível do seu comportamento estradal) e 5 a 6 (participação do acidente de viação, da qual resultam os elementos relativos à data e local em que ocorreu o acidente, a caracterização dos veículos intervenientes e identificação dos respectivos condutores).
Tomou o Tribunal ainda em consideração o C.R.C. do arguido junto aos autos no que respeita aos seus antecedentes criminais.
Finalmente, os restantes factos dados como não provados, ainda não aflorados, relativamente à ausência de ferimentos por parte da condutora do veículo de matrícula 15- -46-UB e ao valor desse veículo, advieram da circunstância da testemunha C... . ter admitido, imparcialmente, não ter sofrido qualquer sequela física com o acidente, tendo também reconhecido o seu desconhecimento quanto ao real valor de tal viatura, apenas tendo confirmado o valor que lhe foi dado a conhecer, desconhecimento e falta de espontaneidade que levaram a que o valor aposto no libelo acusatório tivesse sido dado como não provado.

Aspecto jurídico da causa
Enquadramento jurídico-penal
Vem o arguido A... acusado da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 3 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Nos termos do n.º 1 do mencionado art.º 291.º (na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), “quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Trata-se de um crime de perigo concreto introduzido no Código Penal pela revisão nele operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, mediante o qual se pretendeu “evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar assustadoramente no nosso país nos últimos anos, punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado” (Paula Ribeiro de Faria, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, 1999, págs. 1079 e 1080), dando guarida à preocupação do legislador em intervir no domínio do trânsito rodoviário, o qual havia assumido proporções e dado origem a situações alarmantes, em termos de emergir um dever moral de criminalização nesta matéria (cfr. “Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Ministério da Justiça, 1993, acta n.º 49, pág. 523).
Desdobra-se em duas categorias o tipo de condutas capazes de determinar insegurança na condução: a falta de condições para a condução [alínea a) do n.º 1 do art.º 291.º do Código Penal] e a violação grosseira das regras de circulação rodoviária [alínea b) do n.º 1 do art.º 291.º do Código Penal].
No caso vertente, interessa apenas abordar a primeira das referidas categorias, a relativa à falta de condições para a condução, dada a falência probatória dos factos atinentes à invasão por parte do arguido da via de trânsito de sentido contrário à sua, com a perda de controlo do veículo por força do seu estado de alcoolemia, não tendo assim resultado provada a violação grosseira de qualquer das regras de circulação a que alude a alínea b) do n.º 1 do art.º 291.º do Código Penal.
Diferentemente, é inequívoco o preenchimento da alínea a) do n.º 1 do mesmo normativo, a qual abrange todas as situações em que se verifica uma diminuição das capacidades do condutor devido à ingestão de bebidas alcoólicas, distinguindo-se o estado de embriaguez e a influência do álcool mencionados na alínea a) do normativo em apreço apenas quantitativamente, como se deduz do art.º 292.º do Código Penal. Considera-se que existe estado de embriaguez quando existe no sangue do agente uma taxa de álcool igual ou superior a 1,2 g/l. Existindo uma taxa entre 0,5 g/l e 1,2 g/l considera-se que existe uma mera condução sob influência do álcool. Assim, entre as normas dos artigos 291.º e 292.º existe uma relação de subsidiariedade (nesse sentido, Manuel Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, Anotado e comentado, 15.ª edição, 2002, pág. 872, e Germano Marques da Silva, “Crimes Rodoviários”, 1996, págs. 48 e 49).
Ficou dado como provado que no dia 4 de Agosto de 2009, por volta das 23 horas e 40 minutos, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 48-84-VT, no Largo da Igreja, em Vila Cã, quando a dada altura colidiu com o veículo de matrícula 15-46--UB, conduzido por C... Bila ., que seguia em sentido contrário, daí resultando estragos de valor não concretamente apurado.
Apurou-se ainda que foi recolhida uma amostra de sangue ao arguido, cujo resultado redundou numa taxa de alcoolemia de 1,25 g/l.
Era de prever, assim, que ao conduzir nestas circunstâncias, com uma taxa de álcool no sangue elevada, criaria um perigo iminente para a vida e integridade física dos demais utentes da via, o que veio a concretizar-se mediante a colisão que ali teve lugar.
A conduta do arguido preencheu, deste modo, os elementos do tipo objectivo de ilícito por que vinha acusado, não relevando que não tivesse ficado demonstrado que C... . sofreu ferimentos, visto que estamos perante um mero crime de perigo concreto.
O mesmo se diga do tipo subjectivo de ilícito. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário exige o dolo relativamente a todos os elementos do tipo, incluindo, por conseguinte, a criação de perigo para os bens jurídicos enumerados. É usual, a este propósito, trazer-se à colação a designação de dolo de perigo, traduzido na vontade de criar o evento de perigo. Porém, “ao dolo de perigo está associada a existência de negligência consciente de dano. O perigo é, como vimos, a probabilidade ou possibilidade de dano. O agente ao querer criar a situação de perigo tem de admitir a possibilidade de dano” (Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 21).
Contudo, o arguido actuou com dolo de acção e negligência quanto ao evento de perigo, caindo a situação sub judice na previsão do n.º 3 do art.º 291.º do Código Penal. Na verdade, face aos factos dados como provados, não existiu por parte do arguido dolo de perigo, pois a sua consciência e vontade não abrangeu o evento perigoso, tendo o mesmo sido criado apenas por negligência. Ou seja, o agente sabia da sua incapacidade para conduzir, tendo representado mas afastado a possibilidade (negligência consciente) da criação do perigo para os bens jurídicos em causa. Dolo de acção e criação negligente do perigo foram, pois, os traços marcantes da sua conduta.
Deste modo, incorreu o arguido na prática do crime por que vinha acusado, sendo premente a intervenção do direito penal com os seus instrumentos sancionatórios próprios.
Escolha e determinação da medida da pena
No que respeita à escolha e determinação da medida da pena, importa salientar que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário em análise “é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias” (art.º 291.º, n.º 3 do Código Penal).
Nos termos do art.º 70.º do Código Penal, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Este preceito veio adoptar, fielmente, o propósito do Código Penal Português de conferir expressão prática à superioridade político-criminal da pena de multa face à pena de prisão no tratamento da pequena e da média criminalidade.
Deste modo, opta o Tribunal pela aplicação ao arguido da pena de multa alternativamente prevista para o crime em apreço, mostrando-se a mesma suficiente para promover a sua recuperação social e satisfazer as exigências de reprovação e de prevenção do crime (art.º 40.º do Código Penal).
Obtida a respectiva moldura penal (de 10 a 240 dias, de acordo com a consideração conjugada dos artigos 47.º, n.º 1 e 292.º, n.º 3, ambos do Código Penal), a fixação subsequente do número de dias de multa ocorrerá de acordo com os critérios gerais do n.º 1 do art.º 71.º do Código Penal, concretizado pelo n.º 2 do mesmo preceito.
Vale isto por dizer que a graduação em concreto do número de dias de multa é feita em função da culpa (concreta) do agente – limite máximo e inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas –, das exigências de prevenção geral, entendida como prevenção geral positiva ou de integração, e de prevenção especial, tendo em consideração todas as funções que o pensamento preventivo especial visa realizar, maxime a de socialização.
Assim, tendo presentes as considerações expendidas, a moldura da multa que em abstracto se comina, importa atender ao mediano grau de ilicitude dos factos, ao modo de execução destes e à gravidade das suas consequências, tendo o arguido sido interveniente em acidente de viação, ainda que daí não tivessem comprovadamente resultado ferimentos nos respectivos intervenientes, apenas estragos de valor não apurado, sendo elevada a taxa de álcool apresentada pelo arguido [tudo a considerar no âmbito do art.º 71.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal].
Por outro lado, agiu o mesmo com dolo de acção e negligência quanto ao evento de perigo [art.º 71.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal].
Relativamente aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins ou motivos que o determinaram, nada de particular resultou provado, a que decerto não será alheia a circunstância de estarmos perante um mero crime de perigo [art.º 71.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal].
Importa ainda sublinhar que o arguido não possui passado criminal registado, tudo levando a crer que se tratou de um acto ocasional e esporádico na sua vida, sendo certo, ademais, que admitiu parte dos factos constantes da acusação, colaborando nessa medida na boa administração da Justiça, não obstante à condução estradal ir associado um comprovado risco, sendo o nosso país reconhecidamente assolado por elevados índices de sinistralidade rodoviária, muitas vezes associados à condução de veículos automóveis de forma temerária, após excessivo consumo de álcool, sendo por via disso fortes as exigências de prevenção geral que no caso em apreço se fazem sentir.
Contudo, o arguido encontra-se familiar e profissionalmente integrado [art.º 71.º, n.º 2, alíneas d) e e), do Código Penal].
Ainda assim, foi notória a sua falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada nos factos apurados, devendo essa falta ser censurada através da aplicação da pena [art.º 71.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal].
Tudo devidamente conjugado e ponderado, considera-se ajustada a pena de 90 dias de multa, em termos de se afigurar como uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada.
Relativamente à determinação do quantitativo diário da multa (a oscilar entre os limites de 5 € e 500 €), importa atender exclusivamente à situação económico-financeira e aos encargos pessoais do arguido (art.º 47.º, n.º 2 do Código Penal).
Deste modo, dados os factos dados como provados atinentes a tal matéria, entende o Tribunal adequado fixar em 8 € o quantitativo correspondente a cada dia de multa.
À prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário é ainda aplicável a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no art.º 69.º do Código Penal.
Dispõe tal norma que é condenado na pena ali prescrita quem for punido por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º – cfr. o respectivo n.º 1, alínea a).
Será, assim, de aplicar ao arguido tal pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
Quanto à determinação da medida concreta desta pena acessória, deve a mesma ser fixada entre o limite mínimo de três meses e máximo de três anos (art. 69.º, n.º 1 do Código Penal).
Para determinar em concreto a medida da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados deve atender-se às circunstâncias que presidiram à determinação da pena principal, além de se dever ponderar a verificação de um particular conteúdo do ilícito e um juízo de censura adicional que justifique a sua aplicação (artigos 69.º, n.º 1, 71. º e 40.º, todos do Código Penal).
Perante o caso sub judice, considera-se adequada e proporcional a aplicação de uma pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 105 dias.
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III. Apreciação do Recurso
A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).
Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso.
E vistas as conclusões do recurso interposto, as questões que reclamam solução são as seguintes:
Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto;
Se a sentença recorrida padece de contradição insanável de fundamentação;
Se a factualidade provada não integra a prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, devendo o arguido ser absolvido.
Apreciando:

Da impugnação da matéria de facto
O recorrente começa por impugnar a decisão sobre matéria de facto, alegando que o ponto 3 dos factos provados devia ser dado como não provado com base nas declarações do arguido e da testemunha B... Sousa. E a este trecho se resume a pretendida impugnação sem mais qualquer especificação relevante seja efectuada na motivação.
Quando o recorrente pretenda impugnar a decisão sobre matéria de facto, fundamentando o recurso em erro de julgamento, deve observar o disposto no artigo 412º, nºs 3 do Código de Processo Penal, especificando:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas (sendo o caso).
Acrescenta o nº 4 desse preceito que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do artigo 364º, nº 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
E preceituando o nº 1 do citado artigo 412º que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões em que o recorrente resume as razões do pedido, tal significa que a motivação se compõe de duas partes distintas a que poderemos chamar corpo da motivação ou motivação propriamente dita e conclusões, utilizando a terminologia de Simas Santos e Leal-Henriques, em Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 105.
No corpo da motivação deve o recorrente enunciar os fundamentos do recurso que se traduzem na indicação do que se decidiu mal, porque se decidiu mal e como deve em alternativa ser decidido.
Já as conclusões destinam-se exclusivamente a sintetizar os fundamentos do recurso de tal modo que estas não podem alargar o objecto do recurso a matérias não tratadas na motivação propriamente dita, como delimitam, por outro lado o seu objecto, não podendo ser consideradas questões que sejam enunciadas no corpo da motivação e não mencionadas nas conclusões.
A fundamentação do recurso, como se disse, exige que se especifique o que foi mal decidido, porque foi mal decidido e o que deve ser decidido em alternativa. Essa exigência resulta com maior expressividade do disposto no nº 2 do artigo 412º no que concerne a matéria de direito e do disposto no nºs 3 e 4 no que concerne à impugnação da matéria de facto.
Com efeito, a exigência da indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados corresponde à indicação do que se decidiu mal, a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida corresponde à alegação das razões porque se decidiu mal.
E neste particular a exigência de concretização vai mais longe, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Esta exigência deve ser interpretada no sentido de que o recorrente, seja no discurso directo ou indirecto, deve mencionar os conteúdos concretos da prova que impõem decisão diversa da recorrido e localizá-los nos suportes de gravação.
Vejamos que na redacção anterior do preceito se mencionava a exigência de transcrição dos depoimentos, eliminada pela redacção da Lei nº 48/2007 de 29.8 que impôs a exigência da indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação. Se o recurso exige fundamentação, sendo impossível fundamentar recurso da matéria de facto sem se mencionar porque se decidiu mal, o que implica incursão pelo teor da prova, a indicação concreta das passagens significa não só a localização das passagens como a abordagem do seu conteúdo que justifica a alegada má decisão.
E quando à necessidade de localização, ela deriva, desde logo, do disposto no artigo 412º, nº 6 quando refere que o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas.
Ou seja, as exigências em causa têm também uma finalidade claramente ordenadora. É que o recurso da matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas tão só a encontrar remédio jurídico para corrigir erros específicos que o recorrente expressamente indique (cfr. o Ac. desta Relação proferido no processo 185/05.0GAOFR.C1 de 25.6.2008 publicado em www.dgsi.pt) e, desse ponto de vista, tendo em consideração, aliás, o dever de colaboração das partes, bem se compreende a exigência legal mencionada.
É dentro destes parâmetros que deve ser analisada a motivação em sentido lato do recorrente.
E verificamos que nas conclusões do recurso como no corpo da motivação o recorrente não indica em nenhum momento os concretos conteúdos de prova que na sua perspectiva impõem diversa da recorrida, limitando-se a indicar genericamente os meios de prova, não dando cumprimento ao citado normativo (alínea b) do nº 3 e nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).
Por via da apontada deficiência, está este Tribunal de Relação impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo (cfr. artigo 431 º do Código de Processo Penal).
E não se argumente que o caso justifica a prolação de despacho dirigido ao recorrente no sentido de aperfeiçoar a motivação de recurso.
Como advertia o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 140/2004 de 10.3.2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt em relação à redacção anterior do artigo 412º “não está aqui em causa apenas uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, isto é, relativa à forma de exposição ou condensação de uma impugnação que é, quanto ao mais, apreensível pela motivação do recurso - falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada.
Antes a indicação exigida pela al. b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP - repete-se, das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos - é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.
Importa, aliás, recordar, por um lado, que da jurisprudência do T.C. não pode retirar-se (...) uma exigência constitucional de convite ao aperfeiçoamento sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412.º, nºs 3, alínea b) e 4, do CPP, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. Aliás, o modo de especificação por referência aos suportes técnicos é deixado em aberto pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP, não tendo, porém, no presente caso, existido sequer qualquer esboço dessa referência”.
O despacho de aperfeiçoamento neste caso “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso” ainda parafraseando o mencionado acórdão.
Do que se extrai que o Tribunal Constitucional colocado perante a questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 412º, nºs 3, alínea b) e 4 do Código de Processo Penal interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne a matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências, decidiu não julgar inconstitucional tal norma com o citado conteúdo interpretativo.
E foi, aliás, na senda dessa jurisprudência constitucional que a Lei nº 48/2007 introduziu disposição, nº 3 do artigo 417º, no sentido de consagrar expressamente a possibilidade de convite à correcção da motivação de recurso, mas apenas se esta não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas no artigo 412º, nºs 2 a 5, já não sendo tal possível quando estão em causa vícios do corpo da motivação. E tanto assim, que no nº 4 do mesmo preceito se menciona expressamente que o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.
Do exposto resulta, como já antes se afirmou, que este Tribunal está impedido de alterar a decisão recorrida no que respeita à matéria de facto por via da impugnação substancialmente viciada que o recorrente apresentou e que não é passível de convite à correcção por parte deste Tribunal.
A matéria de facto constante da sentença recorrida apenas poderá sofrer alteração por via do reconhecimento de algum dos vícios a que se refere o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, matéria de que a seguir se tratará até porque o recorrente invoca a existência do vício de contradição insanável entre factos.

Da alegada contradição insanável
Alega o recorrente que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável de fundamentação. Vejamos em primeiro lugar o teor do preceito que prevê o vício alegado e o respectivo significado normativo.
Preceitua o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal:
“Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 2000, Vol. III, pág. 338/339).

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, significa que a decisão de facto apurada não é suficiente para a decisão de direito encontrada, ou como salienta Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 340: “é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito” e que acontece quando o tribunal a quo “deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique.”- v. Ac. do STJ de 16.4.98 in www.dgsi.pt.
Por sua vez, a contradição insanável de fundamentação ou entre esta e a decisão supõe posições antagónicas e inconciliáveis entre si nos factos descritos ou entre essa descrição e a respectiva fundamentação.
Como se refere no Acórdão do STJ de 13 de Outubro de 1999, in Col. Jur., Acs do STJ, 1999, tomo III, p. 184, “Existe o vício de contradição insanável de fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre o factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal”.
Já o erro notório na apreciação da prova, não é um princípio de prova, não é um meio de valoração da prova, mas um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum, na leitura do texto da decisão recorrida ainda que conjugada com as regras da experiência comum.
Como é sabido, o conceito de erro notório na apreciação da prova tem de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (v. por ex. Ac. do S.T.J. de 6.4.94 in Col. Jur. Acs. do STJ, II, tomo 2, 186).

A alegação do recorrente restringe-se ao vício de contradição que segundo ele ocorre entre o facto provado no ponto 3 e o facto não provado do ponto 1.
No facto provado do ponto 3 menciona-se que os veículos conduzidos pelo arguido e por C... . colidiram tendo o veículo do arguido embatido na parte lateral esquerda traseira da viatura por aquela conduzida, enquanto se não deu como não provado no ponto 1 dos factos não provados que o arguido tenha invadido com a sua viatura a via de trânsito de sentido contrário.
Não se vislumbra a existência da apontada contradição posto que o facto provado de o veículo do arguido ter embatido noutro veículo não tem como pressuposto necessário que tal tenha ocorrido na metade esquerda da via atento o sentido em que seguia. Pode de facto ter ocorrido em qualquer ponto da via.
Mas ainda se diga, tratando-se de matéria do conhecimento oficioso que examinando a decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, a mesma não revela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, já que a mesma é suficiente para conduzir a uma decisão de direito, delimitando facticamente o crime praticado pelo arguido/recorrente e a sua responsabilidade criminal.
Por outro lado, os factos constantes da decisão, bem como esta e a sua fundamentação, mostram consonância lógico-jurídica sendo que, a motivação da decisão de facto, revela coerência com a decisão de facto, encontrando-se, também afastado o alegado vício da contradição insanável de fundamentação ou entre esta e a decisão.
Finalmente a fundamentação de facto, quer na enumeração dos factos, quer na motivação de facto, não apresenta qualquer oposição antagónica, qualquer erro, ou qualquer factualidade contrária às regras da experiência comum, de que qualquer cidadão com formação média logo se aperceba. Inexiste, pois, erro notório na apreciação da prova.
Sendo assim não pode a matéria factual constante da decisão recorrida ser, por qualquer via, objecto de alteração.

Da qualificação jurídica dos factos
Alega o recorrente que os factos provados que constam da decisão recorrida não integram a prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário por que foi condenado, devendo ser absolvido.
Lembremos, porém, que em audiência de julgamento o Tribunal a quo em cumprimento do disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal comunicou a possibilidade de os factos poderem integrar o crime de condução de veículo em estado de embriaguez o que, na procedência da tese do arguido, significa que terá de ser equacionada a sua condenação pelo citado crime, cumprido que já se encontra o contraditório nessa matéria.
Vejamos.
Como se preceitua no artigo 291º, nº 1 do Código Penal “quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Sublinharam-se propositadamente as passagens significativas para o caso.
Na sentença recorrida para afirmar o preenchimento do tipo de crime de condução perigosa de veículo rodoviário afirmou-se:
"Desdobra-se em duas categorias o tipo de condutas capazes de determinar insegurança na condução: a falta de condições para a condução [alínea a) do n.º 1 do art.º 291.º do Código Penal] e a violação grosseira das regras de circulação rodoviária [alínea b) do n.º 1 do art.º 291.º do Código Penal].
No caso vertente, interessa apenas abordar a primeira das referidas categorias, a relativa à falta de condições para a condução, dada a falência probatória dos factos atinentes à invasão por parte do arguido da via de trânsito de sentido contrário à sua, com a perda de controlo do veículo por força do seu estado de alcoolemia, não tendo assim resultado provada a violação grosseira de qualquer das regras de circulação a que alude a alínea b) do n.º 1 do art.º 291.º do Código Penal.
Diferentemente, é inequívoco o preenchimento da alínea a) do n.º 1 do mesmo normativo, a qual abrange todas as situações em que se verifica uma diminuição das capacidades do condutor devido à ingestão de bebidas alcoólicas, distinguindo-se o estado de embriaguez e a influência do álcool mencionados na alínea a) do normativo em apreço apenas quantitativamente, como se deduz do art.º 292.º do Código Penal."
O que a sentença recorrida, porém, escamoteia é que não basta a existência do estado de embriaguez para o preenchimento do tipo de crime em causa, sendo ainda necessário que exista substrato factual do qual se extraia que a condução em estado de embriaguez foi causadora (na expressão da lei "criou") perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Ora a factualidade provada apenas nos revela que o arguido conduzia em estado de embriaguez e que quando assim conduzia colidiu com outro veículo que circulava em sentido contrário. Nada nos revela a factualidade provada sobre a causa concreta desse acidente, nomeadamente se relacionada causalmente à condução em estado de embriaguez.
Embora no ponto 6 dos factos provados se mencione que o arguido sabia que estava obrigado a circular na faixa de rodagem da direita e que não podia conduzir sob o efeito do álcool e que ao fazê-lo punha em perigo todos os que ali transitavam (qualquer cidadão condutor o deve saber) não vem provado que circulasse pela esquerda e que o perigo concreto verificado se tenha devido a uma acção concreta sua determinada pelo estado de embriaguez.
Do mesmo modo no ponto 7 dos factos provados vem descrito que o arguido previu que ao conduzir com álcool podia causar perigo, afirmação inócua sem a correspondente concretização da acção causal do perigo concreto verificado que, com base nos factos objectivos descritos, tanto se pode ter devido a acção/omissão do arguido como do condutor do outro veículo interveniente no acidente.
Na sentença recorrida presumiu-se, pois, indevidamente que conduzindo o arguido em estado de embriaguez tinha sido o criador do perigo. Era porém indispensável para o preenchimento do tipo de crime em causa que tal viesse traduzido em factualidade objectiva.
Não preenche, pois, a conduta descrita o crime por que foi condenado o recorrente em primeira instância mas já preenche indubitavelmente a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º, nº 1 do Código Penal.
Com efeito, pratica esse crime quem conduzir veículo com ou sem motor em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, permitindo a factualidade provada imputar subjectivamente o cometimento de tal crime ao arguido a título de dolo directo.
O crime mencionado é punível com pena de prisão ate um ano ou de multa até 120 dias, bem como, nos termos do artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, com pena acessória de proibição de conduzir a fixar entre três meses e três anos.
Sendo o arguido delinquente primário e não obstante as acrescidas e reconhecidas exigências de prevenção geral e especial de intimidação existentes no domínio dos ilícitos rodoviários, ainda assim manifesto é que a pena não privativa da liberdade dará cabal satisfação a tais exigências, impondo o disposto no artigo 70º do Código Penal que se lhe dê preferência em detrimento da pena de prisão cominada.
Sendo as finalidades da punição consignadas no artigo 40º do Código Penal a trave mestra que determina o doseamento das penas, dir-se-á de forma resumida, reproduzindo Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pag. 84, que «a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71º, nº 1 do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido.
Deve em primeiro lugar acentuar-se novamente que a natureza do crime praticado que se insere nos crimes contra a segurança rodoviária impõe sempre a ponderação de acrescidas exigências de prevenção geral de integração, mas também de prevenção especial negativa de intimidação. Logo o limite oferecido pelas exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico só excepcionalmente permitirá a fixação de penas no limite mínimo.
No caso deve ser ponderado grau de ilicitude dos factos traduzido pela condução com a taxa de álcool no sangue de 1,25 g/l que pouco excede a taxa relevante para preenchimento do tipo de crime em causa, a perigosidade que a condução com tal taxa reflecte, a intensidade do dolo na modalidade de directo.
Se estes factores indicam a fixação de penas sem substancial afastamento dos limites mínimos legalmente previstos, essa conclusão será sedimentada pelo facto de o arguido não registar antecedentes e se encontrar inserido.
Pelo que a pena de multa será fixada em 45 dias e a pena de proibição de conduzir em 105 dias até por força da proibição de reformatio in pejus.
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IV. Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto e, em consequência:
1. Revogar a sentença recorrida na parte em que considerou ter o arguido praticado um crime de condução perigosa de veículo rodoviária, condenando-o pela respectiva comissão;
2. Condenar o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na pena principal de 45 dias de multa à taxa diária de oito euros, no montante de 360 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 105 dias.
3. Manter no mais a decisão recorrida.
Não há lugar a tributação pelo recurso interposto atento o preceituado no artigo 515º nº 1 do Código de Processo Penal.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins