Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3529/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: DANOS CAUSADOS POR ACTIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA;TRANSFUSÃO DE SANGUE; HEPATITE C; NEXO CAUSAL; ÓNUS DA PROVA; RESPOSTA AOS QUESITOS
Data do Acordão: 07/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 341º E 493º, Nº 2, DO C. CIV. ; D.L. Nº 383/89, DE 6/11
Sumário: I. Perguntando-se num quesito se a contaminação pelo VHC foi causada pela transfusão de sangue, o julgador não pode transpor para a resposta o parecer pericial segundo o qual a transfusão foi «a causa provável» dessa contaminação, antes deve tomar posição definida respondendo não provado ou provado ainda que com esclarecimentos.


II. Numa acção, para a prova dum facto não se exige a certeza absoluta, mas tão só a certeza relativa, um alto grau de probabilidade objectivável, suficiente para as necessidades práticas da vida.

III. Se à data da transfusão havia o conhecimento médico de que uma nova doença de origem viral era transmissível por via sanguínea mas sem que o vírus estivesse identificado pela ciência, nenhuma análise ao sangue do dador podia revelar que este estivesse contaminado com o vírus mais tarde identificado como VHC.

IV. Em Portugal inexiste regime legal específico sobre responsabilidade por actos médicos.

V. O juízo normativo de adequação, que há-de acrescer ao juízo naturalístico da causalidade, deve ter um sentido que se coadune com a espécie de responsabilidade civil em causa, a pré-determinar.

VI. Para que o tratamento consistente em transfusão constitua ofensa à integridade física é necessário que se verifique a falta de algum destes requisitos: qualificação do agente; intenção terapêutica; indicação médica; realização do acto segundo as «leges artis».

VII. Impende sobre o paciente lesado o ónus da prova da ilicitude da transfusão de sangue, ilicitude que não se deve ter por verificada quando o médico assumiu o tratamento com transfusão que se mostrou necessária na sequência de intervenção cirúrgica ao joelho, não se mostrando verificado negativamente algum dos ditos requisitos.

VIII. Provindo o sangue humano a transfundir não de banco de sangue mas de determinado dador, e porque este sangue está fora do comércio, inexiste legislação que sancione os danos resultantes em termos de pura responsabilidade objectiva.

IX. Havendo especial periculosidade pela possibilidade de contaminação viral, a actividade de transfusão de sangue é perigosa para os efeitos do art. 493º nº2 do Código Civil, que consagra regime de responsabilidade subjectiva agravada ou objectiva atenuada, atenta a específica presunção de culpa.

X. Tendo o serviço médico empregado todas as providências exigidas e em discussão, face ao estado da ciência e da técnica até à data da transfusão, não se pode concluir em termos de juízo de prognose póstuma que haja responsabilidade pelos danos resultantes da transfusão.
Decisão Texto Integral: Acordam o seguinte neste Tribunal da Relação:

I. Relatório
1. Nesta acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, que A..., casado, pedreiro reformado, residente na Rua X..., ..., Coimbra, move a B..., com sede na Rua Y..., em Coimbra, Companhia de Seguros C..., com sede em Z..., em Lisboa, e a interveniente D..., Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua K..., em Lisboa, aquele pede a condenação das rés a pagar-lhe a quantia de 220.835 euros, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação.
Alegou, em resumo:
Que foi vítima de um acidente de trabalho em 6 de Janeiro de 1989, em consequência do qual foi internado e sujeito a intervenção cirúrgica (abertura de joelho) na Casa de Saúde da 1ª ré. Por via disso, em 12 de Janeiro de 1989, aí foi sujeito a uma transfusão de sangue, sendo transfusionista o Dr. E... e provindo o sangue do dador F.... Teve alta a 3/2 e foi ali novamente internado. O T.T. fixou-lhe a pensão pelo acidente, a cargo da 2ª ré.
.Que em 1998/99, devido a perturbações que sentia, passou a ser consultado no CHC e a 10/10/2000 o Dr. G... encaminhou-o para internamento nos HUC, onde lhe foi diagnosticada cirrose hepática, para a qual evoluira a hepatite C de que sofre e causada pelo vírus VHC. Tal doença proveio da transfusão de sangue, contaminado pelo vírus VHC, daí lhe resultando danos de ordem patrimonial e não patrimonial.
Que não foi feito qualquer exame, teste ou análise ao sangue aplicado na transfusão, em violação do Desp.12/86 de 5-5.
Que em Janeiro/89 ainda não havia sido descoberto o vírus VHC (art. 50), mas há muito era conhecida a infecção provocada por aquele agente, infecção essa conhecida por hepatite “não A-não B” (art. 51) e que se sabia estar associada à transfusão de sangue e seus derivados (art. 52).
Que o VHC se mantém em latência num período de 10 a 20 anos, mas, no caso do A.., os primeiros sintomas ocorreram cerca de 10 anos após, uma vez que, tendo o hábito de ingerir bebidas alcoólicas, este facto acelerou ligeiramente o processo.
Que a 1ª ré não cumpriu o contrato de serviços médicos a que se obrigara (art. 798º do CC) e violou ilicitamente o direito absoluto à integridade física e as normas destinadas a proteger os interesses do A (art. 483º). A actividade da 1ª ré reveste-se de perigosidade intrínseca e pelos meios empregados – mormente a transfusão de sangue – e daí a sua responsabilidade pelo art 493º nº 2 do CC, se não se provar a sua culpa.
Que a responsabilidade da 2ª ré radica no art. 500º do CC.

2. A ré Companhia de Seguros C... impugnou parte do alegado e defendeu que nunca existiu entre si e a B... qualquer relação de comissão. Existia uma relação mediante a qual a B... lhe fornecia, mediante contrapartida pecuniária, o resultado da sua actividade de casa de saúde, sem que influenciasse o tipo ou o modo dos cuidados de saúde prestados. Concluiu pela improcedência do pedido.

3. A ré B... deduziu o incidente de intervenção da D..., Companhia de Seguros, S.A , por com ela ter celebrado um contrato de seguro mediante o qual havia transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros na sua actividade.
Defendeu-se com a aceitação da prestação dos cuidados de saúde pelo autor, incluindo a transfusão de sangue, conforme contrato de prestação de serviços celebrado entre a B... e a 2ª ré, e a alegação de que foi ele informado dos riscos inerentes à transfusão, com referência à sida e hepatite. Essa transfusão foi efectuada pelo Dr. E..., médico dos HUC, cujos serviços foram pagos pela ré Companhia de Seguros C.... O dador era pessoa saudável, sem qualquer doença crónica ou infecto-contagiosa e sem comportamentos de risco. Foi submetido às provas de despistagem do vírus da hepatite B, sífilis e sida, no Laboratório Matos Beja e no Hospital dos Covões. Nessa altura não era exigida a pesquisa dos “anticorpos” da hepatite C, cujo vírus só foi descoberto em finais de 1989, e os testes de despistagem só se iniciaram em 1990. Acrescentou que o sangue ministrado ao autor estava nas condições regulamentares da época e que o autor pode ter sido contaminado pelo VHC noutras circunstâncias. Concluiu pela improcedência da acção.

4. Admitida a intervenção da D... – Companhia de Seguros, S.A. a título principal, esta contestou, invocando designadamente que o autor ingeria excessivamente álcool e nisso reside a causa da cirrose. Concluiu pela sua absolvição do pedido.

5. O autor replicou.

6. Foi proferido o despacho saneador, foram descritos os factos considerados assentes de A) a Q) e foi organizada a base instrutória, com 57 quesitos e, conforme fl 351 s, aditamento de mais 6.
Realizou-se a audiência de julgamento, com gravação da prova pessoal, e foi decidida a matéria de facto controvertida nos termos definidos a fls. 488 a 494, sem reclamação.

7. Seguiu-se a sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu as rés do pedido.
Recorre o A , concluindo a sua alegação, em resumo:
1ª) a 4ª) No prévio arrolamento de documentos, a 1ª ré sonegou dolosamente os documentos cuja junção ali fora ordenada e veio juntá-los nesta acção;
5ª) A ré litiga de má fé;
6ª) Os documentos aqui juntos e antes sonegados não podem ser considerados meio probatório;
7ª) A sonegação implica inversão do ónus da prova do nexo causal e da culpa (art. 344º nº 2 do CC e 519º nos 1 e 2 do CPC);
8ª) Pela inversão quanto ao nexo causal, devem dar-se como provados os factos dos quesitos 8º e 9º;
9ª) a 14ª) O quesito 61º deve ser não provado;
15ª) Os quesitos 46º a 51º e 60º devem ser não provados;
16ª) e 17ª) Os quesitos 10º e 11º devem ser provados, face à dita sonegação;
18ª e 19ª) Nas respostas dada aos quesitos 14º e 15º deve acrescentar-se como provado: «... existindo à data diversos mecanismos de prevenção, detecção e eliminação de outros vírus, incluindo o vírus não A e não B»;
20ª) O quesito 42º deve ser não provado;
21ª) A resposta ao quesito 8º permite concluir pelo nexo causal, sem prescindir da inversão do ónus da prova deste;
22ª) A ré não ilidiu a presunção legal de culpa em razão da sua responsabilidade contratual e delitual em resultado do exercício de actividade perigosa. E estão provados os factos da culpa;
23ª) Esta culpa traduz-se na omissão de procedimentos securitários impostos por lei, que tiveram como consequência a impossibilidade da identificação positiva do dador e a relação positiva deste com o sangue transfusionado, e entre este e o sangue analisado;
24ª) As rés seguradoras devem ser condenadas solidariamente na indemnização;
25ª) Foram violados os art. 342º, 344º nº 2, 443º, 483º, 493º nº 2, 799º nº 1 do CC e 456º nº 2 c) e d) e 519º nº 1 do CPC.
As rés contra-alegaram.
Correram os vistos legais e nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II. Fundamentos de Facto:
A sentença contém os seguintes factos provados:

1. Em seis de Janeiro de 1989, pelas 18h30, o autor caiu num buraco de umas obras em curso na variante de Cernache da E.N. n.º1, quando circulava por aquela via, de Coimbra, seu local de trabalho, para Cernache, seu local de residência, tripulando um velocípede a motor (a).
2. À data, o autor trabalhava como pedreiro, por conta e sob a autoridade e direcção da sociedade Lourenço Simões e Reis, Lda., que havia transferido para a ré Companhia de Seguros C... , S.A . a sua responsabilidade pelos danos emergentes de acidentes de trabalho (b).
3. Em consequência do acidente, o autor sofreu diversas lesões, «fractura da extremidade superior da tíbia direita» e recebeu instruções da ré Companhia de Seguros C... para ser tratado na Casa de Saúde de Coimbra, clínica pertença da ré B..., onde eram prestados os serviços médicos e cirúrgicos aos sinistrados daquela por força de contrato entre ambas existente, pelo qual esta se obrigava a prestar aos segurados da ré seguradora, mediante retribuição, os serviços de alojamento, enfermagem, disponibilidade do bloco operatório, medicamentos e sangue e esta se obrigava a pagar-lhos ©.
4. O autor deu entrada na Casa de Saúde de Coimbra em 10 de Janeiro de 1989 e, aí, foi submetido, em 12 de Janeiro desse ano, a intervenção cirúrgica que consistiu em «osteossíntese dos pratos da tíbia e astrotomia». Teve alta em 3 de Fevereiro de 1989 (d).
5. Em 12 de Janeiro de 1989 foi feita uma transfusão de sangue ao autor (500 cc).
6. Em 15 de Novembro de 1989, o autor voltou a ser internado na clínica da ré B..., onde lhe foi instituído tratamento cirúrgico de osteotomia de correcção. Teve alta em 30 de Novembro de 1989 (g).
7. Correu os seus termos pelo Tribunal de Trabalho de Coimbra uma acção, emergente de acidente de trabalho, contra a ré seguradora C... , tendo sido atribuído ao autor uma incapacidade permanente parcial de 0,6640 e declarado incapacitado para o trabalho habitual de pedreiro, por ter desenvolvido amioterapia da coxa com rigidez e artrose do joelho (h).
8. Nesse processo essa ré seguradora foi condenada a pagar ao autor uma pensão vitalícia que, actualmente, é de 215 euros por mês (i).
9. O exame da biopsia hepática, efectuado em Novembro de 2001, revelou, no relatório microscópico, que o autor apresentava: «fragmento de parênquima hepático, medindo 1,8 cm, observando-se lesões de cirrose variáveis, mas em geral espessos, com intensos infiltrados de células mononucledas alguns de disposição nodular e isolando grupos de células da periferia dos nódulos, com lesões de esteatose macrovacuolar de grau moderado. O diagnóstico histopatológico revelou: cirrose (pós hepatite C) com sinais de actividade (j).
10. O autor foi sujeito a picadas de agulhas nos centros hospitalares (l).
11. O autor, como preliminar desta acção, requereu o arrolamento de todos os documentos, consistindo em boletins, exames e registos clínicos relativos aos diagnósticos, tratamentos, intervenções cirúrgicas e transfusões de sangue efectuados pelo requerente na Casa de Saúde de Coimbra no período compreendido entre 10/01/1989 a 3/02/1989 e de 15/11/1989 a 30/11/1989 e ainda de todos os registos de aquisição, movimentação do lote ou lotes de sangue aplicados na transfusão, bem como dos testes que lhe foram efectuados, tendo sido arrolados os documentos de fls. 44 a 46 desse procedimento cautelar (n).
12. A ré B... transferiu para a Companhia de Seguros D..., S.A . a responsabilidade civil derivada de danos corporais ou materiais causados a terceiros pela exploração do seu estabelecimento de saúde, até ao montante de 10.000.000$00, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 2-1-91-22987/06 (doc. fls. 110 a 119) (o).
13. Nesse contrato de seguro está estipulada uma franquia de 5.000$00 por lesado, em todo e qualquer sinistro de danos materiais e excluída a sua responsabilidade resultante de actos ou omissões do pessoal médico, paramédico e enfermeiro que se manifestem para além de um prazo de dois anos (doc. fls. 110 a 119) (p).
14. Nos termos desse contrato de seguro, a ré B... está obrigada a comunicar à seguradora, no prazo de 48 horas a contar do conhecimento do facto, a participá-lo à seguradora, por escrito e de forma circunstanciada. A ré B... participou o facto com a citação da ré para a acção (doc. fls. 110 a 119) (q).
15. Por volta dos anos 98/99, o autor começou a sentir astenia, cansaço fácil, perda de apetite, irritabilidade e alterações persistentes das transaminases (1º).
16. Passou a frequentar a consulta externa do Centro Hospitalar de Coimbra (2º).
17. O autor não se sentia melhor (3º).
18. Em 10 de Outubro de 2000, o autor foi à consulta do Sr. Dr. G..., que o encaminhou para os H.U.C. (4º).
19. O autor esteve internado nos Serviços de Medicina III, de 21 a 22 de Novembro de 2000, onde realizou exames complementares de diagnóstico, incluindo biópsia hepática (5º).
20. Os exames referidos em 9. revelaram que o autor sofria de hepatite causada pelo VHC (vírus da hepatite C) (6º).
21. E que tal hepatite era crónica e havia evoluído para uma cirrose hepática com sinais de actividade (7º).
22. A transfusão sanguínea referida em 5. é a causa provável da contaminação do autor pelo VHC, sendo que qualquer transfusão de sangue recebida antes da introdução dos ensaios imunoenzimáticos para a detecção dos anticorpos anti-VHC (em 1992) é um importante factor para a transmissão do vírus (8º).
23. Em Janeiro de 1989, não estava identificado o VHC (12º).
24. Em Janeiro de 1989, a ciência médica, baseada na exclusão sorológica das hepatites A e B, sem estar identificado o agente histológico, classificava uma nova forma de hepatite como “não-A, não-B”, que, a partir de 1991, passou a ser designada como hepatite C (13º).
25. Em Janeiro de 1989, estavam identificados os vírus da SIDA, da hepatite A, da hepatite B e da sífilis e todo o sangue colectado era sujeito à pesquisa destes microrganimos, para o que a ciência médica dispunha de equipamentos e meios de diagnóstico eficazes (14º e 15º).
26. O autor nunca havia sido sujeito a qualquer intervenção cirúrgica nem transfusão de sangue ou havia recebido quaisquer produtos derivados do sangue e não o tendo sido posteriormente (16º).
27. O autor não teve, nem antes, nem depois, qualquer contacto homossexual e nunca consumiu ou injectou quaisquer drogas (17º).
28. O autor não fez “piercings” ou tatuagens (18º).
29. No passado pessoal e clínico do autor, não são conhecidos factores de risco para a contracção da hepatite C (19º e 20º).
30. O vírus da hepatite C mantém-se em latência durante um período que pode variar entre os 10 e os 20 anos (21º).
31. A cirrose hepática é uma doença crónica (22º).
32. É uma doença que provoca cansaço, astenia, enxaquecas, irritabilidade, perda de apetite e mal estar geral, que reduz o rendimento laboral do paciente (23º e 24º).
33. Obriga o paciente a tratamentos médicos e medicamentosos durante toda a vida (25º).
34. A cirrose hepática de que padece o autor reduz a sua capacidade de trabalho (26º).
35. Entre os primeiros sintomas da doença e o diagnóstico, o autor andou angustiado com receio de sofrer de doença incurável (30º).
36. O autor, por estar afectado de cirrose hepática, sofre de angústia e desgosto (31º).
37. O que o obriga a tomar medicação para esta ansiedade e depressão (32º).
38. 20% das situações de cirrose hepática evolui para carcinoma hepatocelular (33º).
39. O autor sabe disso, o que lhe causa angústia e sofrimento (34º).
40. O autor melhora a sua qualidade de vida medicado com “interferon” e “ribavirina”, sempre sujeito a astenia, cansaço e irritabilidade (35º).
41. O autor frequenta a consulta externa dos Serviços de Medicina Interna do HUC e o Centro de Saúde de Cernache (36º).
42. O autor despendeu em medicamentos a quantia de 575,37 euros (37º).
43. Por força dos tratamentos e consultas, o autor é obrigado a deslocar-se a Coimbra, em média, duas vezes por mês, tendo despendido em transportes de Cernache para Coimbra e vice-versa a quantia de 105,00 euros (38º).
44. Nas consultas com o Dr. G..., o autor despendeu a quantia de 154,63 euros (39º).
45. Após a intervenção cirúrgica, o Dr. Nelson Martins, com a sua equipa, concluiu que o estado de anemia do autor impunha uma transfusão de sangue (40º).
46. A transfusão de sangue foi ministrada ao autor por o seu estado de anemia a impor (41º).
47. Antes da transfusão de sangue, o autor foi informado dos riscos a ela inerentes (42º).
48. Ao tempo, era habitual solicitar ao doente que familiares e amigos fossem doar sangue (43º).
49. O pagamento dos serviços médicos do Dr. E... foi efectuado pela ré C... (44º).
50. O Dr. E... era o médico responsável pela colheita, tratamento e transfusão do sangue na B... e, nessa qualidade, seleccionou a unidade de sangue transfundida ao autor (45º).
51. A unidade de sangue ministrada ao autor foi colhida na B... em Dezembro de 1988, sob a orientação do Dr. E... (46º).
52. Antes da colheita de sangue o Dr. E... submeteu o dador a um exame preliminar, questionando-os sobre queixas de febre, cansaço, perda de apetite e de peso ou diarreia, tendências sexuais, consumo de estupefacientes, hemofilia e sujeição a transfusões de sangue (47º).
53. O dador, de 34 anos de idade, tinha saúde, mais de 50 Kgs. de peso e não era usuário de drogas injectáveis (48º).
54. As amostras do sangue colhido ao dador, em Dezembro de 1988, foram sujeitas a análises à hepatite A e B e à sífilis no laboratório Dr. Matos Beja e à sida no Hospital dos Covões (49º e 50º).
55. A amostra da unidade de sangue transfusionada ao autor foi submetida, em 19.12.88, aos testes de despistagem ao vírus da hepatite A e B, sífilis e sida, tendo sido negativos (51º).
56. A cirrose pode ter origem na contaminação pelo vírus VHC, consumo excessivo de álcool, infecções tóxicas, medicamentos, obstrução biliar, perturbações vasculares, mas a cirrose de que padece o autor tem origem na hepatite C (52º).
57. O autor consumia álcool, consumo que acelerou a progressão a cirrose da lesão hepática derivada da hepatite C (53º).
58. A cirrose de que padece o autor provém da hepatite C (54º).
59. A ré C... dirigia os beneficiários dos seguros para a ré B..., a fim de aí serem submetidos aos cuidados médicos que a sua situação exigia (55º).
60. Os médicos exerciam as suas funções clínicas e cirúrgicas na B..., sendo os seus serviços remunerados pela ré C... (56º).
61. Os médicos que exercem a sua função clínica e cirúrgica na B... mantêm um gabinete pessoal nas instalações desta, por ela cedido sem qualquer contrapartida pecuniária, aí atendem os doentes que lhe são presentes pela seguradora C... , a qual paga os serviços clínicos dos médicos (58º).
62. A intervenção cirúrgica referida em 4. foi feita pelo Dr. Nelson Martins, cuja equipa foi integrada pelos Drs. David Rocha, José Veloso e Rego Freitas (59º).
63. A transfusão de sangue referida em 5. foi feita pelo serviço de hemoterapia da B..., com uma unidade de sangue que ali foi colhida, e foi transfusionista o Sr. Dr. E..., médico do HUC, que orientava, naquele serviço da casa de saúde, toda a colheita, tratamento, armazenamento e administração de sangue (60º).
64. O sangue transfusionado ao autor proveio de um dador de nome F... (61º).
65. Em Novembro de 2000, quando foi feito o diagnóstico ao autor, este apresentava uma cirrose hepática por hepatite crónica “C”, cuja progressão foi acelerada pelo consumo de bebidas alcoólicas (62º).
66. Qualquer contacto com sangue, incluindo por picadas de agulha, cortes de lâminas ou navalhas, pode constituir uma forma de contaminação pelo VHC (63º).
Sobre a impugnação da decisão de facto:
O A. pretende que a 1ª ré sonegou dolosamente documentos no procedimento cautelar prévio que depois veio juntar no decurso deste processo, daí concluindo que deve inverter-se o ónus da prova do nexo de causalidade e consequentemente devem alterar-se as respostas aos quesitos 8º, 9º, 10º e 11º para “provado”.
Nesses quesitos perguntou-se:
8º: A contaminação pelo vírus VHC foi causada pela transfusão de sangue referida em e) (vd. Ponto nº 5 da sentença)?
9º: Porque o sangue transfusionado ao autor estava contaminado pelo vírus VHC?
10º: A clínica não dispõe de qualquer registo da idade do dador, nem dos antecedentes clínicos, nem se ele integrava qualquer grupo de risco e quaisquer outras informações relevantes?
11º: Não foi feito qualquer exame, teste ou análise ao sangue aplicado ao A.na transfusão?
O quesito 8º sofreu a resposta que consta do ponto de facto nº 22 e os restantes tiveram resposta negativa (vd. Fls. 488 e 490). Noutros quesitos provou-se o contrário do que consta daqueles 10º e 11º, sobretudo com base em documentos que a 1ª ré fez juntar aos autos no decurso desta acção e com base nos depoimentos prestados. Esses quesitos provêm do alegado na petição inicial, pois o A., ao redigi-la, apenas dispunha de um documento relativo ao sangue doado, que fora junto ao prévio arrolamento identificando o dador do sangue (vd. Fls. 44 a 47 do cautelar em confronto com 70 e segs.e 399 e segs desta acção), ou seja, o documento do serviço de hemoterapia indicando a data da transfusão feita ao doente ora A.em 12-1-89 sendo dador F... . .
Ponderando todos os elementos constantes dos autos e a prova produzida, não se pode concluir, com o mínimo de segurança e certeza, pela recusa de junção ou sonegação dolosa dos documentos que deviam ter sido juntos no cautelar e só o foram no decurso da acção. A justificação apresentada é verosímil (vd.56 e 57 da contestação da 1ª ré, depoimento do Dr. José Fernandes e requerimento em audiência). Note-se que o auto de fl. 47 do cautelar menciona o arrolamento de 3 docs.juntos e de seguida a notificação à ré mas sem explicitação sobre o que terá sido notificado. E o prazo para conservação obrigatória dos docs.era de 5 anos (Port.247/00 de 8-5 como antes o art.113º da Port.22709 de 7-6-67), tendo decorrido até ao cautelar mais de 10 anos, donde resulta verosímil a justificação de que dos docs.antigos ou foram destruídos ou guardados em arquivo morto aos milhares «pelo que não é fácil a pesquisa» (vd.fls.387).
O que não vem justificado é o facto de aparentemente ter sido fácil no cautelar juntar os docs.de fls.44 a 46 e não os restantes, todos com mais de 10 anos. Esta discrepância não é, porém, suficiente para se concluir pela recusa de junção ou sonegação dolosa imputada pelo A.à 1ª ré.
De resto, admitida a junção dos documentos ainda que tardia mas não extemporânea, não tendo eles força probatória plena, estão sujeitos à livre apreciação do tribunal para efeitos probatórios (art. 655º nº 1 do CPC; cf. Acórdão do STJ de 4/12/86 in BMJ 362/501). A 1ª ré não tornou impossível ao A.a prova dos factos pertinentes, pelo que não há lugar à aplicação do art. 344º nº 2 do CC. Também não é aqui aplicável o art. 519º nº 2 do CPC porque não persiste recusa na junção.
Os factos negativos dos quesitos 10 e 11 foram correctamente julgados não provados e os factos contrários quesitados (quesitos 47 a 51) foram correctamente julgados provados, essencialmente com base nos docs.juntos e informação do CHC (vd. Fls.70 a 73 e 399), bem como no depoimento do Prof. G..., não contrariados ou postos em dúvida por outros meios de prova.
Já quanto às respostas dadas aos quesitos 8 e 9, as mesmas não se podem manter. Não por inversão do ónus da prova do nexo de causalidade, como o recorrente pretende, o que não tem nexo. Mas sim por duas razões principais: a primeira, pela consideração de que a resposta segundo a qual a transfusão operada é «a causa provável da contaminação do autor pelo VHC» não responde juridicamente à pergunta formulada, é dubitativa, não é um não nem um sim mas um “nim”; a segunda, pela ponderação de toda a prova produzida.
Que os pareceres juntos ou os depoimentos médicos prestados refiram a transfusão apenas como causa provável da contaminação pelo VHC compreende-se, pois quem os emitiu pode não estar na posse de todos os elementos e sobretudo não tem de julgar o caso. Mas ao julgador impõe-se tomar uma posição definida, no caso respondendo não provado ou provado ainda que com esclarecimentos. A resposta ao quesito 8º equivale a dizer que há uma probabilidade (elevada ou diminuta ou em que percentagem?) de que a transfusão tenha causado a contaminação, havendo portanto também uma probabilidade de a não ter causado.
Ora, a função típica da prova consiste na demonstração da realidade dos factos (art. 341º do CC). Tal demonstração não é operação lógica que vise a certeza absoluta como nas ciências exactas, embora o julgador forme a sua convicção através de operações lógicas, racionais. A demonstração dos factos, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar a certeza absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função essencial de instrumento de paz social e de realização da justiça; a prova visa apenas, de acordo com critérios de razoabilidade, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto (ut A. Varela e outro, Manual do Proc. Civil, 1984, p.420 s). A prova não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (idem, ibidem, p. 191 s).
Se, com base num alto grau de probabilidade, o juiz se convence – podendo objectivar a sua convicção – de que determinado facto é real, então deve simplesmente julgá-lo provado, em vez de dizer que se trata de realidade provável, ou até muito provável. Na primeira hipótese, o juiz dá o facto como certo, embora saibamos que tal certeza é, no âmbito das ciências humanas, uma certeza relativa, mas não se exige mais do julgador. Na segunda hipótese, o juiz ficou-se pela incerteza, mas não é isso que satisfaz a exigência legal (vd. Art. 8º nº 1 do CC e 653º nº 2 do CPC).
No caso, a partir de toda a prova documental e pessoal produzida, sabemos que:
- o A. foi objecto da transfusão de sangue em 12/1/89 na Casa de Saúde da 1ª ré e não lhe foi feita alguma outra transfusão nem foi sujeito a outra intervenção cirúrgica antes da desse dia na dita Casa;
- na altura ainda não estava identificado o vírus VHC mas já era sabido que tal vírus se transmitia por via sanguínea e só por essa via;
- por falta dessa identificação o sangue transfusionado não fora sujeito à pesquisa desse micro-organismo;
- até à transfusão o A.não integrava qualquer gripo de risco nem lhe sendo conhecido qualquer comportamento de risco (contacto homossexual, consumo ou injecção de drogas, piercings, tatuagens, picadas de agulhas fora de estabelecimento de saúde e tendo o médico de família do A.esclarecido que a mulher deste foi sujeita à triagem competente com resultados negativos);
- a hepatite C, resultante da infecção pelo VHC, só se manifesta após um período de cerca de 10 a 20 anos sobre a contaminação.
Claramente, os quesitos 8º e 9º só podem sofrer respostas inteiramente positivas, com base nos documentos juntos (maxime fls.44 a 46 do cautelar e 21 a 31, 70 a 78, 210 ss, 399 ss, 448 a 450) e depoimentos prestados pelos médicos ouvidos, ficando o correspondente ponto de facto nº 22 assim redigido porque provado:
22. A contaminação do A.pelo vírus VHC foi causada pela transfusão de sangue referida nos pontos nos 5 e 45 e segs., porque o sangue transfusionado ao A.estava contaminado pelo vírus VHC.
Sobre o pretendido aditamento ao provado no ponto nº 25, proveniente das respostas positivas aos quesitos 14º e 15º:
O A.não concretizou nem resulta dos autos ou da prova quais seriam esses “diversos mecanismos de prevenção, detecção e eliminação” (de outros vírus) que existiriam à data da transfusão de 12/1/89, além do que respeita aos vírus de sida, hepatite A e B e sífilis para cuja detecção (de resultados negativos, como se provou nos pontos 54 e 55) o sangue da transfusão fora submetido a análises. Se o recorrente acaso se refere à análise das transaminases, resulta claro dos depoimentos dos Drs.Porto, Martins, E... e Gouveia que a sua pesquisa no sangue doado era feita e que quando elevadas o sangue não era seleccionado para transfusão; que só eram anotadas em ficha pelo laboratório quando eram elevadas, pois só sendo elevadas o sangue não devia ser administrado; que mesmo quando elevadas elas não indicam se o doente tem hepatite; que não havia qualquer indicação de que o sangue transfusionado não tivesse as transaminases dentro dos valores normais; que o exame às mesmas é muito falível e daí que quando elevadas o sangue não seja seleccionado para transfusões.
Por outro lado, o recorrente faz confusão ou não consegue entender a diferença entre saber-se que há um vírus “não A e não B” e saber-se que há um vírus C, estirpe dos VH, dito VHC. Como resulta claro dos depoimentos médicos prestados, dos pareceres e informações juntas, na data da transfusão a ciência médica tinha conhecimento epidemiológico,microbiológico e imunológico de que havia, no sangue de algumas pessoas, o vírus A gerador da hepatite A, ou o vírus B gerador da hepatite B, e havia o conhecimento epidemiológico mas ainda não microbiológico e imunológico de uma outra forma de hepatite, gerada por um outro vírus ainda não cientificamente identificado e ao qual, por esta razão, era vagamente designado por não A e não B. Quer dizer: à data da transfusão de 12/1/1989, nenhuma análise de qualquer sangue podia revelar que este estivesse contaminado com o vírus da hepatite C precisamente porque este ainda não estava identificado pela ciência.
A testemunha Dr. G... (médico nos HUC) depôs, sem infirmação: « Tínhamos a noção de que havia outros vírus mas não sabíamos quais, porque ainda não tinha sido identificado o vírus C. A partir do momento em que conseguimos identificar o vírus e o respectivo anticorpo, o anti-VHC, passámos a ter a certeza que um grande lote de não A e não B era C. (...) Havia um conhecimento epidemiológico. Agora o microbiológico é recente e o imunológico também».
Este depoimento foi prestado em 2005, sob perguntas do mandatário do recorrente. «O VHC foi descoberto em final de 1989»--diz o parecer do IML de fl.211 a 218 (216), em concordância com outros elementos documentais dos autos e sem qualquer infirmação, dos quais o A.teve conhecimento.
O próprio A.alegou no art. 50º da petição inicial: «Em Janeiro de 1989 ainda não havia sido descoberto o vírus da hepatite C – VHC».
Mantém-se pois a resposta dada aos quesitos 14 e 15, sem aditamento.
Nada impõe a alteração da resposta dada ao quesito 42º.O recorrente baseia-se sobretudo no depoimento de Maria Lurdes Almeida, seu cônjuge .Para além do mais, esta começou por depor que «quando foi ver o seu marido, ele estava a levar a transfusão de sangue, já tinha sido operado». Ora, a informação a prestar ao doente para o efeito do “consentimento informado” é anterior ao acto. A depoente afirmou de seguida ser «mentira», algo de que não podia ter conhecimento de causa. Não merece crédito.
Nada impõe a alteração às respostas dadas aos quesitos 46 a 51 e 60, que se mostram harmónicas com a documentação junta e os depoimentos prestados.
Quanto ao quesito 61, a resposta harmoniza-se com a documentação junta, cujo conteúdo não foi seriamente posto em dúvida por outros elementos probatórios, tanto mais que foi o próprio A.que alegou o respectivo facto no art. 45 da petição. Apenas há que acrescentar que o último apelido do dador é Machado (v. Docs.cit.).
Oficiosamente, não pode deixar-se de eliminar o ponto de facto nº10, proveniente de L) dos “assentes”, pois que se trata de indevida interpretação feita pela ré sobre o alegado no art. 62 da petição. O A.não alegou que “foi sujeito a picadas de agulhas nos centros hospitalares”, mas sim que «nunca ... fez quaisquer picadas de agulhas fora dos centros hospitalares». Não ter feito fora não implica ter feito dentro, é em abstracto apenas uma hipótese. De facto, e segundo a normalidade das coisas, no dia 12/1/89 terá sido sujeito a picadas na Casa de Saúde da ré, mas de nada adianta o que consta do ponto nº 10, que não está colimado ao alegado e admitido por acordo.

III. Fundamentação de Direito
A douta sentença empreendeu a solução do caso sob dois prismas: o do nexo de causalidade, com o qual a dilucidação da questão da obrigação de indemnização se prenderia «mais», e por fim o da culpa, que considerou não verificados. Considerou preenchidos os restantes pressupostos que enumerou: o facto (transfusão de sangue ministrada), ilicitude (violação do direito à integridade física do lesado) e o dano.
Sucede que o nexo de causalidade não tem apenas por função delimitar os danos indemnizáveis (art.563º do CC), mas também e previamente constitui um elemento da responsabilidade civil (art.483º nº 1 do CC: “...resultantes da...”). E não é por acaso que a doutrina ao enumerar os elementos da responsabilidade civil aponta em último lugar o nexo de causalidade. É que o juízo normativo de adequação, que há-de acrescer ao juízo naturalístico da causalidade, deve ter um sentido que se coadune com a espécie de responsabilidade civil em causa.[Vd. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., p.893, 895 e 902/903; Almeida Costa, Dir. das Obr., 9ª ed., 2003, p.708 a 710; Ac. STJ de 2-6-98 in BMJ 478/332.]
Mesmo em relação à ilicitude, entendida como proibição normativa de certa conduta activa ou omissiva, não podemos concordar com a posição da douta sentença que a deu de barato por verificada.
Quanto à primeira modalidade de ilicitude prevista no art. 483º do CC, não é claro que a mesma se verifique, pois falta encontrar a norma cuja infracção tenha ocasionado a lesão do direito subjectivo nela directamente visado. É que segundo o disposto no art. 150º nº1 do Código Penal, aqui convocável ex vi do art. 9º nº1 do CC (consideração da ordem jurídica no seu conjunto), é de considerar-se que o tratamento consistente na transfusão não constitui ofensa à integridade física do paciente A. pois que não se mostra não preenchido qualquer dos quatro requisitos ali consignados: qualificação do agente (no caso são médicos), intenção terapêutica (a transfusão foi feita porque necessária após intervenção ao joelho naturalmente com apreciável perda de sangue e daqui o alegado perigo de anemia requerendo transfusão), indicação médica (atendendo ao diagnóstico e à escolha da terapia) e realização segundo as «leges artis»--cfr. tomo I do Comentário Conimbricense do Código Penal a esse artigo, § 12. (Note-se que é doloso o tipo de crime de perigo previsto no nº2 daquele art 150º.) (LEGES ARTIS são as regras generalizadamente reconhecidas da ciência médica. São o conjunto de saberes acumulados em cada actividade médica, através dos quais se define o modo usual e comprovado de realizar a actividade. Não se têm em conta os conhecimentos anteriores (vd. revista nº 11 do Centro de Direito Biomédico da FDUC, 2005, p.40 ss), embora os médicos tenham o dever estatutário de os actualizar.)
Quanto à segunda modalidade de ilicitude prevista no art. 483º nº1 do CC, também não se vê que norma de protecção, tutelando reflexamente direitos do A., tenha sido violada e não o é nenhuma das invocadas avulsamente pelo recorrente.
De resto, para o efeito de responsabilidade por facto ilícito extracontratual ou contratual, sempre impenderia sobre o A. o ónus da prova da ilicitude da conduta (na acepção a que se refere a última nota do CC Anotado de P. Lima e A. Varela ao art. 342º do CC). Só assim não é quando se trate de responsabilidade objectiva, pelo risco, ou por facto lícito. Naquele âmbito, mesmo onde haja presunção legal de culpa, tal presunção não se estende à ilicitude.
Por outro lado, a transfusão foi feita porque se mostrou necessária, após a intervenção ao joelho (ponto nº 45). O médico tinha o dever jurídico de assumir o tratamento, por força do disposto no art. 276º do C. Penal (actual art. 284º), convocável ex vi do art. 9º nº1 do CC. O cumprimento de dever legal exclui a ilicitude ( Ut art. 31º nº1 e nº2 al. c) do C. Penal e cfr. A. Varela, op. cit., 10ª ed., p.552, Almeida Costa, op. cit., 520 e Pessoa Jorge, Dir. das Obrig., I, ed.AAFDL, 1975/76, p.543.).
O provado sob o ponto nº 3 inculca terem a 1ª e a 2ª rés celebrado um contrato de prestação de serviços de saúde a favor de 3o (ver facto nº2), tal como o art. 443º define tal contrato, sendo esse 3º o autor determinado por via de ser empregado da segurada da 2ª ré. Afigura-se-nos, todavia, que o ponto saliente da questão em litígio não versa o incumprimento desse contrato, pelo menos enquanto violação negativa do mesmo, pois que a prestação de serviços que o autor podia exigir em virtude desse contrato foi prestada.
A douta sentença entendeu despicienda a questão de saber se o caso é de responsabilidade contratual ou extracontratual, a não ser quanto à culpa, pois que na contratual presume-se a culpa do devedor (art. 799º), mas não optou por uma das espécies. Sucede, porém, que nem só no âmbito da contratual há presunção legal de culpa e que segundo a doutrina podem apontar-se pelo menos 6 diferenças de regime entre aquelas modalidades[Vd. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., p.520 nota 2 e autores aí citados; Nuno Oliveira, Responsabilidade Civil dos Médicos, in revista nº 11 do Centro de Direito Biomédico da FDUC,Coi. Ed., 2005, p.166 e nota 74; Almeida Costa, op. cit., p.496 a 499.].
De resto, é patente que na sentença, depois de ter sido apontada a verificação do ilícito, a fundamentação de direito foi explanada sob o pano de fundo da responsabilidade por facto ilícito e culposo, como se vê do trecho sobre o nexo causal (ponto 1) e do trecho sobre a culpa (ponto 2), assim:
«Neste quadro factual não há a prova directa que a transfusão ministrada ao autor foi a condição da sua contaminação com o VHC. Ela é, no entanto, a causa provável dessa contaminação. Antes da instituição do rastreio sistemático da infecção pelo VHC (em 1992), a transfusão de sangue é um importante factor de contaminação por esse vírus. O parecer do INML acentua que, na literatura, a transfusão de sangue recebida antes da introdução dos ensaios imunoenzimáticos para a detecção dos anti-corpos anti-VHC é considerada como um importante factor para a transmissão do vírus (fls. 218). Tendo o autor sido sujeito a transfusão de sangue em 1989 e não integrando qualquer grupo de risco, é a transfusão a causa provável da sua contaminação.
«No fundo o facto apurado poderá ser susceptível de contemplar o juízo normativo de imputação, mas falece o juízo naturalístico e, faltando a verificação deste patamar da causalidade adequada (a conexão factual, a “condição sine qua non ou causa hoc sensu”), é inviável ajuizar o nexo de causalidade entre a transfusão de sangue e a contaminação pelo VHC. Mesmo em relação ao juízo normativo, a adequação da condição ao dano tem de ser feita face às circunstâncias reconhecíveis à data do facto por um observador experiente e às que são efectivamente conhecidas do lesante. Ora, em 1989, não se fazia o rastreio das dádivas de sangue para o VHC. Só o Despacho 19/91, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro, introduziu a obrigatoriedade dessa pesquisa e, apenas em 1992, começaram a fazer-se tais testes de despistagem. Logo, não dispondo a ciência médica de meios de detecção do vírus da hepatite C, não seria possível concluir que a ré B... conhecia ou deveria conhecer que a transfusão de sangue ministrada ao autor era, em abstracto, adequada a contaminá-lo com tal vírus. Dir-se-á que, não obstante não estar identificado o vírus da hepatite C, a ciência médica sabia existir um terceiro género de hepatite, então designado por não-A e não-B, que poderia contaminar qualquer receptor de sangue. Porém, não dispunha a ciência de meios para a sua determinação, sem prejuízo de poder admitir a existência de qualquer tipo de hepatite se a pesquisa de transaminases as mostrar elevadas. Crê-se, ainda assim, que como a amostra da unidade de sangue transfusionada ao autor foi submetida, em 19.12.88, aos testes de despistagem ao vírus da hepatite A e B, sífilis e sida e obteve resultados negativos, seria inviável fazer o tal juízo de adequação da condição ao dano por não permitir, nesse estádio da ciência médica, prever o concreto dano (VHC) como seu efeito provável (n.º 55 dos factos provados)».
...« Agir com culpa significa actuar em termos da conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade e circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo. Como se disse, o VHC foi descoberto em 1989 mas só surgiu um teste para a sua detecção em 1991, estando o início da sua execução reportada a 1992. (...) Pelos riscos e perigos que envolve, o ministrar de uma transfusão de sangue pode consubstanciar uma actividade perigosa. O n.º2 do artigo 493º estabelece uma presunção legal de culpa (“juris tantum”) por parte de quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa. Nesse caso, provar o facto que serve de base à presunção equivale a provar o facto presumido (artigos 344º, 1, e 350º, 1). Provando o lesado que os danos foram causados no exercício de uma actividade perigosa, fica presumida a culpa do lesante. E é ele que tem de provar que usou de todos os mecanismos de diligência que a situação impunha.
«Julga-se que essa prova está efectuada. Está positivamente identificado o dador de sangue, sujeito aos critérios de elegibilidade, e foram efectuados os testes víricos exigidos à época, a ponto de estar garantida a qualidade do sangue ministrada ao autor, de acordo com os procedimentos exigidos naquela altura (n.ºs 52 a 55 da fundamentação de facto). Donde se considere que a acção sempre estaria votada ao insucesso mesmo pela via da culpa. Ainda que se considerasse existir responsabilidade contratual da ré, também a presunção de culpa que sobre ela impenderia (artigo 799º) estaria ilidida pela prova de ter usado a diligência que o caso exigia» (Fim de transcrição).
Segundo o recorrente, a ré não ilidiu a presunção legal de culpa em razão da sua responsabilidade contratual e delitual em resultado do exercício de actividade perigosa e estão provados os factos da culpa.
É claro que uma coisa é a culpa provada e outra é a culpa legalmente presumida. Mas, como já dissemos, antes de se tratar dos elementos da responsabilidade civil, convém apurar-se qual a espécie ou espécies de responsabilidade que o caso suscita, pois que os elementos exigidos podem variar conforme tal espécie.
O caso respeita a uma transfusão de sangue que se mostrou necessária na sequência de uma intervenção cirúrgica ao joelho (direito) do autor, estando aquele sangue, proveniente de um terceiro dador, infectado com o vírus VHC (gerador da hepatite C), o que contaminou o autor sujeito a tal transfusão com a hepatite C, a qual causou por sua vez (em progressão acelerada no tempo pelo hábito alcoólico do A.) uma cirrose hepática, doenças de que o autor ficou a padecer e que puderam ser diagnosticadas cerca de 10 anos depois da transfusão, mais sucedendo que na altura em que esta foi efectuada (ou seja, em 12/01/89) era conhecido em termos de ciência médica que uma nova doença de origem viral era transmissível por via sanguínea, sem que esse vírus estivesse cientificamente identificado. É com base nessa transfusão de sangue contaminado, gerador da doença do autor, que este se pretende titular de direito de indemnização (em dinheiro apenas, apesar de haver elementos nos autos que nos indicam ser a hepatite C passível de tratamento ou cura embora dolorosa e morosa).
No âmbito do CP de 1886, havendo lesão, em princípio o acto médico causante constituía ofensa corporal, cabendo ao profissional defender-se mediante causa de justificação do ilícito ou causa de exculpação. O art. 28º do Dec.32171 de 29-7-1942 consagrava regime especial de responsabilidade civil dos médicos, quanto ao “dano injusto”. Este dispositivo foi revogado pelo CC de 1966 e aquele CP foi revogado pelo actual CP de 1982, com nova filosofia, sensível à crítica que, na esteira de Biding, via na anterior a equiparação do cirurgião ao faquista (vd. Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, in BMJ 332º p.68): vejam-se os art. 150º nº1 e 267º do CP de 1982.
Actualmente, consagram casos de responsabilidade objectiva o DL. nº 348/99 de 12-10 (exposição a radiações), DL. nº 46/04 de 19-8 (ensaios clínicos) e Lei nº 12/93 de 22-4 (sobre dações de órgãos ou tecidos em vida, sendo a responsabilidade apenas do dador e com exclusão expressa do sangue). O caso presente exorbita desse âmbito. Por outro lado, o sangue humano, provindo não de banco de sangue mas dum dador, embora possa ser havido como coisa móvel (mas fora do comércio), não pode ser considerado produto, para o efeito da aplicação do regime da responsabilidade objectiva do DL nº383/89 de 6-11 (Cf. Calvão da silva, Resp. do Produtor, 1999, p. 618 a 620.).
De resto, inexiste legislação específica sobre responsabilidade por actos médicos, diversamente do que sucede com algumas outras profissões.
Atenta a situação factual descrita, a mesma cabe na previsão do art.493º nº2 do CC. ( Neste sentido, vd.Fig. Dias e Sinde Monteiro, in BMJ cit., p.7), em razão da especial periculosidade da actividade relacionada com a transfusão de sangue proveniente de dador, sabendo-se então que havia a possibilidade de o sangue de alguns dadores estar contaminado com algum dos vírus causadores de doenças gravíssimas, sida, sífilis, hepatite A ou B, ou até algum vírus então ainda não identificado como se sabia poder ser o caso do gerador de uma nova forma de hepatite, não A e não B. Evidentemente, a triagem clínica dos candidatos a doadores ou a prévia entrevista ao doador não são suficientes para evitar aquela especial periculosidade, o que se comprova pelo caso presente. O caso cabe na previsão da norma, porém haverá que apreciar se lhe é aplicável a estatuição respectiva.
Em face da summa divisio da responsabilidade civil em subjectiva e objectiva a que já se referia Guilherme Moreira no seu estudo publicado na RLJ de 1905 a 1907 sobre a matéria, o caso específico regulado no art.493º nº 2 do CC é um caso comummente designado na doutrina de responsabilidade subjectiva agravada ou objectiva atenuada( Neste sentido, Rui de Alarcão, Dir das Obrig. Coi. 1983, p.201, bem como A. Varela, op.cit.,p.596 nota (“Trata-se de responsabilidade estabelecida em termos particularmente severos mas não objectiva”), Calvão da Silva, loc. cit. no texto, e Vaz Serra, BMJ 85/375.), ou seja, situado algures entre a subjectiva e a objectiva.
O preceito contempla, como outros (art.491º, 492º, 493º nº 1, 799º do CC), uma presunção legal de culpa. Só que a ilisão dessa presunção não é conseguida pela simples demonstração de que se agiu com a diligência com que teria agido um homem médio (o “bonus paterfamilias”) (Cf. Menezes Leitão, Dir. das Obrig., I, 4ª ed, p.308 e 309,bem como Vaz Serra, BMJ 85/375.), ou melhor, aqui um mediano profissional de saúde da mesma especialidade e competência, nas mesmas circunstâncias, como bastaria à face desses outros preceitos, nem é conseguida pela relevância negativa de causa virtual, como os art. 491º, 492º e 493º nº 1 abstractamente admitem. Mais exigentemente para quem exerceu a actividade perigosa, a obrigação de reparação dos danos causados a outrem nesse exercício só é afastada se o agente «mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de as evitar».
Como expõe o Prof. Calvão da Silva, o art. 493º nº 2 transfere o risco (ínsito na actividade) do lesado para a entidade criadora da fonte do perigo, «sempre que ela não tenha adoptado todas medidas idóneas à prevenção do defeito causador do dano, medidas possíveis segundo o estado da arte, quer dizer, segundo o estado do desenvolvimento científico e tecnológico do sector (...) ao tempo (...). Encontramo-nos assim no limiar da responsabilidade objectiva, a coberto da manutenção da responsabilidade subjectiva em que se tem de provar, pela justificada inversão do ónus da prova, a não culpa, só exonerando da responsabilidade (...) a inevitabilidade do risco e do dano, segundo o estado da ciência e da técnica» (in Responsabilidade Civil do Produtor, 1999, p.412 s).
Ora, no caso sub judice, o provado em 54 e 55 mostra que a 1ª ré empregou todas as providências exigidas, atendendo ao estado da ciência e da técnica até à data da transfusão de 12/01/89. O dador foi seleccionado com todo o cuidado possível que o provado em 51 a 53 mostra e, recolhido o sangue do dador, a ré fez com que o sangue fosse examinado laboratorialmente para despistagem dos vírus infecciosos identificáveis: os da sida, sífilis, hepatite A e B (provado 54 e 55). Não houve despistagem do VHC porque tal era impossível: tal vírus ainda não fora identificado, pois havia somente conhecimento epidemiológico e ainda não também microbiológico e imunológico duma nova forma de hepatite (v. provado 23 e 24). E só o Despacho 19/91, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro, introduziu a obrigatoriedade da pesquisa ao VHC e, apenas em 1992, começaram a fazer-se tais testes de despistagem. Logo, não dispondo em Janeiro de 1989 a ciência médica de meios de detecção do vírus da hepatite C, a despistagem deste vírus não só não era exigida (no sentido do art.493º nº2), como era impossível ser realizada, em sangue de qualquer dador e por qualquer entidade. Vale por dizer: não houve sequer culpa levíssima. Porque a contaminação do sangue do dador era imprevisível e inevitável, bem se pode dizer que o contágio sofrido pelo A. se deveu a caso fortuito ou de força maior (Sobre estes conceitos, vd. Pessoa Jorge, op. cit., p.534 a 539.). E esta apreciação faz-se em termos de juízo de prognose póstuma, não devendo ser modificado por referência ao momento em que mais tarde vem a saber-se do resultado nefasto para o A.( Cf. O referido Comentário Conimbricense, § 18 sob o art. 150º.).
Cabe notar que, no respeitante ao sangue objecto da transfusão, a má conduta imputada pelo autor à ré respeitava apenas à recolha e (à selecção daquele sangue para) transfusão, estando fora da discussão aspectos como a conservação ou o tratamento do próprio sangue.
Não se verifica pois a responsabilidade civil da ré ao abrigo daquele preceito, tal como não se verifica em face de qualquer outro, sob o qual devamos apreciar o caso nesta jurisdição (poderá ou poderia o A. fazer valer o seu direito no âmbito laboral estando o tratamento abrangido na responsabilidade apenas pelo risco, requerendo a revisão, sem prejuízo da caducidade de dez anos desde a decisão inicial, questão sobre a qual, porém, nada nos compete decidir).
Não se conclui pela litigância de má fé, em face do art. 456º do CPC.

III. DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão impugnada, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.