Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3200/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART.º 381º E 412º DO C.P.C.
Sumário:
I – Para efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 412º so CPC, obra há-de ser ilícita, no sentido de ofensiva do direito e só pode ser embargada se estiver já começada e não concluída, não carecendo o prejuízo de valoração autónoma, por estar ínsito na ofensa do direito, traduzindo-se, assim, num dano jurídico.

II – Por seu turno, o embargo de obra nova não pressupõe a demonstração da lesão grave ou dificilmente reparável da lesão ou ofensa, apanágio do procedimento cautelar comum, face ao regime próprio do art.º 482º n.º 1 do C.P.C., não sendo aplicável subsidiariamente o requisito do n.º 1 do art. 38 do C.P.C..

III – A obra deve considerar-se concluída quando tendo-se verificado o prejuízo, este já não possa ser aumentado pela prossecução daquela, nem eliminando pela sua suspensão

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de COIMBRA


I - RELATÓRIO

Os requerentes - Lino Carvalho Esteves Simões, Inês Figueiredo Ministro Esteves, e Pedro Miguel Gonçalves de Figueiredo Ministro – instauraram, no Tribunal judicial da Comarca de Viseu, procedimento cautelar providência de ratificação de embargo de obra, contra os requeridos - Jorge Manuel Rodrigues Cardoso e Maria Palmira Rodrigues Ribeiro Cardoso.

Alegaram, em resumo:

Os requerentes são comproprietários de um prédio rústico que confina um outro prédio rústico, propriedade dos requeridos, estando este onerado com uma servidão de passagem de pé e carro a onerar, em benefício daquele, que apenas dispõe desta passagem para aceder à via pública.

Em 30/3/2003, foram alertados para o facto de que os requeridos tinham iniciado a construção de uma casa no seu prédio, encontrando-se tal construção em parte implantada sobre o leito do caminho referido, obstruindo-o e tomando impossível a passagem, ficando os requerentes privados de acesso ao seu prédio.

Os requerentes, através do seu mandatário judicial, procederam ao embargo extrajudicial da obra, na pessoa do encarregado da mesma.

Pediram a ratificação do embargo extrajudicial e a notificação dos requeridos para não prosseguirem a construção da casa, na parte em que ocupa o leito do caminho.

Contestaram os requeridos, defendendo-se por impugnação, invocando também a extinção da instância por inutilidade da lide, em virtude do caminho já estar obstruído antes do embargo.

Em 27/6/2003, foi proferida sentença a julgar procedente a requerida ratificação do embargo de obra nova.

Os requeridos, inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso de agravo, formulando as seguintes conclusões:

1º) - Nos presentes autos foi requerida e deferida a ratificação de Embargo Extra — Judicial de Obra Nova.

2º) - Todavia, verifica-se não estarem preenchidos os requisitos de que depende o decretamento da providência.

3º) - Desde logo, porque não estamos perante uma ameaça de lesão grave ou de difícil reparação, mas antes, a existir o invocado direito, perante uma lesão já consumada.

4º) - Não foi alegado, nem indiciariamente provado, qualquer receio de futura lesão.

5º) - O que foi alegado e o que foi considerado indiciado foi uma lesão já consumada.

6º) - Acresce que de acordo com a matéria articulada e as fotografias juntas se verifica a ineficácia da presente providência, pois que resulta das mesmas que o caminho invocado estava obstruído antes do embargo.

7º) - Ora tal ineficácia conduzirá necessariamente à extinção da instância por impossibilidade da lide.

8º) - A decisão recorrida violou assim, e além do mais o disposto no artigo 381, aplicável ex vi artigo 392 e o disposto nos artigos 412 e 287 alínea e) todos do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:

a) - A comprovação dos requisitos do art.412 nº1 do CPC;

b) - A extinção da instância, por impossibilidade da lide.

2.2. – Os factos provados:

1) - Encontra-se descrito na matriz predial rústica da freguesia de S. Cipriano, sob o artigo 745, uma terra de milho regadio e sequeiro com cordões de videiras, oliveiras, árvores de fruto, dependências agrícolas, releixos da casa de habitação.

2) - Esse prédio adveio aos requerentes por sucessão de José Figueiredo Ministro.

3) - Desde há mais de 40 anos, os requerentes, por si e seus antepossuidores cultivam o prédio acima descrito, plantando e colhendo milho e batatas e o vinho que produz, lavrando-o, regando-o, limpando-o, vigiando-o e dando-o de arrendamento.

4) - O que fazem pública e pacificamente, sem qualquer oposição, na convicção de sobre ele exercerem um verdadeiro direito de propriedade.

5) - Os requeridos são proprietários do prédio com aquele confinante e que se acha descrito a seu favor na matriz predial rústica da mesma freguesia, sob o artigo 743: uma terra de milho regadio com cordões de videiras, oliveiras e árvores de fruto, a confrontar do norte com linha férrea, do nascente com Sara de Figueiredo Ministro, do sul com Manuel Almeida Campos e do poente com José de Figueiredo Ministro.

6) - Os prédios referidos em 1 e 5 confinam entre si pelo lado poente deste último.

7) - Existe um caminho que nasce na Rua do Rio, junto ao lavadouro, e que se prolonga na direcção do poente, atravessando outros prédios, até penetrar no prédio dos requeridos.

8) - Neste, prolonga-se na mesma direcção, poente, atravessando-o completamente, até penetrar no prédio descrito em 1, de onde segue para outros prédios.

9) - No ponto onde, vindo do prédio dos requeridos, penetra no prédio descrito em 1, existe uma abertura.

10) - O caminho é em terra batida, mais largo junto à Rua, e que depois estreita até à largura de cerca de 2 m, a que tem no prédio dos requeridos, e segue com essa largura até ao prédio referido em 1.

11) - O caminho, em toda a sua extensão, encontra-se calcado e com marcas de rodados.

12) - Sendo delimitado, na margem norte, pelos muros dos prédios que atravessa, e na sul, por uma linha de água existente no local.

13) - Estes sinais, visíveis e permanentes, atestando a passagem de pé e carro desde o prédio referido em 1 e até à Rua, atravessando o prédio dos requeridos e outros, existem no local há mais de 40 anos.

14) - Há mais de 40 anos e até à actualidade, o acesso ao prédio referido em 1, de pé e de carro, faz-se continuamente por esse caminho.

15) - Que é o único de que dispõem os requerentes para aceder ao prédio referido em 1 a partir da rua pública.

16) - Por si e antecessores, os requerentes atravessam o prédio dos requeridos para cultivo do prédio referido em 1, e sempre que lhes convém, de forma pública e pacífica, sem oposição de quem quer que fosse.

17) - Fazendo-o na convicção de que exercem um verdadeiro direito de passagem.

18) - Os requerentes foram alertados para o facto de que os requeridos tinham iniciado a construção de uma casa no seu prédio.

19) - A construção acha-se em parte implantada sobre o leito do caminho a que se aludiu.

20) - Tornando impossível a passagem de carro ou tractor.

21) - Já neste momento, parte das fundações e da parede sul ocupam aquele leito.

22) - De modo que os requerentes ficam privados de qualquer acesso de carro ao seu prédio.

23) - Na sequência da comunicação que receberam, os requerentes deslocaram-se ao local, onde constataram o estado da construção e, em 16/4/2003, o seu mandatário, acompanhado das testemunhas Jorge Peneira Vicente e José António Proença Nogueira Martins, comunicou ao encarregado da obra — na ausência dos seus donos — que a mesma ficava embargada, por ocupar aquele troço do caminho e que a não deveria prosseguir.

24) - O vértice nascente da parede sul da obra está implantada sobre o leito do caminho que ocupa em pelo menos metade da sua largura, existindo, na parte restante, um salgueiro.

25) - A referida parede tem cerca de um metro de altura e sete de comprimento, erguendo-se sobre ela três pilares, onde apoia a segunda placa ( cfr. fotos de fls. 9 a 11, que aqui se dão por reproduzidas ).

26) - Os requeridos compraram o seu prédio há cerca de 8 anos.

27) - O prédio dos requeridos, e o descrito em 1 são atravessados pela estrada que liga o nó do IP 5 a Viseu.

2.3. – De Direito:

O embargo de obra nova é um procedimento cautelar especificado, cujo decretamento depende, nos termos do art.412 nº1 do CPC, de dois requisitos:

a) - A existência provável de um direito do de propriedade, singular ou comum, ou de qualquer outro direito real de gozo ou de posse, por parte do embargante;

b) – Que este direito tenha sido ofendido por obra, trabalho ou serviço novo, que lhe cause prejuízo.

Os embargantes não contestam a verificação do primeiro requisito, ou seja, o direito de servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor do prédio de que os requerentes são comproprietários ( prédio dominante ) e sobre o prédio dos requeridos ( prédio serviente ).

A pretensão recursal dirige-se fundamentalmente ao segundo requisito, pois entendem os embargantes não se verificar o prejuízo, visto que a lesão já foi consumada.

A obra há-de ser ilícita, no sentido de ofensiva do direito invocado e só pode ser embargada se estiver já começada e não concluída.

Tanto a doutrina, como a jurisprudência, têm entendido que o prejuízo não carece de valoração autónoma, pois de alguma forma já está ínsito na ofensa do direito, não sendo necessário alegar a existência de perdas e danos, por o dano ser jurídico ( cf., por ex., ALBERTO DOS REIS, CPC Anotado, vol 2º, pág.64, MOITINHO DE ALMEIDA, Embargo ou Nunciação de Obra Nova, pág.30, SANTOS SILVEIRA, Processo de Natureza Preventiva e Preparatória, pág.138; Ac RC de 8/1/91, C.J. ano XVI, tomo I, pág.42, Ac RE de 14/3/96 e de 29/11/2001, C.J. ano XXI, tomo II, pág.269 e ano XXVI, tomo V, pág.253 ).

Como refere ALBERTO DOS REIS ( CPC Anotado II, pág.64 ), face às idênticas disposições correspondentes do CPC 1939, a ofensa deve ser ilícita e quanto ao prejuízo basta a ilicitude do facto, ou seja, que ofenda o direito ou a posse.

“ O prejuízo consiste exactamente nessa ofensa. Trata-se de dano jurídico, isto é, de dano derivado, pura e simplesmente, da violação do direito de propriedade, posse ou de fruição. Desde que o facto tem a feição de ilícito, porque contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade, numa posse ou fruição legal, tanto basta para que haja de considerar-se prejudicial para efeitos de embargo de obra nova (…).”.

Por seu turno, o embargo de obra nova não pressupõe a demonstração da lesão grave ou dificilmente reparável da lesão ou ofensa, apanágio do procedimento cautelar comum, face ao regime próprio do art.482 nº1, do CPC, não sendo aplicável subsidiariamente o requisito do nº1 do art.381 do CPC ( cf. Ac STJ de 29/6/99, BMJ 488, pág.310 ).

No mesmo sentido, observa ANTÓNIO GERALDES ( Temas da Reforma do processo Civil, IV volume, 2ª ed., pág.246 ) que “ a lei prescindiu da quantificação e qualificação dos prejuízos. Demonstrado que a actuação do requerido ofende direitos de natureza patrimonial inscritos na previsão normativa, é indiferente a gravidade dos danos, tendo sido afastada uma opção assente no princípio da proporcionalidade assumido no procedimento cautelar comum ( art.387 nº2 ) “.

Pois bem, comprovou-se que os requeridos iniciaram a construção de uma casa no seu prédio, estando em parte implantada sobre o leito do caminho ( parte das fundações e da parede sul ), impossibilitando os requerentes da passagem de carro ou tractor para o prédio ( dominante ).

Por conseguinte, uma vez que os requerentes ficaram privados de qualquer acesso de carro ao seu prédio, há uma clara e ostensiva violação ilícita do direito de servidão de passagem, sendo, por isso, manifesto o prejuízo.

Sustentam os embargantes que tendo a obra obstruído por completo o caminho e não havendo sido alegada ameaça ao direito dos requerentes, consumou-se a lesão, não sendo, por isso, legalmente admissível a providência cautelar.

Desde logo, não é exacto que a obra realizada pelos requeridos tenha obstruído por completo o caminho, pois, como resulta da factualidade apurada, só parte dela é que se encontra implantada no respectivo leito, inviabilizando a passagem de carro e tractor.

Ao impugnarem a decisão recorrida com fundamento em não ter sido alegado, nem indiciariamente provado, qualquer receio de futura lesão, estando esta já consumada, os embargantes procuram aplicar subsidiariamente os pressupostos legais do procedimento comum, postergando, assim, os requisitos específicos do art.412 nº1 do CPC.

É certo que o procedimento cautelar comum funciona como paradigma para os procedimentos nominados, cujo art.392 nº1 do CPC contém uma norma remissiva – “ Com excepção do preceituado no nº2 do artigo 387, as disposições constantes desta secção são aplicáveis aos procedimentos cautelares regulados na secção subsequente, em tudo quanto nela se não encontre especialmente previsto “.

No entanto, dada a natureza subsidiária, por força da regra da especialidade deve dar-se prioridade às regras especificamente previstas na regulamentação de cada um dos procedimentos, devendo ainda ser excluídas todas as normas que não se adaptem a cada um dos procedimentos específicos ( ANTÓNIO GERALDES, Temas da Reforma do processo Civil, III volume, 2ª ed., pág.307 ).

Sendo assim, o problema da consumação da lesão ( instantânea ) como impedimento à acção cautelar, coloca-se a propósito do procedimento cautelar comum, já que nele o que está em causa não é a ofensa efectiva, mas “ o fundado receio “ de lesão grave para o direito acautelado.

Neste sentido, escreve ANTÓNIO GERALDES:

“ Ao invés do que sucede com as situações sujeitas ao procedimento cautelar comum, em que basta o justo receio de ocorrência de lesão nos direitos do requerente, o embargo exige que as obras ou trabalhos em realização ofendam o direito. É este o resultado de uma opção legislativa que limitou os embargos ao que “ se julgue ofendido no seu direito “ e não àquele cujo direito esteja sob ameaça.

“ Deste modo, não se justifica o embargo em situações em que a ofensa é meramente potencial, maxime, quando a obra está apenas em fase de projecto ou de licenciamento ou quando se encontram efectuados apenas trabalhos preparatórios. A ameaça de que a obra cause prejuízo pressupõe, nos termos da lei, a existência de uma ofensa efectiva ao direito de propriedade “ ( loc.cit., pág.245 ).

Na medida em que o embargo de obra nova exige a “ ofensa efectiva “ ao direito, significa que está a pressupor a consumação da lesão, enquanto desvalor do resultado para determinado bem jurídico, tutelado por esse mesmo direito.

A pretensão dos embargantes é no sentido de não se justificar o procedimento de embargo de obra nova, com a alegação de que o caminho ficou totalmente obstruído, e implicitamente que prejuízo não pode ser aumentado ou suspendido com a acção cautelar.

Para UGO ROCCO ( Tratado di Diritto Processual Civile, pág.244 ), citado por MOITINHO DE ALMEIDA ( loc.cit., pág.29 ), entende-se que a obra se deve considerar concluída quando tendo-se verificado já o prejuízo, este já não possa ser aumentado pela prossecução daquela, nem eliminado pela sua suspensão ( cf., no mesmo sentido, Ac da RP de 28/5/85, C.J. ano X, tomo III, pág.250 e Ac RP de 10/1/2002, www dgsi ).

Porém, tal não sucede aqui, dado que a obstrução do caminho se reporta à passagem de carro e tractor, mas já não à de pé, não podendo considerar-se a obra concluída, para o efeito.

Destinando-se os embargos a suspender a obra, o seu emprego está legalmente justificado, uma vez que o prejuízo concreto pode ainda ser aumentado com a prossecução da obra e eliminado com a sua suspensão, relativamente à servidão de passagem de pé.

Por fim, pretendem os embargantes a extinção da instância, por impossibilidade da lide ( art.287 e) CPC ), com fundamento na ineficácia da procedimento cautelar, em virtude do caminho estar obstruído antes do embargo.

Contudo, este facto não está comprovado factualmente, e a privação dos requerentes em acederem de carro ao seu prédio resultou da obra realizada e não da existência do salgueiro.

Neste contexto, a sentença recorrida não violou as normas jurídicas indicadas pelos recorrentes, pelo que improcede o agravo.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:


1)

Julgar improcedente o agravo e confirmar a decisão recorrida.


2)

Condenar os embargantes nas custas.


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COIMBRA, 13 de Janeiro de 2004 ( processado por computador e revisto ).