Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
115-G/1998.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO
TRABALHADOR
HIPOTECA
Data do Acordão: 11/28/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 377º DA LEI Nº 99/2003, DE 7 DE AGOSTO, 12º Nº2 2ª PARTE E 751º DO CC.
Sumário: 1. Os créditos dos trabalhadores – quaisquer que sejam, emirjam do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação – passaram, com o novo Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 7 de Agosto, que entrou em vigor no dia 01 de Dezembro de 2003, a gozar de privilégio imobiliário especial e, por essa via, a preferirem à hipoteca, ainda que anterior, ex vi do preceituado no actual art. 751º do CC, mas apenas quanto ao produto da venda do imóvel ou imóveis em que aqueles trabalhadores tenham prestado a sua actividade.

2. E a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando a seu favor um privilégio creditório, deve aplicar-se retroactivamente.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Por apenso aos autos de falência de A..., a correr termos na comarca da Lousã, B... e C..., entre outros, reclamaram os créditos de € 10.248,10 e € 8.051,81, respectivamente, provenientes de prestações inerentes aos contratos de trabalho que tinham com a falida.
Decorrido o prazo legal, nenhum dos créditos reclamados foi contestado, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 192° do CPEREF. Foi junto o parecer a que alude o art. 195° do CPEREF.
No saneador foram os mesmos créditos graduados, depois de reconhecidos e verificados (sendo atribuída às custas a precipuidade no pagamento pelo produto da massa) pela ordem e forma seguintes:

I - Em relação ao produto dos bens móveis, relativamente aos quais existe penhor, os créditos serão satisfeitos pela seguinte ordem:

Em primeiro lugar, o crédito reclamado D... até aos limites de cada um dos créditos que os referidos penhores se destinam a garantir.
Em segundo lugar, os créditos emergentes de contrato de trabalho, relativos a salários cm atraso, bem como os decorrentes da cessação do contrato de trabalho supra identificados sob os nºs 9, 10 e 16 a 65, a par.
Em terceiro lugar, os demais créditos reclamados, em rateio.

II - Pelo produto da venda do bem imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n° 01934/900905 da C. R. Predial da Lousã (verba l do auto de apreensão de fls. 3):

Em primeiro lugar, o crédito hipotecário do D... supra identificado sob 13.
Em segundo lugar, os créditos emergentes de contrato de trabalho, relativos a salários em atraso, supra identificados sob os n°s 9, 10 e 32 a 65, a par.
Em terceiro lugar, todos os demais créditos reclamados, em rateio.

III - Pelo produto da venda dos restantes bens móveis:

Em primeiro lugar, os créditos emergentes de contrato de trabalho, relativos a salários em atraso, bem como os decorrentes da cessação do contrato de trabalho supra identificados sob os n°s 9,10 e 16 a 65, a par.
Em segundo lugar os demais créditos em rateio.

IV - Pelo produto da venda dos restantes bens imóveis:

Em primeiro lugar, os créditos emergentes de contrato de trabalho, relativos a salários em atraso, supra identificados sob os n°s 9, l 0 e 32 a 65, a par.
Em segundo lugar, os demais créditos reclamados, em rateio.

Inconformadas, apelaram as reclamantes B... e C..., rematando as suas alegações com as seguintes conclusões delimitadoras do objecto do recurso (art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC):

a) O D... veio, a fls. 842 do processo principal, informar, em 09.07.2002, ter recebido extrajudicialmente dos avalistas da falida a quantia reclamada nos autos;
b) Vindo, na sequência da tal informação, a cessar as suas funções na Comissão de Credores (vide despacho de fls. 861 do processo principal, de 18.10.2002). Pelo que,
c) Não sendo o D... credor da falida, nem parte no processo, desde 2002,
d) Nem existindo nenhum fundamento legal que possa justificar a sua manutenção no processo.
e) Não podia o seu crédito ser verificado e graduado, como o foi, na douta sentença recorrida,
f) E em consequência, deveriam as recorrentes ter sido graduadas em primeiro lugar, também no que diz respeito ao produto do imóvel e dos móveis referidos, respectivamente, nos pontos II e I da decisão recorrida.
g) O que não aconteceu. Assim,
h) Ao verificar e graduar o crédito do BPSM, sem fundamento legal, como graduou, violou a Meritíssima Juíza a quo a lei.
Por outro lado, sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio:
i) Os créditos das recorrentes emergem todos eles de contrato de trabalho ou da sua cessação, encontrando-se abrangidos pelo regime legal da Lei 96/2001 de 20 de Agosto, e,
j) Gozam de privilégio imobiliário geral, nos termos do disposto no art° 4° de tal diploma legal. Pelo que,
k) Sempre deveriam ser graduados, de acordo com a sua preferência, em primeiro lugar, antes dos créditos garantidos por hipotecas voluntárias.
l) O que não aconteceu. Pelo que,
m) Ao graduar os créditos como graduou, violou a Meritíssima Juiz a quo a lei, e em especial, o citado art° 4° da Lei 96/2001 de 20 de Agosto.
Assim:
n) Deve a sentença recorrida ser revogada, excluído da verificação e graduação de créditos o crédito do BPSM, e graduados os créditos das recorrentes em primeiro lugar, com as legais consequências.

A credora reclamante "E..." contra-alegou, pugnando pela manutenção da graduação sentenciada.

Os reclamantes F..., G..., H..., I..., J..., L..., M..., N..., O..., P..., Q..., R..., S..., T..., U..., V..., X..., Z..., AA..., BB..., CC..., DD..., EE..., FF..., GG..., HH..., II..., JJ..., LL..., MM..., NN..., OO..., PP..., QQ..., RR..., SS..., TT..., UU..., VV... e XX..., vieram a expressar a sua adesão ao recurso.

Colhidos os vistos cumpre decidir.
*

É de relevar que foi pressuposta, para o que ora interessa, a seguinte materialidade como tal considerada na decisão recorrida:

1 - Por sentença proferida em 10 de Julho de 1998, já transitada em julgado, foi declarada a falência da Sociedade "A...", com sede em Freixo, Lousã.
2 - O D... SA reclamou, por requerimento de fls. 159 do apenso respectivo apresentado em 19/10/98, a quantia de Esc. 31.861.871$00/€ 158.926,34, proveniente de empréstimo em parte garantido por hipotecas voluntárias constituídas em 30/03/79 e 1/07/82 por escrituras públicas outorgadas no Cartório Notarial da Lousã e registadas a seu favor em 01/03/79 e 28/06/82 (fls. 188 a 203 daquele apenso).
3 - O imóvel objecto da hipoteca constituída a favor do reclamante BPSM, sito em Relvas do Freixo, Lousã, correspondendo ao artigo 4240 da matriz, integra o prédio onde foram implantadas as instalações fabris da falida (cfr. fls. 200 do apenso da reclamação de créditos).
4 - Os apelantes reclamam créditos relativos a salários e outras prestações emergentes dos contratos de trabalho que detiveram na falida.
5 - A fls. 841-842 do processo principal, o referido D... SA, por requerimento de 9 de Julho de 2002, informou ter recebido extrajudicialmente a quantia reclamada nos autos.
6 - Posteriormente, por despacho proferido no mesmo processo principal, foi o referido D... exonerado das funções que vinha desenvolvendo na Comissão de Credores.
7 - Por despacho de 2 de Abril de 2003 a M.ma Juiz considerou indevidamente deduzido pela sociedade E... a pretensão de ver reconhecida no processo a respectiva qualidade de cessionária do crédito reclamado pelo mesmo Banco.

São as seguintes as questões suscitadas no recurso:

A - O reconhecimento do crédito reclamado pelo D....

B - A graduação do respectivo crédito, garantido por hipoteca voluntária, em relação aos créditos de natureza laboral dos recorrentes.

1ª Questão.

Entendem os apelantes que o crédito do reclamante D... SA foi indevidamente verificado e reconhecido.
Argumentam singelamente com o facto de o mesmo ter informado o processo, pelo requerimento de 9.07.2002, que tinha recebido extrajudicialmente dos avalistas da falida aquele seu crédito - de Esc. 31.861.871$00/€158.926,34.
Trazendo ainda à luz da discussão a circunstância de o mesmo credor ter sido excluído, por despacho de 18/10/2002, das funções que vinha exercendo na Comissão de Credores.
Vejamos então.
A falência agora em causa foi decretada ao abrigo do chamado CPEREF, ou seja do DL 132/93 de 23/04 e respectivas alterações.
A actividade do tribunal no que toca à verificação do passivo diz respeito ao reconhecimento e posterior graduação de créditos. Não propriamente de credores, já que eles são apenas os sujeitos activos da relação obrigacional.
Isto significa que a sentença de verificação e graduação tem de proceder à identificação dos créditos que entram no concurso universal, com a referência dos seus titulares activos nesse momento, para efeito do seu possível reconhecimento, mas sempre sem prejuízo das regras processuais que disciplinam as modificações subjectivas da instância, nomeadamente a substituição das partes em função das vicissitudes da relação substancial.
É inteiramente válido, para a verificação do passivo em causa, o princípio da estabilidade da instância (art.º 268 do CPC), nos termos do qual esta se deve manter a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, podendo modificar-se quanto àquelas por virtude de sucessão ou acto entre vivos na relação subjacente ao litígio (art.º 270, al. a) do CPC). Em conformidade, o art.º 271, nº 1 do CPC prescreve que " No caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo".
Não resulta dos autos - e os próprios apelantes o aceitam - que tenha sido proferida decisão de habilitação na causa dos invocados cessionários do crédito em jogo (art.º 376 do CPC), de forma que nela pudessem intervir em substituição do D... reclamante.
Os apelantes também não ousam sugerir que, mediante o aludido requerimento de fls. 841- 842, este último tenha querido exprimir uma desistência do pedido, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 295, 300 e 301 do CPC, sentido que aliás não teria a mínima correspondência com o texto do requerimento.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões (A a H) pertinentes a esta questão.

2ª Questão.

Trata-se aqui de determinar a prioridade a estabelecer na graduação dos créditos reclamados pelos apelantes, com origem na relação laboral, em confronto com o crédito reclamado do D..., parcialmente garantido por hipotecas voluntárias registada em 01/03/79 e 28/06/82.
Para tanto importará definir, numa primeira fase, se os créditos laborais reclamados nos autos pelos trabalhadores da falida beneficiam ou não, todos eles, e na sua globalidade, de privilégio imobiliário geral e se tal privilégio deve ou não prevalecer sobre a hipoteca anteriormente registada.
Como resultava da letra do n.° l do art.° 12° da Lei n.° 17/86 de 14/6 (conhecida pela Lei dos Salários em Atraso), os créditos emergentes do contrato individual de trabalho por ela regulados gozavam de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral.
E o mesmo acontecia, por força do disposto no n.° 4 do mesmo preceito, relativamente aos créditos de juros de mora.
No conceito ali adoptado de créditos emergentes do contrato individual de trabalho estavam abrangidos, quer os salários, quer as outras prestações regulares e periódicas feitas directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie, como os subsídios de férias e de Natal, por todas estas deverem, nos termos do art.° 82° da Lei do Contrato de Trabalho (Dec. Lei n.° 49 408, de 24 -l 1-69) , ser tidas por retribuição.
Os restantes créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação que não estivessem relacionados com a falta de pagamento pontual da retribuição gozavam apenas, atento o estatuído no art.° 25° da LCT (Lei do Contrato de Trabalho) do privilégio mobiliário geral consagrado no art.° 737° n.° l al.ª. d) do C. Civil. (vide Ac. STJ de 9-2-99 in Col. Jur./STJ, ano VII, tomo I, pag. 86).
Todavia, em 20 de Agosto de 2001, foi publicada a Lei n.° 96/2001, com entrada em vigor em 19 de Setembro de 2001, que no seu art.° 4° n.° l veio estabelecer que "os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei n17/86, de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) privilégio mobiliário geral;
b) privilégio imobiliário geral.
Acrescentando o n.° 3 do mesmo preceito que: " Os privilégios dos créditos referidos no n. ° l, ainda que sejam preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei n. ° 17/86, de 14 de Junho, e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei".
Consequentemente, desde então, todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação passaram a gozar de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral.
Consumada a alteração introduzida ao art.° 751° do C. Civil pelo Dec. Lei n.° 38/2003, de 08/3, dissiparam-se as possíveis dúvidas quanto a saber se os privilégios imobiliários gerais ainda disporiam de prioridade de pagamento, nomeadamente sobre a hipoteca.
Há, porém, que considerar que, no dia 01 de Dezembro de 2003, entrou em vigor o novo Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 99/2003, de 27 de Agosto, o qual veio a estatuir no art.° 377° que:
"Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade". (…).
Ao invés do que antes sucedia, os créditos dos trabalhadores - quaisquer que sejam, emirjam do contrato ou da sua violação ou cessação - passaram, assim, com o novo Código do Trabalho, a gozar de privilégio imobiliário especial e, por essa via, a preferirem à hipoteca, ainda que anterior, ex vi do preceituado no actual art.º 751 do CC., mas apenas quanto ao produto da venda do imóvel ou imóveis em que aqueles trabalhadores tenham prestado a sua actividade.
E a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando a seu favor um privilégio creditório, deve aplicar-se retroactivamente, de acordo com o disposto na 2ª parte do n.° 2 do art.° 12° do C. Civil ( neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in C. Civil Anotado, 4a ed., revista e actualizada, vol. I, pág. 62, e Ac. STJ de 29-5-80 , in BMJ 297°, 278).
Por conseguinte, sendo os privilégios creditórios imobiliários especiais garantia de valor superior ao da hipoteca, os créditos dos trabalhadores reclamantes nos autos deviam ser graduados à frente do crédito da ora apelante (apesar deste se mostrar garantido por hipoteca anteriormente constituída) quanto ao produto da venda do imóvel em causa, por este estar conexionado com a prestação laboral dos apelantes.
De forma que, sendo pertinentes as conclusões I, J, K, L e M (2º parte), impõe-se a modificação do respectivo segmento da graduação de créditos.

Pelo exposto, julgando procedente a apelação, revogam em parte a sentença, determinando que pelo produto da venda do bem imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n° 01934/900905 da Cons. do Reg. Predial da Lousã (verba l do auto de apreensão de fls. 3) o pagamento dos créditos reconhecidos seja feito pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, os créditos emergentes de contrato de trabalho, relativos a salários em atraso, bem como os decorrentes da cessação do contrato de trabalho respeitantes a todos os credores ora apelantes, a par;
Em segundo lugar, o crédito hipotecário do D... SA;
Em terceiro lugar, todos os demais créditos reclamados, em rateio.
No mais mantêm o saneador-sentença recorrido.
Custas pela apelada E...