Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1896/09.6TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
CRÉDITO
ACÇÃO CÍVEL
Data do Acordão: 11/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 1 DO ARTIGO 20.º DO CIRE
Sumário: Crédito litigioso.
O facto de existir uma acção cível em que o Autor pede a condenação do Réu a pagar-lhe uma dívida e este último contesta a sua existência, não retira legitimidade a esse Autor para instaurar uma outra acção a pedir a insolvência do Réu, alegando, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, ser titular do mesmo crédito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra ( 2.ª secção cível):

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Recorrente…………………A..., solteiro, residente ....

Recorridos…………………B... e esposa C...., residentes ....


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I. Relatório:

a) O recorrente instaurou no tribunal da comarca de Pombal a presente acção executiva universal, com processo especial, com o fim de obter a declaração de insolvência de B... e esposa C....

Como causa para este pedido alega ser credor dos requeridos, crédito que resultou de um pedido que os requeridos lhe fizeram e ao qual acedeu, pedido que consistiu em o requerente ter contraído em proveito dos requeridos um empréstimo bancário no valor de €70 000,00 euros, destinado à compra de um imóvel propriedade dos requeridos.

Na sequência de tal convénio o banco veio a conceder o empréstimo ao requerente o qual logo transferiu para os requeridos a referida quantia de €70 000,00 euros, tendo o requerente ficado proprietário do imóvel.

Ficou ainda acordado que as prestações relativas ao empréstimo, devidas ao Banco, seriam da responsabilidade dos requeridos, muito embora perante o banco o responsável fosse o requerente.

Sucede que os requeridos deixaram de pagar as aludidas prestações.

Porém, em 5 de Setembro de 2008, os requeridos prometeram ao requerente que pagavam a dívida e, dadas as relações de amizade existentes entre todos, o requerente emitiu a favor do requerido uma procuração para venderem o imóvel já mencionado.

Sucede que, em 9 de Setembro de 2008, os requeridos entregaram ao requerente a quantia de €38 000,00 euros, renovando a promessa de pagarem as prestações bancárias em falta, o que não fizeram.

Apesar do requerente ter revogado a procuração e do requerido ter sabido disso, ainda assim utilizou-a e vendeu o imóvel à sociedade D..., sociedade de que ele, requerido, é o único sócio.

O requerente concluiu afirmando que é credor dos requeridos no montante de €28 972,68 euros, referente a prestações bancárias não pagas e outras despesas por si suportadas com o negócio de aquisição do imóvel, bem como da quantia de €3 640,00 euros que os requeridos se comprometeram a pagar-lhe, por estes terem atrasado a deslocação do requerente para o estrangeiro, onde trabalha, tendo ficado privado, por isso, de auferir aquela quantia nesse período.

Acrescenta ainda que propôs acção declarativa para cobrança de tais montantes contra os requeridos, acção que corre termos com o n.º 25823/08.0TBPBL pelo 3.º Juízo do mesmo tribunal, que os requeridos contestaram negando que lhe devam qualquer montante.

b) A presente acção veio a ser julgada improcedente com o fundamento da falta de legitimidade do requerente para pedir a insolvência dos requeridos, devido ao facto do crédito invocado ser litigioso.

Considerou-se na decisão que, nos termos do n.º 1, do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a declaração de insolvência pode ser requerida por qualquer credor ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, cumprindo-lhe alegar factos que preencham as situações previstas nas diversas alíneas deste n.º 1, mas um crédito controvertido equivale a um crédito inexistente, na medida em que não pode ser exigido ­até ser reconhecido, nomeadamente por decisão transitada em julgado e que só têm legitimidade substantiva para pedir a declaração de insolvência os credores com créditos vencidos e exigíveis (Ac. TRL de 05 de Junho de 2008, em www/dgsi. pt).

c) O requerente interpôs recurso, alegando, em síntese, que a lei só exige que o requerente invoque a qualidade de credor e nem na letra nem no espírito da lei está presente a exigência de que o crédito não possa ser litigioso, sendo até expressa a conceder legitimidade ao credor condicional.

Por conseguinte, o credor titular de crédito litigioso é credor com legitimidade para requerer a insolvência (citou neste sentido o Ac. do TRC de 26 de Maio de 2009, em www/dgsi. pt).

Adianta ainda que não se encontrando o crédito reconhecido judicialmente, bastaria então ao requerido/devedor negar ou impugnar a existência do crédito invocado para, sem mais, obstar a que os autos prosseguissem com vista à sua declaração de insolvência, o que não pode ser.

Em desabono do entendimento perfilhado na sentença recorrida, invoca o caso dos créditos emergentes da violação ou da cessação do contrato de trabalho estando a sua entidade empregadora em situação de insolvência, em que existe a possibilidade de ver garantidos o pagamento de, pelo menos, parte destes créditos pelo Fundo de Garantia Salarial.

Ora, seguindo o entendimento perfilhado na sentença recorrida, tal implicaria que, não estando ainda os créditos vencidos, nenhum trabalhador que fosse requerente da insolvência poderia lograr obter junto do Fundo de Garantia Salarial a satisfação ou o pagamento dos seus créditos e não é isso que ocorre.

Conclui, por conseguinte, ser suficiente a alegação de se ser credor para ficar assegurada a legitimidade com vista ao pedido de declaração de insolvência.

d) Os requeridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido.

e) A questão a decidir consiste apenas em saber se recorrente, que instaurou uma acção a pedir o reconhecimento e satisfação de determinado crédito sobre os recorridos, pode depois instaurar uma acção contra estes a pedir a sua insolvência, invocando o mesmo crédito, sabendo-se que na outra acção de condenação os ora requeridos impugnaram a existência do crédito alegando não serem devedores.

II. Fundamentação.

1. A matéria provada relevante para a questão a decidir é esta:

O recorrente instaurou contra os requeridos uma acção declarativa de condenação a pedir o reconhecimento de determinado crédito sobre os requeridos, acção que corre termos, com o n.º 25823/08.0TBPBL, pelo 3.º juízo do tribunal Judicial da comarca de Pombal, que os requeridos contestaram alegando não serem devedores de qualquer montante, não existindo ainda decisão à data em que foi proferida a sentença sob recurso.

O requente instaurou a presente acção para obter a declaração de insolvência invocando o mesmo crédito.

2. Vejamos a questão.

a) O n.º 1 do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, dispõe que «A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza de seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se alguns dos seguintes factos:…».

A questão objecto do recurso tem a ver com a legitimidade do requerente, exigindo esta norma que ele tenha o estatuto de credor, tendo-se entendido na 1.ª instância que o facto do crédito ser litigioso e a litigiosidade resultar do facto do crédito ser objecto de uma acção declarativa autónoma, na qual o devedor contestou o crédito, retirava legitimidade ao requerente, por não se poder considerar credor.

 Esta questão é essencialmente de natureza processual e deve ser separada das questões relativas ao mérito da causa.

Com efeito, a questão da legitimidade do credor respeita aos pressupostos processuais que o requerente deve reunir para ser admitido a exercer o direito de acção contra o requerido.

Mas o direito de acção respeita apenas à relação processual que se constitui entre as partes e o tribunal, não à relação substancial que se irá discutir entre as partes e que só respeita a estas.

A relação processual tem de se estabelecer válida e previamente à discussão do mérito da causa, ainda que o possa ser apenas em termos provisórios, já que é a relação processual que gera as condições para a relação substancial poder ser debatida.

Diz-se «em termos provisórios» porque a lei de processo permite que o juiz relegue para a fase da sentença o conhecimento das excepções, incluindo as dilatórias, como é o caso da legitimidade (cfr. artigos 494.º, al. e) e 510.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, ambos do Código de Processo Civil).

Por conseguinte, tornar certo que o requerente da insolvência é credor do requerido é questão que pertence ao mérito da acção e não à relação processual.

Sendo assim, não é viável, processualmente, antecipar o conhecimento de uma questão que pertence ao mérito para, dessa forma, assegurar a constituição definitiva a relação processual.

Por aqui se vê que não há fundamento para exigir ao credor, logo na apresentação da petição, que prove, definitivamente, perante o requerido, ser seu credor.

Aliás, tal exigência não é feita ao exequente no processo executivo comum e singular, sendo certo que o processo de insolvência é também uma execução, embora universal (artigo 1.º do CIRE), não se vislumbrando razão para se exigir mais certeza na acção de insolvência que nas execuções comuns.

b) Perante a norma do mencionado artigo 20.º do CIRE pode colocar-se a questão de saber se o crédito invocado deve estar ou não vencido.

Não é esta a questão objecto do recurso, mas a sua análise também ajudará a compreender tal questão.

O vencimento interessa à matéria da suspensão de pagamentos do insolvente, pois a própria alínea a), do n.º 1, deste artigo 20.º, se refere a «obrigações vencidas».

Mas, como se disse, o crédito do credor que instaura a acção de insolvência não tem de estar vencido, pode ser até condicional.

A suspensão do pagamento das dívidas que ele alegue é que têm de estar vencidas, não o crédito que invoca para justificar a sua legitimidade.

Isto é assim porque estando o devedor em situação de insolvência não se pode exigir ao credor que tenha um crédito ainda não vencido, que espere pelo prazo do vencimento, pois poderia dar-se o caso de, na data do vencimento, já não encontrar valores no património do devedor (neste sentido Pedro Macedo, Manual de Direito das Falências, Vol. I, pág. 384, Coimbra / 1964).

Por outro lado, sendo um dos efeitos da declaração de insolvência a exigibilidade de todos os créditos, nos termos do artigo 91.º do CIRE, nenhum obstáculo se coloca a que devedor de crédito não vencido possa pedir a insolvência e antecipar o vencimento.

c) Analisando agora a influência da litigiosidade do crédito resultar do facto do crédito ser objecto de uma acção declarativa autónoma, na qual o devedor contestou a totalidade do crédito.

Sendo a litigiosidade apenas parcial, sempre poderia o credor invocar a parte não litigiosa, acompanhada de factos destinados a preencher qualquer uma das situações a que aludem as diversas alíneas do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE (factos-índices).

E, sendo o crédito apenas litigioso porque o requerido o contesta na acção de insolvência, não existiria qualquer obstáculo, pois o processo de insolvência destina-se, entre outras hipóteses, a dirimir precisamente tal litígio, quando ele é suscitado pelo requerido como forma de se defender do pedido de insolvência.

(Neste sentido pronunciou-se o acórdão do TRC de 26 de Maio de 2009, proc. 602/09.0TJCB, em www/dgsi. pt., citado pelo recorrente: «De entre as pessoas que estão legitimadas para requerer a insolvência (cfr. Art.º 18.º, 20.º e 296, n.º 2, do CIRE) encontram-se os credores do devedor.

Na verdade, dispõe-se no artigo 20.º, nº 1, que a declaração de insolvência pode ser requerida “(…) por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito (…)”.

«Logo, é de concluir que dispõe de legitimidade activa para requerer a declaração de insolvência qualquer terceiro/credor que arrogue ser titular de crédito sobre o requerido/devedor, ainda que esse crédito seja litigioso».

No mesmo sentido o acórdão do TRE de 10 de Maio de 2007, proc. 840/07-3, em www/dgsi. pt., onde se decidiu que « Pese embora o CIRE exija que o crédito do Requerente esteja vencido, não exige que o mesmo esteja reconhecido por decisão judicial ou por reconhecimento do devedor, o que quer dizer que o crédito invocado pelo requerente até pode ser litigioso, discutindo-se a sua existência no processo de insolvência.

Daí que nada obste a que um crédito litigioso, por incumprimento de um contrato-promessa, possa ser invocado pelo requerente da insolvência, discutindo-se a existência do mesmo no âmbito do processo de insolvência do devedor, como aliás acontece com os créditos reclamados pelos restantes credores, nos termos do processo de verificação de créditos»).

A litigiosidade nestes autos resulta de contestação exterior ao próprio processo de insolvência.

No caso dos autos, como se disse, o crédito invocado pelo requerente é objecto de outra acção, na qual se discute, precisamente, a existência da totalidade do crédito, devido a facto do aí réu e aqui requerido insolvente, negar a existência do crédito.

(No sentido de que o crédito litigioso, mas discutido em acção diversa do processo de insolvência, gera ilegitimidade ver acórdão do TRP de 5 de Março de 2009,  proc. 565/08.9TYVBNG «…o crédito controvertido é “inexistente” – no sentido de não poder ser exigido –, até ser reconhecido, nomeadamente, por decisão transitada em julgado»).

Nestes casos, argumenta-se observando-se que a qualidade de credor não está adquirida porque é contestada.

Dir-se-á, porém, que quando o credor instaura a acção a pedir a insolvência do devedor e invoca um crédito sobre ele, este crédito pode também não estar reconhecido em qualquer título, seja ou não sentença transitada em julgado, e pode vir a ser contestado no processo de insolvência pelo requerido.

É certo que as hipóteses não são ambas idênticas, pois enquanto num caso não há qualquer contestação judicial do crédito na altura em que é instaurada a acção, estando a legitimidade do requerente apenas assegurada pela simples invocação da qualidade de credor, devidamente justificada pelo teor da petição, podendo vir, ou não, a existir contestação ao invocado estatuto de credor no processo de insolvência, no outro caso, já é sabido, quando se instaura a acção de insolvência, que o crédito é contestado na outra acção judicial.

A questão que se coloca consiste em indagar dos reflexos de acção anterior sobre a acção de insolvência para efeitos de legitimidade como credor por parte do requerente da insolvência. 

Não se trata de uma questão de prejudicialidade.

Com efeito, servindo de exemplo o caso em apreço, a decisão a proferir no presente processo não depende da decisão a proferir no processo n.º 25823/08.0TBPBL, que corre pelo 3.º Juízo do tribunal Judicial da comarca de Pombal, pois a questão da inexistência da dívida suscitada no processo de insolvência ( e já foi suscitada – folhas 76) pode ser resolvida neste processo.

Por conseguinte, a questão que se poderá colocar é a de poderem ser tomadas decisões contraditórias em ambos os processos.

Pode, por exemplo, decidir-se no presente processo, para efeitos de legitimidade do requerente como credor, que a dívida existe e no processo 25823/08.0TBPBL decidir-se que a mesma dívida não existe.

No entanto, esta possibilidade de contradição acaba por não ter relevância jurídica prática para efeitos de legitimidade do credor requerente do pedido de insolvência, pois enquanto uma decisão respeita à legitimidade para pedir a insolvência, a outra respeita ao mérito da própria relação jurídica, sendo certo que a sentença que reconheça, em outro processo, o crédito ao requerente da insolvência, não implica o reconhecimento de tal crédito no confronto com os restantes credores do insolvente (esta conclusão retira-se, por exemplo, do disposto no n.º 3 do artigo 128.º do CIRE onde se dispõe que a verificação dos créditos «tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento», incluindo, portanto, aqueles que já constam de sentença transitada).

Feitas estas reflexões, não se encontra razão para distinguir os casos em que o devedor contesta a dívida em acção diversa da de insolvência, como é o caso dos autos, daqueles casos em que o devedor impugna a dívida alegada pelo requerente da insolvência, quando contesta o respectivo pedido.

Não se encontra qualquer razão impeditiva oponível a alguém que vem pedir a insolvência de outrem, fundada no facto de já o ter demandado antes em acção cível e de o requerido ter impugnado, nessa acção, a totalidade do crédito invocado.

Antes pelo contrário.

As razões que se podem alegar para admitir o credor condicional a requerer a insolvência, valem também para o credor de crédito litigioso.

Com efeito, se se obrigasse o credor litigioso a esperar que o seu crédito fosse declarado por sentença transitada, poderia dar-se o caso de, na data do trânsito, o património do devedor já não existir.

Pelo exposto, deve alterar-se o decidido, determinando-se que o processo continue.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que a acção prossiga.

Custas pelos recorridos.


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Nos termos do n.º 7 do artigo 713.º do Código de Processo Civil elabora-se o seguinte sumário:

«Crédito litigioso.

O facto de existir uma acção cível em que o Autor pede a condenação do Réu a pagar-lhe uma dívida e este último contesta a sua existência, não retira legitimidade a esse Autor para instaurar uma outra acção a pedir a insolvência do Réu, alegando, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, ser titular do mesmo crédito».