Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I-
1-No processo comum n.º 247/04 do tribunal da comarca de São Pedro do Sul, o arguido A.... foi condenado na pena de 50 dias de multa à taxa diária de €6 pela prática do crime de consumo de estupefacientes na previsão do art.º 40º do DL. n.º15/93, de 20/2.
2- O arguido recorre concluindo –
a) A sentença recorrida condenou o arguido como co-autor material dum crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 26º do CP e 40/ 1 e 2 do DL 15/93 de 22 de Janeiro.
b) No entanto violou a sentença o preceituado no artigo 2º/ 2 da Lei n.0 30/2000 de 29 de Novembro.
c) Isto porque com a entrada em vigor da Lei 30/2000 e a revogação do art.º 40º do DL. n.º 15/93 [ excepto quanto ao cultivo] foi intenção do legislador descriminar a aquisição e a detenção de estupefacientes para consumo próprio.
d) Impõe-se atender às teses doutrinais e jurisprudenciais que defendem que nos casos de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, também se aplica o regime contraordenacional.
e) Atendendo a que o art. 40º do Decreto-lei 15/93 foi revogado, não há nenhuma norma vigente que preveja e puna aquela conduta , pouco relevando se a quantidade ultrapassa o limite previsto no art.0 2º/2 da Lei 30/2000.
f) Entende o arguido que a aquisição e detenção para consumo de quantidade superior à necessária para 10 doses médias individuais, é punível como contra-ordenação.
g) Ademais a sentença irrelevou os factos que se vertem infra:
- o arguido não é nem nunca foi conhecido ou referenciado por andar a traficar droga;
- ficou provado que a droga detida pelo arguido se destinava em exclusivo ao consumo deste e de seus amigos, (num determinado dia de festa), pelo que, não faz sentido, nem é possível equacionar a hipótese de lhe poder ser dado ulteriormente um outro destino;
- é tido como pessoa respeitadora, bem-educada, simpática e honrada, que não se mete em sarilhos ou confusões, sendo estudante do 3º ano de Belas Artes na Universidade do Porto e fora deste mister bem considerado por amigos e no geral por quem o rodeia, não tendo antecedentes criminais, ou seja, sempre foi um cidadão de conduta imaculada.
h) A sentença violou o vertido no artigo 410/ 2, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal
i) A sentença dá como factos provados a quantidade de 17,114 gramas de canabis que o arguido trazia consigo, adquirida com dinheiro seu e de alguns amigos; era para seu consumo próprio e para consumo daqueles amigos .
j) No entanto, não resultou qualquer prova de quantos seriam os co-autores, a quem mais pertenceriam as 17,114 gramas de Canabis e qual a percentagem que cada detinha nessa quantidade.
k) O tribunal não se apetrechou com base de facto indispensável para condenar o requerente, verificando-se deste modo uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, violando-se o art.º 410/ 2 alínea a) do C.P.P..
l) Igualmente não se escora em raciocino lógico dedutivo ou em argumento sustentado que o arguido ultrapassou a quantidade média individual para o consumo durante dez dias.
m) Verificaram-se deste modo erros notórios da apreciação da prova ,violando-se o art.º 410/ 2 alínea c) do C.P.P.
n) No caso em apreço, o princípio da intervenção mínima do direito penal encontra-se também em questão, uma vez que a defesa da tendência de descriminalização da tipologia não foi aceite pelo julgador.
o) Essa factualidade, essencial ao apuramento da verdade material, foi desde logo descurada no inquérito que, assim, não se apetrechou com a base de facto indispensável para condenar o recorrente.
p) A matéria de facto assente não permite imputar ao recorrente a prática do crime vertido na sentença.
q) Pelo que foi violado o princípio i dubio pro reo consagrado pelo art.º 32º da C.R.P.
r) Violou a sentença o artigo 2/2 da Lei n.0 30/2000; o disposto no art.º 410/ 2 alíneas a) e c) do C.P.P e o art.º 32ºda CRP.
3- Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido pelo infundado do recurso, no mesmo sentido se pronunciando o Ex.mo Procurador - Geral Adjunto .
4- Colheram-se os vistos e realizou-se a audiência.
Cumpre apreciar e decidir!
II-
Factos provados –
1 - No dia 4.8.04, cerca da 22.35 horas, o arguido, quando se encontrava no recinto do festival denominado ‘Andanças 2004’, sito em Carvalhais, S. Pedro do Sul, trazia consigo, nas vestes que envergava, um pedaço de canabis (‘haxixe’), com o peso líquido de 17,114 gramas.
2 – O arguido havia adquirido aquele produto alguns dias antes, com dinheiro seu e de alguns amigos, que lho tinham entregado para esse efeito, mediante acordo prévio entre todos para consumirem tal produto no dito festival denominado ‘Andanças 2004’.
3 – O arguido trazia consigo e destinava o mencionado produto para seu consumo próprio e para consumo daqueles seus amigos que para o efeito lhe haviam entregado dinheiro, pese embora o mesmo desse para um consumo médio individual durante um período superior a 10 dias.
4 – Conhecia as características e natureza daquela substância.
5 - Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6 – Frequenta o 3º ano do curso de Belas Artes na Universidade do Porto e não tem filhos.
7 – Reside com a mãe, a qual, pese embora desempregada, beneficia de uma pensão de alimentos do ex-marido no montante mensal de 1.000 (mil) euros.
8 – O pai do arguido contribui para o sustento deste com uma pensão mensal de 250 euros.
9 – O arguido utiliza nas suas deslocações um veículo automóvel que o pai lhe cedeu.
10 – Não possui antecedentes criminais.
Não se provaram quaisquer outros factos.
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2- Questões que o recorrente suscita –
a) A presença na sentença dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova; b) A violação do princípio «in dubio pro reo»; c) Os factos tidos por provados não integram qualquer tipo de crime .
3- Apreciação –
3.1- Decorre do teor da acusação que o arguido vinha acusado da prática do crime de consumo de estupefacientes por nas circunstâncias de tempo e de lugar deter 17,144 gr. de Canabis ( resina) para seu consumo próprio e exclusivo.
No julgamento e sob pretexto de pretender confessar os factos constantes da acusação, o arguido afirmou outros factos que iam para além da detenção das ditas 17,114 gr. de Canabis nas referidas circunstâncias de tempo e lugar.
Assim, esclareceu que detinha o produto para ser consumido por si e por amigos no festival «Andança 2004», conforme entre eles acordado, tendo-o comprado com dinheiro seu e dinheiro desses amigos.
O Ministério Público e o arguido estiveram de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos por este revelados [embora dissentindo quanto à qualificação típica de «co-autoria em crime de consumo» -, cfr. acta do julgamento, fls.68 ].
Resulta, pois, do provado que o produto detido pelo arguido não se destinava na sua totalidade ao consumo pelo arguido.
Assim a situação provada na decisão de facto não é a discreteada no capítulo dos motivos de direito, mas uma outra bem diferente.
A situação dos autos é a dum agente que se disponibilizou comprar Canabis para consumo por si e por outros. É uma situação em que o agente compra droga para seu consumo e para o consumo de terceiros, embora seus amigos. No fundo, a actividade do arguido é também a de proporcionar a outrem a substância estupefaciente ( cfr. a redacção do art.º 21º/1 do DL. n.º 15/93).
E só por si a mera detenção de drogas sem a demonstração da sua total afectação ao consumo do agente constitui um crime de tráfico de estupefacientes com a matriz moldada no art.º 21º do DL. n.º 15/93.
Esse projectado consumo em grupo configura sempre uma cedência por parte do agente que comprou e detém a droga, sendo despiciendo tratar-se ou não de amigos do agente, de quem era o dinheiro com que se comprou a droga e qual a quantidade do produto destinado a cada um deles.
A nosso ver, a conduta provada cabe na previsão do art.º 21 do DL. n.º 15/93, de 22/1 -, será punido “quem (...) distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título (...) receber, proporcionar a outrem, transportar ou detiver fora dos casos previstos no art.º 40º(...)” . O que é o caso, já que o arguido não detinha o produto para seu consumo exclusivo.
Embora comprada com dinheiro seu e com dinheiro dos seus amigos, o produto era pertença do arguido que não se terá apresentado ao seu fornecedor como procurador deles.
Temos para nós por certo que estando provada a detenção não autorizada de produto estupefaciente e que este se não destine ao uso exclusivo do agente, está preenchida uma das modalidades da acção típica do “tráfico” ( cfr. art.ºs 21º, 24º e 25º, tendo estes a mesma matriz do primeiro)[ Pelo que não seguimos a jurisprudência do Ac. da RP., de 2/10/2002, em cujo sumário se cita jurisprudência do STJ que, tanto quanto é perceptível extrair do sumário, a não apoiam. ].
Quanto a nós é irrelevante que a droga pertença ou não ao arguido. A simples detenção precária desde que não destinada na sua totalidade ao consumo próprio, é punível porque não excluída pelo art.º 40º . Como irrelevante é o fim que o agente busque ( v.g. a procura ou não do lucro ou outra qualquer vantagem).
Trata-se dum crime de perigo abstracto, ou seja, em que o perigo não é elemento do tipo mas simples motivo da proibição.
E é um crime de empreendimento, em que o crime fica consumado com a comissão de um único acto de execução. E desta natureza do tipo deriva que não é possível configurar a mera tentativa.
A situação cai, pois, no âmbito do tráfico, embora de menor gravidade na previsão do art.º 25º do DL. n.º 15/93 e dentro deste de diminuta ilicitude.
Efectivamente, a ilicitude do acto é consideravelmente diminuída pelas circunstâncias da acção conhecidas -, a quantidade e a qualidade da substância e a sua aquisição com vista ao consumo em grupo de amigos que até contribuíram com algum do dinheiro necessário à compra da droga.
Assim, perde utilidade uma pronúncia aqui e agora sobre a questão de se saber qual o regime aplicável à situação em que o agente detém produto para seu consumo exclusivo em quantidade superior à necessária para dez dias.
3.2- Nesta perspectiva, operada que foi em julgamento a alteração dos factos constantes da acusação com o assentimento do Ministério Público e do arguido, temos por válida tal alteração substancial dos factos constantes da acusação -, cfr. segunda parte da alínea f) do art.º 1º/1 do e art.º 359º/2 do Código de Processo Penal.
Efectivamente estes sujeitos processuais acordaram que se prosseguisse com o julgamento pelos novos factos, para cujo conhecimento continuava o tribunal singular a ser o competente.
E decorre do ora referido, em conjugação com a correcta qualificação típica [tráfico de menor gravidade] e da estatuição do art.º 358º/3 do CPP que se deveria ter comunicado ao arguido a nova qualificação típica e concedido o tempo estritamente necessário para a preparar a sua defesa face à nova incriminação.
3.3.1- Inexistem na sentença os propalados vícios das alíneas a) e c) do n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal .
Os referidos vícios hão-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – cfr. corpo do referido n.º2.
Os factos provados são, a nosso ver, suficientes para a prolação duma decisão de mérito, no caso de condenação por tráfico de menor gravidade em grau muito reduzido de ilicitude .
Só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando os factos provados forem insuficientes para justificar uma decisão, i e, quando da sentença se colhe faltarem elementos que podendo e devendo ser indagados são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Não é o caso dos autos já que saber-se quantos eram os amigos do arguido com eles comprometidos ou que quantidade de produto seria por cada um deles consumida não se configuram como essenciais à incriminação ou como elementos que interfiram com a dosimetria da pena.
Aliás, esse segundo facto [ saber quanto seria consumido por cada um] até poderá configurar-se numa impossibilidade antes de efectuado esse consumo que , com a apreensão do produto, ele próprio se tornou impossível.
O erro notório ocorre quando se retira dum facto uma conclusão logicamente inaceitável porque ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum; quando se dá por provado patentemente errado; ou quando determinado facto tido por provado é incompatível com outro facto contido no texto da decisão . Quando a versão dos factos é admissível à luz da lógica e das regras da experiência não pode afirmar-se que se esteja perante erro notório.
Como também não colhe a invocação da violação do princípio «in dubio pro reo» , já que o provado resulta do relato dos factos pelo arguido, relatou feito em julgamento e a que o tribunal deu total credibilidade.
III
Decisão –
Temos em que -, integrando-se os factos provados no tipo legal contido na previsão conjunta dos art.ºs 21º e 25º do DL. n.º 15/93 , de 22/1, [ tráfico de menor gravidade] , face ao mais referido e ao que se estatui nos art.ºs 358º/3 e 379º/1 alínea b) do Código de Processo Penal -, se anula a sentença e determina a reabertura da audiência para a comunicação ao arguido da nova qualificação típica e concessão de prazo para defesa, após o que se lavrará, em conformidade, nova sentença.
Sem custas |