Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
318/08.4GAACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: BENS DECLARADOS PERDIDOS
INQUÉRITO
COMPETÊNCIA PARA DECLARAR DESTINO
Data do Acordão: 07/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 109º E 268º, Nº 1, E) CPP,79º LOFT(L. 3/93)
Sumário: Em sede de inquérito compete ao Mº Pº pronunciar-se sobre o destino dos bens declarados perdidos a favor do Estado
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal desta Relação:

O Digno Magistrado do Ministério Público determinou o arquivamento dos autos nos termos e para os efeitos do art.º 277º, nº 1 do CPP.

Nesse despacho ordenou a remessa dos autos ao Mº Juiz de instrução Criminal com a promoção de que o objecto apreendido a fls. 5,descrito e examinado a fls. 10 seja, atento o disposto no art.º 109º, nº 2 do CP, declarado perdido a favor do Estado e por ser destituído de qualquer valor venal, mais útil por exemplo para o combate aos incêndios, se proceda à entrega do mesmo à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Alcobaça.

A Mª JIC em 13-1-09,declarou perdido a favor do Estado o referido objecto, uma vez que tal tipo de objecto oferece sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos (art.º 109, nº 1 do CP e 268º, nº 1 al. c) do CPP).

Em 18-2-09 a Mª JIC profere o seguinte despacho:

Não me compete, em sede de inquérito, pronunciar-me quanto ao destino a dar aos objectos (art.º 268º, nº 1 al. e) do CPP)

Inconformado, recorreu o MºPº, concluindo a sua motivação do seguinte modo:

1ª- Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls. 24 proferido no dia 18 de Fevereiro de 2009 pela Mma. Juiz de Instrução Criminal, decidiu não "ser da sua competência, em sede de inquérito, pronunciar-se quanto ao destino a dar aos objectos (v. artigo 268°, n° 1, ai. e) de Código de Processo Penal) ";

2a -- Por força das disposições legais conjugadas dos artigos 109°, n° 3, do Código Penal e 268°, n° 1, ai. e), do Código de Processo Penal e 79°, n° 1, da L.O.F.T.J., compete ao Juiz de Instrução Criminal — e não apenas ao "Juiz de Julgamento " "ordenar que os objectos perdidos nos termos anteriores sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio."

3a - Ao ter-se decidido nos termos enunciados em Ia, violou-se do douto despacho a quo c disposto no artigo 109°, n° 3, do Código Penal, 268°, n° 1, al. e), do Código de Processo Penal 79°, n°l,daL.O.F.T.J.;

4a -- Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente, porque provado, devendo Va Exas. ordenar que o douto despacho a quo proferido pela Mma. Juiz de Instrução Criminal seja substituído por outro no qual:

a) Se julgue competente para se pronunciar quanto ao destino a dar aos objectos em fase de inquérito;

b) E, em consequência, ordene que o machado / malho já declarado perdido a favor do Estado por douto despacho de fls. 22, seja "colocado fora comércio " entregando-se o mesmo à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Alcobaça, nos termos promovidos pelo Ministério Público a fls. 16 in fine.

A Mª. Juiz a quo sustentou o despacho recorrido da seguinte forma:

Não tendo o presente recurso sido interposto de decisão que tenha conhecido, a final, do objecto do processo, será de seguida proferido despacho, nos termos permitidos pelo artigo 414.°, n.° 4 do Código de Processo Penal.

Na tese do Digno Magistrado do Ministério Público compete ao Juiz de Instrução Criminal pronunciar-se, em sede de inquérito, quanto ao destino a dar aos objectos.

Sucede que, nos termos do artigo 17.° do Código de Processo Penal, «ao juiz de instrução compete proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código». Ora, o referido Código apenas define como competência exclusiva do juiz de instrução a «declaração de perda a favor do Estado dos bens apreendidos» (v. artigo 268.°, n.° 1, alínea d) do Código de Processo Penal). Em nenhum momento se refere que incumbe ao juiz de instrução criminal dar destino aos objectos, ao contrário do que sucede para o juiz de julgamento, relativamente ao qual o mesmo diploma incumbiu de proceder, na sentença, à «indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime» (v. artigo 374.°, n.° 3, alínea c) do Código de Processo Penal). Certamente a diferente redacção da lei, num e noutro normativo, não deixará de impor diferentes interpretações e regimes.

Importa, ainda, não perder de vista a razão de ser da competência do juiz de instrução no que concerne à declaração de perda de objectos a favor do Estado. Esta declaração é da competência do juiz, na medida em que a mesma poderá interferir e colidir frontalmente com os direitos patrimoniais do arguido, direitos protegidos constitucionalmente. e por essa razão apenas pode ser decretada em acto jurisdicional, da competência de um juiz.

Veja-se neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa de 25-11-1998: «O acto de entrega de objectos em inquérito aos seus proprietários, por não colidir com direitos, liberdades e garantias fundamentais é da competência do Ministério Público, enquanto que a declaração da sua perda ou prescrição a favor da fazenda nacional, por interferir com direitos patrimoniais é em acto jurisdicional da competência do juiz.» (v. www.dgsi.pt/jtrl.nsf, n.° convencional: JTRL00021712 e Ac. da Relação de Lisboa de 28-11-2006, n.° de processo 6205/2006-5, in www. dgsi.pt).

Ora, tendo já sido declarada a perda do objecto a favor do Estado, por despacho proferido em 13 de Janeiro de 2009, não se vislumbra que a entrega do mesmo à Associação indicada ou a outra possa colidir com direitos, liberdades e garantias fundamentais e que, nessa medida, tenha de ser apreciada por um juiz.

Refíra-se, por último, a latere, que mesmo que assim não se entendesse, não se determinaria, sem mais, a entrega do objecto em causa à referida instituição. É que não resulta dos autos que se tenha diligenciado junto da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Alcobaça a saber se a mesma tem interesse, ou não, em receber o referido objecto. E, refira-se, que se desconhece - e o Digno Magistrado do Ministério Público não indica - qualquer norma legal que obrigue a referida instituição a receber o objecto descrito a fls. 10.

Nesta Relação a Exmª. Procuradora –Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

A- O Magistrado do M°P° na Ia instância veio interpor recurso do despacho do Mm0 Juiz que decidiu não ser competente para, em sede de inquérito, se pronunciar quanto ao destino dos objectos declarados perdidos a favor do estado.

Alega, em síntese nas "conclusões" da Motivação apresentada ( e são estas que delimitam o objecto do recurso) que, nos termos das disposições conjugadas dos art°s 109° n°3 do C.P.e 268° n°l e) do C.P.P. e art0 79° n°l da LOFT , compete ao juiz de instrução criminal e não apenas ao juiz do julgamento, ordenar que os objectos perdidos sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio, pelo que , se violou o disposto nos mencionados artigos.

Pelo que, pede que seja revogado o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que ordene a entrega do objecto à Associação Humanitária dos BV de Alcobaça.

B- É também este o nosso entendimento, pelo que vamos enunciar algumas circunstâncias de enquadramento dos factos, e tecer algumas considerações sobre o objecto do recurso.

Dispõe o art. 109.° do Cod. Penal, sob a epígrafe "perda de instrumentos e produtos:

«1- São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

2- O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

3- Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.»

Mas quando é que um determinado objecto assume o estatuto para se poder considerar que oferece o perigo de "ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos"! Logo depois de ser cometido um facto ilícito? Mas antes de tal acto o instrumento não oferece já a, digamos "potência'" para ser utilizado? Na clássica formulação aristotélica diríamos até que toda a matéria, sendo essencialmente indeterminação, é também sempre potência que pode vir a existir em acto. Não é em abstracto que um determinado objecto-instrumento deve ser considerado para determinar aquela potencialidade de perigo, mas em concreto, tendo designadamente em conta a natureza e características do objecto, as circunstâncias em que foi utilizado ou poderá ser utilizado.

Como referiu o Prof. Figueiredo Dias na Comissão Revisora do Cod Penal, a «(...) perigosidade do objecto não deve ser avaliada em abstracto, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado (às «circunstâncias do caso» se refere expressamente o ar t. 107°-1).

Um revólver, p. ex., é um objecto «em si» perigoso; mas que terá deixado de o ser se, após o tiro que constituiu meio de cometimento do ilícito-típico, a engrenagem tiver ficado danificada por forma irreparável. Esta conexão entre a perigosidade do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode acabar por «implicar uma referência ao próprio agente». Esta «referência ao agente» não deixa, de resto, de apoiar a interpretação restritiva, feita no § 987, do disposto no art. 107.°-2». Ou como diz o Ac da Relação do Porto proferido no recurso n.° 4689/07 :

«(...) os objectos não são perigosos em si já que, sem ligação a um agente concreto perigoso (que não é o arguido), não têm potencialidades para por em risco, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos ».

Isto por um lado. Por outro lado, e salvo os casos expressamente previstos em diplomas especiais (caso da droga, de substâncias explosivas, de certos tipos de armas, etc), é necessário que haja uma pronúncia judicial a julgar verificada a prática de um facto ilícito típico. E havendo alguém acusado, será mesmo necessário esperar pelo trânsito em julgado da sentença condenatória e da verificação judicial da perigosidade do objecto para poder haver perda a favor do estado (cfr por ex. o Ac TRP, de 16-3-2005, proc. n.° 0416429, in www.dre.pt).

No caso dos autos, não houve pronuncia judicial porque os autos não foram submetidos a julgamento, tendo os mesmos sido arquivados em inquérito, já que houve desistência de queixa do ofendido , que foi homologada pelo M°P° , pelo que não está determinado o agente do acto ilícito. Entendeu assim o despacho recorrido que o objecto apreendido, fosse declarado perdido a favor do Estado, mas que lhe não devia dar destino por não ser competente para tal.

Entendemos, porém, que nos termos do disposto no art0 109° n°3 do CP., será o Mm0 Juiz de Instrução o competente para determinar que tal objecto declarado perdido seja posto fora do comércio ou eventualmente destruído, já que à semelhança do juiz do julgamento, constitui um acto judicial a determinação do destino a dar a tais objectos. A perda dos instrumentos do crime para o Estado não é, uma pena acessória nem um seu efeito, mas constitui, antes, uma medida autónoma e essencialmente preventiva.

De acordo com tal entendimento, no julgamento, o artigo 374° C P Penal ao enumerar os requisitos da sentença, dispõe que a mesma termina pelo dispositivo, que contem, alínea c), "a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime "

Por outro lado, dispõe o artigo 379° n°l alínea c) do mesmo diploma que "é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ".

Isto é, estamos perante um poder vinculado do julgador; que terá no momento da prolação da sentença, que indicar o destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime.

Resulta assim a conclusão de que a sentença representa a derradeira ocasião para se decidir do destino das coisas ou objectos relacionados com o crime.

Esta omissão de pronúncia, importa a nulidade e pode ser arguida em recurso, ao abrigo do disposto no artigo 379° n° 2 C P Penal.

Em nosso entender, em relação aos objectos declarados perdidos em inquérito, por não terem chegado a julgamento, incumbe ao juiz dos direitos liberdades e garantias dar-lhes destino, pelo que será o Sr. Juiz de Instrução, a definir o seu destino.

Termos em que emitimos parecer no sentido de que deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a decisão proferida.

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Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência há que decidir :

O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação,bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

A única questão a resolver prende-se com a

Competência para ,em fase inquérito, se decidir sobre o destino de objecto declarado perdido a favor do Estado.

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Competência para ,em fase inquérito, se decidir sobre o destino de objecto declarado perdido a favor do Estado.

Dispõe o art.º 109º ,1 do CP que “são declarados perdidos a favor do estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito …

O nº 3 do mesmo normativo por sua vez estabelece que “se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”

Daqui resulta que estamos perante dois momentos processuais distintos: A declaração de perda e a declaração de destino.

Quanto á primeira, declaração de perda, porque contende com os direitos dos cidadãos, e porque exige a qualificação de determinados objectos como instrumentos, produtos ou vantagens, não temos dúvidas em afirmar que constitui um acto judicial.

Nesta perspectiva o legislador no art.º 268º nº 1 al. e) do CPP incumbiu um juiz, o juiz de instrução de declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, quando o Ministério Público, proceder ao arquivamento do inquérito. Sublinhe-se que nesta alínea nada adiantou no que respeita ao destino dos bens apreendidos.

No que concerne ao segundo momento, declaração de destino, que compreende destruição, colocação fora do comércio, entrega a uma entidade será que a mesma constituirá uma função jurisdicional?

Será que podemos enquadrar tal destino na previsão do nº 1 do art.º 79º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais (L. 3/99 de 13/1) quando estabelece que “compete aos tribunais de instrução criminal proceder à instrução criminal , decidir quanto á pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito.”?

Será que estamos perante um acto que a lei expressamente reservou para o juiz de instrução (art.º 268º, nº 1 f) do CPP) ?

Parece-nos que não.

Desde logo porque tal declaração não contende com os direitos dos cidadãos. Ousaremos afirmar que se tratará de um acto meramente administrativo.

Depois porque se fosse esta a intenção do legislador tê-lo-ia feito expressamente na referida alínea e) nº 1 do art.º 268º do CPP.

Acresce que no art.º 109º, nº 3 do CP o legislador ao utilizar a palavra “pode” não impôs essa tarefa ao juiz, qualquer que seja, o de instrução ou o de julgamento.

A reforçar o entendimento expendido não podemos deixar de referenciar as inúmeras circulares da Procuradoria, quanto a objectos possíveis de venda, objectos que possa servir para a contrafacção de outros, publicações pornográficas, quantias em dinheiro, armas etc.

Assim não podemos estar mais de acordo com o Acs. da Rel. de Lisboa de 25-11-98 no recurso nº 21722 e de 26-9-2006 no recurso nº 6187/2006-5 quando defendem que

1. A declaração de perdimento a favor do Estado de objectos ou substâncias apreendido durante o inquérito, só pode resultar de uma decisão jurisdicional susceptível de fixar com trânsito em julgado a extinção do direito de propriedade do respectivo dono sobre os mesmos.

2. Já a ordem de destruição dos bens ou substâncias previamente declarados perdidos a favor do Estado, não interfere minimamente com quaisquer direitos de terceiros, nomeadamente o de propriedade. Efectivamente, se o Estado, a quem tais bens ou substâncias foram atribuídos em propriedade, não vê que outro destino lhes possa dar que não a destruição, mal se compreenderia que fosse necessária a intervenção do poder jurisdicional para o ordenar. Trata-se afinal do destino de bens que já entraram na sua esfera patrimonial, por força de uma decisão, essa sim de carácter jurisdicional.

3. Não existe qualquer analogia nem similitude entre a declaração de perdimento a favor do Estado e a ordem de destruição. Por isso, se faz sentido que aquela só possa ser declarada pelo Juiz de Instrução, já se não compreende nem exige que esta não possa ser emitida pelo M. P. que é quem representa o Estado nos Tribunais.

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Nestes termos se decide:
- Julgar por não provido o recurso.

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Sem tributação.

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Coimbra, 2009-07-15 ______________________________________

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(João Trindade)