Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
208/06.5TBOHP
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA
Data do Acordão: 11/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGO 4.º DO DEC.LEI N.º 164/99, DE 13 DE MAIO; ARTIGO 2006.º DO CÓDIGO CIVIL LEI N.º 75/98 DE 19 DE NOVEMBRO; ARTIGOS ARTIGOS 2º, 63º Nº 3 E 69º Nº 2 DA CONSTITUIÇÃO DA RP
Sumário: 1) A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a inten­ção programática fixada nos artigos 2º, 63º nº 3 e 69º nº 2 da Lei Fundamental quanto à efectiva protecção de crianças em situação de carência.
2) Em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência por parte de um menor, o Estado tem o dever de criar os pressupostos materiais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos.
3) A criação do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores insere-se no escopo de concretização na prática do imperativo constitucional nesta matéria.
4) A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo através do requerimento que vai desen­cadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pretende adequada a col­matar as necessidades do menor.
5) O facto de o artigo 4º do DL nº 164/99 de 13 de Maio estatuir de "o Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribu­nal, suporta perfeitamente que na respectiva interpre­tação nos orientemos pelo disposto no "lugar para­lelo" a que se reporta o artigo 2006º do Código Civil, no sentido de que os alimentos são devidos desde a pro­po­situra da acção ou estando já fixados pelo Tribunal, desde que o devedor se constituiu em mora.
6) Nesta conformidade o pagamento das prestações ali­mentares por parte do Fundo de Garantia muito embora só se inicie com a notificação da decisão do Tribunal, reporta-se ao momento em que foi formulado o pedido visando conseguir aquele Apoio.
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Por decisão proferida em 10.05.06, já transitada em julgado e constante de fls. 30 e seguintes, determinou-se que os menores A....e B...., ficassem à guarda e cuidados da avó paterna, C...., a quem foi incumbido o exercício do poder paternal, e ainda que a progenitora, Célia Cármen da Costa Borges, contribuísse para o sustento dos menores com a pensão mensal global de € 80,00.

Por decisão de 08.05.07 (fls 60) - na sequência do incidente deduzido a 12.02.08, a fls. 52 e seguintes, foi declarada a situação de incumprimento por banda da progenitora da sua obrigação de prestar alimentos, tendo-se julgado em dívida todas as prestações vencidas.

Não foi possível, apesar das inúmeras diligências feitas ao longo dos últimos meses, obter informação acerca de bens ou rendimentos que a progenitora possua (cfr. fls. 47 e 48 e 70 a 74).

Dos elementos dos autos, nomeadamente do teor do relatório social junto aos mesmos, a fls. 82 e seguintes, resulta que:

1) Os menores vivem com a avó paterna e o marido desta, Carlos Alberto Pereira;

2) Este agregado com o vencimento do marido, no valor de € 500,00 mensais, com o valor das prestações familiares que se cifra em 665,30, e com a reforma da avó, Maria Teresa, de € 236,00.

3) O progenitor encontra-se a residir em Espanha.

4) A progenitora frequenta actualmente um Curso de Formação de Apoio à Comunidade, auferindo cerca de € 280,00 mensais, não lhe sendo conhecidos quaisquer outros bens.

Dos elementos recolhidos dos autos, supra indicados sumariamente e retirados do teor do Relatório Social de fls. 82 e seguintes, das certidões de assento de nascimento de fls. 4 e 5, e das informações acerca da situação económica dos progenitores de fls. 47,48, e 70 a 74, entendeu-se resultar claramente que os menores se encontram em condições de verem assegurado pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores o pagamento dos alimentos que lhe são devidos pelo progenitor. Desde logo, são menores, têm nacionalidade portuguesa e residem em território português.

Por outro lado, decorre, igualmente, que os menores não dispõem de rendimentos, directamente ou por referência a outra pessoa, de montante superior ao fixado para o salário mínimo nacional.

Entendeu assim o Tribunal a quo estarem verificados os requisitos previstos no artº 1º da Lei 75/98 de 19 de Novembro e artsº 3º e 4º do DL 164/99 de 13 de Maio, pelo que se determinou que o pagamento dos alimentos devidos, ficasse a cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.

Também uma vez que é do superior interesse das crianças de que se tratam e que em causa estão direitos indisponíveis, abordaram-se ainda duas questões:

- Se os menores têm direito a ver actualizada a pensão de alimentos ora a cargo do Fundo e, por último,  

- Se têm direito ao montante das prestações vencidas e não pagas à data da primeira prestação liquidada pelo mesmo Fundo.

O Sr. Juiz a fls. 101 determinou que a pensão de alimentos passe a ser processada pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos aos Menores e bem assim que seja actualizada para € 100,00 relativamente a cada menor.

Mais determinou o pagamento a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, das prestações que se vençam a partir de Março de 2007, inclusive.

Daí o presente recurso de agravo interposto pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, o qual no termo da sua alegação pediu que se considere aquele provido e revogando-se a sentença em análise seja a mesma substituída por outra decisão na qual o FGDADM do IGFSS seja obrigado a efectuar o pagamento das prestações apenas a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A sentença recorrida interpretou e aplicou de forma errónea, ao caso sub judice, o artº 1º da Lei 75/98 de 19/11 e o artº 4º nºs 4 e 5 do Dec-Lei nº 164/99 de 13 de Maio;

2) Com efeito, o entendimento do douto Tribunal a quo, de que no montante a suportar pelo FGADM devem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pelos progenitores (judicialmente obrigados a prestar alimentos) não tem suporte legal;

3) O Dec-Lei nº 164/99 de 13 de Maio é taxativo quanto ao início da responsabilidade do Fundo pelo pagamento das prestações;

4) No nº 5 do artº 4 do citado diploma, é explicitamente estipulado que “O Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal, nada sendo dito quanto às prestações em dívida pelo obrigado a prestar alimentos;

5) Existe uma delimitação temporal expressa que estabelece o momento a partir do qual o Fundo deve prestar alimentos ao menor necessitado;

6) Não foi intenção do legislador dos supramencionados diplomas legais, impor ao Estado, o pagamento do débito acumulado pelo obrigado a prestar alimentos;

7) Tendo presente o preceituado no artº 9 do Código Civil, ressalta ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado, apenas o pagamento de uma nova prestarão de alimentos a fixar pelo Tribunal dentro de determinados parâmetros – artº 3º nº 3 e artº 4º nº 1 do Dec-Lei 164/99 de 13/5 e artº 2º da Lei 75/98 de 19/11;

8) A prestação que recai sobre o Estado é, pois, uma prestação autónoma, que não visa substituir definitivamente a obrigação de alimentos do devedor, mas antes proporcionar aos menores a satisfação de uma necessidade actual de alimentos, que pode ser diversa da que determinou a primitiva prestação;

9) O FGADM não garante o pagamento da prestação de alimentos não satisfeita pela pessoa judicialmente obrigada a prestá-los, antes assegurando, face à verificação cumulativa de vários requisitos, o pagamento de uma prestação “a forfait” de um montante por regra equivalente - ou menor – ao que fora judicialmente fixado.

10) Só ao devedor originário é possível exigir o pagamento das prestações já fixadas, como decorre do disposto no artº 2006 do CC, constatação que é reforçada pelo disposto no artº 7 do Dec-Lei 164/99 ao estabelecer que a obrigação principal se mantém, mesmo que reembolso haja a favor do Fundo.

11) Não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação de alimentos fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito do Fundo. A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal; a última visa assegurar, no desenvolvimento da política social do Estado, a protecção do menor, proporcionando-lhe as necessárias condições de subsistência;

12) Enquanto o artº 2006º do Código Civil está intimamente ligado ao vínculo familiar – artº 2009º do CC – e daí que quando a acção é proposta, já os alimentos seriam devidos, por um princípio de Direito Natural, o Dec-lei 164/99 “criar” uma obrigação nova, imposta a uma entidade que antes da sentença não tinha qualquer obrigação de os prestar.

13) A obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM (autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal) não decorre automaticamente da Lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.

14) Se é diferente a natureza das duas prestações, diferente é também o momento a partir do qual se começam a vencer a prestação de alimentos, visto haver norma substantiva que o prevê, começa a vencer-se a partir de Novembro e do Dec-Lei nº 164/99 de 13 de Maio, que o Tribunal deve considerar na fixação da prestação a efectuar pelo Estado, prestação essa que não é necessariamente equivalente à que estava em dívida pelo progenitor.

15) Há ainda que salientar, que as atribuições de cariz social do Estado não se esgotam no FGADM, o qual constitui uma ínfima parte das mesmas, sendo certo que a todas o Estado tem de dar satisfação.

16) Não pode proceder-se à aplicação analógica do regime do artº 2006º, dada a diversa natureza das prestações alimentares.

17) O FGADM somente deverá ser responsabilizado pelo pagamento das prestações fixadas e devidas a partir da prolação da sentença judicial, e não pelo pagamento do débito acumulado dos obrigados.

18) O que se entende facilmente se atentarmos na finalidade da criação do regime instituído pelos supra citados diplomas legais, que é o de assegurar garantir os alimentos devidos a menores e não o de substituir a obrigação alimentícia que recai sobre o obrigado a alimentos.

Não houve contra-alegações.

Cabe decidir.

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2. FUNDAMENTOS.

2.1. Os Factos.

Os factos que interessam à decisão da causa cons­tam do despacho agravado.

Assim, não tendo sido impugnada a matéria de facto nem havendo tão pouco qualquer alteração a fazer-lhe, nos termos do preceituado no artº 713º nº 6 do Código de Processo Civil, dá-se aqui a mesma por reproduzida.                                +     

2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- O Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores suporta as prestações devidas desde a data da sentença que fixa a sua contribuição ou desde a data da entrada do pedido em Juízo?

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2.1.1. O Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores suporta as prestações devidas desde a data da sentença que fixa a sua contribuição ou desde a data da entrada do pedido em Juízo?

Os presentes autos tiveram o seu início no pedido de regulação do poder paternal deduzida por Artur Miguel Duarte Costa contra sua mulher Célia Cármen da Costa Borges, onde veio primeiramente a ser proferida em 10.05.06, a fls. 30 ss, decisão já transitada em julgado onde se determinou que os menores A....e B...., ficassem à guarda e cuidados da avó paterna, C...., a quem foi incumbido o exercício do poder paternal, e ainda que a progenitora, Célia Cármen da Costa Borges, contribuísse para o sustento dos menores com a pensão mensal global de € 80,00.

Por decisão de 08.05.07 (fls. 60) - na sequência do incidente deduzido a 12.02.08, a fls. 52 e seguintes -, foi declarada a situação de incumprimento por banda da progenitora da sua obrigação de prestar alimentos, tendo-se julgado em dívida todas as prestações vencidas.

Entendeu igualmente o Tribunal a quo verificadas as pertinentes diligências, estarem verificados os requisitos previstos no artº 1º da Lei 75/98 de 19 de Novembro e artsº 3º e 4º do DL 164/99 de 13 de Maio, pelo que se determinou que o pagamento dos alimentos devidos aos menores ficasse a cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.

Não se ficou por aqui o decidido; na verdade determinou-se que a prestação de alimentos devidos aos menores ficasse actualizada para € 100,00 relativamente a cada menor e que ficasse a cargo do Fundo o pagamento das prestações que se vençam a partir de Março de 2007.

Se o decidido quanto ao aumento do quantitativo das prestações não foi objecto de impugnação por parte do Fundo de Garantia, o mesmo já não poderá dizer-se do determinado judicialmente no tocante a prestações vencidas.

Vejamos:

O artigo 2º da Lei Fundamental refere que a Repú­blica Portuguesa é um Estado de direito demo­crático baseado na soberania popular, no pluralismo de expres­são e organização política democráticas, no res­peito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fun­damentais e na separação e interdependên­cia de pode­res, visando a realização da democracia eco­nómica, social e cultural e o aprofundamento da demo­cracia par­ticipa­tiva". Este princípio genérico é em seguida con­creti­zado nos artigos 63º nº 3 e 69º nº 2 da Constitui­ção da República onde é cometida ao Estado a protecção dos cidadãos no que toca à falta ou diminuição dos meios de subsistência assegu­rando nomeadamente especial protec­ção às crianças órfãs, abandonadas ou por qual­quer forma privadas de um ambiente familiar normal.

No desenvolvimento da ideia programática de Estado social, consagra a Constituição vários direitos dessa índole no título III, sob a epígrafe de Direitos e Deve­res económicos sociais e culturais; no elenco dos direitos e deveres sociais, ali se patenteia todo um conjunto de princípios ordenadores votado a uma cober­tura protectora daqueles direitos de que são exemplos as medidas a tomar no campo da saúde – artigo 64º, habitação e urbanismo – artigo 65º, ambiente e quali­dade de vida – 66º, famí­lia, paternidade e maternidade, infância, juventude e terceira idade – artigos 69º a 72º. No que toca a alimentos, nomeadamente devidos a menores (e que são objecto da nossa análise), esse direito aparece claramente consagrado no artigo 63º nº 2 e 69º nº 2 do Diploma Fundamental como uma obrigação do Estado em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência; existe nestes casos um direito origi­nário a prestações[1]; o Estado tem aqui o dever de criar os pressupostos mate­riais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos. Não se trata na verdade aqui de sugerir um objectivo; muito embora reconhecendo ao legislador ordinário liberdade na esco­lha de meios com vista à realização do programa social neste domínio, a Constituição compromete os poderes públicos na consecu­ção dos seus objectivos, mau grado considerando os con­dicionalismos econó­micos que rodeiam a respectiva con­cretização[2]. A ausên­cia de legislação neste domínio é mesmo susceptível de enqua­drar "incons­titucionalidade por omissão". Na verdade e nos termos do preceituado no artigo 293º da CRP "o Tribunal Cons­titu­cional aprecia e verifica o não cumprimento da Consti­tuição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exe­quíveis as normas constitu­cionais.

2. Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente".

A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a inten­ção programática fixada na Lei Fundamental.

Do artigo 1º da referida Lei ressalta a função pri­mária do Fundo i.e. de suprir as necessidades do menor quando não for possível obter alimentos da pessoa judicialmente obrigada a tal pelas formas a que alude o artigo 187º do DL 314/78 de 27 de Outubro e o menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional; Por seu turno, o DL 164/99 de 13 de Maio, veio no artigo 3º nº 1 alínea a), a acrescentar um outro pressuposto da intervenção estadual "não benefi­ciar [o menor] de rendimentos de outrem a cuja guarda se encon­tre, superiores ao salário mínimo nacional". Exige-se ainda para que o Fundo intervenha, a falta de pagamento voluntário e que tenham resultado infrutífe­ros os esforços envidados para obter o pagamento, no âmbito de um processo de incumprimento a que alude o artigo 189º da Organização Tutelar de Menores.

À semelhança do que sucede nos ordenamentos jurídi­cos europeus congéneres e nomeadamente o alemão, como frisámos, também a lei veio subrogar o Fundo no lugar em todos os direitos do menor a quem sejam atri­buídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso.

A questão que nos ocupa não vem expressamente regu­lamentada em qualquer dos Diplomas que regulam a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menor, pelo que não é possível recolher através do ele­mento literal da Lei nº 75/98 de 19 de Novembro ou do DL nº 164/99 de 13 de Maio, a solução que se pretende; tal só será viável através da interpretação teleológica das normas em causa com inserção no sistema de que fazem parte.

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Em abono da sua tese, sustenta o agravante nunca ter sido intenção do Legislador suprir as prestações em dívida do devedor relapso. O pagamento destas pelo Fundo de Garantia, para além de se tornar um encargo insustentável para aquele, seria ainda nocivo sob o ponto de vista social, pois só incentivaria o incumpri­mento por parte dos devedores relapsos.

Em nosso entendimento não colhem as considerações do agravante nesta parte. Em parte alguma da Lei se pode inferir que o Legislador pretendeu consagrar tal entendimento; nomeadamente tal não se deduz, ao contrá­rio do que o agravante sustenta, do artigo 4º do DL nº 164/99 de 13 de Maio, ao estatuir de "o Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal". Na verdade, o facto de a enti­dade iniciar o pagamento numa determinada data, não sig­nifica necessariamente que o mesmo se reporte apenas a prestações futuras, já que suporta perfeitamente que na respectiva interpretação nos orientemos pelo dis­posto no "lugar paralelo" a que se reporta o artigo 2006º do Código Civil; "Os alimentos são devidos desde a propo­sição da acção ou, estando já fixados pelo tri­bunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se consti­tuiu em mora, sem prejuízo no disposto no artigo 2 273º". É bem certo que o paralelismo de situa­ções não é total, desde logo devido à natureza da intervenção do Fundo de Garantia, cuja obrigação não está, como temos vindo a decidir ao abordar esta temá­tica[3], necessaria­mente dependente da do primitivo obri­gado. E é precisa­mente esta relativa independência de obrigações e par­tindo para já do estatuído no citado normativo legal que nos permite desde logo concluir que ao caso que apreciamos não é aplicável a 2ª parte do normativo supracitado. Concretizando, não compete ao Fundo asse­gurar as prestações que antes da propositura da acção eventualmente estejam em dívida. A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo atra­vés do requeri­mento que vai desencadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pre­tende adequada a colmatar as necessida­des do menor em montante que se bem que tendencialmente equivalente à do obrigado, não está em princípio limi­tada pela mesma. Na verdade é sobre a factualidade exposta no requeri­mento que vai incidir primordialmente o inquérito a que alude o artigo 4º do DL 164/99, sendo certo que o Fundo não tem nem pode ocupar-se de neces­sidades e faltas ocorridas anteriormente à sua solici­tação, as quais têm de presumir-se superadas. Caso assim não fosse, teriam cabimento as objecções opostas pelo CRSS por via do presente agravo. Seria na verdade incomportável para o Estado colmatar carências pretéri­tas do menor, bem como pedagogicamente inadequado subs­tituir o originário obrigado a alimentos no seu inalie­nável dever de prover ao sustento e educação do menor a seu cargo. Tal incen­tivaria o desleixo do obrigado, sabendo o mesmo a priori que o Estado supriria as suas faltas. Só que ao contrário do que o agravante pretende fazer crer, o caso em análise não pode subsumir-se ao que acima refe­rimos; trata-se tão só de ponderar o pagamento de retroactivos reportados à data do pedido de intervenção do Fundo de Garantia, os quais visam colmatar uma necessidade actual e cujos fundamentos se pretende que sejam de averiguação célere.

Nesta conformidade haverá que alterar parcialmente o decidido determinando que as prestações sejam devidas apenas a partir do momento em que o Fundo foi chamado a intervir no processo ou seja 9 de Maio de 2008 solução que corresponde de certa forma à data da propositura de uma acção autónoma contra o Fundo de Garantia de Alimentos.

Pode pelo exposto concluir-se o seguinte:

1) A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a inten­ção programática fixada nos artigos 2º, 63º nº 3 e 69º nº 2 da Lei Fundamental quanto à efectiva protecção de crianças em situação de carência.

2) Em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência por parte de um menor, o Estado tem o dever de criar os pressupostos materiais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos.

3) A criação do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores insere-se no escopo de concretização na prática do imperativo constitucional nesta matéria.

4) A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo através do requerimento que vai desen­cadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pretende adequada a col­matar as necessidades do menor.

5) O facto de o artigo 4º do DL nº 164/99 de 13 de Maio estatuir de "o Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribu­nal, suporta perfeitamente que na respectiva interpre­tação nos orientemos pelo disposto no "lugar para­lelo" a que se reporta o artigo 2006º do Código Civil, no sentido de que os alimentos são devidos desde a pro­po­situra da acção ou estando já fixados pelo Tribunal, desde que o devedor se constituiu em mora.

6) Nesta conformidade o pagamento das prestações ali­mentares por parte do Fundo de Garantia muito embora só se inicie com a notificação da decisão do Tribunal, reporta-se ao momento em que foi formulado o pedido visando conseguir aquele Apoio.

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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em conceder parcial provimento ao agravo e revogando nessa medida a decisão de fls. 101 determina-se o pagamento a cargo do fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores das prestações que se venceram apenas a partir de Maio de 2008.


         [1] Cfr. implicações do direito originário a prestações in Gomes Canotilho "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", Almedina, Coimbra 5ª Edição pags. 473 ss.
      [2] O direito a uma vida digna não se encontra constitucionalmente contemplado em todos os ordenamentos jurídicos; assim em Espanha este direito só indirectamente se reconhece; sirva de exemplo também naquele País o reconhecimento do direito ao trabalho, de onde, no dizer de Jordi Ribot Igualada o direito que apreciamos se pode inferir – cfr. A. citado "Alimentos entre Parientes e Subsidiariedade de la Proteccion Social" Tirant lo Blanch 1999, pags. 21 ss. No que concerne à Alemanha, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado mesmo na ausência de lei específica sobre a constitucionalidade daquele direito; Apud Ribot Igualada ob. cit pags. 22. Na senda desta tomada de posição somos em crer que no que toca aos alimentos concernentes a menores face ao Estado, o respectivo direito poderá até do artigo 6º nsº 1 e 4º da Constituição Alemã, onde se refere expressamente que "Ehe und Familie stehen unter dem besonderen Schutze der staatlichen Ordnung" e "Den unehelichen Kindern sind durch die Gesetzgebung die gleichen Bedingungen für ihre leibliche und seelische Entwicklung und ihre Stellung in der Gesellschaft zu schaffen wie den ehelichen Kindern"
      [3] Cfr. o nosso Ac. desta Relação de 05-03-2002 (R. 3431/01) in Col. de Jur., 2002, 2, 5.