Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
996/21.9T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: BALDIOS
EMBARGO DE OBRA NOVA
LEGITIMIDADE
ACÇÃO POPULAR
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º, N.º 1 E 397.º, AMBOS DO CPC, E ARTIGO 29.º DA LEI DOS BALDIOS (LEI N.º 75/2017, DE 17-08).
Sumário: I – Uma Associação para o Desenvolvimento Local não tem legitimidade para embargar obras realizadas em terrenos baldios.

II – Não são pertinentes para fundamentar a legitimidade da Associação para requerer a ratificação judicial de embargo de obra nova em terrenos baldios as figuras da acção popular e de defesa de interesses difusos.

Decisão Texto Integral:









Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

                                     

            I – Relatório ([1])

A “Associação S..., Associação de Desenvolvimento Local”, com os sinais dos autos,

intentou autos de procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova contra

A..., S. A.”, também com os sinais dos autos,

 e, subsidariamente, contra qualquer entidade singular ou coletiva que se encontre a executar a obra descrita nos autos,

pedindo:

a) A ratificação judicial do embargo extrajudicial de obra nova efetuado pela Requerente;

b) Caso assim não se entenda, seja ordenada a suspensão imediata das referidas obras;

c) Em qualquer caso, sendo a Requerente dispensada da propositura da ação principal (inversão do contencioso).

Alegou, para tanto, que:

- no dia 28/07/2021, o Presidente da Requerente deparou-se, no denominado “campo de futebol”, sito no ..., com a realização de obras pela Requerida, tratando-se da preparação de uma caixa quadrada, de 7m por 7m, num total de 49m2, com a altura aproximada de 25cm/30cm, para uma sapata em betão e instalação de diversas tubarias, trabalho que foi finalizado já depois do embargo extrajudicial da obra, obra essa destinada à instalação de uma antena de transmissão (rede “M...”);

- parte daquela sapata invadiu o terreno do campo de futebol da aldeia, impedindo o seu aproveitamento como terreno de jogo, o que inviabiliza a finalidade a que o campo se encontra afeto;

- o espaço em causa é, e sempre foi, um lugar de prática lúdica, cultural e desportiva, servindo os habitantes da aldeia, que lhe deram tal uso público, não tendo havido qualquer aceitação por parte dos residentes da aldeia relativamente à diminuição de tal recinto desportivo, estando a obra a ser executada sobre um património histórico e comunitário da aldeia de ...;

- em 30/07/2021, o responsável pela obra no local foi notificado para suspender de imediato os trabalhos, por tal obra se encontrar sobre um património histórico e comunitário daquela aldeia, lesando irremediavelmente o espaço e inviabilizando o seu uso para os fins a que sempre esteve afeto;

- a Requerente tem legitimidade processual – encontra-se legalmente constituída desde 2014, tendo por objeto a defesa e recuperação do património da aldeia –, tendo em conta o bem jurídico tutelado pela presente ação (património comunitário), com aplicação do regime dos baldios – assistindo à Requerente o direito de intervir –, o qual concede aos compartes a posse correspondente às faculdades de uso e fruição.

A Requerida deduziu oposição, concluindo, finalmente, pela sua absolvição da instância ou pela total improcedência do procedimento e alegando, em síntese:

- a sua ilegitimidade passiva, por ser a “M..., S. A.” (e não tal Requerida) a proprietária da infraestrutura de telecomunicações em causa nos autos, visando a obra discutida reforçar o serviço básico de telecomunicações naquela área, mediante a construção/instalação de estação de rede móvel;

- ter sido apresentado projeto respetivo à Câmara Municipal ..., a qual o aprovou, tendo sido celebrado com a proprietária do espaço – Junta de Freguesia ... – contrato de arrendamento, a que corresponde uma renda mensal de € 150,00, pelo período de 20 anos;

- ter aquela Junta de Freguesia autorizado, de forma pacífica, a situação, não sendo aqui invocável a legislação dos baldios, visto não se tratar de terreno possuído ou gerido por comunidade local.

Tendo sido suscitada pelo Tribunal a exceção de ilegitimidade ativa para a presente providência, com conceção às partes de prazo para se pronunciarem a respeito – o que estas fizeram (mantendo as suas posições anteriores) –, foi seguidamente proferida decisão, julgando verificada a exceção de ilegitimidade ativa para o procedimento cautelar, com a consequente absolvição da Requerida da instância.

Recorre a Requerente, apresentando alegação, onde formula as seguintes

Conclusões ([2]):

«1.ª O Tribunal a quo deu como provado o seguinte: “Alega a requerente que a mesma goza de um direito real de baldio, pelo que lhe assiste o direito de intentar a presente providência”

2.ª A Recorrente nunca consignou nos seus articulados tal afirmação, nem o poderia fazer, no sentido da apropriação de um qualquer direito.

3.ª O Tribunal a quo estribou a sua apreciação tal como de um titular de um qualquer direito real (de gozo), pessoal ou mesmo possessório se tratasse.

4.ª Foi este o erro “capital” do tribunal a quo que depois inquinou todo o restante raciocínio e decisão: não estamos perante o dito “paradigma” tradicional da parte do Requerente, mas antes perante um conceito alargado/abrangente da própria legitimidade que expressamente a lei concede à Autora.

5.ª A Requerente/ora Apelante é a voz, na qualidade de actor popular, de uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros, de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais.

6.ª A Apelante sempre afirmou nas suas peças processuais foi que o Campo da Bola era património da comunidade sobralense, onde a recorrente se encontra integrada.

7.ª E por assim ser, se achava e acha no direito de, na defesa desse património comunitário, ofendido pela obra da Ré, se sentir legitimada a poder intervir, ao abrigo da lei de acção popular, para defesa de interesses difusos, como amplamente vem sendo reconhecido por jurisprudência firme dos nossos tribunais superiores, tendo juntado acórdãos sufragando tal tese, que desconsiderada na sentença recorrida.

8.ª Por via da melhor interpretação jurisprudencial de todo o edifício normativo que rege esta matéria, a Requerente goza de total legitimidade para o presente Procedimento, uma vez que faz parte da comunidade de interesses visados e consagra nos seus Estatutos a defesa de todo o património de interesse comunitário na área da aldeia.

9.ª As considerações sobre a personalidade jurídica e a capacidade judiciária que o Tribunal a quo teceu na sentença recorrida são apenas aplicáveis no caso de estarem constituídos os órgãos dos baldios, o que não é o caso dos autos, pelo que se lhe não pode aplicar o regime invocado pela Meritíssima Juiz, mas sim o regime especial previsto nos números 9 e 10, do art.º 6.º da Lei dos Baldios, assistindo, assim, legitimidade à Apelante.

10.ª A sentença enveredou temerariamente pela análise de questões materiais, a partir de uma leitura errada do alegado pela Recorrida, sem qualquer instrução mínima da causa, sem ter assegurado o contraditório à Apelante e, pior, com base numa situação ilegal, claramente proibida pela Lei dos Baldios, denunciada, em tempo, pela Apelante.

11.ª Fê-lo, nomeadamente, quando atribuiu à Apelante uma alegação – a invocação de um direito real de gozo – que esta nunca produziu, tecendo considerações sobre um facto inexistente.

12.ª Repetiu-o, quando alargou a sua análise e interpretação a questões materiais – “Dos factos trazidos a estes autos urge, sem mais, concluir que a requerente não é sujeita da relação material subjacente à presente providência.”.

13.ª Tudo isto, ultrapassado o lado meramente formal da Ilegitimidade que se tinha proposto apreciar e mergulhando na análise de questões materiais, prescindindo de qualquer instrução mínima, sem conceder o contraditório à Apelante, desatendendo à sinalização por esta da precaridade dos documentos juntos pela Recorrida.

14.ª Assim, nesta medida, a sentença violou claramente e o disposto na Lei 83/96, de 31 de Agosto, nomeadamente os seus artigos 2.º e 3.º; violou ostensivamente as normas constante dos artigos 2.º, alínea a) ponto i) e art.º 6.º, n.º 3, da Lei 75/2017, de 17 de Junho; e violou, ainda, as normas constante dos artigos 3.º, 4.º e 615.º do CPC, n.º 1, nomeadamente alíneas b), c) e d).

15.ª Ferindo de NULIDADE a sentença ora recorrida.

Nestes termos, e nos demais de Direito que Vossas Excelências não deixarão de doutamente suprir, deve ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação, sendo revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, e mantida, na íntegra, a providência cautelar nos termos em que está estruturada, seguindo a respectiva tramitação em sede de 1.ª instância até final, com todas as demais consequências legais, como é de Direito e Sã Justiça.».

Não se mostra junta contra-alegação recursiva.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, motivo pelo qual ocorreu remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde resulta mantido o regime recursivo.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir quanto ao objeto do mesmo.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, está em causa na presente apelação saber ([3]):

a) Se ocorre causa de nulidade da sentença (conclusão 15.ª);

b) Se foi violado o princípio do contraditório (conclusões 10.ª e 13.ª);

c) Se estamos perante invocado terreno baldio, a que seja aplicável a legislação dos baldios, e decorrente legitimidade processual ativa (conclusão 9.ª);

d) Se assiste à Recorrente legitimidade ativa no quadro da ação popular e dos interesses difusos (conclusão 7.ª).

III – Fundamentação

         A) Materialidade e dinâmica processual a considerar

Na 1.ª instância não foi elencada uma parte fáctica da decisão – onde fosse julgada como sumariamente apurada qualquer matéria de facto –, sendo, então, que a materialidade e dinâmica processual a considerar para decisão do recurso são as que constam do antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

B) Da nulidade da sentença

Como visto, a Apelante invoca a existência de nulidade da sentença (conclusão 15.ª), sem, porém, especificar, no acervo conclusivo, a qual das causas de nulidade, dentre as previstas nas diversas al.ªs do art.º 615.º, n.º 1, do NCPCiv., se pretende reportar.

Porém, cabia-lhe mostrar onde se encontra consubstanciado algum vício gerador de nulidade, o que devia ser feito nas conclusões da apelação, já que são estas que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv..

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe ao recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

Mas a impugnante, na sua conclusão 13.ª, parece pretender – de algum modo – aludir ao vício de excesso de pronúncia, previsto na al.ª d) do n.º 1 do mencionado art.º 615.º, traduzido em o juiz conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento.

E, atentando na antecedente alegação recursiva, nota-se que a Recorrente refere (ponto 57) que o Tribunal «tomou conhecimento de questões que não podia conhecer», tratando-se, então, do seguinte:

«i) Decidiu de matéria que não havia suscitado previamente, impedindo o exercício cabal do contraditório (v.g. considerações sobre personalidade e capacidade judiciária) e fixou «factos» admitindo por boa a prova apresentada pela Ré, que foi impugnada em sede própria, sem permitir que a Autora beneficiasse de igual faculdade - cf. arts. 3.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.

ii) Atribuiu à Recorrente uma alegação – a invocação de um direito real de gozo – que esta nunca produziu, tecendo considerações sobre um facto inexistente;

iii) Alargou a sua análise e interpretação a questões materiais em momento inoportuno – “Dos factos trazidos a estes autos urge, sem mais, concluir que a requerente não é sujeita da relação material subjacente à presente providência.” – cfr. fls 05 da Sentença em crise.».

O que a Apelante parece pretender sintetizar na dita conclusão 13.ª (com reporte à 12.ª), ao mencionar que foi «ultrapassado o lado meramente formal da Ilegitimidade que se tinha proposto apreciar e mergulhando na análise de questões materiais», como a análise, interpretação e conclusão de «que a requerente não é sujeita da relação material subjacente à presente providência».

Vejamos, pois, se há excesso de pronúncia.

Na 2.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do NCPCiv. prescreve-se que não pode o juiz ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, questões essas que, naturalmente, deverá apreciar, a não ser que devam ter-se por prejudicadas.

Vem sendo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência o de que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda” ([5]).

E, segundo Alberto dos Reis, “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” ([6]).

Ora, no caso dos autos a Apelante pretende que o vício cometido – excesso de pronúncia – consistiu em se ter ultrapassado a questão da ilegitimidade processual ativa (aquela que o Tribunal se havia proposto conhecer), para se entrar em questões materiais, como a da atribuição à Recorrente da alegação/invocação de um direito real de gozo, por esta nunca invocado, ou a da conclusão no sentido de a impugnante não ser sujeito da relação material subjacente.

Ora, lida a decisão recorrida, constata-se que nesta se apreciou e julgou sobre a questão da ilegitimidade processual ativa, exceção que foi julgada procedente, com a resultante absolvição da Requerida da instância cautelar, tudo, pois, no plano formal dos pressupostos processuais.

Donde que não coubesse na economia de uma tal decisão entrar no conhecimento de questões de fundo (as referentes ao mérito da causa), já que o perímetro da decisão a proferir estava circunscrito à exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa.

Vista a fundamentação jurídica da decisão, nota-se que o Tribunal recorrido começou por enquadrar a matéria em questão, partindo da lei (art.º 397.º do NCPCiv.) para explicitar os pressupostos do procedimento cautelar dos autos (no plano teórico), tudo como introdução à questão – que apreciou de seguida – da dita ilegitimidade processual.

Com este proceder, óbvio parece que não se conheceu de qualquer outra questão – em sentido técnico – para além da dita ilegitimidade processual.

Entrando, depois, na questão da dita (i)legitimidade, afirmou o Tribunal que a Requerente alegou ter um direito real de baldio, por isso lhe assistindo o direito de intentar o procedimento cautelar, sendo, porém, de concluir que «não é sujeita da relação material subjacente à presente providência».

Ora, se aquela afirmação de ter sido alegado um tal direito real de baldio for errónea – por tal não ter sido alegado –, do que se trata é de um erro de interpretação do Tribunal (quanto a um dos articulados), que poderá, eventualmente, levar a um erro de julgamento, mas nunca se traduzindo, enquanto tal, no conhecimento de uma questão em sentido técnico.

Por outro lado, o afirmar-se que «não é sujeita da relação material subjacente à presente providência» reporta-se à análise do pressuposto processual da legitimidade (ou exceção dilatória de ilegitimidade), à luz do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do NCPCiv., que alude expressamente aos “sujeitos da relação controvertida”, que outra coisa não é que a relação material/conflitual subjacente.

Donde que também aqui não se tenha extravasado o âmbito da matéria/questão da ilegitimidade processual ativa.

E, se dúvidas ainda houvesse, bastaria continuar a ler a fundamentação jurídica daquela decisão, onde se salientou, seguidamente, que o imóvel em causa se encontra matricialmente inscrito e com descrição registal a favor da Freguesia de ..., a qual, por contrato celebrado, o deu de arrendamento, quanto a parte determinada, à «M..., S. A.», pelo que a ora Requerente não é proprietária do imóvel, nem sobre ele tem qualquer direito real ou pessoal de gozo, nem sequer um «direito real de baldio», sendo que as coisas do domínio público não são suscetíveis de posse por outrem (particulares), ao que acresce que não se trata de terreno baldio e, se o fosse, teriam de ser os órgãos legais (assembleia de compartes e respetivo conselho diretivo) dos baldios (não a Requerente) a ter a competência para recorrer a juízo na defesa dos direitos e interesses legalmente confiados.

A título meramente subsidiário e complementar, entendeu-se ainda que este procedimento cautelar não seria adequado à tutela do interesse visado pela Requerente, sendo, ademais, que o dispositivo da decisão não deixa dúvidas quanto ao que efetivamente foi apreciado e decidido: a questão da «exceção de ilegitimidade ativa» e decorrente absolvição da instância.

Donde que não possa ter-se como verificado o vício de excesso de pronúncia, improcedendo, por isso, a invocada nulidade da decisão em crise.

B) Da violação do princípio do contraditório

Sabido já que a matéria/questão decidida foi a da exceção de ilegitimidade ativa e decorrente absolvição da instância, importa agora saber se foi violado – pelo Tribunal a quo, nesse enquadramento – o princípio do contraditório (conclusões 10.ª e 13.ª).

Ora, percorrido o processado dos autos, constata-se que, em despacho datado de 07/09/2021 ([7]), foi assim exarado:

«Face ao disposto no artigo 397º, do Código de Processo Civil, à alegação da requerida e aos documentos juntos por esta com a oposição, cumpre, quanto a nós, suscitar a exceção de ilegitimidade ativa da requerente para a presente providência, exceção essa que, não obstante não tenha sido expressamente invocada pela requerida, nos propomos conhecer, em virtude de a mesma ser de conhecimento oficioso.

Assim, concedo a ambas as partes o prazo de 10 dias para se pronunciarem, querendo, quando à referida exceção de ilegitimidade ativa da requerente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº3, do Código de Processo Civil.

Notifique para o efeito.» (itálico aditado).

Despacho este de que foram notificados, pelo modo legal, os Exm.ºs Mandatários Judiciais das partes, também, pois, o da Requerente/Recorrente, que exerceu o contraditório, pronunciando-se através de peça processual datada de 17/09/2021.

Donde que não tenha sido, nesta perspetiva – e salvo o devido respeito –, violado o princípio do contraditório, improcedendo a argumentação da Apelante em contrário.

C) Da invocação de existência de baldio, com sujeição à legislação dos baldios, e da legitimidade processual

Na decisão em crise foi considerado – atendendo, após exercício do contraditório, à documentação junta (caderneta predial e certidão registal), com inscrição registal de aquisição e decorrente presunção dominial – que estamos perante imóvel pertença de determinada freguesia, sendo esta a sua proprietária exclusiva, quadro que foi visto como afastando a qualificação como baldio (a Requerente referia-se, na petição, a «património comunitário», invocando a legislação que rege em matéria de baldios).

Ora, a Recorrente vem esgrimir que as considerações que o Tribunal a quo teceu na decisão impugnada – sobre a sua personalidade jurídica e capacidade judiciária (para a hipótese de haver baldio) – apenas seriam aplicáveis no caso de estarem constituídos os órgãos dos baldios, o que não é o caso dos autos, pelo que se lhe não pode aplicar o regime a que alude o Tribunal, mas sim o regime especial previsto nos n.ºs 9 e 10, do art.º 6.º da Lei dos Baldios, assistindo, por isso, legitimidade à Apelante.

É líquido que, na sua petição (art.º 25.º), a Requerente se referiu ao espaço em causa como oferecido «em tempos imemoriais, seguramente há mais de 70 ou 80 anos, para tal efeito [campo de futebol], pelos proprietários para o fim comunitário designado – atividade desportiva – e tem vindo a servir tal propósito, ao longo desse tempo, sem qualquer interrupção ou intermitência». Invocou tratar-se de lugar que é e sempre foi «de prática lúdica, cultural e desportiva (…) por parte dos habitantes da aldeia que lhe deram tal uso público» (art.º 33.º da petição), agindo sempre aqueles «na plena convicção de que o fazem no exercício de um direito que lhes assiste, como habitantes da aldeia» (art.º 34.º), atento o dito «fim comunitário» (art.º 38.º), em suma, um genuíno «espaço do domínio público de todos os sobralenses e não só» (art.º 41.º), um «património histórico e comunitário da Aldeia de ...» (art.ºs 45.º e 49.º), cumprindo «invocar o regime previsto no art. 2.º, al. a), i) e iv) da Lei n.º 75/2017, de 17 de Agosto (Lei dos Baldios)» (art.º 53.º), regime este que se aplica in casu (art.º 56.º).

Ora, assim vindo alegado, se é certo, por um lado, no âmbito legal, que a legitimidade ativa se afere perante o interesse direto em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação/procedimento, sendo, em regra, considerados titulares do interesse relevante os sujeitos da relação controvertida, tal como configurada pelo autor (art.º 30.º do NCPCiv.), também resulta claro, no quadro oferecido pela Requerente, que esta não deixa de remeter para a realidade dos baldios, cujo regime legal expressamente considera aplicável à situação decidenda.

Donde, a pertinência da análise – formulada em moldes meramente subsidiários – do Tribunal recorrido na sua aproximação à problemática dos baldios e inerente (i)legitimidade ativa, tudo à luz da dita relação controvertida, tal como configurada pelo autor.

Argumenta assim, neste horizonte, aquele Tribunal:

«(…) sempre teríamos de atentar no disposto no artigo 29º, nº1, alínea h), da Lei nº 75/2017, de 17 de agosto – Regime aplicável aos Baldios -, o qual prescreve que compete ao Conselho Diretivo recorrer a juízo e constituir mandatário para a defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio ou baldios.

Ora, como se decidiu no douto Acórdão do STJ, de 23/09/2010, in www.dgsi.pt:

(…)

I- Na estrutura organizativa dos baldios, o Conselho Diretivo é um órgão da comunidade dos compartes ou comunidade local para a administração dos baldios, cabendo-lhe funções executivas, nas quais se incluem as de recorrer a juízo em defesa dos direitos e interesses citados e de representar o universo dos compartes, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea i) do sobredito inciso legal. (…)

II- Desta forma, não é a personalidade judiciária que aqui está em causa, pois esta será sempre a da comunidade local erigida em Assembleia de Compartes, em cujo nome e interesse age o seu conselho diretivo, mas antes um problema de capacidade judiciária, pois tal comunidade de compartes só pode estar em juízo através dos seus órgãos, concretamente do Conselho Diretivo, a quem compete expressamente essa função «ex vi legis» como se viu. (…).

Daqui resulta que o Conselho Diretivo é um órgão da comunidade dos compartes ou comunidade local para a administração dos baldios, cabendo-lhe funções executivas, nas quais se incluem as de recorrer a juízo em defesa dos direitos e interesses citados e de representar o universo dos compartes.

Desta forma, a personalidade judiciária será sempre a da Comunidade Local erigida em Assembleia de Compartes, em cujo nome e interesse age o seu Conselho Diretivo.

Mas a comunidade de compartes só pode estar em juízo através dos seus órgãos, concretamente do Conselho Diretivo, a quem compete expressamente essa função.

A capacidade judiciária pertence, assim, ao Conselho Diretivo.

Pelo que, mesmo na linha de raciocínio da requerente, era ao Conselho Diretivo que caberia, em nome da comunidade, defender os interesses aqui tutelados por aquela.».

Contrapõe a Apelante que, no caso, não estão constituídos os órgãos dos baldios, pelo que o regime aplicável terá de ser o especial previsto nos n.ºs 9 e 10 do art.º 6.º da Lei dos Baldios, razão pela qual assiste legitimidade à Requerente.

Vejamos.

Aquele art.º 6.º refere-se a «Ónus, apropriação e apossamento» (de acordo com a epígrafe do preceito), prescrevendo assim os convocados n.ºs 9 e 10 respetivos:

«9 - A declaração de nulidade pode ser requerida:

a) Pelos órgãos da comunidade local ou por qualquer dos compartes;

b) Pelo Ministério Público;

c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou de parte dele;

d) Pelos cessionários do baldio.

10 - As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respetiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore.».

Ora, a aqui Requerente nem pretende, com o presente procedimento, aquela «declaração de nulidade» (quanto a quaisquer «Ónus, apropriação e apossamento»), nem a «restituição da posse do baldio». Não é isso que é pedido.

Donde que, salvo o devido respeito, vista a pretensão trazida a juízo (materializado no pedido e na respetiva causa de pedir), não possam estes enunciados legais fundamentar um juízo positivo sobre a legitimidade ativa, à luz da relação controvertida configurada pela Requerente.

Já o art.º 29.º (referente à “Competência do conselho diretivo”), no seu n.º 1, da Lei n.º 75/2017, de 17-08, dispõe assim:

«1 - Compete ao conselho diretivo:

a) Dar cumprimento e execução às deliberações da assembleia de compartes;

b) Elaborar a proposta da relação de compartes e a sua atualização anual a submeter à assembleia de compartes para que possa deliberar sobre ela até 31 de dezembro de cada ano;

c) Propor à assembleia de compartes os instrumentos de regulamentação e disciplina do exercício pelos compartes do uso e fruição dos imóveis comunitários, nomeadamente dos baldios, e respetivas alterações;

d) Propor à assembleia de compartes os planos de utilização dos recursos de imóvel comunitário e respetivas atualizações;

e) Elaborar e submeter anualmente e em tempo à aprovação da assembleia de compartes o plano de atividades, o relatório de atividades e as contas de cada exercício, bem como a proposta de aplicação das receitas;

f) Propor à assembleia de compartes ou emitir parecer sobre propostas de alienação ou cessão de exploração de direitos sobre baldios, nos termos da presente lei;

g) Propor à assembleia de compartes ou emitir parecer sobre propostas de delegação de poderes de administração, nos termos da presente lei;

h) Em caso de urgência, recorrer a juízo e constituir mandatário para defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio ou baldios e submeter estes atos a ratificação da assembleia de compartes;

i) Representar o universo dos compartes nas relações com entidades públicas e privadas, sem prejuízo dos poderes da mesa da assembleia de compartes;

j) Exercer em geral todos os atos de administração do baldio ou baldios por compartes, incluindo em associação com o Estado, no respeito da lei, dos usos e costumes e dos regulamentos aplicáveis;

k) Zelar pelo cumprimento dos regulamentos e dos planos de utilização dos recursos do baldio;

l) Zelar pela defesa dos valores ecológicos e pelo cumprimento das regras legais e regulamentares relativas à proteção da floresta no espaço do baldio;

m) Promover a inscrição dos imóveis comunitários na matriz e a sua atualização;

n) Exercer as demais competências decorrentes da lei, usos, costumes, regulamentos ou contratos;

o) Propor ao presidente da mesa da assembleia de compartes a sua convocação.» (destaques aditados).

Assim sendo, a tratar-se de um baldio, o recurso a juízo (e constituição de mandatário) para defesa de direitos ou interesses da comunidade relativos ao terreno baldio, cabia ao respetivo conselho diretivo, a dever depois submeter estes atos a ratificação da assembleia de compartes.

Aqui radicava, então, a legitimidade ativa em relação ao baldio, com exclusão de outrem.

Porém, invocando agora a Requerente/Recorrente que estes órgãos não se encontravam constituídos, é líquido dispor o art.º 47.º da mesma Lei (sob a epígrafe «Efetivação da devolução dos baldios aos compartes») assim:

«1 - Nos casos em que não tenha sido efetivada a devolução dos baldios referidos no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 39/76, de 19 de janeiro, relativamente aos quais a lei prevê a devolução ao uso, fruição e administração dos respetivos compartes, aquela é efetivada logo que constituída a respetiva assembleia de compartes, que toma a iniciativa de a promover sem necessidade de outras formalidades.

2 - Para efeitos do número anterior, a assembleia de compartes comunica à entidade competente que pretende exercer os direitos previstos no número anterior» (destaques aditados).

Quer dizer, bastaria constituir, em qualquer altura (a todo o tempo), a assembleia de compartes ([8]), que poderia, desde logo, desencadear todo o restante procedimento – de harmonia com o prescrito no art.º 28.º, n.º 1, o conselho diretivo é composto, em número ímpar, por um mínimo de três e um máximo de cinco compartes, eleitos pela assembleia de compartes ([9]).

Doutro modo, não pode ter-se como demonstrada a legitimidade da aqui Requerente/Apelante para recorrer a juízo em representação da comunidade dos compartes respetivos, para o que não estava mandatada, nem logra colher legitimidade do texto da lei aplicável aos baldios.

Donde que não possa proceder, nesta perspetiva, a argumentação da Recorrente, naufragando as suas conclusões em contrário.

D) Da legitimidade ativa no quadro da ação popular e dos interesses difusos

Por outro lado, esta configuração da pretensão da Requerente (mediante causa de pedir e pedido, por si escolhidos e enunciados), assente no regime dos baldios, à luz da qual tem de afastar-se a sua legitimidade processual ativa, deixa prejudicada a invocação de outras alternativas fontes de legitimidade, como a invocada «lei de ação popular, para defesa de interesses difusos» (conclusão 7.ª).

Com efeito, se o autor invoca, para necessária aferição da legitimidade processual ativa (com submissão aos termos em que a lei processual define os critérios de legitimidade), uma relação controvertida que tem na sua base um invocado espaço baldio, que urge defender, enquanto tal, não se justifica, a nosso ver, a convocação do regime legal da «ação popular, para defesa de interesses difusos», posto serem díspares – não assimiláveis e sem relação de consunção ou alternativa – os interesses em presença num e noutro caso.

Isto é, se a relação controvertida se reporta – como alegado ao longo da petição – a um terreno baldio, que urge defender, com os inerentes interesses dos compartes (elementos da comunidade local), não faz sentido convocar, para ilustração da legitimidade processual ativa, a ação popular e os interesses difusos.

Como salientado pela jurisprudência do STJ ([10]):

«Os interesses difusos encontram-se dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a cada a todos a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra-individual uma característica essencial desses interesses.

Os interesses difusos são indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares.

São interesses de uma classe ou de um grupo, ou seja, de um conjunto de pessoas que podem satisfazer uma necessidade através da apropriação de um mesmo bem e é por isso que se pode falar também de interesses difusos de consumidores.

(…)

Na ação popular procura-se a tutela de um interesse difuso, assim como os correspondentes interesses individuais homogéneos de todos os seus titulares.

(…)

Quando se trata de defender interesses difusos, o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual “qual tale” e a prossecução da finalidade visada com a sua previsão no ordenamento jurídico, por exemplo, a prevenção de uma agressão ambiental ou uma reação contra o uso de uma cláusula contratual ilegal.» (itálico aditado).

Ora, como já dito – e se reitera –, os baldios são terrenos com afetação exclusiva, em modo comunitário, à satisfação de necessidades privadas, pelos indivíduos (concretos) de determinada comunidade local ([11]), pertencendo, geração após geração, aos respetivos compartes, em regime de propriedade coletiva. Assim, não pertencem ao domínio público ou ao domínio privado do Estado ou das autarquias locais, não sendo o interesse público ou o interesse geral da população de uma autarquia local que cabe acautelar, mas aquela específica propriedade imemorial em modo comunitário (a favor de concretos compartes) ([12]).

Donde que a ação de defesa de um baldio – e dos interesses dos respetivos compartes – não possa configurar-se, salvo o devido respeito, como uma ação popular, nem os interesses ali implicados como difusos.

Falha, pois, também a esta luz, a pretendida legitimidade ativa, termos em que é de manter a decisão recorrida, ao concluir, sem violação das normas legais a que alude a Apelante, pela procedência da exceção dilatória de ilegitimidade da Requerente, com a decorrente absolvição da Requerida da instância.

Tem, assim, o recurso de improceder.

                                               *

IV – Síntese conclusiva (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

(…)

***

V – Decisão

Pelo exposto, improcedendo a apelação, decide-se manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pela Recorrente.                  

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 08/03/2022

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

                                     

Fernando Monteiro


([1]) Segue-se, no essencial, por economia de meios, o teor do relatório da decisão recorrida.
([2]) Cujo teor se deixa transcrito (com destaques retirados).
([3]) Cabendo a este Tribunal de recurso sindicar a decisão recorrida, confirmando-a ou, diversamente, anulando-a ou revogando-a, reapreciando os respetivos fundamentos, não caberia aqui pronúncia sobre matéria nova, que não fosse de conhecimento oficioso, nem quanto a questões que resultassem prejudicadas pela decisão das precedentes.
([4]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.

([5]) Cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., p. 57.
([6]) Vide Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143.
([7]) Despacho, logicamente, prévio à decisão recorrida, esta datada de 29/12/2021.
([8]) Nos termos do disposto no art.º 21.º, n.º 1, «A assembleia de compartes é constituída por todos os compartes constantes do caderno de recenseamento aprovado e anualmente atualizado, onde consta o nome e a residência de cada comparte», sabido ainda que, «Para o exercício dos atos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes imóveis, os compartes organizam-se em assembleia de compartes, bem como em conselho diretivo e em comissão de fiscalização eleitos por aquela, com as competências previstas na presente lei» (art.º 17.º, n.º 1).
([9]) Como entendido no Ac. TRC de 11/12/2018, Proc. 850/13.8TBLSA.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt (subscrito por este mesmo Coletivo de Desembargadores): «1.- Os baldios são terrenos com afetação exclusiva, em modo comunitário, à satisfação de necessidades privadas, pelos indivíduos de determinada comunidade local, que pode reduzir-se aos moradores de uma aldeia, pertencendo, geração após geração, aos respetivos compartes – mesmo que pouco numerosos –, em regime de propriedade coletiva. // 2.- Não pertencem, por isso, ao domínio público ou ao domínio privado do Estado ou das autarquias locais, não sendo o interesse público ou o interesse geral da população de uma autarquia local que cabe acautelar, mas aquela específica propriedade imemorial em modo comunitário».
([10]) Cfr., entre outros, o Ac. de 08/09/2016, Proc. 7617/15.7T8PRT.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos), em www.dgsi.pt.
([11]) Não, assim, uma certa classe ou categoria de sujeitos.
([12]) Vem sendo entendido pelo STJ:
«I- Na história dos baldios ecoa… a colisão entre duas formas de exploração da terra: pelo lado dos baldios, a tradicional utilização e fruição comunal da terra, …, inconciliável, por isso, com a ideia de domínio/propriedade, isto é, com um pretenso animus de exercício correspondente ao direito de propriedade; por outro lado, a exploração da terra através da sua racionamen por um qualquer sujeito de direito (privado ou público), acomodada ao modelo do direito civil geral, na linha do sistema geral dos direitos reais de tradição romanista, que veio a tornar-se predominante, mas cuja lógica os baldios desafiam abertamente.
(…)
III- O direito de baldio é um direito real que, embora esteja previsto em legislação avulsa (não no CC), não deixa de respeitar, como os demais direitos com essa natureza, o princípio da tipicidade e que tem um regime jurídico muito especifico, particularmente quanto ao respectivo conteúdo: (i) não abarca o gozo, de modo pleno e exclusivo, do direito de disposição do bem (área de terreno) sobre que incide, nem em vida nem por morte; (ii) caracteriza-se por proporcionar a cada elemento de um conjunto de pessoas (uma “comunidade local”), de acordo com as deliberações das assembleias de compartes e os usos e costumes (arts. 1.º e 5.º da Lei 68/93 ao caso aplicável), a posse correspondente (apenas) às faculdades de uso e fruição das utilidades propiciadas pelo baldio; (iii) o baldio, estando ‘fora do comércio jurídico’, é insusceptível de apropriação privada, quer pelos compartes individualmente considerados, quer pela estrutura da sua administração” – Cfr. o sumário do Ac. STJ de 24/10/2019, Proc. 850/13.8T8LSA.C1.S2 (Cons. Alexandre Reis), secundado pelo Ac. STJ de 08/04/2021, Proc. 69/11.2TBPPS.C1.S1 (Cons. Nuno Pinto Oliveira), ambos em www.dsgi.pt (com itálico aditado). E, como acrescentado na fundamentação jurídica daquele primeiro aresto: «O que releva para que se tenha por adquirida a constituição do direito de baldio sobre determinada área de terreno é que se possa asseverar que este, em geral, foi o logradouro comum historicamente usado, fruído e gerido apenas pelos habitantes de uma determinada comunidade local» (destaque aditado).