Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1229/08.9GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
ACUSAÇÃO DEFICIENTE
Data do Acordão: 06/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA-ÁGUEDA- JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º, 311º CPP, 86°, NO 1, AL. D) DA LEI N° 5/2006, DE 23/02
Sumário: 1. O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas.
2. É deficiente a acusação na qual se omite o facto de « o seu portador não justificar a sua posse».
Decisão Texto Integral: Em conferência na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
1 No juízo criminal de Águeda - Comarca do Baixo Vouga, no processo acima identificado, foi, a fls 44 sgs, proferido despacho judicial não admitindo a acusação do Ministério Publico contra o arguido ali indicado pela prática de um crime de detenção de arma proibida

2 O magistrado do Ministério Público na 1.ª instância recorre, concluindo deste modo :
A acusação proferida no âmbito dos presentes autos, e que imputa ao arguido a prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p pelo art. 86°, no 1, al. d) da Lei n° 5/2006, de 23/02 (actualmente com a redacção dada pela Lei n° 17/2009, de 06.05) encontra-se devidamente formulada de acordo com o disposto no art. 283°, n° 3 do Cód. Processo Penal.
Pese embora não conste na mesma a "fórmula sacramental" que o arguido não justificou a posse da arma em questão nos presentes autos, foram devidamente descritos os factos concludentes da tal falta de justificação , da posse de tal objecto.
Com efeito o arguido, ciente que estava que a posse de tal objecto não era lícita, escondeu o punhal debaixo do banco onde estava sentado no veículo que conduzia, pretendendo ocultar a posse de tal arma das autoridades policiais.
Atenta a natureza do punhal, cuja lâmina media 17,8 cms de comprimento de lâmina, se depreende facilmente que o arguido pretenderia utilizar o mesmo como arma letal de agressão, nenhum outra utilidade se vislumbrando para tal objecto.
Se o arguido, ouvido que foi no decurso do inquérito, tivesse justificado a posse da dita arma, não teria o Ministério Público proferido acusação contra o mesmo.
Não se pode deixar de reconhecer que, atenta a forma como a conduta do arguido está devidamente descrita na acusação, é possível estabelecer que o arguido não justificou a posse do punhal encontrado no seu veículo automóvel, estando assim devidamente preenchidos os elementos típicos do crime imputado ao arguido, designadamente "a falta de justificação de posse",

3- O Exmo PGA nesta Relação pronuncia-se pela procedência do recurso por da descrição dos facto de poder inferir a não justificação da posse da faca

4 - Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

5- O objecto do presente recurso, tal como vem definido nas conclusões do recurso traduz-se, em primeiro lugar, em saber se dos factos narrados na acusação publica constam todos os elementos constitutivos do crime ali imputado, ou pelo menos se da narrativa da acusação se podem inferir todos aqueles elementos
No que agora interessa, o despacho recorrido tem o seguinte teor, em resumo : « (...) constata-se ter o Ministério Público deduzido acusação contra o arguido S…, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a prática de factos que qualifica como crime de detenção de arma proibida, p.p pelo art.º 86.º, n.° 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, invocando que o arguido trazia consigo um punhal com 30 cms de comprimento, possuindo uma lâmina de 17,8 cms de comprimento, com cabo em material de plástico de cor preta, que lhe pertencia, agindo voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que o dito objecto, dadas as suas características, era particularmente perigoso e susceptível de ser utilizado como arma letal de agressão e de provocar lesões e mais conhecendo as características da arma, bem sabendo que a posse dela era proibida e punida por lei penal (...). Ou seja, para que a detenção ou porte de “outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida” a que alude a al. d), do n.º 1, do art.º 86.º, constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos: 1) Ausência de aplicação definida; 2) Capacidade para o uso como arma de agressão; 3) Falta de justificação para a posse. (...) da acusação nada se refere, desde logo, quanto à falta de justificação por parte do arguido para a posse da arma em causa, “falta de justificação para a posse” essa que constitui elemento típico do crime imputado ao arguido, pelo que, sendo os já descritos elementos típicos de verificação cumulativa, forçoso será concluir não constituírem crime os factos singelamente imputados ao arguido em sede da acusação deduzida nos autos. Pelo exposto, decide-se rejeitar a acusação, por a mesma ser manifestamente infundada, devendo proceder-se, oportunamente, ao arquivamento dos autos ».
É desde logo inquestionável que se o juiz que recebe uma acusação verifica que os factos ali narrados não integram a prática de qualquer crime ( parcial ou totalmente, com referência ao crime ou crimes acusados ), então pode e deve rejeitar a acusação, nos termos do art. 311.º-2 do CodProcPenal, que prescreve assim ( nesta parte a recente alteração do CodProcPenal não alterou a redacção do artigo citado ) : « 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; (...). 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: (...) d) Se os factos não constituírem crime ».
Porque, como diz o Ac. RPorto de 15-3-1991 ( CJ, XVI, tomo 2, 293), « Manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo flagrante injustiça e violência para o arguido a designação do julgamento » ( no mesmo sentido, entre outros, os acs. da mesma Relação, de 10 e de 31 de Outubro de 1990, ; BMJ, 400.º-736 ; Acs RPorto, de 29-4-1998, processo 9710973, de 5-3-1996, processo 9740012, de 17-1-1996, processo 9510977, de 6-2-1991, proc JTRP00002212, todos em www.dgsi.pt )
No caso dos autos, da acusação de fls 35-36, depois de se narrarem as circunstâncias relativas ao modo de posse, lugar, tempo e características do punhal que o arguido transportava, não consta que a posse de tal arma branca fosse injustificada. Apenas se diz ali que « ao aperceber-se da presença dos militares da GNR, escondeu o mesmo ( punhal ) debaixo do banco onde estava sentado, com vista a esconder a posse de tal arma(...) ».
Prescreve o artigo 86.º da art.º 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23.02 : « detenção de arma proibida . 1 -Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo (...) : d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse (...), é punido com uma pena de 2 a 10 anos de prisão (...) ».
Sendo no caso em apreço inquestionável e inquestionado que o punhal transportado pelo arguido se integra nesta previsão legal, é também inquestionado e inquestionável que a acusação omitiu a referência explicita à posse injustificada do punhal, isto é sem fazer referência ao facto de « o seu portador não justifique a sua posse». Ora, este requisito legal, para uma arma como aquela transportada pelo arguido, não é um mero elemento retórico, assim não disponível como uma mera fórmula mais ou menos utilizável de acordo com uma geometria variável, ou que se possa inferir de outros factos que não aludam à utilização efectiva ou potencial da arma ou instrumento. Das duas uma : ou a posse de tal arma tem uma aplicação e justificação concreta, e então não há crime, ou o seu portador não consegue justificar a posse, e assim há crime. São elementos constitutivos do tipo objectivo do crime em análise a detenção, uso e posse de armas proibidas fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes. O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas. Assim, parece claro que na omissão de uma referência clara a tal circunstância, de modo a que dela o arguido, para o exercício do seu direito de defesa, fique ciente, a acusação é deficiente, e cabe assim naquela previsão do art. 311.º do CodProcPenal.
E essa circunstância da posse não justificada não se infere de modo algum da acusação pública, tampouco do facto de o arguido ter escondido o punhal debaixo do banco do seu carro, porque esta acção pode ter várias explicações : receio, ignorância, precipitação, etc. Claro que nada impedia --- mas também nada impunha ---, que uma apreciação menos rigorosa da acusação em causa levasse a um recebimento da acusação, procedendo-se depois, na audiência de julgamento, a uma alteração não substancial dos factos, mas não foi essa a opção, e assim o recurso não pode proceder.

6- Decisão :
Pelos fundamentos expostos :
I- Nega-se provimento ao recurso, assim se mantendo o despacho recorrido

II- Sem custas.
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Tribunal da Relação de Coimbra, - -

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( PauloValério )

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( Frederico Cebola )