Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
793/06.1TAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: MEDIDA TUTELAR
Data do Acordão: 03/07/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 90º E 93º, DA LEI TUTELA EDUCATIVA ( L. N.º 166/99, DE 14/9)
Sumário: I- Não basta que um menor de 16 anos pratique um facto qualificado pela lei penal como crime para que lhe seja aplicada uma medida tutelar educativa. É necessário momento da aplicação da medida.

II- O juiz não pode deixar de receber o requerimento para abertura da fase jurisdicional do processo se os factos forem puníveis com pena de prisão de máximo superior a três anos.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra


Correm termos, na comarca de Aveiro, os autos de inquérito nº 793/06.1TAACB, findos os quais, o Mº Pº (fls 46 e 47) requereu a abertura da fase jurisdicional, nos termos do art 89 da Lei nº 166/99 de 14 de Setembro (Lei Tutelar Educativa).
Por despacho de fls 52 e 53, foi rejeitado o requerimento de abertura da fase jurisdicional ao abrigo do disposto no art 311º, nº 2 al a) e 3 do Cod processo Civil, aplicável “ex vi” do disposto no art 128, nº 1 da Lei Tutelar Educativa.

É deste despacho que recorre o Ministério Público, concluindo:
A – O menor A.... cometeu factos que integram a previsão do artº 272º, nº 1 al a) e nº 2 do CPenal;

B – O requerimento para abertura da fase jurisdicional contem factos suficientes que justificam a aplicação de uma medida tutelar;
C – Estava vedado ao Ministério Público e ao Juiz proceder ao arquivamento do inquérito – art 78º, nº 1, 87º e 93º, nº 1, al b) da LTE;

D – Firam violados os arts 1º, 93º, nº 1, al b) e 11º, nº 1 al a), da lei nº 166/99, de 14 de Setembro e art 311º do CPP;

E – A sentença é nula por falta de fundamentação legal – art 111º, al a), da lei nº 166/99, de 14 de Setembro;

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto apenas apôs o visto.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei nº 166/99, no artº 1 define o seu âmbito, estabelecendo que “ a prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com as disposições da presente lei”, para de seguida, no art 2º, estabelecer que as medidas tutelares educativas “...visam a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade” (nº 1) e que “as causas que excluem ou diminuem a ilicitude ou a culpa são consideradas para a avaliação da necessidade e da espécie de medida” (nº 2), definindo depois, nos arts 4º e segs, subordinadas ao princípio da legalidade, as medidas tutelares admissíveis e, enfim, prevendo-se mais além (art 23 be segs) e regulando-se expressamente a interactividade entre as penas e medidas tutelares a que, em simultâneo, o menor haja sido sujeito.

Por outro lado e no que concerne ao processo tutelar respectivo (art 41 e segs), um relance basta para descobrir a semelhança flagrante com o processo penal, respigando-se, como meros exemplos, a enumeração dos direitos do menor, nomeadamente a assistência por defensor (advogado ou estagiário), o procedimento de identificação do menor que segue as formalidades do processo penal, as figuras da detenção e do flagrante delito, a previsão de medidas cautelares, cujo paralelismo de regulamentação de imediato lembra a das medidas de coacção em processo penal, enfim e em geral, toda a estruturação do processo tutelar, também com uma fase de inquérito, com possibilidade de suspensão do processo e uma ulterior fase jurisdicional, processo a que, o diploma manda aplicar subsidiariamente as normas do Código do Processo Penal. (v. AcTRP de 1/6/05, Rec nº 00038120).

No entanto e apesar das semelhanças os fins da intervenção tutelar – educação do cidadão menor para o respeito pelas regras jurídicas mínimas da coexistência social e, nessa medida e com esses limites, protecção dos bens jurídicos essenciais da comunidade – não se identificam com os fins da intervenção penal – protecção dos bens jurídicos essenciais da comunidade através da cominação e execução de reacções punitivas. No processo tutelar funciona o interesse público na realização do interesse do menor. AcTRP de 5/1/05 rec nº 00037539).

Refere Anabela Miranda Rodrigues, na “Introdução” ao “Comentário da Lei Tutelar Educativa”, pg 20 e 21: “O modelo tutelar educativo de intervenção não tem que ver com concepções punitivas ou repressivas porque o elemento-chave do sistema é o princípio da necessidade. Pretende-se uma actuação minimalista e excepcional na área educativa, O que significa que, em casos de desnecessidade de “educação do menor para o direito”, apesar de comprovada a prática do facto, a resposta educativa não tem lugar, verificando-se tão-só a intervenção protectora, se se considerarem verificados os pressupostos desta intervenção.

O princípio da necessidade mostra que a intervenção educativa não pretende constituir um sucedâneo da intervenção punitiva e que é primacialmente ordenada ao interesse do menor: interesse fundado no seu direito às condições que lhe permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável, ainda que, para esse efeito, a prestação estadual implique uma compreensão de outros direitos que igualmente titula (direito à liberdade e à auto determinação pessoal).

Daqui decorre, desde logo, que a intervenção educativa não deve ter lugar se a prática do facto exprimir ainda uma atitude de congruência ou mesmo tão-só de não desrespeito pelos valores essenciais à vida em comunidade ou se se insere nos processos normais de desenvolvimento da personalidade, os quais incluem, dentro de limites razoáveis, a possibilidade de o menor testar a vigência das normas através da sua violação. Em termos práticos, isto significa que o simples cometimento de um facto qualificado pela lei como crime não conduzirá necessariamente, neste novo modelo, à aplicação de uma medida educativa”.

Mais adiante refere “...porque a intervenção educativa não visa a punição, ela só deve ocorrer quando a necessidade de correcção da personalidade subsistir no momento da aplicação da medida. Nos outros casos, a ausência de intervenção representa uma justificada prevalência do interesse do menor sobre a defesa de bens jurídicos e as expectativas da comunidade”.

Portanto, temos de concluir que não basta que um menor de 16 anos pratique um facto qualificado pela lei penal como crime para que lhe seja aplicada uma medida tutelar educativa. É necessário que exista e em concreto, uma necessidade de correcção da sua personalidade no momento da aplicação da medida.

Depois destas considerações de âmbito geral debrucemo-nos sobre a questões aqui em causa:

- Requisitos a que deve obedecer o requerimento para abertura da fase jurisdicional; se o processo deveria ter sido arquivado.

No caso vertente temos que o menor, A...., nasceu no dia 20/02/1993.

No dia 10/07/2006, cerca das 13 h 25 m, encontrava-se num anexo da sua residência (oficina) a fazer uma tocha para os escuteiros.
A dada altura teve necessidade de pegar fogo a um pequeno papel quadrangular, com as dimensões de cerca de 10 cm. Depois disso, o menor apagou o referido papel com os dedos.
De seguida e porque lhe pareceu que o papel se encontrava apagado, lançou-o no caixote do lixo.
Contudo, passados alguns instantes, gerou-se um incêndio que provocou a destruição de um compressor e de várias ferramentas pertencentes ao pai do menor.
O menor assumiu, imediatamente, a atitude que conduziu aos factos, pediu desculpas e tem procurado cooperar com os progenitores na realização de algumas tarefas na habitação, deixando os pais plenamente satisfeitos coma sua atitude.
O menor revela capacidade de inserção social e o funcionamento da sua personalidade exprime, globalmente, respeito pelos direitos dos outros e interiorização dos valores e regras de convivencialidade social.
O menor tem bom aproveitamento escolar.
O menor beneficia de enquadramento familiar estável, que revela compromisso com as regras e normas de vida em sociedade.
O Ministério Público requereu a abertura da fase jurisdicional.
Dispõe o art 90 da LTE:
O requerimento para abertura da fase jurisdicional contém:
a) A identificação do menor, seus pais, representantes legal ou quem tenha a sua guarda de facto;
b) A descrição dos factos, incluindo, quando possível, o lugar, o tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do menor;
c) A qualificação juridico-criminal dos factos;
d) A indicação de condutas anteriores, contemporâneas ou posteriores aos factos e das condições de inserção familiar, educativa e social que permitam avaliar da personalidade do menor e da necessidade da aplicação de medida tutelar;
e) A indicação da medida a aplicar ou das razões por que se torna desnecessária;
f) os meios de prova;
g) A data e a assinatura.

Debruçando-nos sobre o requerimento de abertura da fase jurisdicional temos de concluir que o mesmo e ao contrário do defendido pela Sra Juiz obedece a todos os requisitos exigidos por lei.
No artº 1º procede à identificação do menor e seus pais (al a) do art 90);
Nos arts 2º a 6ª procede á descrição dos factos (al b) do art 90);
No artº 7º procede á qualificação jurídico-criminal dos factos (al c) do art 90);
Nos arts 8º a 10º indica as condições de inserção familiar, educativa e social que permitem avaliar da personalidade do menor e da necessidade da aplicação de medida tutelar (al c) do art 90);
No final do requerimento consta a indicação da medida a aplicar, os meios de prova e a data e a assinatura (als e), f) g) do art 90).
Logo, a Sra juiz deveria ter recebido o requerimento para abertura da fase jurisdicional.
A Sra juiz entendeu que os factos apontam para a desnecessidade de aplicação tutelar pelo que o Mº Pº deveria ter arquivado o inquérito.
É verdade, que os factos apontam para a desnecessidade de aplicação de uma medida tutelar. Contudo, há que analisar a lei, actuando em conformidade com a mesma.
O Mº Pº arquiva o inquérito se concluir pela desnecessidade de aplicação de medida tutelar, sendo o facto qualificado como crime punível com pena de prisão de máximo não superior a três anos. Portanto, o Mº Pº só pode proceder ao encerramento do inquérito se concluir pela desnecessidade de aplicação de medida tutelar e desde que o facto qualificado como crime seja punível com pena de prisão inferior a três anos (artº 87 nº 1 al c) da LTE).
O Mº Pº e ao contrário do sugerido pela Sra Juiz só pode proceder ao arquivamento liminar do inquérito quando sendo o facto qualificado como crime punível com pena de prisão de máximo não superior a um ano, se revelar desnecessária a aplicação de medida tutelar face à reduzida gravidade dos factos, à conduta anterior e posterior dom menor e à sua inserção familiar, educativa e social (art 78 nº 1 da LTE).
Portanto, na fase de inquérito, só é possível proceder ao arquivamento do inquérito em duas circunstâncias:
Para além de se concluir pela desnecessidade de aplicação de medida tutelar, o facto qualificado como crime ser punível com pena de prisão de máximo superior a um ano – arquivamento liminar do inquérito; ou, o facto qualificado como crime ser punível com pena de prisão de máximo não superior a três anos – arquivamento do inquérito;
Portanto, tais requisitos são cumulativos.
No caso vertente podemos concluir que é um dos casos em que se torna desnecessária aplicação de uma medida tutelar. Contudo, não basta este requisito é necessário que o facto qualificado como crime seja punível com pena de prisão de máximo não superior a três anos.
Ora, os factos aqui em causa integram-se na previsão do art 272, nº 1, al a) e nº 2 do penal – crime de incêndio. Este crime é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Ora, sendo o crime punível com prisão de 1 a 8 anos, não podem os autos ser objecto de despacho de arquivamento na fase de inquérito.
Assim sendo, ao Mº Pº apenas cabia requerer a abertura da fase jurisdicional.
Nesta fase, a Sra juiz apenas podia arquivar o processo se o Mº Pº apresentasse proposta no sentido de que não é necessária a aplicação de medida tutelar.
De acordo com o estatuído no art 93, nº 1 al b) da LTE recebido o requerimento para a abertura da fase jurisdicional, o juiz pode arquivar o processo quando, sendo o facto qualificado como crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, lhe merecer concordância a proposta do Mº Pº no sentido de que não é necessária a aplicação de medida tutelar.
No caso vertente e apesar dos factos constantes dos autos, que apontam para a desnecessidade de aplicação de uma medida tutelar (tudo se passou no seio familiar, o menor está bem inserido social e familiarmente e estamos perante um comportamento meramente negligente), o facto é que o Mº Pº assim não o entendeu.
Desta forma a sra juiz só tinha um caminho a seguir – receber o requerimento para abertura da fase jurisdicional atendendo ao que dispõe o art 93 da LTE, seguindo os ulteriores termos do processo.
A sra juiz não pode arquivar o processo se não houver proposta do Mº Pº no sentido de que não é necessária a aplicação de medida tutelar.

Nestes termos, decide-se revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que receba o requerimento do Ministério Público para abertura da fase jurisdicional.

Sem custas.