Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1224/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE ARMAS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA - ORALIDADE E IMEDIAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE DO ART.º 14º
Nº1
DO RGIT
Data do Acordão: 10/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO - TRIBUNAL DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º, 289º E 291º, DO CPP E 13º, 202º, 203º E 204º DA CRP.
Sumário: 1- O princípio da igualdade de armas não implica que, em processo penal, se tenha de impor um tratamento de igualdade matemática no que concerne aos direitos, faculdades e deveres atribuídos ao Ministério Público e ao Arguido, conquanto, no cumprimento do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, se deva dar tratamento igual a situações essencialmente iguais e tratamento desigual a situações desiguais
II- A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não pode ser uma forma de subversão do princípio da livre apreciação da prova deferido ao tribunal de ia instância, sendo certo que quando a atribuição da credibilidade a uma fon-te de prova se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recur-so só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.
III - O artigo 14º, n.º1, do RGIT, não é inconstitucional, posto que o regime nele estabelecido não colide com os princípios da culpa, da adequação e da pro-porcionalidade.
Decisão Texto Integral: Acordam , em audiência , na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra .

Relatório

Pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas , sob pronúncia que recebeu a acusação do Ministério Público , foram submetidos a julgamento em Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular os arguidos:
A..., residente na Rua Sacadura Cabral, n.º 3, Apartado 131, em Alcanena;
B..., residente na Rua do Barreiro, em Gouxaria, Alcanena ; e
C..., com sede no Largo Fernandes Almeida, Letra H, 3.º, Edifício Parque, em Torres Novas.
porquanto teriam cometido os factos constantes da decisão instrutória , pelos quais teriam cometido :
- os arguidos A... e B... , em co-autoria material e na forma consumada, um crime de abuso de confiança fiscal sob a forma continuada, p. e p., à data da prática dos factos, pelos artigos 24.º, n.ºs 1, 2 e 5, do R.J.I.F.N.A., aprovado pelo DL n.º 20-A/90, de 15-1, artigos 28.º, n.º1, alínea c), e 40.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA, e 30.º, n.º 2, do Código Penal, e, actualmente, pelos artigos 105.º, n.ºs 1,2,4 e 5, do Regime das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5-6, 28.º, n.º1, alínea c), e 40.º, n.º1, alínea b), do Código do IVA, e 30.º, n.º 2, do Código Penal ; e
- a arguida C..., igualmente o referido crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, através das normas referidas supra, e ainda, à altura dos factos, pelo artigo 7.º, do R.J.I.F.N.A., e, actualmente, pelo artigo 7.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida em 19 de Dezembro de 2003 , decidiu julgar a acusação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, condenar:
1- O arguido A..., pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal sob a forma continuada, p. e p. pelo art. 105.º n.ºs 1, 2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com referência aos artigos 26.º, n.º1, 28.º n.º 1, alínea c), e 40.º n.º 1, alínea b) do Código do IVA e artigo 30.º n.º 2 do Código Penal, na pena de 18 ( dezoito) meses de prisão ;
Suspender-lhe essa pena pelo período de 2 anos o 6 meses , condicionada ao pagamento pelo arguido de metade do valor total do IVA que ainda se encontra em dívida, ou seja de 189.149,25 euros, acrescido dos acréscimos legais.
2- A arguida B..., pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal sob a forma continuada, p. e p. pelo art. 105.º n.ºs 1, 2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com referência aos artigos 26.º n.º1, 28.º n.º 1, alínea c), e 40.º n.º 1, alínea b) do Código do IVA e artigo 30.º n.º 2 do Código Penal, na pena de 13 ( treze) meses de prisão ;
Suspender-lhe essa pena pelo período de 2 anos , condicionada ao pagamento pela arguida de metade do valor total do IVA que ainda se encontra em dívida, ou seja de 189.149,25 euros, acrescido dos acréscimos legais.
3- A arguida C.... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelos artigos 7.º, e 105.º n.º s 1, 2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com referências aos artigos 26.º, n.º 1, 28.º n.º 1, alínea c), e 40.º n.º 1, alínea b), todos do Código do IVA, e art. 30.º n.º 2 do Código Penal, na pena de 350 ( trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 7 euros (sete euros) o que perfaz o total de 2.450 euros ( dois mil quatrocentos e cinquenta euros).

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A... , concluindo na sua motivação :
A - Do erro notório na apreciação da prova
1 - Da prova documental constante dos autos, primeiro relatório de perícia, e do depoimento, em audiência de julgamento, da Drª Teresa de Melo, resulta evidente que não foi possível apurar que o IVA liquidado pela Sociedade Arguida a terceiros seus clientes, foi efectivamente recebido;
2 - A Senhora Perita confirma no primeiro relatório de peritagem que "era impossível concluir qual o montante de IVA liquidado nesses meses que terá sido recebido";
3 - Ficou provado, atento o primeiro relatório de perícia junto aos autos, que a sociedade, Arguida, teve elevado valor de incobráveis em 1995 e 1996, o que inclui o período de tempo em causa nos autos,
4 - Ficou provado que a Sociedade, Arguida, recebia letras e cheques pré-datados dos seus clientes, não podendo dispor do valor necessário ao cumprimento das obrigações fiscais, entregando o imposto devido aquando do envio das declarações periódicas;
5 - O primeiro relatório de peritagem não permitia conhecer qual o valor do IVA liquidado e recebido e, perante a junção aos autos de vasta documentação pelo Recorrente, a Juíza de Instrução ordenou nova perícia;
6 - Resulta dos autos, 2º relatório e do depoimento das testemunhas de acusação, que a segunda perícia nunca foi, efectivamente, executada com a necessária análise da documentação junta pelo Recorrente e o apuramento do que foi solicitado em sede de instrução ;
7 - Ora, da documentação junta pelo Recorrente entre a qual se encontravam facturas não consideradas nas declarações periódicas, e considerando o valor do IVA dedutível, a sociedade seria credora de IVA e não devedora;
8 - Na decisão recorrida fez-se errónea apreciação da prova quanto ao valor do IVA que seria dedutível e que não foi considerado pela Srª Perita, testemunha de acusação;
9 - Ora, na decisão recorrida não se vislumbram razões válidas para não considerar as facturas juntas pelo Recorrente e que permitiriam considerar um valor de IVA dedutível superior ao considerado no 1º e 2º relatório de peritagem e assim considerar que não havia imposto em divida;
10 - Rejeitaram-se na decisão recorrida quatro facturas juntas pelo Recorrente sem fundamento válido;
Com efeito,
11 - Na decisão recorrida rejeitou-se tais facturas por se considerar que se referiam a uma sociedade que tinha sede no mesmo local da sociedade Arguida quando o contrário resulta da prova documental constante dos autos de onde decorre que tais sociedades, a arguida e a Manuel Branco, Lda, tinham sedes em locais distintos;
12 - Da prova constante dos autos resulta o contrário do que se afirma na decisão recorrida quanto à numeração das ditas facturas: tais documentos tinham numeração e não coincidem com quaisquer outros constantes dos autos;
13 - Conclui-se na sentença, por errada apreciação da prova, que tais facturas seriam de excluir pelos motivos invocados, sem apreciar em concreto, se os negócios existiam e se tal IVA dedutível devia ser considerado para apuramento da divida tributária em sede daquele imposto; Face ao exposto,
14 - Houve erro na apreciação da prova documental, junta pelo Recorrente, e da testemunhal produzida em audiência de julgamento devendo considerar-se como não provados os pontos 7, 9, 10, 11, 12, 14 a 19 e 21 da matéria dada como assente;
15 - Tal errónea apreciação da prova resulta igualmente da contradição entre a matéria dada como provada nos pontos 8 e 9 e a constante nos pontos 10, 11 e 12 da decisão recorrida;
16 - Com efeito, considerou-se nos pontos 8 e 9 ter sido liquidado e recebido um dado valor de IVA, tendo sido por estes factos que os Arguidos foram acusados, quando nos pontos 10, 11 e 12 consideraram-se valores substancialmente diferentes com critério semelhante,
17 - Também na decisão recorrida se fez errónea apreciação das provas, depoimento do Arguido e das testemunhas de defesa, que comprovaram os rendimentos e a debilitada situação financeira e económica do Recorrente;
18 - No ponto 23 da matéria assente devia-se ter dado como provado que o Recorrente auferia um rendimento mensal de Euros 800 seguindo o mesmo critério que se usou para apurar o rendimento da Arguida, B...;
19 - A alteração da decisão recorrida sobre tal matéria de facto, ponto 23, é relevante para saber das possibilidades económicas que o Recorrente tem, ou não, de cumprir a condição que lhe foi imposta na mesma sentença;
20 - A decisão recorrida fez errónea interpretação do depoimento do Recorrente e do depoimento das testemunhas de defesa, supra identificadas, devendo dar como provados os factos constantes das alíneas g), h), i) e f) da matéria de direito;
21 - Atento o depoimento da testemunha, Dra Teresa Melo, devia dar-se como provado na sentença recorrida, o que não aconteceu por errónea apreciação daquela prova, o facto constante da alínea K) da matéria dada com assente isto é que o Recorrente colaborou com as autoridades judiciárias facultando-lhes a documentação possível;
22 - A decisão recorrida valorou, na aplicação das penas, de modo diferente o comportamento dos dois Arguidos, Administradores da Sociedade Arguida;
23 - Ora, resultou dos autos, prova documental e testemunhal, que os Arguidos, Administradores de Sociedade, tinham o mesmo nível de conhecimentos técnicos e capacidade de determinação da ocorrência dos factos;
24 - A decisão recorrida fez errónea apreciação da prova valorando pela negativa, nomeadamente no ponto 32 da matéria dada como assente, a actuação do Recorrente. Considerando que deviam ter sido dados como provados os factos constantes das alíneas g) a k), tal implicaria que a medida da pena a aplicar ao Recorrente, caso se considere praticado crime que lhe vem imputado, o que não se admite, deveria ser idêntica à da outra arguida no processo.
B- Quanto ao preenchimento do tipo legal de um crime de Abuso de Confiança Fiscal
26 -Para o preenchimento do tipo legal do crime pelo qual o Arguido foi condenado, era necessário provar o efectivo recebimento do imposto liquidado;
27 - Nos termos do Art.24 n.º 7 do RJIFNA na redacção que lhe foi dada pelo DL 394/93 de 14/07 que entrou em vigor em 1/1/94 o crime de abuso de confiança fiscal só se consuma com a apropriação total ou parcial da prestação tributária o que só ocorre se o infractor inverter o título de posse e fizer sua aquela prestação, retida ou recebida, incorporando-a no seu património;
28 - Assim, não basta a não entrega da prestação tributária no prazo que a lei fixa, mas também a sua integração no património da sociedade;
29 - O recebimento da prestação tributária não pode concluir-se pela simples entrega das declarações periódicas;
30 - No entender do Recorrente, atentos os considerandos sobre o erro na apreciação da prova, não ficou provada a apropriação da prestação tributária por parte da sociedade Arguida e por isso pelos Arguidos, seus administradores, entre os quais o Recorrente;
31 -Verifica-se apenas a existência de uma contra-ordenação fiscal prevista no art. 29.º do RJIFNA;
32 - Não se verifica o preenchimento do tipo de crime pelo qual o Recorrente foi condenado pelo que deve ser absolvido do crime que lhe vem imputado;
C - Quanto à inconstitucionalidade do art.14.º n.º1 do RGIT.
33 - O art. 14.º, n.º1 do RGIT é inconstitucional na parte em que retira aos Tribunais e ao administrador da Justiça em concreto a capacidade de juízo , valoração e decisão que resulta do art.20.º da C. R. P.
34- Análise e juízo oponível aos Tribunais e ao julgador pelo disposto a art.70.º do Código Penal que a escolha entre ..."pena privativa e não privativa da liberdade..."
35- Sendo que, no que à suspensão da pena se refere, tal possibilidade resulta do art. 51.º do Código Penal e no âmbito da capacidade determinativa do Juiz.
36 - Normas essenciais do Sistema Penal e que, correlativamente, se inserem no âmbito dos Direitos; Liberdades e Garantias em particular no art.29.º da C.R.P.
37- O art.14.º, n.º 1, na parte em que impõe automatismo de pagamento para condicionar o dispositivo de uma decisão judicial, viola o art.20.º da C.R.P. e derroga materialmente os princípios a que se referem os artigos 70.º e 51.º do Código penal.
38- Na parte em que limita a actuação dos Tribunais num juizo de avaliação e ponderação que só a eles cabe e subverte a escolha que o artigo 70 do Código Penal lhes impõe, no respeito pelos direitos dos arguidos.
39- Visto tal matéria ter repercussões directas e imediatas na medida judicial de atribuição de pena.
40- E viola a adequação e proporcional idade à culpa, consagrado no artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, principio unanimemente reconhecido como estruturante do Sistema Penal Português.
41- O regime “especial” do artigo 14.º, n.º 1 do RGIT não se justifica nos seus termos de especificidade, nem qualquer especialidade pode violar o principio da soberania dos Tribunais ,constitucionalmente consagrada, nem os juízos e valorações que os artigos 70.º e 40.º, n.º 2 do Código Penal impõem ao Julgador.
42- Isto porque a obrigação de pagamento só pode resultar do disposto a art.51.º do Código Penal na parte em que fluir de uma lógica de Julgamento, ou seja, da mediação da prova, avaliação, análise e decisão por parte do Juiz e não por mera obrigatoriedade administrativa, mesmo que vertida em lei.
43- Resulta da Sentença que o Tribunal optou claramente pela suspensão da pena, pelo que tal decisório vale por si, não pode ser subvertido pelo automatismo de pagamento que o referido art.14.º, n.º 1 RGIT impôs.
44- Sob pena de ruir todo o edifício constitucional no que à administração da Justiça se refere, mas também a expectativa de o arguido ver apreciada a sua culpa e a sua situação concreta;
45- O art.14.º, n.º 1 do RGIT derroga, sem justificação ou critério de especialidade, princípios estruturantes da Administração da Justiça
46- Termos em que a inconstitucionalidade do art. 14, n.º 1 deve ser declarada por violação do art.202.º, 203.º e 204.º da CRP e anulada a Sentença na parte em que aplicou aquela norma com violação do disposto a artigos 70.º, 40.º e n.º 2 do 51.º do Código Penal
D- Da violação do n.º2 do art.51.º do Código Penal pela decisão recorrida
47 - Nos termos do n.º 2 do art.51.º do Código Penal não podem ser impostas obrigações ao condenado cujo cumprimento não seja razoavelmente de cumprir;
48- Atento o caso concreto a decisão recorrida impõe ao Recorrente, por via do art.14.º do RGIT, como condição da suspensão da execução da pena o pagamento de Euros 189 149,25 com os acréscimos legais;
49 - Ora o Recorrente não tem património pessoal, tem a seu cargo três filhos menores e o cônjuge desempregado;
50- Atenta a sua situação de insuficiência económica, resultante da matéria dada como provada nos pontos 23 a 25 da decisão recorrida e sem prejuízo do que vai exposto quanto à errónea apreciação da prova, o Recorrente não tem condições para cumprir a obrigação que lhe foi imposta na sentença para suspender a sua execução;
51- A sentença recorrida deveria ter aplicado o art.52 n.º 1 do Código Penal suspendendo a execução da pena sem submeter o Arguido ao cumprimento da condição imposta que, pelos factos assentes, não poderia cumprir;
52- Violou a sentença o art.52 n.º 1 do Código Penal;
E- Da nulidade da sentença nos termos do art.410.º, n.º3 do CPP ao não observar o requisito legal de fixação de prazo, expressamente previsto no n.º1 do art. 14.º do RGIT
53 - O recorrente foi condenado na pena de prisão de 18 meses suspendendo-se a sua execução pelo período de 2 anos e 6 meses na condição de pagar a importância de Euros 189 149,25 acrescida dos acréscimos legais nos termos do n.º1 art.14 do RGIT;
54 - O art.14.º n.º1 do RGIT impõe que a suspensão da execução da pena de prisão fica condicionada ao pagamento no prazo a fixar ...;
55 - A decisão recorrida ao não fixar prazo para o cumprimento da condição, inobservou requisito previsto expressamente no art.14.º n.º 1 do RGIT invocado na mesma;
56 - A Decisão é nula quanto à imposição de condição sem obrigatória fixação do prazo que a Lei impunha;
Nos termos expostos deve a decisão recorrida ser revogada.

Inconformada também com a douta sentença dela interpôs recurso a arguida Isabel Fernanda Rosário Oliveira, concluindo na sua motivação:
1 - Pelo exposto, a douta sentença recorrida, violou a norma jurídica constante no artigo 13.º do Código Penal, dado não existir qualquer culpa da Recorrente, aliás, não foi fundamentada.
II - Foi violada a norma constante no número 1 do artigo 14.º do Código Penal, pois apesar da douta sentença recorrida referir uma única vez o dolo directo, por impossível, este não foi fundamentado.
III - A douta sentença recorrida, não refere quando é que o imposto liquidado foi, de facto, recebido e assim sendo, as normas constantes no número 1 e 6 do artigo 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, não têm qualquer aplicação.
IV - A douta sentença refere que o Arguido A..., técnico oficial de contas, foi o principal culpado da inexistência de contabilidade, quando, de facto, devido ao seu estatuto, é ele o único e exclusivo culpado.
V - A sentença recorrida, não levou em consideração, conforme provado pela funcionária da Administração Fiscal, que a Recorrente nunca prestou qualquer informação, dado não conhecer a realidade da sociedade.
VI - Foi ao técnico oficial de contas que a Administração Fiscal solicitou e foi este, que prestou esclarecimentos e rebateu o evidenciado pelo Fisco, assumindo-se, com esta postura, como o exclusivo culpado da situação, não tendo esta atitude sido levada em consideração na douta sentença.
Nestes termos, nos melhores de direito, deve a sentença recorrida ser revogada por outra que absolva a Recorrente, de acordo com a veracidade dos factos oferecidos e com a legislação vigente, dado não ter existido, por parte da Recorrente, qualquer crime advindo do seu comportamento.

O Ministério Público na Comarca de Torres Novas respondeu aos recursos interpostos da douta sentença pelos arguidos, pugnando pela manutenção da mesma.

Por despacho de 5 de Maio de 2003 , proferido na audiência de debate instrutório , a Ex.ma Juíza de Instrução Criminal indeferiu o requerimento do arguido A... para que lhe fosse concedido prazo não inferior àquele que foi concedido à Administração Fiscal para elaborar o relatório junto , a fim de se pronunciar sobre o mesmo.

Inconformado com o douto despacho de 5 de Maio de 2003 , dele interpôs recurso o arguido A... formulando as seguintes conclusões :
1 - A Administração fiscal juntou aos autos um novo relatório pericial composto de 406 páginas e notificado parcialmente, apenas 3 páginas do mesmo, ao mandatário do Arguido por carta com registo postal de 28/4/2003 o que só permitia a sua consulta na secção em 2/5/2003: um dia útil antes do debate instrutório agendado para 5/5;
2- O documento de 406 páginas é de natureza complexa, não constitui complemento do que está junto aos autos e o seu teor é amplamente citado no despacho que se dá aqui por reproduzido e que recebeu a Acusação e pronunciou os Arguidos;
3- O documento, relatório pericial, constitui suporte documental da Acusação alterando mesmo os valores do IVA liquidados e alegadamente recebidos;
4- Constituía condição para que o Arguido exercesse o direito do contraditório no debate instrutório a análise rigorosa daquele documento de 406 páginas e que nem sequer lhe foi notificado na integra ;
5- Ao indeferir a pretensão da Recorrente que pretendia que lhe fosse concedido prazo para análise dos documentos, a Mma Juiza a quo no despacho Recorrido impediu o exercício do direito do contraditório ;
6- A necessidade que o Arguido alegou de ter de analisar e se pronunciar sobre um documento de 406 páginas para o poder contraditar é de elementar justiça, podendo servir para afastar os indícios do crime pelo qual vem acusado e nunca poderia ser entendida, atentos os fundamentos invocados, como sendo uma diligência dilatória;
7- O despacho Recorrido violou o direito do exercício do contraditório do Arguido a ser exercido no âmbito do debate instrutório;
8- O despacho recorrido tal como vem transcrito na Acta da Audiência e que se dá aqui como reproduzido violou o disposto no art.289 n.ºl e 298 todos do CPP e igualmente o normativo constitucional previsto no n.º5 do art.32 da CRP;
Termos em que deve a decisão Recorrida ser revogada admitindo-se o requerimento do Arguido com as legais consequências anulando-se nomeadamente todo processado posterior aquele acto .

O Ministério Público na Comarca de Torres Novas respondeu ao recurso interposto do despacho de 5 de Maio de 2003 , pugnando pela manutenção do despacho recorrido nos seus precisos termos.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido dos recursos interpostos pelos arguidos não merecerem provimento quanto ao mérito , mas entende existe uma omissão na sentença que deverá ser suprida .

Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2 do Código de Processo Penal respondeu a arguida Isabel Fernanda Rosário Oliveira , mantendo a posição sustentada no seu recurso.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir

Fundamentação

A matéria de facto e fundamentação constantes da douta sentença recorrida é a seguinte :

Factos Provados :
I - Os arguidos A... e B... foram membros do Conselho de Administração da sociedade C..., com sede no Largo Diogo Fernandes Almeida, em Torres Novas, desde 7 de Junho de 1994. A arguida B... manteve-se nessas funções até ao presente. O arguido A... renunciou ao cargo de membro do Conselho de Administração em 31 de Dezembro de 2001, renúncia essa que foi registada em 8 de Maio de 2002.
2- Tal sociedade encontrava-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Torres Novas sob o n.º 010871911003, com o capital social inicial de Esc. 50.000.000$00, dividido em acções ao portador no valor de Esc. 1.000$00 cada uma.
3- Actualmente a sede social da arguida C... situa-se no Largo do Lamego, n.º 86, 1º andar, em Torres Novas, e o seu capital social é de Esc. 95.000.000$00.
4- A actividade desenvolvida por tal sociedade consistia na importação, exportação, representação, compra e venda de Produtos químicos, peles e seus derivados e de maquinada para a indústria de curtumes, calçado e vestuário em pele, a que corresponde a CAE (Classificação de Actividades Económicas) 051190, sendo sujeito passivo de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), encontrando-se enquadrada naquele imposto no regime normal de tributação, com periodicidade mensal.
5- No biénio 1995-1996 foram designados administradores da sociedade C... os arguidos A... e B....
6- Durante o período de tempo que mediou o início do ano de 1995 e finais do ano de 1997, a C... exerceu normalmente aquela actividade, tendo vários empregados a trabalhar por sua conta.
7- Durante todo esse período temporal, a sociedade em análise, através dos arguidos A... e B..., seus administradores, liquidou e recebeu dos respectivos clientes o IVA relativo às transacções por si realizadas, nomeadamente trabalhos realizados a diversos clientes a quem foram emitidas facturas nas quais o IVA foi liquidado.
8- Em relação aos períodos tributários de Outubro, Novembro e Dezembro de 1995, de Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996, os arguidos, actuando na qualidade de administradores da C..., no interesse e em representação de tal sociedade, remeteram aos Serviços de Administração do Imposto sobre o Valor Acrescentado, as competentes declarações periódicas.
9- Apesar de, durante esses meses, a sociedade em análise, através dos dois primeiros arguidos, seus administradores, ter liquidado e recebido dos respectivos clientes o IVA relativo às transacções por si realizadas, antes de expirarem os prazos legais de entrega do IVA exigível, não fizeram os mesmos acompanhar aquelas declarações periódicas dos respectivos meios de pagamento, tal como estavam obrigados.
10- O IVA efectivamente recebido e não entregue nos cofres do Estado, resultante do diferencial entre o imposto liquidado e recebido a clientes e o imposto suportado e facturado por terceiros, e dedutível pelo sujeito passivo, ascendeu aos seguintes montantes:
a) No mês de Dezembro de 1995, o montante de 10.629.951$00 (equivalente a 53.021,97 euros), com data de termo da obrigação em 29 de Fevereiro de 1996;
b) No mês de Janeiro de 1996, o montante de 11.050.006$00 (equivalente a 55.117,20 euros), com data de termo da obrigação em 1 de Abril de 1996;
c) No mês de Fevereiro de 1996, o montante de 7.682.941$00 (equivalente a 38.322,35 euros), com data de termo da obrigação em 30 de Abril de 1996;
d) No mês de Abril de 1996, houve um excesso de IVA dedutível por parte do sujeito passivo, em relação ao efectivamente recebido e das regularizações a favor do Estado, no montante 393.692$00 (equivalente a 1.963,73 euros);
e) No mês de Maio de 1996, o montante de 16.105.725$00 (equivalente a 80.335,02), com vencimento em 31 de Julho de 1996.
11 - Os arguidos não fizeram o pagamento das referidas quantias até ao termo do prazo legal, nem nos 90 dias subsequentes a tal prazo.
12- Assim, o total do imposto recebido e não entregue pelos arguidos nos referidos meses de Dezembro de 1995, e Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996, ascendeu ao montante de 45.074.931 $00 (equivalente a 224.832,80 euros).
13- Em Março de 1997 a sociedade arguida veio a aderir ao regime previsto no DecretoLei n.º 124/96, de 10 de Agosto, tendo efectuado o pagamento do imposto relativo aos períodos de Outubro e Novembro de 1995 e parte do mês de Dezembro de 1995, ficando ainda quantias em dívida, o que originou a sua exclusão em 6 de Março de 2000.
14- Ficou assim em divida de IVA liquidado e recebido, após ter sido abatido o montante pago pela arguida C..., no âmbito daquele DL n.º 124/96, e nos termos do parágrafo anterior, a quantia de Esc. 37.921.020$00 ( correspondente a 189.149,25 euros), causando os arguidos, deste modo, ao Estado Português, um prejuízo patrimonial em tal montante, acrescido dos respectivos juros compensatórios e dos juros de mora, contados desde as datas constantes nas certidões de dívida.
15 - Ao actuarem como se descreve, quiseram os arguidos entregar aos Serviços de Administração do IVA as declarações relativas a tal imposto referentes aos meses de Dezembro de 1995, Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996, sem os fazer acompanhar dos respectivos meios de pagamentos, sabendo que a isso se encontravam vinculados.
16- No obstante terem liquidado e recebido tais quantias de IVA a terceiros seus clientes, não procederam ao pagamento das mesmas aos Cofres do Estado, nem até ao termo do prazo do respectivo pagamento, nem no prazo de 90 dias contados do termo desse prazo.
17 - Actuaram com o propósito de obterem para a sociedade de que eram administradores um benefício patrimonial correspondente ao valor total do imposto devido e não entregue e respectivos juros compensatórios e moratórios e de causar ao Estado Português um prejuízo equivalente a tais quantias, que sabiam ser de valor consideravelmente elevado, como efectivamente causaram.
18 - Actuaram os arguidos sempre de comum acordo e de forma consertada, em comunhão e conjugação de esforços, na sequência de decisões que tomaram em conjunto, com o objectivo de obterem para a sociedade de que eram administradores, vantagens patrimoniais às quais sabiam não ter direito.
19- Os arguidos apropriaram-se das quantias de IVA acima descritas e não procederam à respectiva entrega à Administração Fiscal por a sociedade arguida ter deixado de ter fluxos financeiros que lhe permitisse regularizar totalmente as dívidas quer ao Estado, quer a Bancos, quer a fornecedores, tendo perdido fundo de maneio, tendo sido dada prioridade ao pagamentos dos trabalhadores e fornecedores da sociedade para esta subsistir.
20- A arguida sociedade entrou em processo de recuperação de empresa cujos autos correram termos no 2.º Juízo deste Tribunal de Torres Novas com o n.º 536/99.
21- Agiram de forma livre, deliberada e consciente.
22 - Bem sabendo que as respectivas condutas eram proibidas e puníveis por lei.
23 - O arguido A... exerce actualmente a actividade profissional de administrador de 7 empresas. Aufere dessa actividade um rendimento não determinado.
24- Reside em casa dos pais, não pagando qualquer contrapartida por esse facto, conjuntamente com a mulher, e com 3 filhos, de 15, 7 e 3 anos, que se encontram a seu cargo e de sua esposa.
25- Declarou que a esposa se encontra actualmente desempregada, sendo-lhe pago um valor não determinado a título de subsídio de desemprego.
26- Tem como habilitações literárias a licenciatura em gestão de empresas.
27- A arguida B... declarou trabalhar na secretaria da reitoria do Santuário de Fátima, auferindo o vencimento de 750 euros.
28- Não tem filhos, ou qualquer outra pessoa a seu cargo.
29- Vive em casa arrendada, conjuntamente com os seus pais, pagando de renda um valor não determinado.
30- Tem como habilitações literárias a licenciatura em economia.
31 - Do certificado de registo criminal de ambos os arguidos nada consta.
32- A administração da sociedade era de facto exercida, em pleno, pelo arguido A... e pela arguida, B..., que subscreviam todas as declarações periódicas de Impostos, assumindo em conjunto todas as decisões de carácter administrativo que à sociedade diziam respeito, sendo que era o arguido A... o principal responsável pela contabilidade da arguida C..., embora as decisões tomadas quanto à mesma também recebessem a colaboração da arguida B..., na qualidade de administradora da arguida sociedade.
33- A sociedade obrigava-se com a intervenção de dois administradores, os dois arguidos A... e B..., que tinham conhecimento directo de toda a documentação referente a impostos ou à gestão da empresa.
34- Os arguidos A... e B... são considerados pelas pessoas com quem privam como pessoas bem inseridas socialmente, sérias, honestas e trabalhadoras.
Factos não provados
Por outro lado, o tribunal considerou que não ficaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
a) Os arguidos actuaram com o propósito de igualmente obterem para si um benefício patrimonial correspondente ao valor total de imposto devido e não entregue e respectivos juros compensatórios e moratórios.
b) Os arguidos actuaram com o objectivo de obterem igualmente para si vantagens patrimoniais.
c) Na arguida C..., a função da arguida B..., como administradora, era com o sector produtivo e sector de vendas.
d)No que concerne à área financeira e fiscal, nunca teve qualquer intervenção, desconhecendo a situação económica da sociedade.
e) A arguida B... saiu da empresa em Janeiro de 2000, com ordenados por receber.
f) Actualmente, a arguida B... vive exclusivamente do salário que aufere, como gerente da KLYSA - Moda e Confecções, Lda, com sede em Porto de Mós.
g) O arguido A... foi integrado nos quadros da empresa, ou seja a arguida C..., numa estratégia de administração que envolvia os interesses particulares do Sr Manuel Agostinho de Oliveira, pai da Drª B..., co-arguida, e da Drª Maria Clara.
h) O arguido A... agiu, na qualidade de Administrador da C..., sempre no âmbito dos interesses da Família Oliveira, pai e filhas, portadores por si ou por interpostas pessoas das acções da sociedade.
i) Os arguidos A... e B... desenvolveram a actividade referida em 33) sempre com a orientação directa ou indirecta do sr. Manuel Agostinho de Oliveira por intermédio da Drª B....
j) Durante o período de tempo a que se reportam os autos o arguido A... era remunerado, indirectamente, através de uma outra empresa da qual era sócio, para prestar serviços à sociedade e nunca teve interesses pessoais na mesma, de qualquer ordem, tendo cumprido zelosamente as suas funções.
k) O arguido A... sempre colaborou, com as autoridades judiciárias, facultando às mesmas todos elementos documentais que dispunha.
Motivação de facto e de direito e exame crítico das provas:
O Tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos descritos em cima como estando -provados nas declarações do arguido A..., das testemunhas arroladas pela acusação, das testemunhas arroladas pela defesa, que foram inquiridas no âmbito da audiência de julgamento, nos documentos juntos autos, e na ponderação daí advinda.
Nomeadamente, a prova dos factos referidos nos pontos 1) a 5) resultou da análise da certidão de teor do registo comercial referente à arguida C..., que se encontra junta aos autos de fls. 2475 a 2483. Resulta desse documento o n.º da matrícula da arguida C..., o valor do capital social, a sede, e a actividade por ela desenvolvida. Extrai-se ainda dessa certidão que o registo da nomeação dos arguidos A... e B... para fazerem parte do Conselho de Administração da arguida C..., conjuntamente com a arguida Maria Clara Oliveira, em relação à qual foi proferido despacho de não pronuncia, ocorreu em 7 de Junho de 1994. Por outro lado, eles foram designados como administradores da arguida C... para o biénio 1995-1996. Não restam assim dúvidas que eles eram administradores da arguida C... quando os factos em causa nos autos ocorreram. Concluiu-se com base nessa certidão que a arguida B... se manteve como administradora daquela sociedade até ao presente. Por sua vez, consta igualmente da referida certidão que o arguido A... renunciou ao cargo de administrador em 31 de Dezembro de 2001. Essa renúncia foi apenas registada em 8 de Maio de 2002. Deste modo, nos termos do artigo 14.º, n.º1, do Código de Registo Comercial, só a partir dessa data a renúncia do arguido A... ao cargo de administrador passou a ser eficaz, deixando ele de exercer esse cargo, nos termos do artigo 404.º, do Código das Sociedades Comerciais.
Para a prova do facto referido em 33), designadamente à parte da forma como a arguida C... se obrigava utilizou-se igualmente a referida certidão de registo comercial, onde o mesmo consta.
O facto referido em 6), referente à laboração da arguida C... no período compreendido entre o início do ano de 1995 e finais do ano de 1997, foi confirmado pelo arguido A... no depoimento que prestou na audiência de julgamento.
Para a prova dos factos referidos nos pontos 7) a 14), o Tribunal levou essencialmente em consideração o depoimento da testemunha arrolada pela acusação, Teresa Júlia de Melo e os dois relatórios da peritagem por ela efectuados à situação referente à liquidação e recebimento do IVA por parte da arguida C.... O primeiro relatório encontra-se junto aos autos de fls. 867 a 950, e o segundo consta do apenso aos presentes autos. O teor dos relatórios foi confirmado pela testemunha em causa de forma convincente. O seu depoimento fez concluir ao Tribunal que o mesmo se reveste de grande fidedignidade e credibilidade.
Designadamente, resulta dos relatórios em causa que a arguida C..., através dos arguidos A... e B..., na qualidade de seus administradores, nos períodos tributários referentes aos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 1995, Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996, liquidou e recebeu dos respectivos clientes o IVA relativo às transacções por si efectuadas, nomeadamente trabalhos realizados a diversos clientes a quem foram emitidas facturas nas quais o IVA foi liquidado. Resulta do primeiro relatório de peritagem, e tal facto foi confirmado pela testemunha Teresa Melo no seu depoimento, que para verificar quais teriam sido as transacções efectuadas pela arguida C...., designadamente o fornecimento de bens e a prestação de serviços aos seus clientes, e se o IVA referente às mesmas foi liquidado e recebido, a srª perita teve de contactar esses clientes a fim de os mesmos lhe facultarem os elementos necessários. Na verdade, quando contactou os administradores da arguida C... e com mais incidência o arguido A..., não lhe foram facultados pelos mesmos os elementos essenciais da contabilidade da sociedade. Designadamente faltavam os balanços, balancetes, os próprios livros da contabilidade, ou qualquer extracto de conta corrente. Para além disso, faltavam bastantes facturas referentes aos meses dos períodos cuja análise deveria ser efectuada na inspecção incumbida à testemunha em causa. Perante a falta de todos estes elementos da contabilidade tornar-se-ia impossível verificar quais teriam sido os montantes do IVA liquidados aos clientes e recebidos pela arguida C..., conforme a testemunha refere no seu relatório. Contudo, esta afirmação não poderá ser retirada do seu contexto, como o arguido A... faz na sua contestação, e com o objectivo de pôr em cheque as conclusões do relatório. Na verdade, a mesma foi proferida a título de desabafo, como a testemunha Teresa Meio confirmou no seu depoimento. Para poder verificar qual teria sido o IVA liquidado e recebido, a testemunha recorreu aos elementos que solicitou aos clientes da arguida C..., designadamente as facturas, extractos de conta corrente, recibos, e notas de crédito e de débito. Resulta da análise dos dois relatórios juntos aos autos que a testemunha Teresa Meio fez uma análise exaustiva de todos esses documentos de forma a concluir qual teria sido o IVA liquidado pela sociedade, qual o IVA que teria de pagar, e qual o IVA efectivamente recebido. Da análise dos relatórios constata-se que a testemunha fez uma análise bastante completa de todos esses elementos, descrevendo-os nos anexos que apresentou de forma totalmente exacta. Esses elementos consistiram, para efeito de cálculo do IVA liquidado, na análise das facturas, extractos de conta corrente e declarações dos clientes. Para efeito da conclusão quanto ao IVA recebido levou-se em consideração os recibos em poder dos clientes e emitidos pela arguida C..., as informações bancárias de depósito em conta, a frente e verso de cheques, etc. Para além disso, e no que se refere aos pagamentos com letras, fez-se a conjugação com os extractos de débitos bancários fornecidos pelos bancos. Por outro lado, apenas foi considerado o IVA liquidado e recebido em relação aos clientes que responderam aos contactos efectuados pela testemunha. Não foi assim ponderado aquele das transacções efectuada com os clientes que não responderam, ou em que as cartas vieram devolvidas, por encerramento ou mudança de local, e cuja identificação se encontra feita nos referidos relatórios.
Não foram juntos aos autos quaisquer elementos de prova que pusessem em causa esse grau de fidedignidade quanto à perícia efectuada por aquela testemunha. Deste modo, o Tribunal aceitou os elementos por ela transmitidos na íntegra.
Resulta da análise do primeiro relatório que através do mesmo e com base nos referidos elementos facultados pelos clientes da arguida C... que foi possível proceder ao cálculo do IVA que foi liquidado, daquele que a arguida estava obrigada a pagar e daquele que efectivamente recebeu dos clientes. O cálculo do IVA a que a arguida estava obrigada a pagar será efectuado, subtraindo ao liquidado em resultado de transacções com clientes e devidamente facturado, aquele que foi suportado pela sociedade devido a aquisições que teve de fazer e em relação às quais teve igualmente de pagar o IVA. Deste modo, e ao contrário do que pretende o arguido A... na sua contestação, neste primeiro relatório consta desde logo o cálculo do IVA que terá sido efectivamente recebido pela arguida C.... No mapa III desse relatório, que se encontra junto aos autos a fls. 881, consta de forma bastante esclarecedora os valores do IVA declarado nas declarações periódicas, liquidado e a pagar, referente aos meses de Dezembro de 1995, e Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996. Consta, igualmente desse mapa os valores apurados na inspecção referente ao IVA recebido, ao regularizado a favor do sujeito passivo, ou seja da sociedade C... e o referente aos clientes que não responderam.
A diferença entre o primeiro e o segundo relatório ( que é explicado neste último e foi confirmado pela testemunha Teresa Melo durante o depoimento que prestou na audiência de julgamento), consistiu no facto de dois dos clientes que não tinham respondido na altura em que se procedeu à elaboração do primeiro relatório, o terem feito nessa altura. Foi assim possível actualizar o valor do IVA recebido pela arguida C..., que passou a ser de Esc- 102.929.657$00. Para além disso, ponderam-se várias fotocópias de documentos apresentados pelo arguido de forma a calcular qual o valor que o sujeito passivo poderia ter deduzido, designadamente nos termos do artigo 71.º, do Código do IVA, por terem havido anulações do contrato, restituições, etc., por parte dos clientes. Da análise do segundo relatório constata-se que a testemunha Teresa Meio fez igualmente um exame bastante exaustivo desses documentos de forma a calcular qual seria esse IVA que era dedutível pelo sujeito passivo, ou seja a arguida C.... Considera-se que no relatório ficou esclarecido quais foram os elementos que foram ponderados pela testemunha para cálculo desse IVA dedutível. Designadamente ficou esclarecido que não foram ponderadas quatro facturas cujas cópias foram juntas pelo arguido A..., na medida em que as mesmas não tinham qualquer grau de credibilidade. Por um lado, as mesmas referiam-se à empresa Manuel Branco de Oliveira & Filhos, Lda, com quem a arguida C... tinha uma relação muito próxima. Para além disso, o domicílio de ambas as sociedades situava-se no mesmo local. Por outro lado, essas facturas não tinham numeração a nível interno. Por fim, três dessas facturas tem nºs que coincidem com outras, cujas fotocópias o arguido também juntou aos autos e que se referem a outros clientes.
Com base em todos esses elementos foi possível proceder ao cálculo do IVA que terá sido efectivamente recebido pela arguida C... e que ela estava obrigada a entregar aos cofres do Estado, e que, como tal se apropriou. Esse cálculo encontra-se feito no mapa XII, do segundo relatório, junto a fls. 311 do apenso. Deste modo, ao valor do IVA recebido referente aos meses de Dezembro de 1995, Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996, foi junto o valor das regularizações do IVA a favor do Estado e que constam das declarações que os arguidos A... e B... entregaram aos serviços do fisco, em representação da arguida C.... A esse valor foi subtraído por sua vez o IVA dedutível e que a arguida C... terá suportado nas aquisições de bens e serviços que fez. Com base nesses cálculos foi possível chegar ao valor do IVA que foi recebido pela sociedade em todos esses meses que estava obrigada a pagar e ainda o valor total do mesmo, que se encontram referidos nos pontos 10) e 12).
Neste cálculo não foi integrado o IVA regularizado pelo Estado a favor do sujeito passivo que consta do mapa XI, junto a fls. 310, na medida em que para provar a existência do mesmo, o arguido limitou-se a juntar fotocópias de documentos aos presentes autos, não juntando os originais. Logo não foi feita prova segura de que ocorreram essas deduções. Para além disso, esse IVA regularizado a favor do sujeito passivo já foi considerado na altura em que se calculou o IVA recebido com base nos elementos facultados pelos clientes, segundo referiu a testemunha Teresa Meio. Na verdade, segundo ela referiu foram ponderadas as notas de crédito enviadas pelos clientes na altura em que foram contactados. Se fosse de novo ponderado no mapa da página 311, ocorreria uma duplicação.
Com base nos referidos relatórios periciais e os demais documentos juntos aos autos ficaram ainda provados os factos que os arguidos A... e B... remeteram as declarações periódicas referentes aos meses referidos supra aos serviços de administração fiscal, sem que os mesmos viessem acompanhados dos respectivos pagamentos dos impostos que haviam liquidado e recebido dos clientes da arguida C.... Resulta desses elementos que não foi feito o pagamento desses valores, nem conjuntamente com a entrega das declarações periódicas, nem posteriormente e no prazo de 90 dias subsequente ao prazo para entregar as mesmas, tal como consta do ponto 11).
O tribunal concluiu que os arguidos A... E B... realizaram as actividades referidas nos pontos 8) a 12), na qualidade de administradores e representantes legais da arguida C..., e que actuaram em conjugação de esforços e concertadamente, com o propósito de obterem um beneficio patrimonial para aquela sociedade, tomando as decisões em conjunto, tal como se encontra descrito nos pontos 15), a 18), com base nos elementos já expostos supra e com base nas regras da experiência comum. Designadamente, ambos os arguidos aparecem a subscrever as declarações periódicas do IVA. Logo teriam conhecimento da situação fiscal da empresa e da necessidade de entregar ao Estado o IVA liquidado nas transacções efectuadas pela arguida C.... Para além disso, ambos os arguidos faziam parte do Conselho de Administração da arguida Comercial Parque nos períodos tributários que estão em causa nos autos. Deste modo, deveriam nas reuniões do conselho de administração debater estes assuntos. Acresce que, conforme se referiu supra, para obrigar a sociedade eram necessárias as assinaturas de dois dos administradores. Se se concluiu na instrução que a outra administradora, a arguida Maria Clara não exercia efectivamente as funções de administração da Comercial Parque, elas terão necessariamente de o ter sido pelos dois arguidos A... e B.... Acresce que as testemunhas arroladas pelos arguidos, João Eduardo Ferreira e Alberto Jorge Rosa, que tiveram relações comerciais com a empresa, declararam que estabeleceram contactos quer com o arguido A..., quer com a arguida B.... Deste modo, ter-se-á que concluir que os arguidos A... e B... tiveram verdadeira actividade na sociedade em causa. Como eram os únicos membros do Conselho de Administração com actividade na empresa, teriam que ter sido eles que teriam de liquidar e receber o IVA e m causa e decidido não entregá-lo aos Cofres do Estado. Para além disso, competia-lhes a eles fazerem a entrega do imposto liquidado e recebido aos cofres do Estado, na qualidade de administradores com actividade efectiva na empresa em causa. Deste modo, o facto das quantias recebidas a título de IVA liquidado não terem sido entregues era necessariamente do conhecimento dos arguidos A...e B..., na medida em que eles eram os administradores da sociedade e, como tal, eram eles que decidiam toda a actividade da empresa. Logo terão decidido não proceder àqueles pagamentos, decidindo dar destino diverso àquelas quantias.
Por outro lado, não foi bem sucedida a estratégia realizada no julgamento pela arguida B... e que passava por ser eximir de responsabilidades quanto à falta de entrega do imposto, baseada na alegação que ela apenas se dedicava na arguida Comercial Parque ao sector comercial. Desse modo, seria o arguido A... o único responsável pela situação, na medida em que era ele que estava encarregue de tratar da contabilidade. Em primeiro lugar como se referiu, ambos eram administradores efectivos da sociedade, logo teriam necessariamente conhecimento directo de toda a situação. Até porque a sociedade apenas se obrigava com a assinatura de dois administradores, e a arguida assinou igualmente as declarações periódicas referentes ao IVA. Por outro lado, as testemunhas que a arguida arrolou, Noémia Faria, António Gomes e João Ferreira, nunca trabalharam no interior da arguida Comercial Parque ou para a mesma. O conhecimento da situação restringe-se àquilo que lhe foi comunicado pela arguida. Esta é que lhes referiu que geria apenas o sector comercial da sociedade. Nenhum deles teve conhecimento directo da forma como era gerida a Comercial Parque. Aliás, conforme se referiu, algumas das testemunhas arroladas pelos arguidos referiram ter contactos directos com a arguida B... e que ela representava a arguida Comercial Parque na altura.
O Tribunal ficou, contudo, convicto que seria o arguido A... o principal responsável pela situação, tal como traduziu no ponto 32). Na verdade, ele era o principal responsável pela contabilidade da arguida Comercial Parque, e era a ele a quem estava entregue a parte contabilística e financeira da sociedade, conforme resulta do depoimento das suas próprias testemunhas João Gomez e António Vieira. Acresce que este arguido tem formação específica nessa área, na medida em que tem o estatuto profissional de técnico oficial de contas. Para além disso, a testemunha Teresa Meio veio referir ao Tribunal que os contactos que efectuou com os administradores da arguida Comercial Parque no sentido de obter os elementos da contabilidade, foram essencialmente com o arguido A..., embora também os tenha havido com a arguida B.... Designadamente, a testemunha Alberto Rosa referiu que nas relações comerciais que teve com a Comercial Parque foi sempre a arguida B... que lhe entregou as letras e os recibos. Também o arguido A... referiu que quem administrava a sociedade era ele e a arguida B..., partilhando as decisões. Que ele não tinha capacidade para decidir sozinho a não entrega do IVA e o seu desvio para outros objectivos, na medida em que a sociedade apenas se obrigava com duas assinaturas. Para além disso, se algum dos administradores não concordasse com a não entrega dos impostos ao Estado, poderia proceder a esse pagamento. Também a testemunha Teresa Melo referiu no seu depoimento que ficou convicta que os dois arguidos A... e B... estavam ao corrente da situação de falta de pagamento dos impostos, na medida em que eram administradores da sociedade.
Todavia, o Tribunal também ficou convicto que as decisões tomadas quanto à contabilidade e quanto às questões da entrega dos elementos fiscais e do pagamento dos impostos, o arguido A... recebeu a colaboração da arguida B..., conforme consta igualmente do ponto 32) e do ponto 33).
Para a prova de que a arguida Comercial Parque aderiu ao Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, e que, através do qual procedeu ao pagamento do imposto relativo aos períodos de Outubro e Novembro de 1995 e parte do mês de Dezembro de 1995, tal como consta dos pontos 13) e 14), o Tribunal levou em consideração os documentos que demonstram esse facto juntos aos autos no volume 1, e ainda o teor do 2º relatório e demais documentos integrados no apenso.
A prova do facto referido no ponto 19), ou seja que as quantias referentes ao IVA liquidado e recebido e que deveria ter sido entregue aos Cofres do Estado, foram canalizados para o pagamento aos trabalhadores e fornecedores da sociedade, foi efectuada com base no depoimento do arguido A... que confirmou o mesmo.
Para a prova do facto referido em 20), ou seja que a arguida Comercial Parque entrou em processo de recuperação de empresas, utilizou-se o teor da certidão junta aos autos de fls. 2.435 a 2.454, de onde o mesmo resulta.
A prova da situação económica dos arguidos resultou dos depoimentos por si prestados.
Para a prova dos antecedentes criminais dos arguidos utilizou-se os respectivos Certificados de Registo Criminal juntos aos autos a fls. 2.471 e 2.472.
A conclusão quanto à não demonstração dos factos descritos acima como não estando provados resultou de não ter sido realizada qualquer prova ou prova convincente quanto aos mesmos. Designadamente as testemunhas arroladas pelos arguidos não acrescentaram qualquer elemento de prova convincente aos já existentes nos autos, nem produziram um depoimento que infirmasse ou pusesse em crise a que foi produzida por aqueles. Por outro lado, não confirmaram os factos alegados pelos arguidos A... e B..., na medida em que ou não tinham conhecimento dos mesmos, ou esse conhecimento apenas teria resultado de conversas que teriam tido com eles. Logo o mesmo ter-lhes-ia sido comunicado através dos arguidos. Eles pessoalmente não tinham qualquer conhecimento directo sobre esses factos.
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
Face às conclusões da motivação do arguido A..., relativamente ao recurso interposto da douta sentença , as questões a decidir são as seguintes :
- se existe erro na apreciação da prova , na medida em que não foi apurado o valor do IVA que foi liquidado e recebido , tendo-se rejeitado sem fundamento válido as 4 facturas juntas pelo recorrente ; devia ter-se dado como provado que o recorrente auferia um rendimento mensal de € 800 , face ás declarações do arguido e das testemunhas de defesa ; devia ter-se dado como provados os factos constantes das alíneas g), h), i), f) e k) e em consequência , caso se considere praticado o crime que lhe vem imputado , deveria a pena aplicada ser idêntica à da arguida B... ;
- se existe contradição entre a matéria dada como provada nos pontos 8 e 9 e a constante nos pontos 10, 11 e 12 da decisão recorrida;
- se não tendo ficado provada a apropriação da prestação tributária por parte da sociedade arguida e dos arguidos , não se verifica o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal , previsto no art.24.º, n.º1 ( por lapso evidente refere-se o n.º7 nas conclusões da motivação) do RJIFNA , mas apenas uma contra-ordenação fiscal , p. e p. pelo art.29.º do RJIFNA ;
- se o art.14.º, n.º1 do RGIT é inconstitucional , por violação do disposto nos art.s 202.º, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa , derrogando sem justificação os art.s 40.º, 70.º e 51.º, n.º2 do Código Penal;
- se a sentença recorrida violou o disposto no art.51.º, n.º 2 do Código Penal ao ter imposto ao arguido a obrigação de pagamento de € 189 149,25 , como condição de suspensão da execução da pena , quando resulta dos factos provados sob os pontos n.ºs 23 a 25 que o arguido não tem condições para cumprir a obrigação ; e
- se a sentença recorrida é nula , nos termos do art.410.º , n.º3 do C.P.P. , por não ter fixado o prazo , expressamente previsto no art.14.º do RGIT, para cumprimento da condição de pagamento fixada na mesma sentença .
Quanto ao recurso interposto pela arguida Isabel Fernanda Rosário Oliveira da douta sentença , face às conclusões da sua motivação , as questões a decidir são as seguintes :-
- se a douta sentença recorrida violou o disposto nos art.s 13.º e 14.º , n.º1 do Código Penal , uma vez que a arguida/recorrente não actuou com dolo ;
- se a decisão recorrida não fundamentou a existência de dolo na actuação da arguida/recorrente ;
- se o arguido A... foi o único culpado da situação , uma vez que a recorrente não conhecia a realidade da sociedade ; e
- se não referindo a douta sentença quando o imposto foi liquidado de facto as normas constantes dos n.ºs 1 e 6 do art.24.º do RJIFNA não têm qualquer aplicação.
Face ao recurso interposto do douto despacho de 5 de Maio de 2003 a questão a decidir é a seguinte :
- se o despacho Recorrido violou o direito do exercício do contraditório do Arguido a ser exercido no âmbito do debate instrutório e o disposto nos art.s 289 n.º l e 298.º do CPP e o n.º5 do art.32 da Constituição da República Portuguesa.
Recurso do despacho
O recurso a conhecer em primeiro lugar , de acordo com a prejudicialidade , é o que incide sobre o despacho de 5 de Maio de 2003 , pelo que dele passamos a conhecer, começando por reproduzir o requerimento do arguido A... e o douto despacho recorrido que sobre o mesmo recaiu .
O requerimento do arguido , na parte em questão , é o seguinte :
« Veio a Administração Fiscal , na sequência do douto despacho , juntar relatório que consta de 400 páginas tendo o Mandatário do arguido sendo notificado por carta registada de 28/04/03 , e apenas do douto despacho de fls.2362 e ainda do teor do ofício de fls. 2362 , bem como de fls. 402 a 406 , do mesmo relatório . Duma apreciação sumária no balcão da secção no dia 02/05/03 , afigurasse-nos que a documentação ora junta , relatório , é sem dúvidas complexo. Sendo relevante para a boa defesa dos arguidos e por , esse facto ser essencial para a descoberta da verdade , uma análise rigorosa no sentido de tomar posição sobre os mesmos , assim requer-se a prazo não inferior aquele que foi concedido à Administração Fiscal para elaborar o dito relatório , no sentido do arguido se vir pronunciar sobre o mesmo exercendo o legitimo direito de contraditório.».
O despacho recorrido , de 5 de Maio de 2003 , na parte em questão , tem o seguinte teor :
« Por último, quanto à nova inquirição da testemunha, e do requerimento para conceder prazo ao arguido, para se pronunciar, quanto ao relatório pericial, tais diligências, apenas iriam protelar o regular andamento do Processo, verificando-se que o prazo da Instrução já foi largamente ultrapassado, com a agravante de face à data dos factos em questão se verificar perigo de prescrição do procedimento criminal .
De resto, a referida testemunha, já foi inquirida e, quanto ao prazo requerido, verifica-se que o novo relatório apenas veio complementar o relatório efectuado, devendo-se a demora na realização na perícia, em parte, à falta de colaboração do arguido A... ------
Face ao exposto, indefiro o requerido .».
O requerimento do arguido e o despacho recorrido têm lugar durante a instrução , mais precisamente , no inicio do debate instrutório que teve lugar no dia 5 de Maio de 2003.
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.(art.286.º, n.º1 do C.P.P.).
A instrução não é um novo inquérito , mas uma fase processual formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda levar a cabo e , obrigatoriamente , por um debate instrutório oral e contraditório.( art.289.º do C.P.P.).
O juiz deve indeferir os actos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis . Os actos e diligências de prova praticados no inquérito só são repetidos no caso de não terem sido observadas as formalidades legais ou quando a repetição se revelar indispensável à realização das finalidades da instrução . ( art.291.º,n.º 1 e 2 do C.P.P.).
O debate instrutório visa permitir uma discussão perante o juiz , por forma oral e contraditória , sobre se , do decurso do inquérito e da instrução , resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.( art.298.º do C.P.P.).
Trata-se , pois , de uma audiência rápida e informal .
No presente caso , realizadas as diligências instrutórias , o Ex.mo Juiz designou o dia 3 de Fevereiro de 2003 para debate instrutório . Antes do dia de realização deste veio o arguido/recorrente A... juntar 1261 documentos aos autos .
Em 3 de Fevereiro de 2003 , aberto o debate instrutório , Ex.mo Juiz, face à junção dos aludidos documentos decidiu ser imprescindível a realização de nova perícia pelo Núcleo de Averiguações Criminais da Direcção de Finanças de Santarém , e determinou que fosse realizada no prazo de 30 dias improrrogáveis.
Em 28 de Março de 2003 o Núcleo de Averiguações Criminais requereu a prorrogação do prazo para a elaboração do relatório e pareceres respectivos , o que foi deferido pelo Ex.mo Juiz por despacho de 2 de Abril de 2003 , que na mesma altura designou para o debate instrutório o dia 5 de Maio de 2003 .
O relatório complementar foi apensado aos autos em 11 de Abril de 2003. Foi mandado notificar aos arguidos e ao Ministério Público por despacho de 23 de Abril do mesmo ano.
Segundo o arguido/recorrente refere , no debate instrutório , só em 2 de Maio de 2003 fez uma apreciação sumária do relatório entretanto junto , pelo que requer , para exercício do contraditório , prazo não inferior aquele que foi concedido à Administração Fiscal para elaborar o dito relatório , no sentido de se pronunciar sobre o mesmo .
Deveria este prazo ter sido concedido ao recorrente ?
O primeiro relatório de inspecção tributária , de Agosto de 2002 , teve em vista o apuramento , através de contacto com alguns clientes da empresa arguida ( 158) , de quais as facturas que estes tinham pago , com IVA liquidado pela sociedade arguida , uma vez que a documentação apresentada pela administração desta sociedade era manifestamente escassa para apurar o IVA efectivamente recebido pela empresa arguida .
O segundo relatório ou “Relatório Complementar” é feito no seguimento de requerimento foi feito pelo arguido na instrução e consequente junção de um conjunto de documentação, fotocópias de facturas de fornecedores da Comercial Parque, S.A. , para justificar a dedução do IVA..
Refere o recorrente que este segundo relatório consta de 400 folhas , e efectivamente tem , embora sejam metade as páginas escritas .
Como é fácil de verificar , este segundo relatório , incorpora o primeiro relatório e respectivos anexos , que já constava dos autos , pelo que a grande maioria dos elementos deste segundo relatório , referido pela Inspecção Tributária de “complementar ” são já do conhecimento do recorrente quando toma conhecimento do resultado da segunda peritagem .
O “Relatório Complementar” engloba mais dois clientes que à data da elaboração do primeiro relatório de inspecção tributária não teriam respondido em tempo útil , passando o valor do IVA em causa comprovadamente recebido de 99.146.082$00 para 102.929.656$00 e faz a análise dos documentos juntos pelo recorrente durante a instrução , numerados de 0005 a 1266. A segunda peritagem vem , efectivamente complementar , de folhas 280 a 380 , o primeiro relatório , analisando e listando os documentos juntos pelo recorrente na instrução . Em 32 páginas dá-se a informação pretendida pelo Tribunal e responde-se de um modo directo aos pontos que constavam de um requerimento do recorrente apresentado na instrução . De folhas 402 a 404 consta a informação final do “Relatório Complementar” , que foi notificada ao arguido/recorrente.
Não há dúvidas que o Ex.mo Juiz mandou dar conhecimento aos sujeitos processuais da junção da perícia realizada para cumprir o contraditório , que tem lugar no debate instrutório , para que possam conhecer as provas indiciárias recolhidas na instrução.
A questão é saber se o contraditório , neste caso , apenas se pode ter como cumprido – como pretende o arguido no seu requerimento – com a concessão de um prazo não inferior àquele que foi concedido à Administração Fiscal para elaborar o dito relatório.
Afigura-se-nos que não.
O arguido/recorrente ao pedir um prazo não inferior ao que foi concedido pelo Tribunal aos peritos para a realização da peritagem , parte da ideia que a lei consagra um princípio de igualdade de armas entre a defesa e a Administração Fiscal .
Reportando-se a este princípio , diz o Prof. Figueiredo Dias , que ele “… não pode , sob pena de erro craso , ser entendido como obrigando ao estabelecimento de uma igualdade matemática ou sequer lógica. Fosse assim e teriam de ser fustigadas pela crítica numerosas normas com bom fundamento – e , na verdade , ainda maior número delas referentes a faculdades concedidas ao arguido do que ao ministério público!”- “Jornadas de Direito Processual Penal” , Almedina , 1988, pág.29.
Tal princípio deve ser interpretado nos termos em que é interpretado o princípio jurídico constitucional da igualdade . O que importa é que se não discrimine por discriminar .O respeito do princípio exige que se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e tratamento desigual a situações desiguais .
O Tribunal concedeu à Administração Fiscal 45 dias para a realização da nova peritagem.
Em termos finalísticos a Administração Fiscal , analisou e apreciou os documentos fornecidos pelo arguido/recorrente , que este conhece , respondendo ainda a criticas feitas por este ao relatório de Agosto de 2002.
Enquanto a Administração Fiscal tem de elaborar por escrito , e elaborou , um relatório sobre documentos apresentados pelo arguido , que este conhece , o arguido , que é Técnico Oficial de Contas , tem apenas de ler e interpretar as respostas do mesmo “Relatório Complementar” e contraditá-lo , se assim o entender no debate instrutório , oralmente , de modo rápido e informal .
Trata-se de realidades diferentes , que devem ter tratamentos diferentes .
Deste modo entendemos que não há violação do principio constitucional do contraditório quando não se concedeu ao arguido um pretendido prazo não inferior ao que foi concedido pelo Tribunal aos peritos da Administração Fiscal para a realização da peritagem.
Aliás , o arguido/recorrente , no prazo que lhe foi concedido para o contraditório , não deixou de interpretar o relatório complementar , pois só assim se explica que da acta do debate instrutório conste como tendo dito que não se verifica dos autos , que o IVA liquidado tenha sido efectivamente recebido .
Refere o Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação que o presente recurso se encontra ultrapassado e prejudicado pelo julgamento entretanto efectuado.
Efectivamente parece-nos que uma eventual concessão do pretendido prazo não inferior ao que foi concedido pelo Tribunal aos peritos da Administração Fiscal para a realização da peritagem , quando já teve largo período de tempo para analisar o dito “Relatório Complementar” e se realizou a audiência de julgamento ,com o necessário contraditório , teria fortes indícios de acto inútil.
Pelo exposto , e não se tendo como violadas , pelo despacho de 5 de Maio de 2003 , as normas legais invocadas pelo arguido A... nas conclusões da motivação do seu recurso , nega-se provimento ao mesmo recurso.
Recurso interposto pelo A... da douta sentença.
Passemos agora a conhecer do recurso interposto pelo Alexandre da douta sentença , começando pela impugnação da matéria de facto , face a um alegado erro do douto Tribunal recorrido na apreciação da prova .
O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ) .
No entanto , a modificabilidade da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar , sem prejuízo do disposto no art.410.º , do C.P.P. , se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código , ou seja :
“ a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base ;
b) Se , havendo documentação da prova , esta tiver sido impugnada , nos termos do art.412.º , n.º 3 ; ou
c) Se tiver havido renovação de prova .” .
Em conjugação com este preceito legal importa atender ao disposto no art. 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal , que impõe ao recorrente ,quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar :
“ a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas .”

E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos , havendo lugar a transcrição .
No presente caso , houve lugar à documentação da prova e esta foi impugnada minimamente nos termos do art.412.º , n.º 3 do C.P.P. .
Tendo sido efectuada a transcrição da prova oral pelo Tribunal recorrido está o Tribunal da Relação habilitado a modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto .
A documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto .
Esta garantia não pode , porém , subverter o principio da livre apreciação da prova , deferido ao Tribunal de 1ª instância , e previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece : “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.” .
As normas da experiência são , como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção refere o mesmo Professor que esta « é um meio de descoberta da verdade , não uma afirmação infundamentada da verdade . É uma conclusão livre , porque subordinada à razão e à lógica , e não limitada por prescrições formais exteriores .». - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.298.
Por outras palavras , diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando afloramento , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova .
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo :
« Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito , na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade , a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituidas , com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento , em função das razões de ciência , das certezas , das lacunas , contradições , inflexões de voz , serenidade e outra linguagem do comportamento , que ali transparecem .
Assim , e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador , estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso .
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade , o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
No caso sub-judice , este Tribunal da Relação , para além da prova documental , analisou todas as transcrições da prova oral.
No presente caso , o arguido A... alega que houve erro na apreciação da prova documental, junta pelo Recorrente, e da testemunhal produzida em audiência de julgamento devendo considerar-se como não provados os pontos 7, 9, 10, 11, 12, 14 a 19 e 21 da matéria dada como assente , por não ter sido possível apurar se o IVA liquidado pela sociedade arguida a terceiros seus clientes foi efectivamente recebido.
Para o efeito refere o recorrente que a senhora perita diz no primeiro relatório de peritagem que “era impossível concluir qual o montante do IVA liquidado nesses meses que terá sido recebido”, o que não constitui um simples desabafo . Tal era a realidade , face ao modo de pagamento do IVA pelos clientes da arguida sociedade.
Da exaustiva fundamentação da douta sentença recorrida , quanto a esta questão , consta que aquela afirmação efectuada no primeiro relatório de peritagem pela testemunha Teresa Melo , surge a título de desabafo , num contexto de falta de colaboração da administração da empresa , e em especial do arguido António Melo , que não facultou à senhora perita os elementos essenciais da contabilidade , tendo esta , para suprir essa impossibilidade , de contactar com os clientes da arguida Comercial Parque , solicitando a respectiva documentação , que indica .
Analisando o relatório de peritagem de Agosto de 2002 , dito primeiro relatório , torna-se nítida a imputação da senhora perita Teresa Melo à administração da sociedade arguida de graves irregularidades praticadas por esta a nível de conservação e apresentação imediata e em ordem dos elementos contabilísticos da empresa mas que , mesmo assim , face aos contactos e cruzamento de informação ( análise de facturas , de cheques , de letras , de extractos de conta corrente , de extractos bancários e outros elementos em poder de clientes da arguida ) conseguiu apurar com os poucos elementos apresentados , vários montantes de IVA liquidado pela sociedade arguida a terceiros seus clientes e seu recebimento.
Do depoimento da testemunha Teresa Melo , prestado em julgamento , torna-se claro que com a dita afirmação de impossibilidade de apuramento do IVA , proferida no primeiro relatório , quis dizer que pela contabilidade do cliente era impossível apurar o montante do IVA , pois tinha 148 pastas à sua frente , mas não sabia quem eram os clientes da sociedade arguida , nem tinha os extractos de conta-corrente dos clientes . Resolveu o problema da falta de extractos e das facturas através dos contactos com os clientes .
Defende ainda o arguido, como erro na apreciação da prova , que foram rejeitadas , sem fundamento válido , 4 facturas juntas pelo recorrente , de onde resultaria que a sociedade arguida seria credora de IVA e não devedora.
Olhando à fundamentação da douta sentença verifica-se que esta enuncia , de modo claro , as razões pelas quais as quatro facturas em causa não têm qualquer grau de credibilidade e como tal as não foram consideradas no IVA dedutível.
Baseou-se , para o efeito , essencialmente no segundo relatório ou “Relatório Complementar” da Administração Fiscal e no depoimento da testemunha Teresa Melo.
Analisando o “Relatório Complementar” , nomeadamente folhas 290 e seguintes e anexos e o depoimento da testemunha Teresa de Melo , prestado em audiência , concluímos que o Tribunal recorrido , com base na sua livre convicção , ao afastar a credibilidade das ditas facturas , não decidiu contra as regras da experiência comum .
Pelos fundamentos que dali constam , que se aceitam , nada temos a censurar nessa decisão.
Defende também o arguido/recorrente ter havido errónea apreciação da prova , das suas declarações e das testemunhas de defesa , que comprovam os rendimentos do recorrente , pelo que deveria ter sido dado como provado no ponto 23 que o Recorrente auferia um rendimento mensal de Euros 800 seguindo o mesmo critério que se usou para apurar o rendimento da Arguida, B....
Vejamos.
A arguida B... declarou em audiência que auferia um vencimento mensal de 145.000$00 ( € 723.26), como empregada na secretaria da Reitoria do Santuário de Fátima .
O arguido , por sua vez declara que é administrador de sete empresas , mas que só tira rendimentos de duas , auferindo do conjunto das empresas cerca de € 800 mensais.
As testemunhas de defesa do arguido , João Fernandez , António Vieira , Alberto Rosa , nada referem sobre o rendimento mensal que o arguido poderá auferir.
È perfeitamente razoável que o Tribunal recorrido dê como provado que a B... aufere um vencimento mensal de 145.000$00 ( € 723.26), pois é do conhecimento comum que uma empregada na secretaria aufere um vencimento modesto .
Já não é razoável que um administrador de sete empresas , técnico oficial de contas , aufere apenas um rendimento mensal de cerca de € 800 .
Deste modo nada temos a censurar ao Tribunal recorrido quando, na base da imediação e da oralidade , decide que o arguido , da administração das sete empresas , aufere um rendimento não determinado e não os invocados € 800. A decisão não ofende as regras da experiência comum .
O arguido/recorrente entende ainda que deviam ter-se dado como provados os factos não provados constantes das alíneas g), h), i), f) e k), considerando as declarações do recorrente e o depoimento das testemunhas de defesa e , quanto à alínea K) , face ainda ao depoimento em audiência da testemunha Teresa Melo.
Relativamente a estes factos o tribunal recorrido refere na fundamentação que quanto a eles não foi realizada qualquer prova ou prova convincente, designadamente através das testemunhas arroladas pelo arguido , que não confirmaram os factos por ele alegados , na medida em que ou não tinham conhecimento dos mesmos, ou esse conhecimento apenas teria resultado de conversas com ele. Logo os factos foram-lhes comunicados através do arguido. As testemunhas , pessoalmente , não tinham qualquer conhecimento directo sobre esses factos.
Lendo os depoimentos das testemunhas de defesa João Fernandez , António Vieira e Alberto Rosa , podemos concluir que dos mesmos não podem resultar provados os factos constantes das alíneas g), h), i), f) e k) da douta sentença recorrida.
Nenhuma das testemunhas pertenceu à administração da empresa ou foi trabalhador da mesma , limitando-se a testemunha João Fernandez a dizer, praticamente , quanto aos factos em causa , que dessa empresa fazia parte o senhor Manuel Agostinho , a arguida Isabel e o senhor Jorge Amado. A testemunha António Vieira limita-se a dizer , quanto aos factos em questão , no essencial , que supõe que foi a família Oliveira a contratar o arguido para a Comercial Parque. A testemunha Alberto Rosa diz que pensa as funções do arguido A... na C... eram de chefe de escritório , de contabilidade.
As mesmas testemunhas nada adiantam sobre a colaboração que o arguido deu ou não às autoridades judiciárias facultando ás mesmas todos os elementos documentais de que dispunha.
Analisando os relatórios da Administração Fiscal torna-se clara a falta de colaboração dos administradores da arguida sociedade Comercial Parque , SA, chegando a testemunha Teresa Melo a referir que pela contabilidade não é possível averiguar o IVA liquidado pela empresa , pois os parcos documentos que lhe apresentam não o permitem.
Do facto da testemunha Teresa Melo , em audiência , como nos relatórios , referir que lhe foram entregues alguns documentos pelo arguido sem os quais não teria podido fazer os relatórios , não se pode concluir , salvo o devido respeito , que o arguido “sempre colaborou com as autoridades judiciais” , facultando às mesmas “todos”os elementos documentais de que dispunha.
Deste modo , não vemos razão para modificar a matéria de facto da al. k), como a matéria das restantes alíneas em causa , que assim se devem manter nos factos não provados.
Impõe-se agora decidir se , em caso de condenação , a pena a aplicar ao arguido deveria ser idêntica à pena aplicada à arguida B... , uma vez que , no dizer do arguido , da prova documental e testemunhal resulta que ambos tinham o mesmo nível de conhecimentos técnicos e capacidade de determinação da ocorrência dos factos , devendo alterar-se a matéria do ponto n.º 32 dos factos provados e dar-se por provados os factos constantes das alíneas g) a k).
Já mencionámos não haver razão considerar como provados os factos constantes das alíneas g) a k).
O recorrente não faz a mínima especificação , na motivação ou nas conclusões , da prova documental ou testemunhal de onde resulta que ambos os arguidos administradores tinham o mesmo nível de conhecimentos técnicos e capacidade de determinação da ocorrência dos factos .
Não o tendo feito tem de se dar como assente , como dá , que o arguido A... era o principal responsável pela contabilidade da arguida Comercial Parque , como consta do ponto n.º 32 dos factos provados.
Sendo diferente a responsabilidade dos dois arguidos administradores nada obsta a que sejam diferentes as penas aplicadas a ambos , em caso de condenação criminal.
A questão a decidir agora é se existe contradição entre a matéria dada como provada nos pontos 8 e 9 e a constante nos pontos 10, 11 e 12 da decisão recorrida .
Por contradição , entende-se o facto de se afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa . Duas proposições contraditórias não podem ser , ao mesmo tempo ,verdadeiras e falsas.
Os pontos 8 e 9 dos factos provados da douta sentença referem , em síntese , que os co-arguidos A...e B..., actuando como administradores da arguida sociedade , nos períodos tributários de Outubro, Novembro e Dezembro de 1995, de Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996, remeteram aos Serviços de Administração do IVA as competentes declarações periódicas, mas não as fizeram acompanhar dos respectivos meios de pagamento , tal como estavam obrigados.
Os pontos 10, 11 e 12 da douta decisão recorrida , referem essencialmente as quantias recebidas de IVA pela arguida sociedade e não entregues ao Estado , relativas aos meses de Dezembro de 1995 e de Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996 – sendo que do ponto n.º13 dos factos provados, resulta que a sociedade arguida veio a aderir ao regime previsto no DL n.º 124/96 , e a efectuar o pagamento do IVA relativo aos períodos de Outubro e Novembro de 1995 e parte do mês de Dezembro de 1995.
Não vemos qualquer contradição , de acordo com um raciocínio lógico , entre os factos constantes dos pontos 8 e 9 dos factos provados e os constantes dos pontos 10, 11 e 12 da mesma decisão .
Em suma : não encontramos os erros de julgamento da matéria de facto apontadas pelo arguido que determinem a modificação da matéria de facto tal como definida na douta decisão recorrida .
Vejamos , agora , se não ficou provada a apropriação da prestação tributária por parte da sociedade arguida e dos arguidos , não se verificando assim o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal , previsto no art.24.º, n.º1 do RJIFNA , mas apenas uma contra-ordenação fiscal , p. e p. pelo art.29.º do RJIFNA .
O crime de abuso de confiança fiscal , previsto no art.24.º, n.º1 do R.J.I.F.N.A. , vigente à data dos factos , tem como pressupostos objectivos a apropriação , total ou parcial , de prestação tributária deduzida nos termos da lei , estando o agente obrigado a entregá-la ao credor tributário .
No abuso de confiança , a apropriação traduz-se no descaminho ou dissipação da coisa recebida por título não translativo de propriedade , tornando-a própria.
No dizer do Prof. F. Dias , a doutrina mais correcta e mais próxima da realidade da vida , sobre a questão do conhecimento da apropriação de coisas móveis absolutamente fungíveis , nomeadamente dinheiro , é a que atende , para a existência desta , não à mera confusão ou ao simples uso da coisa móvel , mas à sua disposição de forma injustificada ou não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos. – “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II , pág. 104.
Isto é , deve haver actos objectivos , concludentes, que evidenciem ou indiquem a apropriação.
No caso do IVA o imposto é devido e torna-se exigível nas transmissões de bens , no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente. Uma vez realizado o negócio jurídico por um certo preço e conhecida a taxa do imposto , a liquidação opera-se por força da lei- Cfr. Diogo Leite de Campos , in Separata da Revista da Ordem dos Advogados , pág.550 e seguintes , ano 55, II , Julho de 1995.
Isto é , aquele que transmite o bem ou presta o serviço , denominado sujeito passivo , deve liquidar o imposto á contraparte. Esta conhece o imposto e deve pagá-lo juntamente com o preço do bem ou de serviço.
O sujeito passivo deve ao Estado o imposto que recebeu dos contribuintes com quem realizou negócios sujeitos a IVA , e se não proceder à entrega , está a reter quantias que não lhe pertencem . No IVA , o montante devido ao Estado não pertence ao devedor , mas foi-lhe entregue por terceiro para ser entregue ao Estado.
Como refere Diogo Leite de Campos , in local citado , no IVA , as quantias não entregues já são pertença do Estado e “nesta medida , o sujeito passivo está a privar o Estado de algo que lhe pertence.”.
A apropriação verifica-se com a não entrega total ou parcial da prestação tributária ao credor tributário e respectiva afectação a finalidades diferentes , por parte de quem recebe a prestação tributária .
Dos factos provados constantes da douta sentença recorrida resulta que a sociedade arguida recebeu efectivamente dos seus clientes , determinadas quantias respeitantes ao IVA e que a mesma através dos seus administradores arguidos não procederam à sua entrega nos Cofres do Estado , nem até ao termo do prazo de pagamento , nem no prazo de 90 dias contados do termo desse prazo , tendo utilizado aquelas quantias para pagamento aos trabalhadores e fornecedores .
Dúvidas não há , pois , que os arguidos inverteram o titulo de posse e apropriaram-se de quantias de IVA recebidas dos seus clientes .
Estando provado que o arguido/recorrente agiu deliberada , livre e conscientemente , sabendo e querendo realizar aqueles actos antijurídicos , preencheu , com a sua conduta todos os elementos constitutivos do art.24.º, n.º1 do RJIFNA . O que afasta , consequentemente , a contra-ordenação fiscal , p. e p. pelo art.29.º do RJIFNA .
Importa agora apreciar se o art.14.º, n.º1 do R.G.I.T. é inconstitucional , por violação do disposto nos art.s 202.º, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa , derrogando sem justificação os art.s 40.º, 70.º e 51.º, n.º2 do Código Penal.
O art.14.º, n.º1 do R.G.I.T. estatui que « A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento , em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação , da prestação tributária e acréscimos legais , do montante dos benefícios indevidamente obtidos e , caso o juiz o entenda , ao pagamento de quantia até ao máximo estabelecido para a pena de multa .».
Os art.s 202.º, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa , consagram , respectivamente , a função jurisdicional , a independência dos tribunais e a apreciação da inconstitucionalidade.
O principal alcance do art.202.º da C.R.P. consiste em qualificar os tribunais como órgãos de soberania , e determinar que a eles compete administrar a justiça .
O principio da independência dos tribunais , referido no art.203.º da C.R.P. , abrange , por um lado , a separação do sistema judicial em relação aos outros órgãos do Estado e , por outro , a independência dos juízes no exercício das suas funções , caracterizando-se pela sua sujeição apenas à lei , às normas jurídicas.
Acerca da lei importa não esquecer que o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decide tipificar como crimes, apenas tendo de respeitar os princípios constitucionais entre os quais se destacam o da necessidade das penas , o da proporcionalidade e o da igualdade.
O art.204.º da C.R.P. limita-se a estatuir que os tribunais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
Como o arguido A... refere na motivação e conclusões do seu recurso , o art.14.º, n.º1 do RGIT , exigindo que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada seja sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária em dívida , afasta a aplicação do art.51.º, n.º2 do Código Penal .
È evidente que o art.14.º do RGIT ( como o era o art.11.º, n.º 7 do RJIFNA ) consagra algumas especialidades em relação ao regime geral de suspensão da pena constante do Código Penal , pois o art.51.º deste Código não sujeita obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia devida à vítima ou ao lesado.
No caso dos crimes tributários , a eficácia do sistema fiscal pode justificar regime diverso que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda únicamente ao montante da quantia em dívida . Dito de outro modo , o objectivo do interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter parimonial e , como tal , uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente.- Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional de 31 de Dezembro de 2002 ( D.R. 2ª Série , n.º 302 , pág. 21 183) .
As razões que , relativamente à generalidade de dos crimes , subjazem ao regime constante do art.51.º , n.º 2 do Código Penal , não têm de necessáriamente assumir preponderância nos crimes tributários , em que se protege a realização de fins do Estado , dependentes do cumprimento do dever de pagar impostos .
Resulta do exposto , que a norma do art.51.º , n.º 2 do Código Penal , que consagra o princípio da razoabilidade , não tem primazia , no caso dos crimes fiscais , sobre o disposto no art.14.º do R.G.T.I..
Da aplicação do art.14.º, n.º1 do RGIT , mesmo quando está provado que o condenado à data da sentença não tem meios económicos para pagar a prestação tributária e acréscimos não resulta necessariamente o cumprimento da pena de prisão .Como resulta do n.º2 deste preceito legal , e do regime geral do Código Penal , só o não cumprimento culposo da obrigação fixada levará à revogação da suspensão da execução da pena.
No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal Constitucional de 21 de Maio de 2003 ( D.R. 2ª Série , n.º 150 , pág. 9872) que julgou não inconstitucionais as normas contidas no art.11.º , n.º7 do RJIFNA e no art.14.º do RGTI , por não colidirem com os principios da culpa , adequação e proporcionalidade .
Na escolha da pena , o Tribunal recorrido não deixou de ponderar os princípios estabelecidos nos art.s 40.º e 70.º , isto é , a culpa e as finalidades da punição .
A aplicação do art.14.º do R.G.I.T. na douta sentença recorrida é feita por um Tribunal , com independência , obedecendo apenas à lei . Tendo o Tribunal concluído que o arguido pode beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão condicionou a mesma ao dever pagamento da prestação tributária e acréscimos legais em dívida como a lei impõe , em benefício do Estado .
Deste modo , a douta decisão recorrida , ao aplicar o art.14.º do R.G.I.T , não violou a função jurisdicional , a independência dos tribunais ou qualquer dos princípios estruturantes da Administração da Justiça enunciados pelo recorrente .
Deste modo improcede o entendimento do arguido/recorrente quanto a esta questão .
Passemos agora a decidir se a sentença recorrida violou o disposto no art.51.º, n.º 2 do Código Penal ao ter imposto ao arguido a obrigação de pagamento de € 189 149,25 , como condição de suspensão da execução da pena , quando resulta dos factos provados sob os pontos n.ºs 23 a 25 que o recorrente não tem condições para cumprir a obrigação.
Esta questão só é de abordar dando-se como assente que o art.14.º, n.º1 , do RGIT não pode ser aplicada pelo Tribunal , por inconstitucionalidade.
Considerando-se que ele não é inconstitucional , como já vimos que não é , então o art.14.º, n.º1 , do R.G.I.T. é aplicável aos crimes tributários , nomeadamente ao crime de abuso de confiança fiscal , afastando o regime geral penal previsto no n.º2 do art.51.º do Código Penal .
O n.º 2 do art.51.º do Código Penal não tem aplicação ao presente caso , pelo que bem andou o Tribunal recorrido ao determinar a suspensão da execução da pena de prisão , ao arguido/recorrente , sob a condição de pagamento ao Estado , ao abrigo do art.14.º, n.º1 , do R.G.I.T.
De todo o modo , sempre diremos que mesmo que o n.º2 do art.51.º do Código Penal fosse aplicável ao presente caso – e não é – , ao contrário do defendido pelo recorrente , dos pontos n.ºs 23 a 25 dos factos provados não se conclui que o arguido não tem condições económicas para cumprir a obrigação que lhe imposta na douta sentença de pagamento do montante do IVA . Pelo que , mesmo no caso de aplicação do art.51.º, n.º2 do Código Penal ao caso em análise , nada obstaria a que a suspensão da execução da pena de prisão ao arguido fosse subordinada ao dever de pagamento da aludida quantia a favor do Estado.
Finalmente , vejamos se a douta sentença recorrida é nula , nos termos do art.410.º , n.º 3 do C.P.P. , por não ter fixado o prazo expressamente previsto no art.14.º do R.G.I.T. para cumprimento da condição de pagamento fixada na mesma sentença .
Antes do mais diremos que as nulidades da sentença não se encontram previstas no art.410.º , n.º 3 do C.P.P. , mas no art.379.º do mesmo Código , que é uma disposição especifica sobre os vícios da sentença e que nos termos do n.º2 do art.379.º do C.P.P. , é licito ao tribunal “a quo” suprir as nulidades de sentença , aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto no art.414.º, n.º4 , do mesmo Código.
Fora dos casos previstos no art.379.º do C.P.P. pode ainda o tribunal , nos termos do art.380.º , do mesmo Código , oficiosamente ou a requerimento , suprir , nomeadamente, erros , lapsos, obscuridades ou ambiguidades cuja eliminação não importe modificação essencial.
O art.14.º n.º1 do RGIT impõe que a suspensão da execução da pena de prisão fica condicionada ao pagamento , em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação , da prestação tributária e acréscimos legais.
Salvo o devido respeito , parece-nos claro e evidente que quando a douta decisão recorrida decidiu , no dispositivo , suspender ao recorrente a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos e 6 meses , condicionada ao pagamento pelo arguido de metade do valor total do IVA que ainda se encontra em dívida, ou seja de 189.149,25 euros, acrescido dos acréscimos legais, está a dizer que o prazo de pagamento coincide com o prazo de suspensão de execução da pena de prisão.
Apesar se nos parecer que a douta sentença não carecia de aclaração , o Ex.mo juiz , por despacho de 11 de Março de 2004 , proferido a folhas 2443 , do qual não foi interposto recurso , decidiu esclarecer e tornar claro , face à posição do arguido A... tomada no seu recurso , que a condição para a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada “ coincide com o período que ficou definido para durar essa suspensão , ou seja , 2 anos e 6 meses.”.
Deste modo , não se reconhece a invocada nulidade da douta sentença recorrida.
Recurso da arguida B...
A arguida/recorrente defende nas conclusões do seu recurso que agiu sem culpa , uma vez que não conhecia a realidade da empresa “Comercial Parque, S.A.” , pelo que não prestou qualquer informação à Administração Fiscal nem esta lha pediu.
Apesar de a douta sentença referir uma única vez o dolo directo , por tal ser impossível , este não foi fundamentado .
Vejamos.
Como já atrás deixámos expresso a impugnação da matéria de facto exige que se dê cumprimento ao disposto no art.412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal .
Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior devem ser feitas , pelo recorrente , por referência aos suportes técnicos . art.412.º, n.º 4 do C.P.P. .
No presente caso , tendo havido documentação de prova esta não foi impugnada pela recorrente B... nos termos do art.412.º , n.º 3 do C.P.P. , nem na motivação nem nas conclusões , pelo que a matéria de facto não pode ser modificada , sem prejuízo do disposto no art.410.º do mesmo Código ( art.431.º do C.P.P.).
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito , o recurso pode ter por fundamento , desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou
c) O erro notório na apreciação da prova .
A recorrente B... não aponta à douta sentença recorrida os vícios a que aludem estas alíneas , nem os vislumbramos do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum , nomeadamente o erro notório na apreciação da prova que tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
O erro notório na apreciação da prova, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento .
Face ao exposto tem-se como definitivamente fixada a matéria de facto tal como consta da douta sentença .
O art.13.º do Código Penal estabelece que só é punível o facto praticado com dolo ou , nos casos especialmente previstos na lei , com negligência.
O art.14.º do mesmo Código , define as modalidades de dolo , mencionando no seu n.º1 o dolo directo , nos seguintes termos : « age com dolo quem , representando um facto que preenche um tipo de crime , actuar com intenção de o realizar.».
Analisando a matéria de facto provada resulta da mesma , em resumo , que os arguidos A... e B... foram membros do Conselho de Administração da sociedade C..., sendo que a arguida B... se mantém nessas funções até ao presente.
Durante o período de tempo que mediou o início do ano de 1995 e finais do ano de 1997, a C... exerceu normalmente aquela actividade e através dos arguidos A... e B..., como seus administradores, liquidou e recebeu dos respectivos clientes o IVA relativo às transacções por si realizadas, nomeadamente trabalhos realizados a diversos clientes a quem foram emitidas facturas nas quais o IVA foi liquidado.
Remeteram aos Serviços de Administração do Imposto sobre o Valor Acrescentado, as competentes declarações periódicas , mas não fizeram acompanhar aquelas declarações periódicas dos respectivos meios de pagamento, tal como estavam obrigados.
Os arguidos quiseram entregar aos Serviços de Administração do IVA as declarações relativas a tal imposto referentes aos meses de Dezembro de 1995, Janeiro, Fevereiro, Abril e Maio de 1996, sem os fazer acompanhar dos respectivos meios de pagamentos, sabendo que a isso se encontravam vinculados , causando ao Estado Português um prejuízo patrimonial 37.921.020$00 ( correspondente a 189.149,25 euros).
Actuaram com o propósito de obterem para a sociedade de que eram administradores um benefício patrimonial correspondente ao valor total do imposto devido e não entregue e respectivos juros compensatórios e moratórios e de causar ao Estado Português um prejuízo equivalente a tais quantias, que sabiam ser de valor consideravelmente elevado, como efectivamente causaram.
Actuaram os arguidos sempre de comum acordo e de forma consertada, em comunhão e conjugação de esforços, na sequência de decisões que tomaram em conjunto, com o objectivo de obterem para a sociedade de que eram administradores, vantagens patrimoniais às quais sabiam não ter direito.
Os arguidos apropriaram-se das quantias de IVA acima descritas e não procederam à respectiva entrega à Administração Fiscal por a sociedade arguida ter deixado de ter fluxos financeiros que lhe permitisse regularizar totalmente as dívidas quer ao Estado, quer a Bancos, quer a fornecedores, tendo perdido fundo de maneio, tendo sido dada prioridade ao pagamentos dos trabalhadores e fornecedores da sociedade para esta subsistir.
Agiram de forma livre, deliberada e consciente , bem sabendo que as respectivas condutas eram proibidas e puníveis por lei.
Perante esta matéria de facto temos de concluir , sem o mínimo de dúvida , que são abundantes os factos de onde resulta que a arguida agiu com dolo directo .
Se atendermos à fundamentação da douta sentença , verificamos que o Tribunal fez uma exaustiva exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal , nomeadamente quanto à culpa da arguida/recorrente , dando cumprimento ao disposto no art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Sem querer repetir o que consta da abundante fundamentação , diremos que não vai contra a livre convicção e as regras da experiência comum concluir , como ali consta , que a arguida/recorrente conhecia a situação fiscal da empresa e a necessidade de entregar ao Estado o IVA liquidado nas transacções efectuadas pela arguida C... , pois ela era administradora da empresa e subscrevia a declarações periódicas do IVA.
Assente , face à matéria de facto provada , que a recorrente conhecia a realidade da sociedade e agiu com dolo na prática dos factos em causa , é inevitável concluir que o arguido A... não é o único responsável pela não entrega ao Estado das prestações tributárias de IVA a que se encontravam vinculados como administradores da sociedade arguida .
Ambos actuaram de comum acordo e de forma consertada, em comunhão e conjugação de esforços .
Quanto à questão de a sentença não referir quando o imposto foi liquidado e consequentemente não permitirem os factos integrar a conduta da arguida/recorrente no art.24.º , do RJIFNA , limitamo-nos a remeter para os elementos deste tipo legal atrás já definidos.
Dos factos dados como provados na douta sentença , nomeadamente nos pontos n.ºs 8 a 16 , resulta estar assente suficiente matéria de facto para integrar a conduta da arguida/recorrente no art.24.º , do RJIFNA.
Nestes termos não procede o recurso interposto pela arguida B....

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido A... do despacho de 5 de Maio de 2003 e da sentença , e negar provimento ao recurso interposto pela arguida B... da sentença , mantendo-se as doutas decisões recorridas .
Custas pelos arguidos, fixando em 10 Ucs a taxa de justiça a cargo do arguido e em 6 Ucs a taxa de justiça a cargo da arguida/recorrente.

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Coimbra,