Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
309-B/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE
BASE INSTRUTÓRIA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 10/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU - 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ALÍNEA B) DO N.º1 DO ARTIGO 668º., O N.º 4 DO ARTIGO 646.º E N.º 2 DO ARTIGO 456.º DO CPC
Sumário: 1) A fundamentação deficiente da matéria de facto não gera nulidade (que só a falta absoluta de motivação pode desencadear), e, muito menos, a nulidade da alínea b) do n.º1 do artigo 668.º do CPC, que se reporta à sentença, mas, tão-só, a obrigação de fundamentar, se tal for requerido em via de recurso e os factos em questão forem essenciais para a decisão da causa;

2) Os factos que só possam ser provados por documento não devem ser levados à base instrutória, uma vez que o n.º 4 do artigo 646.º do CPC considera não escritas as respostas dadas nessas circunstâncias;

3) Também os juízos de valor são insusceptíveis de quesitação;

4) Só o erro notório na apreciação da prova permite à Relação alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância;

5) Factos notórios são aqueles de que a maioria dos cidadãos do país regularmente informados tem conhecimento, não estando nessa situação o estilo e a praxe da comarca quanto aos honorários de advogado;

6) Os elementos de maior relevo para a fixação dos honorários de advogado são o tempo gasto e a dificuldade do assunto.

7) A litigância de má fé visa prevenir o dever de probidade processual.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I Relatório:

            Dra.A..., casada, advogada, com domicílio profissional na...., e B..., divorciado, advogado, com domicílio profissional na...., intentaram acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra C..., ao tempo, casado, e, actualmente, divorciado, com residência na...., alegando, em resumo, que:

No exercício da sua actividade profissional de advogados, a pedido da, então, mulher do réu, assumiram o patrocínio deste último em acção de indemnização baseada em responsabilidade civil emergente de acidente de viação, que ele entendeu propor contra uma companhia de seguros.

Nesse sentido, coligiram elementos, elaboraram a petição, instauraram a acção e seguiram todos os termos do processo até à decisão final do mesmo pelo Supremo Tribunal de Justiça, que condenou a ali Ré Companhia de Seguros a pagar ao ora réu uma indemnização de € 165.270,15, acrescida de juros.

Enviada a conta de honorários, no valor de € 50.000, acrescida de € 10.500 de IVA, a mulher do réu manteve que pagaria os honorários, na medida em que recebesse parte da indemnização, mas o réu recusou pagar qualquer quantia, argumentando beneficiar de patrocínio judiciário.

Os autores exerceram o patrocínio, não por terem sido nomeados, mas porque o réu lhes conferiu mandato forense para tanto. De resto, jamais assinaram qualquer documento de aceitação do patrocínio judiciário que ignoravam que tivesse sido solicitado.

Concluíram pelo pedido de condenação do réu no pagamento dos honorários reclamados (€ 50.000,00, acrescidos de IVA, no montante de € 10.500,00) – salvo se, entretanto, for definitivamente fixado, por acordo ou judicialmente, entre o réu e sua mulher, que esta terá direito a determinada percentagem na indemnização, pois, em tal caso, e na mesma percentagem, competirá àquela pagar os honorários –, acrescidos de juros moratórios e compensatórios, à máxima taxa legal, a partir da citação.

Regularmente citado, o réu contestou deste modo:

Não se recorda de ter outorgado a procuração, cuja assinatura impugna.

Jamais contratou os autores, que actuaram a coberto do patrocínio judiciário concedido.

Sendo o autor, B...., o patrono escolhido no âmbito do patrocínio judiciário, só com abuso do direito pode a autora, Dr.ª A..., reclamar os mesmos honorários, a pretexto da procuração ser conjunta.

Ainda que assim não fosse, sempre seria excessivo o montante dos honorários reclamados.

            No despacho sanador, foram declaradas a validade e a regularidade da lide.  

            A selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória) foi objecto de reclamação de ambas as partes, qualquer delas sem êxito.

            Realizado o julgamento e fixados, sem reparo, os factos a atender, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 8.250,00, absolvendo-o do demais peticionado pela mesma e de tudo o que lhe foi pedido pelo autor.

            Inconformados, tanto os autores como o réu interpuseram recurso, mas o deste foi julgado deserto, por falta de alegação.

            Os autores alegaram e formularam mais de duas dezenas de conclusões, que se podem resumir, sem problema algum, nas nove seguintes:

            1) A fundamentação das respostas aos pontos de facto da base instrutória deve ser efectuada ponto por ponto, sem prejuízo de se englobarem numa justificação única vários factos correlacionados, e nunca em globo.

            2) O depoimento de uma testemunha não pode ser aceite para uns factos e desvalorizado para outros, como sucedeu com o da testemunha E...; ou se aceita no seu todo, ou não se aceita.

            3) Inaceitável é, igualmente, a dicotomia entre testemunhas boas e más, sendo boas as do réu e más as dos autores.

            4) A decisão de facto moldada nestes parâmetros padece do vício de falta de fundamentação, o que acarreta a nulidade do julgado, nos termos do artigo 668.º, alínea b), do CPC.

            5) Tais postura e vício repercutiram-se nas respostas aos quesitos 2, 3, 4 e 5, que deveriam ter sido afirmativas.

            6) De resto, os factos do quesito 4 são notórios e os do quesito 5 resultam, também, dos documentos juntos pelo Conselho Distrital da Ordem dos Advogados.

            7) Por se revestirem de interesse para a discussão da causa, o facto constante do artigo 9 deveria ter sido levado aos factos assentes, enquanto que os factos dos artigos 8, 30 e 31 deveriam ter sido incluídos na base instrutória, podendo, mesmo, o último ser considerado assente.

            8) Foi violado o artigo 511.º do CPC.

            9) Ao pretender convencer o tribunal de que o patrocínio de ambos os autores foi no âmbito do apoio judiciário, o réu litigou de má fé.

            Requereram, a final, que.

a) Se ampliasse a matéria de facto, nos termos expostos;

b) Se anulasse o julgamento na sua totalidade, por falta de fundamentação;

c) A não se entender assim, se dessem por provados os quesitos 1.º a 5.º e se julgasse a acção procedente, com a condenação do réu no pagamento aos autores da importância peticionada;

d) Se condenasse o réu em multa e indemnização por ter litigado de má fé.

O réu apresentou resposta à alegação dos autores, que concluiu assim:

1) Não existindo registo da prova produzida, não pode ser alterada a decisão de facto, que, a acontecer, constituiria uma violação do princípio da oralidade e imediação;

            2) Não configura nulidade da sentença a interpretação da prova de forma diferente da pretendida pelos autores;

            3) Os apelantes confundem fundamentação das respostas aos quesitos com motivação da sentença;

            4) A sentença está irrepreensivelmente fundamentada;

            5) A conta de honorários não constitui facto notório;

            6) Não podem ser valorados meios de prova que não foram juntos aos autos;

            7) A decisão não merece reparo, pelo que o recurso deve improceder.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Conforme o que resulta das conclusões da alegação de recurso, são estas as questões a resolver:

            a) A nulidade do julgamento, por falta de fundamentação;

            b) A ampliação da matéria de facto;

            c) A alteração da matéria de facto;

            d) O montante dos honorários;

            e) A litigância de má fé.

            II. Na sentença foram dados por provados os seguintes factos:

A) Os autores exercem, ambos, a actividade profissional de advogado, sendo titulares, respectivamente, da cédula profissional 4045C e 985C.

B) A 24 de Junho de 2000, o réu sofreu um acidente de viação, quando transitava, de moto, na Avenida da Bélgica, na cidade de Viseu.

C) Por causa desse acidente, o réu sofreu politraumatismos e ficou em estado de coma.

D) O réu teve internamentos hospitalares durante vários meses.

E) No âmbito da acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário, com o n.º 309/2001, que correu seus termos neste tribunal, a que se encontram apensos os presentes autos e em que eram partes o aqui réu, C...., e ré a Companhia de Seguros D..., destinada a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão, condenando aquela ré no pagamento ao aí autor da indemnização de € 165.270,15, acrescida de juros moratórios legais sobre a quantia de € 162.666,99, desde a data da sentença e sobre a quantia de € 2.603,16 (correspondente a 50% dos danos por despesas não actualizados) a contar da citação, conforme acórdão junto aos supra identificados autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido.

F) Nessa acção, os autores exerceram o patrocínio do réu, outorgando-lhes este procuração forense, datada de 7 de Maio de 2001, nos termos constantes de fls. 17 do processo acima referido, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.

G) Por decisão do Instituto de Solidariedade e Segurança Social – Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Viseu, datada de 19/03/2001, foi concedido ao aqui réu, autor na acção acima referida, apoio judiciário, com a finalidade de instaurar acção de indemnização por acidente de viação, nas modalidades de pagamento de honorários a patrono escolhido, dispensa de pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos do processo (fls.16 do processo n.º 309/2001, que se dá aqui por integralmente reproduzido).

H) O patrono escolhido no âmbito daquela modalidade de apoio judiciário foi o aqui autor, Sr. B...., com domicílio profissional em Viseu, conforme decisão do Instituto de Solidariedade e Segurança Social – Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Viseu, datada de 19/03/2001, comunicada ao Ex.mo Sr. Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados de Coimbra.

I) Por carta de 22 de Maio de 2007, remetida ao réu e a sua mulher, E... , os autores apresentaram nota de honorários, com o valor de € 60.500,00, com IVA incluído, relativos ao patrocínio exercido no processo supra referido, tudo conforme resulta de fls.21 e seguintes dos presentes autos, cujos termos se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos.

J) Até à data, o réu não pagou aos autores a quantia constante dessa nota de honorários.

K) A mulher do Réu contactou os autores, com vista à obtenção do respectivo patrocínio na acção referida em E), para exigir judicialmente a reparação dos prejuízos sofridos pelo então marido com o dito acidente de viação.

L) Os autores despenderam horas de trabalho, quer na preparação e condução do processo, quer no julgamento e acompanhamento do mesmo até final.

M) Em Maio de 2001, o Réu encontrava-se medicado, tomando diariamente comprimidos.

N) Aquando da propositura da referida acção, os autores sabiam que o réu beneficiava de apoio judiciário, inclusive na modalidade de pagamento de honorários de patrono escolhido.

O) A referida acção n.º 309/2001 foi proposta em 09.05.2001.

III. O direito:

a) A nulidade do julgamento

Os recorrentes desenham a questão nestes moldes, conforme o que consta das conclusões 2 a 7 da sua alegação, que se transcrevem:

2) A decisão proferida sobre as respostas a dar aos factos da BI devem ser devidamente justificadas; 3) a justificação deve ser ponto por ponto, facto por facto, devidamente analisadas, isto sem prejuízo de se englobarem numa única justificação vários factos correlacionados; 4) não pode aceitar-se uma justificação global quanto à matéria de facto provada e outra justificação global quanto à matéria de facto não provada; 5) não pode cindir-se o depoimento de uma testemunha, aceitando-se num momento como dizendo a verdade e de seguida se diz que o depoimento é comprometido, apaixonado e tendencioso, como é o caso da E...; 6) não pode aceitar-se a dicotomia entre as testemunhas verdadeiras e convincentes, que são as do réu, e as que depõem de forma interessada, que são as do autor, por mais idóneas que sejam; 7) não decidindo de forma diferente, o tribunal cometeu o vício de falta de fundamentação, o que acarreta a nulidade do julgado – artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC.

A alegação prévia às conclusões é bastante mais extensa, como é óbvio, mas, em termos substanciais nada acrescenta, pois que o que dela consta é a prova que, segundo os recorrentes, se teria produzido, mormente a testemunhal, que não foi objecto de gravação ou de registo, e que contradiria a matéria de facto dada por assente.

Perante isto, que dizer?

Em primeiro lugar, que nulidade e matéria de facto provada são coisas diferentes e que não faz sentido procurar discutir esta no âmbito de uma pretensa nulidade derivada da falta de fundamentação.

Depois, que há um lapso palmar na invocação do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil[1], já que este normativo se refere à nulidade da sentença, o que nada tem a ver com o julgamento de facto.

No que a esta matéria tange, interessam os n.ºs 2 e 4 do artigo 653.º e os n.ºs 4 e 5 do artigo 712.º, de cujo teor conjugado se pode extrair a seguinte sequência: o tribunal declara os factos que julga provados e não provados e analisa criticamente as provas, especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador; as partes podem reclamar contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão ou contra a falta da sua motivação; da decisão que deferir ou indeferir a reclamação não cabe nova reclamação; a questão não fica, no entanto, definitivamente solucionada, já que pode ser reaberta em via de recurso; no que concerne aos vícios das respostas (deficiência, obscuridade ou contradição), o conhecimento é, mesmo, oficioso para a Relação, que tem o dever de anular a decisão, ainda que o problema lhe não seja suscitado, mas só no caso de não constarem do processo os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º, permitam a reapreciação da matéria de facto; já no que toca à fundamentação, a Relação só intervém se se estiver em presença de facto essencial para o julgamento da causa e se os interessados o requererem, mas, apenas, para determinar que o tribunal de 1.ª instância profira nova decisão fundamentadora, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção da prova, quando necessário (sobre o tema, Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, páginas 651/657, e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, páginas 135/140).

Como se vê, o desrespeito pela disposição do n.º 2 do artigo 653, no segmento referente à motivação, acarreta, tão-somente, a renovação desta, e não a nulidade da decisão, que só a inexistência de fundamentação tem virtualidade para gerar (acórdão do STJ, de 25.06.2002, CJ/STJ, Ano X, tomo II, página 128).

Os recorrentes não requereram que esta Relação ordenasse a fundamentação da matéria de facto, pelo que a questão se poderia dar por encerrada.

Dir-se-á, todavia, que a fundamentação das respostas aos pontos de facto da base instrutória, não sendo um paradigma de boa prática processual, satisfaz, ainda assim, os requisitos mínimos quanto à matéria dada por provada; quanto à julgada não provada, já assim não é, mas a verdade é que isso nada relevaria, ainda que tivesse sido requerido o reforço da fundamentação, pelas razões que adiante se explanarão.

Diz Lopes do Rego, depois de assinalar a maior exigência actual do dever de fundamentação, que ela se deve fazer por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas, também, a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles revelaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador (Comentários ao Código de Processo Civil, página 434).

E o mesmo parece ser o entendimento de Miguel Teixeira de Sousa, quando fala nos fundamentos suficientes para, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se poder controlar a razoabilidade da convicção (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, página 348).

E não anda longe disso Antunes Varela, quando, no domínio, embora da legislação anterior, refere as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida aos meios de prova que geraram a convicção do julgador (ob. cit., página 653).

Certo é, no entanto, ao contrário do que pretendem os recorrentes, que a lei não exige a fundamentação ponto por ponto nem veda a possibilidade de o depoimento de uma testemunha ser aceite somente em parte.

Não se duvida de que a fundamentação ponto por ponto seja mais cristalina, precisa e esclarecedora e, por conseguinte, mais convincente, cumprindo melhor a função de “forçar o julgador, no seu próprio interesse de árbitro esclarecido e isento, a acompanhar atentamente toda a instrução da causa, e a confrontar especialmente os diversos meios probatórios relativos ao mesmo facto” e de “facilitar o controlo da decisão pelo tribunal de recurso” (Antunes Varela, ob. cit., página 654 e nota 2).

Mas o nosso ordenamento processual não vai ao limite de impor o óptimo, contentando-se com a suficiência, que é como quem diz, com a indicação das provas que foram decisivas para a convicção do julgador, analisadas em função das regras da experiência, da normalidade dos factos, da razão e dos dados da ciência.

Como escreve Lebre de Freitas, o tribunal deve explicar porque acreditou nesta ou naquela testemunha, mas a imposição da fundamentação não obsta à motivação conjunta de várias respostas (Código de Processo Civil Anotado, volume II, páginas 627 e seguintes).

Não colhe, do mesmo jeito, o argumento do tudo ou nada na aceitação de um depoimento; uma testemunha pode revelar melhor conhecimento e maior segurança em relação a alguns factos do que a outros; quanto aos factos de que tem idêntico conhecimento, não é descabida a hipótese da dualidade de depoimento; se, porventura, tiver interesse no desfecho da questão, pode muito bem afeiçoar as declarações à versão defendida pela parte a quem as mesmas aproveitem.

Tudo passará, no fundo, por que o tribunal logre alcançar as motivações do depoente e saiba destrinçar o certo do errado, partindo, naturalmente, de bases lógicas e objectivas, que terá de plasmar na fundamentação.

A fundamentação relativa à matéria de facto dada como provada teve em atenção os depoimentos das testemunhas E.... e F... , ex-mulher e irmão do réu, respectivamente, na medida, aquela, em que contactou os autores com vista à obtenção do patrocínio na acção para exigir judicialmente a reparação dos prejuízos sofridos pelo ora réu em acidente de viação, esclareceu que este tinha espasmos musculares e ataques epilépticos e declarou ter recebido da autora, sra. dra. A..., um requerimento destinado ao pedido de concessão de apoio judiciário para apresentar na Segurança Social, como fez, e esta, enquanto se pronunciou de modo semelhante àquela em relação à situação clínica do irmão.    

Atendeu-se, ainda, à prova documental junta, atinente, no essencial, à concessão do benefício do apoio judiciário (formulação do pedido, seu deferimento e devidas comunicações, seja ao interessado, seja ao patrono escolhido e nomeado, o sr. B...., seja ao ex.mo presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados), e à acção em razão da qual foi proposta a acção de honorários.

Afigura-se evidente, fazendo apelo às regras da lógica e da experiência, que a decisão, igualmente, invocou, que a fundamentação avançada permite sustentar, com razoabilidade, uma convicção segura sobre o julgamento da matéria de facto considerada provada.

Se, por um lado, é lógico aceitar que a ex-mulher do réu, porque tratou do assunto, tivesse conhecimento da matéria do artigo 1.º da BI e que a mesma e o cunhado (irmão do réu) estivessem inteirados da situação clínica deste (artigo 6.º), não se pode duvidar, por outro, que o processo a que o presente está apenso e a documentação referente ao pedido de concessão de apoio judiciário são elementos decisivos para compreender a factualidade dos artigos 5.º e 8.º, respectivamente.   

Quanto à matéria não provada, já as coisas são diferentes, porque a decisão se limitou a afastar os depoimentos das testemunhas E...(em virtude da inimizade que revelou para com o réu, de quem se divorciou e com quem está de relações cortadas) e G... (por nada saber de concreto e ter apresentado um discurso indirecto e conclusivo), bem como os do sr. dr. H.... , I... e J... , pela especial relação de proximidade que têm com o autor, que os levou a presta depoimento opinativo, premeditado e sugestionado.

Há que convir que a fundamentação, nesta parte, fica aquém da exigência legal, porque não existe, na realidade, análise crítica; se, relativamente à testemunha E..., ainda se pode aceitar, com base nos dados da experiência, que a aversão que vota ao ex-marido dá cobertura à ausência de credibilidade no que tange à matéria que a ele aproveita, já é pouco razoável que a relação de proximidade das três últimas testemunhas com o autor justifique, só por si, a desvalorização dos seus depoimentos; impor-se-ia algo muito mais esclarecedor, nomeadamente no que toca ao preenchimento dos qualificativos “opinativo”, “premeditado” e “sugestionado”, que se não compreende em que se traduziram na situação concreta.

A questão é que (e o argumento valeria, identicamente, para a fundamentação positiva, se insuficiente, o que não é o caso), ainda que se pudesse ordenar a melhoria da fundamentação, o que, como vimos, não sucede, isso de nenhuma utilidade prática se revestiria, uma vez que, não tendo sido gravados ou reduzidos a escrito os depoimentos, não podia esta Relação sindicar as respostas e, consequentemente, alterar a matéria de facto (neste sentido o acórdão do STJ, de 25.06.2002, supra citado).

Em suma, a invocada nulidade do julgamento improcede.

b) A ampliação da matéria de facto

            No momento próprio, os ora recorrentes reclamaram contra a selecção da matéria de facto, pretendendo que fossem incluídos nos factos assentes os que constam dos artigos 8.º, 9.º e 36.º da petição inicial e levados à base instrutória os dos artigos 30.º e 31.º da mesma peça.

            A reclamação foi indeferida, sob a argumentação de o facto do artigo 8.º só poder ser provado por documento, o do artigo 9.º ser irrelevante e conclusivo, o do artigo 36.º já estar plasmado na alínea E), no que contém de relevante, e os dos artigos 30.º e 31.º serem instrumentais e probatórios.

            Os recorrentes deixaram cair a matéria do artigo 36.º da petição inicial, aceitando que a mesma se encontra na alínea E) dos factos assentes, mas insistiram pela relevância dos restantes para a discussão da causa.

            A impugnação é legítima, uma vez que os recorrentes reclamaram em tempo oportuno, mas sem sucesso, contra a selecção (artigo 511.º, n.ºs 2 e 3); mas, ainda que assim não fosse, o certo é que a selecção da matéria de facto não tem valor definitivo[2], não faz caso julgado[3], pelo que pode ser corrigida até ao encerramento da discussão (cfr. a alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º) e, mesmo, até ao julgamento na Relação (artigo 712.º, n.º 4).

            Ponto é que exista matéria (alegada ou resultante da discussão, neste caso se verificado o condicionalismo dos n.ºs 2 ou 3 do artigo 264.º) relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (artigo 511.º, n.º 1). 

            O problema reside, exactamente, em saber quando é que um facto é relevante. Alberto dos Reis, depois de chamar a atenção para duas realidades extremas (os questionários excessivos e os questionários comprimidos), dá-nos a resposta, mas, de algum modo, pela negativa: devem excluir-se os factos que, seja qual for a solução a adoptar, não contam para o julgamento da causa (Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 220/222).

            Esta era, também, a solução preconizada por Manuel de Andrade no seu ensino, ao falar na selecção dos factos pertinentes à causa e indispensáveis para a resolver e no afastamento daqueles de que não pudesse depender, segundo a lei, a sorte do litígio, para, em jeito de conclusão, afirmar: “mas só devem pôr-se de parte como irrelevantes aqueles que verdadeiramente não interessem à decisão final, em face de qualquer das soluções plausíveis que a questão de direito possa comportar” (Noções Elementares de Processo Civil, página 175).

            É claro que na selecção se não podem perder de vista as regras do ónus da prova, estabelecidas no artigo 342.º do Código Civil, dada a necessidade de alegação dos factos por parte do interessado a quem os mesmos aproveitam.

            Posto isto, vejamos:

            Os autores propuseram acção de honorários contra o ora réu, alegando que ele lhes não pagou a remuneração devida pelo patrocínio de uma acção de acidente de viação, que, a pedido da, então, mulher dele intentaram contra uma companhia de seguros.

            O ré defendeu-se, além do mais, com o argumento de nada ter contratado com os autores, que teriam sido nomeados para intentar a acção no âmbito do apoio judiciário.

            Os artigos 8.º e 9.º da petição inicial referem-se a alegada dificuldade em conseguir êxito na acção de acidente de viação, o que justificaria, parece ser essa a ideia, o montante peticionado a título de honorários. 

            Os artigos 30.º e 31.º têm a ver com o patrocínio no âmbito do apoio judiciário.

            A respectiva redacção é a seguinte:

            8.º – O procedimento criminal emergente do acidente foi arquivado;

            9.º – A prova da culpa do acidente revela-se difícil;

            30.º – A autor, já em fim de carreira e até aposentado, há décadas que não faz patrocínios oficiosos;

            31.º – Jamais os autores assinaram qualquer documento de aceitação do patrocínio oficioso, que ignoravam que tivesse sido solicitado, conforme estipula expressamente a lei 30-E/00.

            Como acima se disse, a 1.ª instância recusou a matéria do artigo 8.º, por só poder ser provada por documento, e a do artigo 9.º, por ser irrelevante e conclusiva; os recorrentes aceitam que a matéria do artigo 8.º só se prova por documento, mas contrapõem que, por isso mesmo, deveria ser levada à base instrutória; quanto ao artigo 9.º, sustentam que contém matéria de facto relevante para a decisão, devendo, nessa medida, ser quesitado.

            Mas não têm razão. Quando determinada matéria só puder ser provada por documento, como é o caso da do artigo 8.º, a quesitação é inadmissível, por não passar de um acto inútil[4].

            Basta ler o n.º 4 do artigo 646.º: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo…sobre factos que só possam ser provados por documentos…”.

            Se a resposta é considerada, por lei, não escrita, é claro que a pergunta não pode ser formulada (neste sentido, o acórdão do STJ, de 04.03.2008, CJ/STJ, Ano XVI, tomo I, página 1519; de resto, para que serve uma pergunta que não vai ter uma resposta?

            Não se percebe, de resto, a insistência dos recorrentes, que só a incúria sua podem atribuir a falta de prova da matéria em causa; era uma questão de juntar o documento até ao encerramento da discussão. E nem sequer se pode dizer que não tenham sido alertados, porque a decisão sobre as reclamações deveria tê-los deixado de sobreaviso.

            A matéria do artigo 9.º, por outro lado, é, como se decidiu na reclamação, irrelevante e conclusiva; conclusiva, porque não contém factos, mas um mero juízo de valor; irrelevante, porque à peça selectiva só vão os factos e não os juízos de valor, como claramente ressalta do n.º 1 do artigo 511.º.

            Se os autores pretendiam, como referem, agora, nas alegações exprimir a dificuldade que tiveram para conseguir êxito parcial na acção, deveriam ter relatado a situação que se lhes deparou e, bem assim, o que fizeram, mas com factos precisos e concretos; dizer que a prova da culpa era difícil é o mesmo que nada dizer. O que para uns é difícil, pode ser fácil para outros; o conceito de difícil é, como facilmente se percebe, muito relativo.  

            Passando aos artigos 30.º e 31.º, cuja selecção foi, também, rejeitada, por se tratar de matéria instrumental, defendem os recorrentes a necessidade da sua incorporação nos factos a provar, por se poder concluir da sua indagação que o sr. B.... nunca teria sido aceite o patrocínio oficioso.

            Com o devido respeito, é rigorosamente indiferente para a sorte da acção saber se o sr. B.... não faz patrocínios oficiosos há décadas (se nomeado, teria de os fazer, é evidente, a menos que pedisse escusa e esta fosse deferida) e se assinou, ou não, documento de aceitação do patrocínio, porque, de facto, o aceitou, ao não reagir à nomeação, de que foi devidamente notificado por correio registado (documentos de folhas 160 e 161).

            Não deixa de ser curioso, de resto, que os recorrentes afirmem, naquele artigo 31.º, ignorar que tivesse sido solicitado o patrocínio, quando a testemunha E..., segundo o que eles mesmos disseram ter sido o seu depoimento, declarou ter levado do escritório da sra. dra. A... o impresso para o pedido a apresentar na Segurança Social.  

            A ampliação da matéria de facto seria, assim, inútil, já que não é possível contornar o facto, documentado pela entidade competente, de o recorrente ter sido nomeado patrono do ora réu no âmbito do apoio judiciário.

            Em conclusão, a questão improcede. 

            c) A alteração da matéria de facto

           

O artigo 2.º da base instrutória (“comprometendo-se, então, perante os autores, por si e pelo réu, a pagar os respectivos honorários, na parte em que viesse a partilhar da indemnização a receber, no caso de o réu ter ganho de causa naquela acção judicial?”) foi declarado “não provado”.

O artigo 3.º (“os autores apenas patrocinaram o aqui réu, porque este lhes conferiu poderes para esse efeito, através da procuração forense acima referida?”) recebeu por resposta: “provado apenas o que consta da alínea F)”. A alínea F), por seu lado, está redigida desta forma: “nessa acção, os autores exerceram o patrocínio do réu, outorgando-lhes este procuração forense, datada de 7 de Maio de 2001, nos termos constantes de folhas 17 do processo acima referido, que se dão aqui por inteiramente reproduzidos”.

O artigo 4.º (“os honorários apresentados correspondem ao que habitualmente se pratica na comarca, em situações semelhantes?”) teve resposta negativa.

Ao artigo 5.º (“os autores despenderam centenas de horas de trabalho, quer na preparação e condução do processo, quer no julgamento e no acompanhamento do mesmo até final?”) respondeu-se assim: “provado apenas que os autores despenderam horas de trabalho quer na preparação e condução do processo, quer no julgamento e acompanhamento do mesmo até final”.

Segundo os recorrentes, todos estes artigos deveriam ter recebido resposta afirmativa, não só por via da prova testemunhal produzida, mas, também, pela notoriedade dos factos (quanto ao quesito 4.º) e pela consulta do processo em que eles patrocinaram o ora réu (quanto ao quesito 5.º).

Esclareça-se, antes de prosseguir, que consagrado, que está, o princípio da liberdade de julgamento (“o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, diz o n.º 1 do artigo 655.º), as respostas aos pontos da matéria de facto controvertida só podem ser alteradas pela Relação em casos excepcionais, concretamente, quando for manifesto o erro na apreciação da prova.

Daqui que sejam muito estreitos os limites da modificabilidade da decisão de facto, prevista no n.º 1 do artigo 712.º.

Como quer que seja, de acordo com as alíneas a), b) e c) daqueles número e artigo, a alteração é admissível se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida, se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, e se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

No caso da alínea a), porém, torna-se necessário que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa – alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 690.º-A – e indique, ainda, se fizer apelo a prova gravada, os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do artigo 522.º-C (n.º 2 deste último preceito).

A alteração por via das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 712.º está totalmente fora de causa, na medida em que os depoimentos prestados não foram gravados e os recorrentes não apresentaram documento novo superveniente com força bastante para afastar toda a demais prova.

Assim sendo, só por força do preceituado na alínea b) seria possível aos autores ver satisfeita a sua pretensão.

Só que se não vê, nem os recorrentes o dizem, onde estejam os elementos dotados da força absoluta a que a lei se refere.

Alberto dos Reis, chamando em seu apoio, Manuel de Andrade, aponta como exemplo os documentos não impugnados (Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 472).

Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes falam, para além do documento com força probatória plena, também, na declaração confessória (Dos Recursos, página 251).

Nada de semelhante a isto existe nos autos.

Aludem, no entanto, os recorrentes, com vista à alteração da resposta ao artigo 5.º, à acção principal, cujos termos lhes dariam razão quanto ao dispêndio de centenas de horas de trabalho.

Mas não é assim, porque a acção em causa não atesta, sem margem para dúvidas, o afirmado gasto de tempo; a única certeza que dela se pode extrair, porque está documentada na respectiva acta, é que o sr. B.... esteve ocupado durante cerca de seis horas na audiência de julgamento, que decorreu entre as 10H00 e as 17H10, com intervalo de uma hora, aproximadamente, para o almoço. É evidente que a elaboração da petição inicial, dos requerimentos de prova e das alegações de recurso, tanto para a Relação, como para o Supremo, e a análise das peças processuais da contraparte, da sentença e dos acórdãos consumiram tempo. A questão é que não está quantificado e, muito menos, de modo a não poder ser infirmado por qualquer outro meio.

Por este lado, nada a fazer. E o mesmo se haverá de dizer do argumento de que a matéria do artigo 4.º é facto notório, não carecendo, como tal, de alegação nem de prova (artigo 514.º, n.º 1).

Este preceito considera como factos notórios aqueles que são do conhecimento geral.

Para Alberto dos Reis enquadram-se na previsão legal os factos que são do conhecimento da grande maioria dos cidadãos do país regularmente informados, isto é, acessíveis aos meios normais de informação, que classifica em duas grandes categorias: acontecimentos de que todos se aperceberam directamente, como, por exemplo, uma guerra, um ciclone, um eclipse total ou um terramoto, e factos que adquirem o carácter de notórios por via indirecta, ou seja, mediante raciocínios formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos, advertindo, porém, que só não há dúvidas em relação aos primeiros, porque, quanto aos segundos, é preciso que o juiz se convença de que o facto originário foi percebido pela generalidade da população e que o raciocínio necessário para chegar ao facto derivado estava ao alcance do homem de cultura média (Código de Processo Civil Anotado, Volume III, página 259/262).

A este entendimento aderiu, também, Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, edição de 1963, página 182), pelo que não há razões para que esta Relação o não faça.

Não será exagero dizer que nem uma minoria dos cidadãos da comarca de Viseu sabe que honorários aí são praticados pelos ex.mos advogados; estender isso à maioria da população portuguesa é, com certeza, uma miragem.

A modificação da matéria de facto é completamente impensável.

d) O montante dos honorários

Entendeu-se na sentença que, tendo actuado no âmbito do patrocínio judiciário, o autor, sr. B...., não tinha direito a receber honorários do ora réu. Já quanto à autora, sra. dra. A..., se decidiu de modo diverso, na consideração de lhe ter sido conferida procuração, tendo-se valorizado o seu trabalho em € 8.250,00 (com o acréscimo do IVA, naturalmente).

Rigorosamente, os recorrentes não questionam o acerto da sentença, enquanto estribada na matéria de facto dada por assente. A sua ideia é outra: a de que a alteração da matéria de facto, com a resposta de provado aos quesitos 2.º e 3.º, e com a prova dos artigos 30.º e 31.º da petição inicial, a incluir, previamente, na base instrutória, por um lado, e com a resposta de provado aos quesitos 4.º e 5.º, por outro, haveria de resultar, respectivamente, no direito do sr. B.... a receber honorários e na fixação destes no montante pedido na acção.

Tendo improcedido tanto a ampliação da matéria de facto como a sua alteração, é claro que a questão dos honorários fica completamente esvaziada.

Dir-se-á, ainda assim, que a sentença não merece, nesta parte, como não mereceu nas demais, qualquer censura.

Não a merece na parte em que absolveu o réu do pedido formulado pelo sr. B...., porque este actuou no âmbito do apoio judiciário – patrono escolhido –, ficando, por conseguinte, aquele dispensado de lhe pagar honorários (artigo 15.º, alínea c), da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, em vigor ao tempo); o serviço prestado terá de ser pago nos termos dos artigos 48.º e seguintes do mesmo diploma.

Aliás, como se escreveu, e bem, na decisão impugnada, aquele ilustre causídico não podia, sequer, contratar com o ora réu mandato forense, já que isso era contrário à natureza do patrocínio judiciário, estando a contratação ferida de nulidade, nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil, por contrariar normas imperativas do sistema de acesso ao direito e aos tribunais.

E não a merece na parte em que fixou o montante dos honorários devidos à sra. dra. A... em € 8.250,00, porque o valor foi criteriosamente calculado, em função dos parâmetros estabelecidos na lei.

O mandato – e, no caso, é do mandato que se trata, definido pelo artigo 1157.º do Código Civil como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra – presume-se oneroso, quando tiver por objecto actos que o mandatário pratique por profissão, sendo que a medida da retribuição, não havendo ajuste entre as partes, é determinada pelas tarifas profissionais, na falta destas, pelos usos, e, na falta de umas e outros, por juízos de equidade (artigo 1158.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma).

No caso específico do mandato forense, prevê o artigo 65.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo decreto-lei n.º 84/84, de 16 de Março (em vigor ao tempo da outorga do mandato)[5], que na fixação de honorários o advogado deve proceder com moderação, atendendo ao tempo gasto, à dificuldade do assunto, à importância dos serviço prestado, às posses dos interessados, aos resultados obtidos e à praxe do foro e estilo da comarca.

O critério geral é o da moderação, o que não significa modéstia, mas ausência de exagero (Orlando Guedes da Costa, Direito Profissional do Advogado, 6.ª edição, 2008, página 254, que cita acórdãos do conselho Superior da Ordem).

No mais, parece desempenhar papel primordial o tempo gasto[6], que é para António Arnaut o factor mais importante (que decompõe em duas parcelas: uma, enquanto custos fixos de manutenção e funcionamento da empresa que é o escritório do advogado, e outra, enquanto remuneração justa do trabalho directamente investido pelo advogado no assunto que lhe está confiado), em conexão com a complexidade do assunto (Iniciação à Advocacia, páginas 101/103).

Orlando Guedes da Costa não valoriza sobremaneira nenhum dos critérios legais, advertindo, até, que os mesmos não são taxativos, mas, sim, exemplificativos[7]; nessa medida, relevariam, ainda, além de outros, o esforço e a urgência do serviço, expressamente considerados no Estatuto dos Solicitadores, a reputação do antagonista e a prestação do serviço fora do domicílio profissional ou em férias e fins de semana. E, na esteira de Cunha Gonçalves, entende que o tempo gasto não é tanto o despendido no estudo do assunto, porque depende da ciência e da inteligência de quem presta o serviço, como o tempo em que o escritório do advogado, com custos fixos cada vez mais elevados, esteve na disponibilidade do cliente (ob. cit., página 254).

A jurisprudência do nosso mais alto Tribunal tende a considerar preponderantes, tal como António Arnaut, o tempo gasto e a dificuldade do assunto.

Assim decidiu o acórdão de 07.07.2009, que chamou em seu apoio outros arestos do mesmo Tribunal (CJ/STJ, Ano VII, tomo II, página 19).

E, também, o acórdão de 27.04.2006, que não deixou, todavia, de assinalar, citando o acórdão de 13.01.2000 (proferido na Revista 1095/97, 7.ª secção), que, na fixação dos honorários, intervém um momento de discricionariedade, que se não confunde com discricionariedade administrativa, mas se insere num certo sentido civilístico em que deve imperar a boa fé que impregna toda a relação contratual, para além de que haverão de ser levados em conta os custos fixos, elevados, de um escritório de advogado, e, bem assim, os riscos da profissão liberal.

Considerando este núcleo fundamental, mas sem excluir os demais critérios a que se refere o artigo 65.º do EOA (importância do serviço prestado, posses do cliente, resultados obtidos e praxe do foro e estilo da comarca), o que é que os autos demonstram relativamente à autora/recorrente?

Que subscreveu a petição inicial da acção 309/01.

Que subscreveu requerimentos de apresentação de prova, nomeadamente rol de testemunhas, quesitos (23) com vista a perícia médico-legal e junção de documentos.

Que acompanhou a convocação e apresentação das testemunhas.

Que recebeu e efectuou notificações.

Que subscreveu os requerimentos de interposição de recurso subordinado, quer de apelação, quer de revista.

Perante este quadro factual, é indiscutível que, excepção feita à petição inicial (que, de qualquer modo, não é líquido quem a tenha elaborado), para ela ficou o trabalho menor: apresentação de requerimentos simples e recebimento e efectivação de notificações.

E mesmo a petição inicial nada tem de dificultoso, estando ao alcance de advogado com um mínimo de experiência; o grande problema da acção seria a prova dos factos, mas essa competia ao cliente a fornecê-la.

O trabalho moroso e mais complexo (acompanhamento dos actos judiciais, mormente o julgamento, e elaboração das minutas de recurso) ficou a cargo do sr. B...., como emerge com clareza da acção.

Temos, pois, que o tempo gasto não pode ter sido muito, havendo de representar, necessariamente, uma parcela diminuta do tempo total efectivamente despendido por ambos os autores, que se cifrou em horas.

Convir-se-á que a determinação do factor tempo – horas – ficou longe do que seria desejável; mas se alguém tem responsabilidades na falta de exactidão, são os autores, que não tiveram o cuidado de alegar com a precisão que o caso requeria.

Dificuldade, já se disse que não existiu, com excepção da elaboração da petição inicial, o que se reflecte na importância (menor) do serviço prestado.

As posses do cliente são, obviamente, baixas, até porque lhe foi concedido o benefício do apoio judiciário.

O resultado obtido foi, inquestionavelmente, satisfatório: o ora réu recebeu cerca de € 165.000,00, dos € 250.000,00 que reclamou (cfr. ampliação do pedido formulada na audiência de julgamento).

A praxe do for e o estilo da comarca ignora-se qual seja, já que a alegação dos autores é omissa a este respeito.

Tirando o resultado, que se deverá mais ao autor (ou, talvez, melhor, aos meios de prova de que dispunha, porque foi na prova que o essencial da questão de fundo se resolveu), que praticou no processo todos os actos relevantes e complexos, nenhum dos elementos atendíveis aponta para retribuição de montante significativo.

Nesta conformidade, afigura-se que quantia fixada em primeira instância respeita o critério legal e se queda nos limites da equidade.

Consequentemente, a questão improcede.

e) A litigância de má fé

            Pretendem, por fim, os recorrentes que, ao procurar convencer que o patrocínio por ambos exercido, e não só o do recorrente, foi no âmbito do apoio judiciário, o réu litigou de má fé, devendo, nessa medida, ser condenado em multa e indemnização, a fixar, esta, segundo o critério do tribunal da Relação.

            Para se configurar a litigância de má fé é necessário, conforme o n.º 2 do artigo 456.º do Código de Processo Civil, que, com dolo ou negligência grave:

            a) Se tenha deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não devesse ignorar;

            b) Se tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

            c) Se tenha praticado omissão grave do dever de cooperação;

            d) Se tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

            Esta disposição, cuja redacção deriva do Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, corresponde, no essencial, à primitiva redacção do preceito e, também, à do artigo 465.º do Código de 1939, com pequenas alterações quanto às situações tipificadoras da litigância de má fé (a introdução da omissão grave do dever de cooperação e uma abrangência maior dos casos de uso manifestamente reprovável do processo) e uma grande alteração quanto à intenção (enquanto antes se exigia o dolo, agora releva, também, a negligência grave).

            Contempla o artigo, como ensina Alberto dos Reis, tanto a má fé substancial – a que respeita ao fundo da causa –, como a instrumental – a que diz respeito à relação jurídica processual, acrescentando que, no primeiro caso, se usa de má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça e, no segundo, a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta (Código de Processo Civil Anotado, volume II, páginas 263/264).

            Em causa está, continua o mesmo autor, o dever de probidade processual, ditado no artigo 264.º,[8] que é como quem diz, o dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências meramente dilatórias (local citado).

            Não obstante a ampliação do dever de boa fé, com a colocação da negligência grave a par do dolo, o certo é que a nossa jurisprudência, nomeadamente a do Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a entender que se deve ser muito prudente no juízo que a tal respeito se faça, em homenagem à garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e ao exercício do contraditório, próprias do estado de direito, concluindo, por isso, pela ilegitimidade de interpretações apertadas do referido artigo 456.º, no âmbito das quais pudesse caber, sem mais, a condenação de má fé da parte que não logrou fazer prova da sua versão dos factos e viu provada a da parte contrária (Acórdão do STJ de 11.12.2003, pesquisado na Internet).

            A esta luz, pois, haverá de ser apreciada a questão ora colocada.

            Não é exacto que o réu tenha procurado convencer que o patrocínio de ambos os recorrentes, e não, apenas, o do recorrente, foi no âmbito do apoio judiciário; o que ele alegou na contestação foi, tão-somente, o seguinte: à época, não tinha capacidade de entendimento, devido ao acidente que sofrera, não se lembrando, por isso, de ter assinado procuração aos autores; a ex-mulher e outros familiares disseram-lhe que não tinha de pagar custas nem honorários a advogado, por lhe ter sido concedido apoio judiciário pela Segurança Social; e, de facto, recebeu, em sua casa, uma carta desta a conceder o falado benefício; entretanto, solicitou o requerimento que instruiu o pedido de apoio judiciário, que não foi preenchido por si, parecendo tê-lo sido, em parte, pelo menos, pela autora; os autores tiveram conhecimento da concessão do benefício, não podendo invocar o desconhecimento de ser o sr. B.... o patrono escolhido (artigos 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º e 32.º da contestação).

            O que ele afirmou, portanto, foi que tinha patrono nomeado no âmbito do apoio judiciário, cujo nome indicou, o que é bem diverso de dizer que ambos os autores estavam nomeados.

            Mas, ainda que se pudesse colher dos autos a ideia transmitida pelos recorrentes, julga-se que nem assim se configurava a litigância de má fé, mormente nas modalidades a que aludem as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 456.º.

            E isto pela razão, simples, de que é perfeitamente aceitável que uma pessoa a quem foi nomeado advogado para a patrocinar, sobretudo se leiga na matéria, pense que o patrocínio a dispensa de todo e qualquer pagamento.

            Por maioria de razão, no caso em apreço, em que foi a própria recorrente que entregou à ex-mulher do réu o requerimento para apresentação do pedido de apoio judiciário na Segurança Social.

            Não parece que, numa situação destas, se demonstre a violação do dever de probidade, que é pressuposto da litigância de má fé.

            A questão está votada ao insucesso.   

IV. Síntese final:

1) A fundamentação deficiente da matéria de facto não gera nulidade (que só a falta absoluta de motivação pode desencadear), e, muito menos, a nulidade da alínea b) do n.º1 do artigo 668.º do CPC, que se reporta à sentença, mas, tão-só, a obrigação de fundamentar, se tal for requerido em via de recurso e os factos em questão forem essenciais para a decisão da causa;

2) Os factos que só possam ser provados por documento não devem ser levados à base instrutória, uma vez que o n.º 4 do artigo 646.º do CPC considera não escritas as respostas dadas nessas circunstâncias;

3) Também os juízos de valor são insusceptíveis de quesitação;

4) Só o erro notório na apreciação da prova permite à Relação alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância;

5) Factos notórios são aqueles de que a maioria dos cidadãos do país regularmente informados tem conhecimento, não estando nessa situação o estilo e a praxe da comarca quanto aos honorários de advogado;

6) Os elementos de maior relevo para a fixação dos honorários de advogado são o tempo gasto e a dificuldade do assunto.

7) A litigância de má fé visa prevenir o dever de probidade processual.

V. Decisão:

 

Por tudo quanto se deixou exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por consequência, em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.


[1] Toda e qualquer disposição legal que venha a ser citada sem indicação da sua origem pertencerá ao Código de Processo Civil, na redacção vigente até 31.12.2007, que á a aplicável aos presentes autos.
[2] A especificação e o questionário constituem simples projectos parcelares de julgamento e de selecção da matéria de facto (Antunes Varela, ob. cit., página 428).
[3] Anselmo de Castro, ob. cit., páginas 282 e seguintes.
[4] Os actos inúteis são, como é sabido, absolutamente proibidos (artigo 137.º).
[5] O Estatuto actual, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, dispõe de forma muito semelhante no seu artigo 101.º.
[6] Que para Cunha Gonçalves, no entanto, é de somenos importância, o tempo de estudo, pelo menos, por depender da ciência e da inteligência do advogado (Tratado de Direito Civil, volume III, página 204).
[7] Neste aspecto, com a concordância de António Arnaut (ob. cit., página 103).
[8] A disposição, do Código de 1939, não teve correspondência na versão inicial do Código de 1961, mas foi reposta, conquanto com diferente redacção, pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro (artigo 266.º-A).