Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1334/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
HIPOTECA LEGAL
CRÉDITOS DOS TRABALHADORES
Data do Acordão: 06/28/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.º 152º DO CPEREF, ART.º 12º DA LEI 17/86, ART.º 749º DO C.C. E LEI 96/2001 DE 20 DE AGOSTO
Sumário: I – O artº 152º do CPEREF, segundo o qual, com a declaração de falência se extinguem os privilégios creditórios de que sejam titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social, diz apenas respeito aos privilégios creditórios, não abrangendo a hipoteca legal da segurança social.

II – Os créditos do trabalhadores por salários em atraso, garantidos por privilégio imobiliário geral (artº 12º da Li nº 17/86), não preferem sobre o crédito da segurança social garantido por hipoteca legal, em virtude de não ser aplicável àqueles o regime estabelecido no artº 751º, mas antes o estabelecido no artº 749º, ambos do Código Civil.

III – A norma do artº 12º da Lei nº 17/86 é inconstitucional quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido aos trabalhadores prefere à hipoteca legal que garanta créditos de contribuições devidas à segurança social.

IV – Apenas beneficiam dos privilégios estabelecidos no artº 12º da Lei nº 17/86 as prestações que revistam natureza retributiva e os juros de mora, deles se excluindo a indemnização de antiguidade (isto até à entrada em vigor da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


No âmbito do processo de falência a correr termos pelo 2º Juízo do Tribunal da comarca de Castelo Branco, sob o nº 373/96, foi proferida decisão em 15/07/2003 declarando a falência de A...
Reclamaram créditos diversos credores, entre eles se contando o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, delegação de Castelo Branco, e diversos trabalhadores. Assim,
O IGFSS reclamou o crédito de 415.505,40 € por dívidas de contribuições que vão de Maio de 1995 a Março de 2003 e o crédito de 208.018,07 € por dívida de juros de mora.
B... reclamou o crédito total de 95.605,78 €.
C... reclamou o crédito total de 24.002,88 €, de salários não pagos, férias e subsídios de férias e de Natal e indemnização por antiguidade, sendo esta de 14.249,91 €.
D... reclamou o crédito total de 18.443,00 €, sendo 15.886,78 € de indemnização por antiguidade.
E...reclamou o crédito total de 8.652,20 €, sendo 6.452,49 de indemnização por antiguidade.
F...reclamou o crédito total de 21.119,62 €, sendo 18.330,90 € de indemnização por antiguidade.
G... reclamou o crédito total de 5.232,84 €, sendo 2.444,12 € de indemnização por antiguidade.
H... reclamou o crédito total de 9.224,03 €, sendo 6.334,70 € de indemnização por antiguidade.

I... reclamou o crédito total de 16.785,06 €, sendo 14.559,90 € de indemnização por antiguidade.
J... reclamou o crédito total de 16.950,99 €, sendo 14.638,62 € de indemnização por antiguidade.
K... reclamou o crédito total de 7.324,43 €, sendo 5.168,57 € de indemnização por antiguidade.
L... reclamou o crédito total de 6.593,13 €, sendo 4.367,97 € de indemnização por antiguidade.
M... reclamou o crédito total de 5.622,47 €, sendo 3.397,31 € de indemnização por antiguidade.
N... reclamou o crédito total de 2.540,48 €, sendo 1.628,08 € de indemnização por antiguidade.
O... reclamou o crédito total de 3.222,05 €, sendo 1.271,94 de indemnização por antiguidade.
P... reclamou o crédito total de 7.864,95 €, sendo 5.552,58 € de indemnização por antiguidade.
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Foram apreendidos para a massa falida diversos bens móveis e um complexo industrial, do mesmo fazendo parte seis artigos prediais urbanos, com os nºs 3887, 3888, 3889, 3890, 3891 e 3892 da freguesia de Alcains.
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O crédito do IGFSS está garantido por hipoteca legal sobre os artigos matriciais 3887 e 3888, registada por apresentação nº 37/17012002.
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Em 11/06/2004 foi proferido despacho saneador/sentença, que procedeu à seguinte graduação dos créditos reclamados:
1º - Os créditos dos trabalhadores referentes a salários em atraso, não gozando, todavia destes privilégios os montantes referentes a indemnizações por antiguidade;
2ª - Os restantes créditos reclamados e verificados, incluindo os montantes reclamados pelos trabalhadores a título de indemnizações por antiguidade, e operando-se a redução do crédito do IGFSS para 436.466,38 €.
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Inconformados com a decisão, recorreram o Centro Distrital de Segurança Social de Castelo Branco (sucessor da Delegação Distrital de Castelo Branco do IGFSS) e os reclamantes (trabalhadores) atrás referidos.

O CDSS de Castelo Branco concluiu a sua alegação da forma seguinte:
a) A sentença de verificação e graduação de créditos considerou os créditos do alegante como comuns, graduando-os, em consequência, em 2º lugar, isto é, em pé de igualdade com os demais credores comuns.
b) Para garantia do seu crédito a título de contribuições e juros de mora o recorrente constituiu validamente uma hipoteca sobre dois imóveis da devedora que veio a ser declarada falida.
c) A hipoteca legal, devidamente constituída e registada, é um direito real de garantia que concede ao crédito hipotecário o direito de ser pago preferencialmente sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
d) Haverá que proceder a uma graduação especial para os bens a que respeita direitos reais de garantia, na qual deverá ser incluído o crédito hipotecário do C.D. S. S. de Castelo Branco, garantida que estava por hipoteca legal, nos termos do artº 200º do C.P.E.R.E.F.
e) A Mmª Juiz ignorou que o alegante tinha registado a seu favor hipoteca legal sobre os prédios registados na CRP de Castelo Branco, sob os nºs 3887 e 3888, para garantir o pagamento das contribuições para segurança social dos meses de Maio de 1995 a Novembro de 2001, no total de 458.558,89 € a título de contribuições e 132.038,50 € a título de juros vencidos.
f) E, não podia ter ignorado porque nos autos de apreensão de bens encontram-se apreendidos esses imóveis e constam as respectivas certidões, através das quais se pode verificar o citado registo da hipoteca legal (verba 201).
g) A qual foi efectuada em 17/01/2002.
h) O artº 152º, 1ª p, do CPEREF, assim como as disposições preambulares, apenas se referem aos privilégios creditórios do Estado, autarquias locais e instituições de segurança social.
i) Hipotecas legais e privilégios creditórios são garantias conceptualmente distintas, com disciplina legal própria e não pode o intérprete estender de tal forma o conceito de privilégios creditórios, conceito que a Lei usa no sentido técnico-jurídico próprio – de

forma a abarcar outros direitos aos quais a Lei reconhece preferência no concurso de credores.
j) O intérprete não pode considerar o pensamento legislativo porque não tem na letra da Lei o mínimo de correspondência verbal.
k) O artº 152º, 1ª parte, assim como as disposições preambulares, apenas se refere aos privilégios creditórios do Estado, autarquias locais e instituições de segurança social.
l) Violou, assim, a sentença recorrida o estatuído no artº 686º do Código Civil.
m) Por outro lado, a Mmª Juiz olvidou a segunda parte do mesmo artº 152º.
n) Essa 2ª parte, com a redacção dada pelo D.L. nº 315/98, de 20/10, ressalva os privilégios creditórios de que gozam o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social que se tenham constituído no decurso do processo de recuperação de empresa e falência.
o) Normativo que é de aplicação imediata às acções pendentes na data da entrada em vigor do D.L. nº 132/93, de 23/4, em que não tenha havido sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos do disposto no artº 5º da Lei nº 96/01, de 20/8.
p) A sentença de verificação e graduação de créditos data de 11/06/2004, pelo que este regime se aplica necessariamente aos créditos do ora recorrente.
q) O processo deu entrada como processo de recuperação de empresa no dia 28/10/1996.
r) Pelo que os créditos do reclamante que se constituíram a partir do mês de Outubro de 1996 até Março de 2003 num total de 481.409,15 €, sendo 345.749,28 € a título de contribuições e 135.659,94 € a título de juros de mora, continuam a gozar dos privilégios mobiliários e imobiliários previstos nos artºs 10º e 11º do D.L. nº 103/80.
s) A Lei nº 17/86 não estabelece que os privilégios imobiliários gerais incidem sobre todos os bens existentes no património da entidade patronal devedora, à data da declaração da falência.
t) Sendo os privilégios imobiliários gerais de que beneficiam os créditos laborais de natureza excepcional, eles afectam, gravemente, os legítimos direitos de terceiros, designadamente do credor cuja hipoteca se encontra devidamente registada, em virtude de não estarem sujeitos a registo – é-lhes inaplicável o princípio previsto no artº 751º do C.Civil.
u) Aplica-se-lhes, portanto, o regime previsto nos artºs 749º e 686º do C.Civil, que apenas lhes confere uma preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns,

cedendo, em consequência, perante os créditos garantidos por hipoteca.
v) Também em face dos princípios consagrados na C.R.P. a hipoteca prefere sobre os privilégios imobiliários gerais sob pena de lesar os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica de particulares.
w) A sentença recorrida fez, assim, uma incorrecta interpretação e aplicação da Lei, violando o disposto nos artºs 152º e 200º do CPEREF e 604º, 686º, 687º, 705º e 708º do Código Civil.
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Os restantes recorrentes (trabalhadores) impugnam a sentença recorrida essencialmente por violar o disposto no artº 4º da Lei nº 96/01, de 20 de Agosto, ao não graduar em 1º lugar o crédito por antiguidade, que goza igualmente de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral.
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O Mº Pº contra-alegou, defendendo não assistir razão aos recorrentes.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Na sentença recorrida diz-se que os créditos do C.R.S.S. gozam de privilégio mobiliário geral, devendo ser graduados logo após os créditos referenciados no artº 748º, nº 1, al. a), do Código Civil (artº 11º do D.L. nº 103/80, de 9 de Maio), que, com a declaração de falência se extinguem de imediato os privilégios do Estado e das autarquias locais, passando os respectivos créditos a ser exigidos como meros créditos comuns (artº 152º do CPEREF) e que, de harmonia com o preceituado no artº 604º, nº 1, do Código Civil, não existindo causas legítimas de preferência (como, por exemplo, o privilégio e a hipoteca), os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
Resulta daqui que não foi tomada em consideração a hipoteca legal de que se encontra garantido o crédito do Centro Distrital de Segurança Social, não obstante a mesma se encontrar registada desde de data anterior à da declaração da falência.
Como nada se refere a esse respeito, desconhecemos o motivo porque teve lugar tal omissão, nomeadamente se foi por se entender que a extinção prevista no artº 152º do CPEREF também abrange as hipotecas legais da Segurança Social, como o entende parte da doutrina e da jurisprudência (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF, 3ª ed., pág. 404, Nunes Carvalho, RDES, 1995, pág. 86, Catarina Serra, Cadernos de Direito Privado, nº 2, pág. 73, Acs. R.C. de 23/01/2001 e da R.P. de 07/01/2002).
Se foi esse o motivo, discordamos dele por entendermos que as hipotecas legais estão excluídas de tal preceito.
Com efeito, como resulta expressamente da letra do aludido artº 152º, este apenas abrange os privilégios creditórios, e mesmo em relação a estes, exceptuando os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou de falência.
E isto é assim porque se pretende, através da extinção dos privilégios creditórios das entidades aí referidas, proteger terceiros que obtiveram garantias reais fiados no registo e através deste, porquanto o interesse público prosseguido por essas entidades pode ser acautelado por outro tipo de garantia sem aquele gravame, designadamente por hipoteca legal.
Convém não ignorar o disposto no nº 2 do artº 9º do Código Civil, esclarecendo que entre as hipotecas legais e os privilégios creditórios não há um mínimo de correspondência verbal, e que o preâmbulo do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril (que aprovou o CPEREF) fala, a respeito da referida extinção, em “privilégios creditórios” e em “créditos privilegiados”, mas não em hipotecas legais.
Em relação à posição por nós tomada, convém realçar, na doutrina, Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 1998, pág. 329, e A. Silva Rito, Privilégios…, Revista da Banca, nº 27, 1993, pág. 103, e na jurisprudência, Acs. do S.T.J. de 03/03/1998, BMJ 475º-548, de 08/02/2001, Pº. 3968/00, de 18/06/2002, CJ, T2-114, de 25/03/2003, CJ, T1-138 e de 29/01/2004, P. 03B2779, www.dgsi.pt, e da R.C. de 19/04/2005, Pº. 453/05, www.dgsi.pt e de 17/05/2005, P.1219/05, www.dgsi.pt.
Conclui-se, assim, que a hipoteca legal incidente sobre dois dos imóveis (inscritos sob os artºs 3887 e 3888) da devedora falida e registada a favor da Segurança Social não se extinguiu com a declaração da falência, devendo graduar-se os respectivos créditos de acordo com a preferência que a lei lhes concede.
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Alega o recorrente que o Mmº Juiz olvidou a 2ª parte do artº 152º (com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro), que ressalva os privilégios creditórios que se tenham constituído no decurso do processo de recuperação

de empresa e falência, normativo que é de aplicação imediata às acções pendentes na data da entrada em vigor do D.L. nº 132/93, em que ainda não tenha havido sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos do disposto no artº 5º da Lei nº 96/01, de 20 de Agosto.
Como vimos, o artº 152º do CPEREF exceptua da aplicação do preceito, no que diz respeito à extinção dos privilégios creditórios, os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou de falência.
Na sentença recorrida nada se diz a esse respeito, certamente por se ter entendido que tal excepção não era aplicável ao presente caso, visto a mesma ter sido introduzida pelo Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro (que introduziu alterações no Decreto-Lei nº 132/93) e o nº 2 do artº 7º desse diploma estatuir que a alteração introduzida no artº 152º do CPEREF só se aplicaria às acções instauradas a partir de 19/11/1998 (30º dia posterior ao da publicação do diploma).
Pretende o recorrente que há que ter em consideração o disposto no artº 5º da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, segundo o qual o referido artº 152º, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 315/98, é de aplicação imediata às acções pendentes na data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 132/93, em que não tenha havido sentença de verificação e graduação de créditos. Ora, como o processo de recuperação de empresa deu entrada no dia 28/10/1996 e a sentença de verificação e de graduação de créditos é de 11/06/2004, os créditos, dele recorrente, que se constituíram a partir de Outubro de 1996 até Março de 2003 continuam a gozar dos privilégios mobiliários e imobiliários previstos nos artºs 10º e 11º do Decreto-Lei nº 103/80.
Sem razão, no entanto.
É que, segundo o aludido artº 5º da Lei nº 96/01, o artº 152º apenas é de aplicação imediata às acções pendentes na data da entrada em vigor (o realce é nosso) do Decreto-Lei nº 132/93.
E não às que deram entrada posteriormente a essa data, como teria que constar da redacção daquele preceito (artº 5º) se fosse essa a intenção do legislador.
Ou seja: se fosse intenção do legislador que o artº 152º fosse aplicável também às acções propostas posteriormente à data da entrada em vigor do Dec.-Lei nº 131/93, então bastaria dar àquele artº 5º uma redacção semelhante à que deu ao artº 3º, fazendo dele constar que o artº 152º (…) é de aplicação imediata às acções pendentes em que não tenha havido sentença de verificação e graduação de créditos.

Ora, como a acção a que a presente reclamação se encontra apensa não se encontrava pendente na data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 132/93 ((23/07/1993), visto que apenas deu entrada em 1996, não lhe é aplicável o referido preceito, não gozando, assim, os créditos do recorrente dos privilégios previstos nos artºs 10º e 11º do Decreto-Lei nº 103/80.
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Alega, finalmente, o recorrente C.R.S.S. que a Lei nº 17/86 não estabelece que os privilégios imobiliários gerais incidem sobre todos os bens existentes no património da entidade patronal devedora, sendo-lhes inaplicável o princípio previsto no artº 751º do C.Civil, mas antes o regime previsto nos artºs 749º e 686º do mesmo Código, cedendo, em consequência, perante os créditos garantidos por hipoteca.
Como vimos, os créditos dos trabalhadores referentes a salários em atraso foram graduados primeiro que os créditos do C.R.S.S., não obstante este estarem garantidos por hipoteca legal constituída (e registada) sobre dois dos prédios da devedora falida.
A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artº 686º, nº 1, do Código Civil).
O privilégio creditório e a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (artº 733º.
Podem ser mobiliários e imobiliários.
Os mobiliários são gerais se abrangem o valor de todos so bens móveis e especiais se compreendem só o valor de determinados bens móveis.
Os privilégios imobiliários estabelecidos no Código Civil são sempre especiais (cfr. artº 735º do C.Civil).
Depois da entrada em vigor do Código Civil, leis especiais instituíram vários privilégios imobiliários gerais (v.g. Decreto-Lei nº 512/76, de 16 de Junho, Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio e Lei nº 17/86, de 14 de Junho).
No entanto, só os especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se os gerais a constituir mera preferência de pagamento.

O privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas por eles abrangidas, sejam oponíveis ao exequente (artº 749º, nº 1, do C.Civil).
Sobre a solução do conflito entre os privilégios imobiliários especiais e os direitos de terceiro rege o artº 751º, segundo o qual os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
Os diplomas que estabeleceram os privilégios imobiliários gerais não regulam o respectivo regime jurídico. Por isso, tem a doutrina (v. Profs. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 824, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2º Vol., pág. 500/501) entendido que se deve aplicar aos privilégios imobiliários gerais o regime estabelecido no Código Civil para os privilégios mobiliários, definido no artº 749º, visto que, dada a sua generalidade, não são direitos reais de garantia nem sequer verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas.
Ora, se aos privilégios imobiliários gerais se deve aplicar o regime estabelecido no artº 749º, tem de se concluir que está afastada a aplicação do regime estabelecido no artº 751º para os privilégios imobiliários especiais.
Neste sentido vai a jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores – v.g. Acs. do S.T.J. de 13/01/2005, P. 04B4398, de 26/10/2004, P. 04A2875, de 24/06/2004, P. 04B1560, e de 22/06/2004, P. 04A1929, in www. dgsi.pt, de 27/06/2002, CJ, T2-146, de 25/06/2002, CJ, T2-135, e da R.C. de 17/05/2005, já citado).
A Lei nº 17/86, de 14 de Junho (conhecida por Lei dos Salários em Atraso), dispõe, no artº 12º, na parte que aqui interessa:
1 – Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) …
b) Privilégio imobiliário geral.
2 - …..
3 – A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) …

b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artº 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.
Tratando-se de privilégio imobiliário geral o mesmo não prefere, pois, sobre crédito que esteja garantido por hipoteca.
Por isso, no presente caso, os créditos dos trabalhadores por salários em atraso não preferem sobre a hipoteca legal do Centro de Segurança Social.

É certo que o artº 377º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto), veio conceder privilégio imobiliário especial aos créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes aos trabalhadores, sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
Simplesmente, aquele preceito não tem aqui aplicação.
Com efeito, desconhece-se se os prédios sobre que incide a hipoteca legal (inscritos na matriz sob os artºs 3887 e 3888) eram aqueles onde os trabalhadores reclamantes dos créditos laborais prestavam a sua actividade.
Além disso, quando o mesmo preceito entrou em vigor (01/12/2003) já a falência tinha sido decretada (15/07/2003). Ora, produzindo-se os efeitos decorrentes da falência no momento em que ela foi decretada (cfr. artºs 147º e ss. do CPEREF), todas as (eventuais) alterações posteriores serão irrelevantes, de acordo com o disposto no artº 12º, nº 1, do Código Civil.

Por outro lado, poder-se-á argumentar que o artº 12º da Lei nº 17/86 estabelece que os créditos dos trabalhadores que gozem de privilégio imobiliário geral são graduados antes dos créditos de contribuições devidas à segurança social, independentemente de estes créditos estarem, ou não, garantidos por hipoteca legal (ou outra garantia especial). Ou seja, fala em créditos e não em garantias desses mesmos créditos, pelo que se deverá entender que a graduação em causa far-se-á, quer os créditos da segurança social estejam garantidos por privilégios creditórios, por hipoteca ou outra garantia.
Efectivamente, assim é.
Mas, no caso de existir uma hipoteca legal (devidamente registada),

como sucede no presente, aquela norma (artº 12º) seria inconstitucional.
Assim o tem entendido para casos semelhantes o Tribunal Constitucional.
Com efeito, na sequência dos seus Acórdãos nºs 109/2002, 128/2002 e 132/2002, através do Acórdão nº 362/02 (D.R., 1ª S., de 16/10/2002), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma tributária segundo cuja interpretação o privilégio imobiliário geral da Fazenda Pública prefere à hipoteca nos termos do artº 751º do Código Civil.
E, na sequência dos seus Acórdãos nºs 160/00 e 193/02 e decisão sumária nº 67/02, através do Acórdão nº 363/02 (D.R., 1ª S, de 16/10/2002), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artºs 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca nos termos do artº 751º do Código Civil.
E isto é assim porque as normas, nas referidas interpretações, violam “o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artº 2º da Constituição da República.
Esse princípio postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar.
Ora, tendo-se por indiscutível que o legislador pretendeu dar alguma preferência aos créditos da segurança social (…), o certo é que sempre se há-de perguntar que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, tem o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em sindicância”.
E acrescenta-se mais adiante: “O registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário”.


Assim, tem de se concluir pela inconstitucionalidade da norma do artº 12º da Lei nº 17/86, quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido aos trabalhadores reclamantes prefere à hipoteca legal de que goza o Centro de Segurança Social de Castelo Branco.
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Vamos agora analisar os recursos dos restantes recorrentes (trabalhadores reclamantes) que, como vimos, impugnam a sentença recorrida essencialmente por violar o disposto no artº 4º da Lei nº 96/01, de 20 de Agosto, ao não graduar em 1º lugar o crédito por antiguidade, que goza igualmente de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral.
Na sentença recorrida entendeu-se, na sequência dos Acs. do S.T.J. de 01/03/2001 e de 22/03/2001, e da R.C. de 23/01/2001, que o artº 12º, nº 1, da Lei nº 17/86 não abrange as indemnizações (nomeadamente por antiguidade), pelo que os créditos a elas referentes foram graduados como créditos comuns.
O nosso entendimento também vai no sentido de que a correcta interpretação daquele artº 12º da Lei nº 17/86 é a de que apenas beneficiam dos privilégios nele estabelecidos as prestações que revistam natureza retributiva e os juros de mora, deles se excluindo a indemnização de antiguidade, p.e. a indemnização prevista no artº 3º da mesma Lei em caso de rescisão com fundamento em salários em atraso (cfr, no mesmo sentido, além dos Acórdãos acima citados, também os do S.T.J. de 16/03/2005, P. 04S1279, in www.dgsi.pt, de 08/10/2002, CJ, T3-89 e de 25/06/2002, CJ, T2-135).
Mas, será que esses créditos de indemnização por antiguidade estarão abrangidos pela Lei nº 96/2001 (que reforça os privilégios dos créditos laborais em processo da falência), como pretendem os recorrentes?
O artº 4º desta Lei, sob a epígrafe “Créditos dos trabalhadores exceptuados da Lei nº 17/86, de 14 de Junho”, veio estabelecer que os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/86, gozam de privilégio (…) imobiliário geral, a graduar antes (…) dos créditos devidos à segurança social.
A presente acção foi instaurada em 1996 e a Lei nº 96/01 entrou em vigor em 19/09/2001.


Por isso, e face ao disposto no artº 12º do Código Civil, a mesma não é aplicável ao caso dos autos.
É certo que a sentença de verificação e de graduação dos créditos é de 11/06/2004.
Mas, o artº 3º da Lei nº 96/01, que dispõe da sua aplicação imediata às acções pendentes de graduação, apenas foi ditada para a alteração aí efectuada pelo artº 2º ao artº 12º da Lei nº 17/86
E não, também, para o disposto no artº 4º dessa Lei nº 96/01 (v. no mesmo sentido, o Ac. do S.T.J. de 08/10/2002, acima citado).
Por isso, está afastada a aplicação do artº 4º da Lei nº 96/01 ao caso dos autos, improcedendo, assim, o recurso dos recorrentes trabalhadores reclamantes.
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Em consequência do atrás exposto, na graduação dos créditos em concurso há que fazer a distinção entre os prédios inscritos na matriz sob os artºs 3887 e 3888 e os restantes.
Em relação aos primeiros deve figurar em 1º lugar o crédito da Segurança Social garantido por hipoteca legal, em 2º lugar os créditos dos trabalhadores a título de salários e de parte proporcional de férias, e subsídios de férias e de Natal, e em 3º lugar os créditos comuns, aí se incluindo os créditos dos trabalhadores de indemnização por antiguidade.
Em relação aos restantes prédios mantém-se a graduação efectuada na sentença recorrida.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em:
A)-Negar provimento aos recursos interpostos pelos trabalhadores reclamantes e identificados no relatório, condenando-os nas respectivas custas, levando-se, no entanto, em conta o apoio judiciário que, eventualmente, lhes tenha sido concedido.
B)-Dar parcial provimento ao recurso do C.R.S.S. de Castelo Branco, procedendo, substitutivamente, à graduação de créditos, relativamente aos imóveis, pela forma seguinte:
Em relação aos prédios inscritos na matriz sob os artºs 3887 e 3888:


1º - O crédito reclamado pela Segurança Social garantido por hipoteca legal;
2º - Os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida, a título de salários em atraso e de parte proporcional de férias e subsídios de férias e de Natal, rateadamente, se necessário;
3º - Os créditos comuns, rateadamente, se necessário.
Em relação aos prédios inscritos na matriz sob os artºs 3889, 3890, 3891 e 3892:
1º - Os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida, a título de salários em atraso e de parte proporcional de férias e subsídios de férias e de Natal, rateadamente, se necessário.
2º - Os créditos comuns, rateadamente, se necessário.
As custas deste recurso ficam a cargo do recorrente Centro de Segurança Social e da massa falida na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente.