Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3358/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR.ª REGINA ROSA
Descritores: MODIFICAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PELA RELAÇÃO; PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART.º 690º - A E 712º
Sumário:
I – Não basta que se tenha procedido à gravação da audiência e que o Recorrente indique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, para que o Tribunal da Relação possa alterar a decisão sobre a matéria fáctica .
II – Para esse conhecimento ter lugar também é necessário que o Recorrente especifique os concretos meios probatórios que impõem uma decisão diversa da recorrida sobre os pontos impugnados .
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I- RELATÓRIO
I.1- Por apenso aos autos de execução ordinária nº 388/98 que Albano Bastos Martins, residente em Vacariça, Mealhada, move contra Maria do Rosário dos Santos Alves, residente em Quinta do vale, Mealhada, veio a executada deduzir os presentes embargos, alegando, em síntese, que o cheque dado à execução foi por si emitido por estar convencida de que iria receber uma indemnização por parte da seguradora, pelos danos emergentes de acidente de viação do qual resultou a morte do filho do exequente, de cuja cobrança fora por este incumbida no âmbito da sua actividade de advogada, quantia essa que não veio a ser paga por a seguradora ter entendido que o seu segurado não foi responsável pela ocorrência do acidente.
I.2- Notificado para o efeito, o embargado apresentou contestação pugnando pelo não recebimento dos embargos por falta de fundamento legal, uma vez que o cheque é um título autónomo e independente da relação que lhe está subjacente, tendo a embargante assumido uma dívida do montante nele incorporado para com o embargado, ao emiti-lo a seu favor. Referiu ainda que a embargante recebeu da seguradora a aludida indemnização, pelo menos de montante não inferior ao valor do cheque.
Procedeu-se à realização de audiência preliminar, na qual foi tentada e não obtida a conciliação das partes.
I.3- Foi proferido despacho saneador tabelar, e por se entender que os autos tal já permitiam, decidiu-se sobre o mérito da causa, julgando-se procedentes os embargos.
Do saneador-sentença foi interposto recurso pelo embargado, vindo o Tribunal da Relação de Coimbra a proferir acórdão em que se ordenou que os autos prosseguissem seus termos, com elaboração de despacho contendo a matéria assente e a base instrutória, incluindo nesta os factos alegados pelas partes inerentes ao pagamento ou não, à embargante, da indemnização em causa.
Elaborado tal despacho, realizou-se o julgamento, que terminou com a resposta do Tribunal à matéria da base instrutória, sem reclamações.
Foi então proferida sentença na qual se julgaram totalmente procedentes os embargos de executado.
I.4- Contra esta decisão de novo se inconformou o embargado que interpôs o presente recurso de apelação, concluindo em síntese que:
1ª- Não há provas nos autos para serem dados como provados os factos 5, 6 e 7 da sentença;
2ª- Nunca foi junto pela seguradora o processo do acidente de viação, nem a embargante juntou recibos de quitação assinados pelo exequente;
3ª- Em lado algum está provado ou logra-se provar que o embargado recebeu 3.000.000$00 como adiantamento da indemnização que a embargante esperava obter da seguradora;
4ª- Devia ter sido dado como provado, por não impugnado, que a embargante exigiu dois recibos de quitação no acto de entrega do cheque, e que ela, por carta datada de 16.6.97 dirigida ao embargado, assumiu integralmente o pagamento do cheque de 3.000.000$00, na totalidade ou em prestações, mesmo independentemente do cheque;
5ª- Não houve prova de coação na entrega do cheque ao embargado.
I.5 – Contra-alegou a embargante, dizendo que a sentença fez correcta aplicação do direito, pelo que deve ser confirmada.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
A 1ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. O exequente é portador de um cheque sacado sobre o «Banco Pinto & Sotto Mayor», agência da Rua Ferreira Borges, em Coimbra, preenchido, assinado e entregue pela executada, no valor de 3.000.000$00, datado de 19/5/1997, que foi devolvido por falta de provisão em 27 de Maio de 1997.
2. Tal cheque foi emitido pela executada a favor do exequente, no exercício da actividade profissional como advogado daquela (ao tempo).
3. Nem a data do vencimento, nem posteriormente, a executada pagou o montante de tal cheque, apesar de instada para tal pelo exequente.
4. Quando entregou o cheque, a executada elaborou dois recibos que perfaziam o montante do cheque (um no montante de 2.500.000$00, e outro no montante de 500.000$00), os quais foram assinados pelo exequente.
5. Até à presente data, a «Sociedade Portuguesa de Seguros, S.A.» não pagou qualquer indemnização ao exequente ou a quem o representasse.
6. Designadamente à executada.
7. A executada emitiu o cheque na convicção de que o Sr. Albano Bastos Martins seria indemnizado em igual montante pela «Sociedade Portuguesa de Seguros, S.A.», em consequência de acidente de viação ocorrido em 24/3/1991, em que foi interveniente o seu filho Carlos Manuel Conceição Bastos.
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II.2 - de direito
Conforme resulta das transcritas conclusões recursivas, o ponto de discordância do recorrente em relação ao decidido assenta nos factos contidos nos pontos 5, 6 e 7 do item III da sentença, e na factualidade emergente do doc. fls.17 que em seu entender o tribunal deveria ter considerado como provada.
Mas antes, vejamos resumidamente a posição de cada uma das partes no presente litígio, o qual tem na sua génese um cheque de que o aqui apelante é portador.
Segundo a embargante, o dito cheque no montante de 3.000.000$00, por si emitido, assinado e entregue ao embargado, teve em vista o pagamento de uma indemnização, ou melhor, de um adiantamento, que perspectivava receber da seguradora - o que não veio a verificar-se -, na sua qualidade de advogada do embargado, e por ele pressionada nesse sentido, relativamente a acidente de viação que vitimara o filho deste.
Na tese do embargado, pelo menos o montante equivalente ao do cheque foi recebido pela embargante da seguradora, e que por carta de 16.6.97, a mesma assumiu o pagamento do cheque, o que, em seu entender, configura uma assunção de dívida.
Ora, é de concluir, tal como o fez a 1ª instância, que os factos que ficaram provados vão no sentido da tese defendida pela embargante.
É certo que o apelante põe em causa a factualidade constante dos ditos pontos 5, 6 e 7, que correspondem ás respostas dadas aos quesitos 1º, 2º e 4º, respectivamente, e nos quais se incluiu matéria alegada pelas partes no tocante ao pagamento, ou não, da indemnização pela seguradora, e quanto ao motivo subjacente à emissão do cheque.
Relativamente à alteração da decisão fáctica, o C.P.C. é absolutamente taxativo: só podem ser alteradas as respostas aos quesitos por parte da Relação se ocorrer alguma das três hipóteses previstas no art.712º.
Tal não é manifestamente o caso em presença.
Com efeito, se bem que a audiência tenha sido gravada e o apelante tenha indicado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não especificou os concretos meios probatórios que impõem uma decisão diversa da recorrida sobre os pontos impugnados da matéria de facto, nem indicou os depoimentos em que se funda. Quer isto dizer que o apelante não deu cumprimento ao disposto no art.690º-A, C.P.C., requisito necessário para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto [art.712º/1-a)]. Cfr. F. Amâncio Ferreira, «Manual dos recursos em processo civil», 4ª ed., pág.157
As respostas aos quesitos encontram-se devidamente fundamentadas, não podendo este tribunal pôr em causa a convicção e liberdade de julgamento da 1ª instância (art.655º/1,C.P.C.). Donde a irrelevância da não junção aos autos do processo de acidente pela seguradora (que aliás nem é parte no processo), e dos recibos de quitação, atendendo além do mais, ao que já constava da al.E) dos factos assentes (item II.1-4).
Por conseguinte, não se verificando o fundamento tipificado na al.a) do nº1 do mencionado art.712º, nem algum dos que estão tipificados nas demais alíneas, a decisão fáctica não pode ser alterada pela Relação.
Mas, consoante atrás se observou, o apelante insurge-se ainda contra o facto de o tribunal recorrido não ter considerado como relevante o conteúdo da carta que lhe foi dirigida pela embargante, datada de 16.6.97 (doc.fls.17), em que ela teria assumido o pagamento da quantia titulada pelo cheque.
Com o devido respeito, o recorrente insiste em retirar ilações precipitadas sem o mínimo apoio no conteúdo da dita missiva, como já fizera no anterior recurso, ao socorrer-se desse documento para daí concluir por uma assunção de dívida.
Transcreve-se o que de mais relevante aí se escreveu: «Junto da Companhia tentei obter alguma indemnização e se inicialmente as conversações até pareciam estar a correr bem, por fim fui informada que não haveria indemnização para o senhor. Por erro meu e talvez por vontade de lhe obter alguma compensação, sempre lhe disse que iriam enviar dinheiro o que até à data não aconteceu (…). Para não o prejudicar (…) tenho pensado o seguinte: 1 – tento realizar o dinheiro referente ao cheque que emiti a seu favor (que agradeço não seja enviado ao Banco na próxima quarta-feira) e quando o tiver ficará certo de que o entregarei; 2- Entrego-lhe mensalmente uma quantia até perfazer aquele montante de três milhões de escudos; 3- efectuaremos um outro acordo qualquer.».
Ora, como se salientou no acórdão desta Relação a fls.94, o que se acabou de transcrever não traduz qualquer assunção de dívida, mas antes o não recebimento de qualquer indemnização, e a forma de reparar uma atitude irreflectida geradora de falsas expectativas. De resto, nem sequer está provado que a seguradora tivesse assumido alguma dívida relativamente ao acidente de viação, para se poder falar de transmissão de dívida, que exige o consentimento do credor (art.595/C.C.).
A falada carta constitui um mero documento particular, sem eficácia plena, valendo tão só como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal (arts.376º,C.C. e 655º/1,C.P.C.).
Se o julgador da 1ª instância entendeu não valorizar tal documento, não pode a Relação pôr em causa a sua convicção livremente formada, como antes se referiu.
Tudo isto serve para dizer que a dita carta não pode servir para dar como assente a ilação que dele pretende, mais uma vez, o recorrente extrair –a de que a embargante assumiu para com ele uma dívida no montante titulado pelo cheque, na sequência da indemnização em igual valor que a mesma já recebera da seguradora, e de que era beneficiário o recorrente.
Assim, tem-se por definitivamente fixado o quadro factual acima elencado.
Perante ele, é legítima a conclusão a que chegou a sentença, de que o cheque não titula qualquer dívida assumida pela embargante para com o embargado e, assim, nenhuma obrigação existe de pagamento do montante nele incorporado.
Embora nos pareça insólita a situação que os factos coligidos retratam, tanto mais que a embargante agiu como advogada, mas pelos vistos com alguma inexperiência e insegurança, porém há ter como assente que o cheque foi emitido como adiantamento de uma indemnização cujo pagamento a embargante impensadamente esperava obter para o embargado, sem a prévia confirmação da seguradora.
Segundo a sentença, escudando-se nos art.22º da L.U.C. e 815º/1,C.P.C., “A inexistência da obrigação causal, subjacente à obrigação cambiária titulada pelo cheque, constitui excepção pessoal oponível ao embargado, na medida em que configura causa impeditiva do direito que este pretende ver efectivado através da execução (artº487º/º2, C.P.C.)”.
Na verdade, estando-se, como se está, no domínio das relações imediatas visto que a lide se desenvolve entre o sacador do cheque e o seu tomador, ou seja, entre a embargante e o embargado, respectivamente, de acordo com o disposto no citado art.22º, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita ás excepções que, nessas relações pessoais se fundamentam. Cfr. Cons. Abel Delgado, «Lei uniforme sobre cheques», 5ª ed., pág.166
Assim, e porque ao abrigo do estatuído nos arts.815º/1 e 813º,C.P.C. se podem invocar como fundamentos de oposição à execução baseada em título extrajudicial, todas as causas impeditivas ou extintivas do direito do exequente e até, por vezes, negarem-se os factos constitutivos do mesmo direito, Cfr. F. Amâncio Ferreira, «Curso de processo de execução», 5ª ed., pág.150era lícito à executada alegar em oposição à presente execução o condicionalismo com base no qual emitiu o cheque. Condicionalismo que se traduziu em factos que descriminou e se vieram a apurar, dos quais se concluiu, em aplicação do direito correspondente, pela inexistência de uma relação jurídica fundamental anterior entre sacador e tomador, de uma obrigação causal ou subjacente, justificadora da entrega do cheque dado à execução.
Os embargos não podem deixar de proceder, com a consequente extinção do pedido executivo, sendo pois patente que o recurso não merece provimento.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pelo apelante.
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COIMBRA,