Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2990/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. AGOSTINHO TORRES
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 11/19/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO SE CONHECER DO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 28°, 29.º E 57.º, DA LEI N.º 30-E/2000, DE 20 DE DEZEMBRO
Sumário:

Face ao regime decorrente da Lei 30-E/2000, concretamente ao que resulta do disposto nos seus artigos 28° e 29°, ter-se-á de concluir que não é admissível, em processo penal, recurso da decisão proferida em 1.ª instância sobre o apoio judiciá-rio, tal qual sucede no âmbito de qualquer outro processo.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO CRIMINAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


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I-RELATÓRIO
1.1 -BB, arguido no procº nº 113/02.4GDLRA, em instrução na comarca de Leiria, 2º Jº Criminal, veio requerer, a 25.11.2002, que lhe fosse concedido o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e dispensa do pagamento de serviços a advogado.
1.2-Porém, por decisão judicial de 24.03.03, ora em recurso, o pedido foi indeferido e o requerente condenado como litigante de má-fé. na multa de 6 U.C.

1.3- Nessa decisão ora recorrida foi considerado, de facto e de direito, o que segue:
(...)
Factualidade dada como provada:
-O requerente declara às autoridades fiscais como rendimento a quantia de 7 704,44 Euros; -Em Julho de 2002, pagou a quantia de 34,12 Euros a título de telefone.
-Pagou para a Segurança Social a quantia de 111 ,36 Euros;
-Pagou em Julho de 2002 4, 45 Euros de água;
-É proprietário de um veículo "Toyota Hiace" de matricula KK com reserva de propriedade a favor de "Mundicre, S.A." e paga mensalmente 305,27 Euros.
-Os rendimentos da esposa resultam da exploração de café;
-O requerente é titular de duas contas bancárias, uma na Caixa de Crédito Agrícola e Mútuo de Leiria e outra na Caixa Geral de Depósitos, sendo que nesta apresentou saldos variáveis entre 1 566,26 (6-2-2003) e 1 160,99 Euros (em 27-2-2003), e aquela de 7 819,53 Euros (em 20-1-2003) e 5 173,18 Euros(em 6-3-2003).
-É dono de prédio urbano.”
...E com a respectiva Motivação:
“A factualidade dada como assente adveio da análise dos documentos juntos a fls. 34, 35, 37, 38, 53, 54, 56 e 57 a 59. Não se atende ao "atestado" da Junta de Freguesia uma vez que o mesmo nada atesta, a não ser as declarações do requerente...”

Dizendo então de direito...:
“Importa referir que o regime do apoio judiciário surge na sequência do acesso ao direito e aos tribunais, constitucionalmente consagrado no art. 200 da CR.P. e que constitui uma vertente do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13° da CR.P.). O que realmente importa é que quem requer o benefício do apoio judiciário, se encontre numa situação socio-económica em que não disponha de meios para arcar com os encargos normais de uma causa judicial (art. 7° do DL 387 -B/87 de 29-12).
Não é o caso do requerente.
Neste momento, pretende o requerente não pagar a taxa de justiça devida pela instrução, alegando o referido.
Atenta a factualidade dada como provada, é evidente que o Requerente tem meios para proceder ao pagamento em concreto da taxa de justiça devida pela instrução. Basta atentar aos saldos da sua conta bancária e fazer a diferença com as custas devidas pela instrução e pela remuneração da 11. Mandatária.
Da litigância de má-fé:
Dispõe o art. 456° n° 2 a) do C.P.C. que é litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
O Requerente (e a sua 11. Mandatária) deveriam conhecer que o regime de apoio judiciário não se destina a cidadãos como o requerente. A Justiça não é gratuita, deverá sê-lo para quem o merece.
No presente caso, o Requerente pretende eximir-se ao pagamento da taxa de justiça devida pela instrução, a qual é de 1 U.C. (cfr. art. 83° n° 1 do C.C.J.)
Por outro lado, o instituto jurídico do apoio judiciário não merece o abuso que dele se faz, subvertendo por vezes o alcance real do mesmo.
Quem é empresário da construção civil, declara aquilo que diz declarar (facto comummente conhecido), tem contas bancárias com saldos superiores a 5000 Euros, só pode estar de má fé em relação ao verdadeiro fim do incidente, sendo certo que poderia a todo o tempo ser aconselhado, nomeadamente pela 11. Mandatária.
Assim, nos termos do art. 456° do C.P.C. e art. 102° do C.U., e atentos os meios económicos do requerente e a necessidade de pedagogia relativamente ao uso deste incidente, declaro o requerente como litigante de má fé relativamente ao presente incidente, condenando-o na multa de 6 U.C..” (sic)
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1.4- O arguido, inconformado, interpôs recurso dessa decisão, com as seguintes conclusões:
(aqui por nós sintetizadas quanto ao que delas resulta como essencial)
(...)
“ É certo que dos elementos juntos pelo arguido, o seu rendimento anual é de 7.704,44 euros (trabalho- 4.219,06; venda de mercadorias- 3. 485,38), o que perfaz um salário mensal de 550 euros (7.704,44 : 14).
Sendo o salário mínimo nacional de 356,60 euros (DL 320-C/2002, de 30.12), a presunção de um salário mínimo e meio equivale a 534,90 euros.
O que significa que o arguido aufere mensalmente mais 15,10 euros em relação à presunção estabelecida na L 30-E/2000.
Quanto às contas bancárias, as mesmas representam uma ferramenta de trabalho, um fundo de maneio de que o arguido tem que dispor por forma fazer face às suas despesas diárias.
É jurisprudência pacífica dos nossos tribunais que a litigância de má fé exige dolo.
Ora, o pedido de apoio judiciário não foi feito de forma dolosa, de modo a se aplicar a litigância de má fé.
Na verdade, valor mensal dos rendimentos do arguido situam-se muito próximos da presunção estabelecida no artigo 20° da L. 30-E/2000, de 20/12, tem despesas certas, nomeadamente o pagamento da mensalidade da sua viatura no montante de € 305, 27, e o saldo das suas contas bancárias representa o fundo de maneio tão necessário ao desenvolvimento da sua actividade.
Pelo que se afasta o dolo, requisito indispensável da litigância de má fé.
A não acolher este entendimento o Meritíssimo Juiz violou o disposto nos artigos 17° e 20 da L. 30-E/2000 de 20.12 e art. 456°/2, a) do C.P.C.
Deve consequentemente, nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, o presente recurso ser considerado procedente e por via disso o despacho recorrido revogado, atribuindo-se ao arguido o benefício de apoio judiciário nas modalidades de dispensa total do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo e dispensa do pagamento dos serviços de advogada ...”

***
1.5-O recurso foi admitido na 1ª instância com subida em separado, de imediato e com efeito devolutivo.

1.6-O MºPº respondeu ao recurso , defendendo em síntese que o despacho recorrido deve ser mantido integralmente.
Nesta Relação igual posição defendeu o MºPº

II-ANALISANDO

2.1-O presente recurso é interposto de um despacho judicial que não é decisão final e surge na fase investigatória do processo criminal.
À data, já estava em vigor a Lei 30-E/2000 que alterou o regime de acesso ao direito e aos tribunais.
Segundo o artº 29ºdeste diploma, em caso de recurso de impugnação de decisões (do serviço de segurança social), é competente para o conhecer e decidir “ em última instância”, o tribunal da comarca onde está sediado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de apoio judiciário aí formulado.
Daí que se conclua então que a regra geral seja, ao menos para os casos de apoio judiciário decididos na segurança social, a de que a decisão final e definitiva em caso de impugnação é a do tribunal de 1ª instância , sem mais recursos admissíveis.
Porém, no artº 57º nº 3 entendeu-se que as competências dos serviços de segurança social relativas à apresentação , instrução, apreciação e decisão de pedidos de apoio judiciário, formulados por arguidos ( excluídos ficam os restantes intervenientes- assistentes, ofendidos e partes civis) em processo penal, continuariam a sê-lo perante a autoridade judiciária até à regulamentação por DL , em diploma complementar, a qual até hoje nunca foi feita.
Mas também no nº 1 desse artigo se estipulou que as alterações introduzidas na Lei 30-E/2000 , e que entraram em vigor a 1 de Janeiro de 2001, se aplicariam aos pedidos de apoio judiciário que fossem formulados após esta data.
E é também que, deste modo, se pôde concluir com clareza que, seguramente, o regime de recursos e de impugnação das decisões nesta matéria já não continuaria a ser o previsto no DL 387-B/87 de 29 de Dezembro, tanto mais que este foi expressamente revogado nos termos do nº 1 artº 56º da nova Lei.
Por isso é que, com a nova lei e no respectivo âmbito, mesmo a aceitar que haja possibilidades de dupla jurisdição (da 1ª instância para a Relação ou das decisões desta para o STJ ) em sede de recurso de decisões judiciais relativas a pedidos de apoio judiciário formulados em processo penal - o que ainda estará por demonstrar - nunca a sua tramitação, s.m.o., será a de agravo em matéria cível (como se tem visto ser aceite ainda em alguns tribunais de 1ª instância) mas , ao invés, a decorrente da aplicação das regras contidas em sede de recurso no Código de Processo Penal.

2.2- Ora, nesta hipótese que nos ocupa ( a decisão é anterior à que porá termo à causa), teremos que considerar desde logo que o tema principal de recurso é o da concessão ou não do pedido de apoio judiciário, sendo a da condenação por má-fé dela dependente ( se o despacho fosse revogado a condenação por má-fé desapareceria)
Em todo o caso, teremos como aplicáveis as regras previstas nos artº 406º a 409º.do CPP.
Segundo estas, o recurso da decisão de indeferimento proferida no incidente sobre o apoio judiciário, ainda que fosse de admitir, subiria , no estado actual dos autos, apenas diferidamente, nos termos do artº 407º nº 3 do CPP, e uma vez que não se verificam quaisquer previsões das indicadas nesse artº relativas à subida imediata.
Consequentemente, ainda que se admitisse a possibilidade de recurso, o regime de subida seria o da subida diferida nos termos do artº 407º nº 3, nos próprios autos.

No entanto, face ao regime decorrente da aplicação da Lei 30-E/2000, só pode concluir-se que nem sequer é admissível recurso da decisão proferida em 1ª instância sobre o apoio judiciário.
Senão vejamos:
2.3- No caso de o legislador, fiel ao espírito subjacente ao novo diploma (Lei 30-E/2000), ter já delineado a regulamentação aludida ao processo penal no artº 57º, que regime de impugnação teríamos de aplicar? Precisamente o mesmo que vigora para os restantes casos agora já em apreciação pelos serviços da segurança social. E que regime é esse? É exactamente o que decorre dos artº 28º e 29º. Ora, dispõe este que o tribunal da comarca aprecia o recurso... em última instância !
Sendo esta a opção do legislador em matéria de direito fundamental e que é o do regime de acesso ao direito e aos tribunais, então como fundamentar que, sendo os tribunais a decidir em sede de apoio judiciário requerido no âmbito do processo penal houvesse, ainda assim, recurso ( apenas por parte dos arguidos) e já nos restantes casos , mesmo penais (em que o requerente nunca será arguido), sejam os tribunais de 1ª instância a terem a última palavra?
Será de aceitar neste ordenamento jurídico uma duplicidade de critérios ( o que seria de todo em todo inconstitucional, por violação do princípio da igualdade) e uma intolerável diferenciação de direitos, apenas e com base na diferente posição processual (arguido, ofendido, assistente, parte civil) dos intervenientes, sendo certo contudo, como pretende e sempre pretendeu a mens legislatoris , que o âmbito do direito de acesso ao direito consagrado seja igual para todos e num plano de não distinção (v.g. por via processual) dos cidadãos perante a lei? Cremos ,”de jure constituto” que não é de aceitar tal distinção.
E não se diga que o facto de ainda não ter sido efectuada a regulamentação aludida no artº 57º da Lei 30-E/2000 repristina o anterior regime, ou seja, o vigente ao tempo do DL 387-B/87, pois que esse argumento não assenta em qualquer elemento interpretativo válido da norma revogatória contida no artº 56º nº 1 , esta sim expressamente referindo tal revogação, e nunca por nunca a sua repristinação. Seria intolerável e contraditório em todos os aspectos hermenêuticos. O legislador, quando revoga expressamente uma lei, o que foi o caso ( e não se vê que tenha sido um lapso) não está obviamente a dizer que repristina o regime revogado.
Além de que tal exegese interpretativa iria contra os princípios previstos no artº 7º do CC em matéria de cessação da vigência da lei. E essa cessação não foi tácita, mas expressa!
Na análise do sentido da revogação daquele anterior regime nem sequer parece possível, também, lançar mão do elemento gramatical na interpretação do texto legal. A expressão utilizada corresponde ao seu significado técnico-jurídico, já que o legislador utiliza a mesma expressão de modo unívoco.
Desta forma, não se poderá concluir que o legislador não soube exprimir com correcção o seu pensamento. E muito menos ainda que a não regulamentação do regime de apoio judiciário em processo penal, v.g. em sede de recurso, permitiria lançar mão de um regime contrário, excepcional, em sede de preenchimento de suposta lacuna.
E, a haver lacuna, a norma teria de ser análoga. Nesse caso, a norma análoga , segundo o raciocínio que aqui seguimos, só poderia ser a do artº 29º, norma essa perfeitamente integrada no espírito e sistema do novo diploma – cfr artº 10º do Cód. Civil)
Por outro lado, também é o novo diploma que dispõe que, em todos os casos - sem os excluir expressa ou implicitamente, ainda que nele se prevendo algumas normas especiais em sede de processo penal (artº 42º a 47º) - se lhes aplicam as novas alterações ao sistema de acesso ao direito e aos tribunais desde que os pedidos de apoio judiciário tenham sido formulados depois de 1 de janeiro de 2001. O que foi o caso dos autos.

2.4-Posto isto, é de concluir que o recurso da decisão proferida não é legalmente admissível.
E não o é, por força da sua submissão, mutatis mutandis, ao apertado regime contido no artº29º nº 1da Lei 30-E/2000.
Este regime de irrecorribilidade de despacho judicial aplica-se a todas as situações , sejam elas de natureza penal ou não penal e independentemente de o apoio judiciário no âmbito do processo penal não ter sido ainda regulamentado nos termos aludidos no artº 57º nº 3 da Lei 30-E/2000.
Até porque as alterações aplicáveis aos pedidos formulados a partir de 1.1.2001 seguem o regime da Lei 30-E/2000 , sejam eles formulados em processo penal ou noutro qualquer.
E o omisso regime regulamentar prometido no artº 57º, a ter de existir e quando existir, terá se conter e plasmar , dando-lhes conteúdo, nos princípios constantes no diploma que o legitima e enquadra e que mais não é senão o da Lei 30-E/2000.

2.5-Pelo exposto, podemos concluir pelo não conhecimento do recurso, na sua substância, quanto ao pedido de apoio judiciário, por se considerar não admissível, qua tale, nos termos da Lei 30-E/2000.-artº 29º e dos artº 414 nº2 e 420º nº 1 do CPP, conjugadamente interpretados.

2.6-Mas, não se conhecendo do recurso, quid juris em relação à condenação em multa por má-fé?
Admitamos então o seguinte cenário:
O arguido conformava-se com o indeferimento do pedido de apoio judiciário e mesmo até com esta posição agora defendida ( inadmissibilidade de recurso , nessa parte). Mas já não se conformava com a condenação por má fé. E recorria apenas nessa parte.
Que regime seria de admitir para a subida desse recurso?
Em nosso entender, seria de admitir o recurso, em primeiro lugar, porque a Lei 30-E/2000 nessa parte não o excluiria, apesar da íntima ligação com o incidente de apoio judiciário e, em segundo lugar, seria de o admitir com subida imediata, nos termos do artº 407º nº 1 d) No regime do CPC o recurso, nessa parte, seria o de agravo (artº 733º, com subida diferida (artº 735º nº 1) e com efeito suspensivo da decisão, ex vi do artº 740º nº2 , a). , em separado e com efeito suspensivo (neste caso apenas se depositado fosse o valor da multa, nos termos do artº 408º nº 1 a), do CPP)
Condição essa sine qua non o recurso não poderia ter efeito suspensivo.

Em todo o caso, não sendo admissível o recurso do despacho de indeferimento do pedido de apoio judiciário, o recorrente , para ver apreciado o recurso na parte relativa à condenação por má-fé, teria de pagar a taxa de justiça devida pela interposição do recurso e, a desejar que tivesse efeito suspensivo da decisão, teria também que depositar o valor da multa.
Ou seja, em síntese, o tribunal ad quem só poderia, na actual fase e momento, apreciar e decidir o recurso nessa parte se, ao menos, a taxa de justiça de interposição de recurso já tivesse sido paga, o que não se mostra alguma vez ter sido feito, o que é aliás compreensível face à implicação da sua, na altura, inexigibilidade, decorrente do facto de ter havido recurso, aceite na 1ª instância, em sede de apoio judiciário .
Posto isto, o conhecimento do recurso nesta parte , atinente à questão da condenação por má-fé, dependerá daquele pagamento na 1ª instância.


III-DECISÃO

Pelo exposto, decide-se não conhecer do recurso na parte relativa ao indeferimento do pedido de apoio judiciário, por ser tal recurso inadmissível para a Relação .
Quanto à questão da condenação da condenação por má-fé, o seu conhecimento e apreciação dependerá do pagamento da taxa de justiça devida nos termos do artº 86º do CCJ, a liquidar na 1ª instância, só após o que poderá subir nos termos determinados.
Taxa de justiça pela rejeição em 3 UC (artº 420 do CPP)