Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
135/09.4JAAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES TELEFÓNICAS
IDENTIFICAÇÃO DO UTILIZADOR
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – AVEIRO – JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 189º, 2 CPP. 2º, 1, G) L. 32/08
Sumário: A Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, não revogou o disposto no art. 189º, nº 2, do Código de Processo Penal, não impossibilitando a obtenção da identificação de assinante de serviço de telemóvel para investigação de crime que não corresponda a um dos crimes classificados como “crime grave” pelo art. 2º, nº 1, al. g), daquela Lei.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

O inquérito que originou estes autos de recurso em separado iniciou-se com a queixa apresentada por R… contra desconhecidos por factos susceptíveis de integrar a prática de crime de violação de domicílio, cometido mediante a utilização de telemóvel.
No decurso do inquérito e esgotadas as diligências possíveis, o M.P. requereu ao Exmº Juiz de Instrução Criminal que determinasse à operadora de comunicações Optimus a quebra do sigilo das telecomunicações, para que esta informasse a identificação e domicílio do titular do telefone que efectuou as chamadas para o telemóvel da ofendida, o que veio a ser indeferido por despacho judicial em que foi invocada falta de fundamento legal.
Inconformado com esse despacho, o M.P. interpôs o recurso agora em apreço, de cuja motivação retirou as seguintes conclusões:
1.° - No douto despacho recorrido indeferiu-se o acesso à identificação de um assinante de serviço de telemóvel porque, não se tratando da investigação de crime grave de acordo com a definição do artigo 2.° al. g) da Lei 32/2008 e pretendendo-se o acesso a dados regulados no artigo 4.° da mesma lei, não podia ser autorizado o acesso a tais dados (que a mesma lei só permite para os processos em que se investiguem crimes graves), porque o regime da lei 32/2008 derrogou o disposto no artigo 189.° n.º 2 do Código de Processo Penal.
2.º - Tal interpretação supõe que a Lei 32/2008 regula toda a matéria de conservação de dados relativos às telecomunicações e todo o acesso a tais dados para fins de investigação criminal;
3.º - Ora nenhum destes dois pressupostos corresponde à verdade, nem a Lei 32/2008 regula toda a matéria da conservação de dados, nomeadamente a conservação dos dados relativos à prestação de serviços de valor acrescentado, ou os dados de rede usados para facturação, nem necessariamente esgota todo o acesso aos dados gerados pelas telecomunicações para efeitos de investigação criminal;
4.º - A Lei 32/2008 regula apenas a conservação de determinados dados para exclusivos fins de investigação criminal de crimes graves e o acesso aos ficheiros de dados conservados.
5.º - Ou seja, o que a Lei 32/2008 regula é o acesso aos dados conservados mas não o acesso aos dados de rede ou a outros dados que legalmente se encontrem na posse das operadoras, quer esses dados sejam ou não coincidentes com os dados conservados, isto supondo que exista lei que de forma autónoma e compatível com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem autorize o acesso a tais dados.
6.º - Do exposto resulta que regulando a Lei 32/2008 apenas o acesso aos dados conservados e pretendendo-se o acesso à identificação de um assinante ao abrigo do disposto nos artigos 187.° n.º 1 al. e) e 189.° n.º 2 do CPP, respeitando essa informação a suspeito da prática de crime e indispensável à realização da investigação, deve autorizar-se o acesso o tal informação, por a Lei 32/2008 não ter procedido à revogação do disposto nos citadas disposições do CPP.
Com o que Vossos Excelências farão a costumada justiça!

Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância pronunciando-se pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a questão que importa decidir consiste em saber se a entrada em vigor da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, revogou o disposto no art. 189º, nº 2, do Código de Processo Penal, impossibilitando a obtenção da identificação de assinante de serviço de telemóvel para investigação de crime que não corresponda a um dos crimes classificados como “crime grave” pelo art. 2º, nº 1, al. g), daquela Lei.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
O sigilo das comunicações sofre as limitações que decorrem do disposto nos artigos 187.°, 189° e 190.° do CPP e ainda as decorrentes da Lei nº 32/2008 de 17-7, cuja entrada em vigor ocorreu no dia 7-8-2009.
Como o regime processual claramente pressupõe, a admissibilidade da transmissão de dados está conformada pelo princípio da proporcionalidade; não só pela especial gravidade dos casos em que é admitida (os chamados «crimes de catálogo»), mas também pela exigência de um juízo de necessidade e do grande interesse para a descoberta da verdade.
Especificamente quanto à obtenção e junção aos autos de dados sobre tráfego e de localização respeitantes a pessoas bem como de dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado para fins de investigação, detecção e repressão de crimes, esta só pode ser ordenada ou autorizadas por despacho do Juiz de Instrução sempre quanto a «crimes graves», tal como definidos na referida Lei (art. 2°, nº 1, g) isto é:
a) terrorismo;
a) criminalidade violenta (condutas dolosas contra a vida. a integridade física ou a liberdade puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos);
b) criminalidade altamente organizada (condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência ou branqueamento);
c) sequestro;
d) rapto e tomada de reféns;
e) crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal;
f) crimes contra a segurança do Estado;
g) falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda;
h) crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
E apenas quanto às pessoas referidas no nº 3 do artigo 9° da referida Lei:
a) suspeito ou arguido;
b) pessoa que sirva de intermediário - relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido;
c) vítima de crime, verificado o respectivo consentimento efectivo ou presumido.
No caso dos autos, está em causa a investigação de factos susceptíveis de integrar um crime de violação de domicílio cometido através de telemóvel, p. e p. pelo art. 190º, nº 2 do Código Penal, com a pena de prisão até 1 ano ou multa até 240 dias.
Tal crime, embora subsumível ao disposto no CPP quanto a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, não pode subsumir-se ao catálogo elencado na referida Lei nº 32/2008.
Ora, salvo melhor entendimento, não pode deixar de entender-se que a referida Lei derrogou, quanto aos dados ali previstos, o disposto no artigo 189º do CPP. Efectivamente, trata-­se de uma norma especial (relativamente ao disposto no artigo 189º do CPP). A referida Lei transpõe para o ordenamento nacional a directiva nº 2006/24/CE referente (unicamente, diga-se) à conservação de dados, mas o legislador foi mais além, estabelecendo um regime específico de acesso e divulgação dos dados em causa, ressalvando (apenas):
- o disposto na Lei nº 41/2004 de 18-8, designadamente a possibilidade referida no nº 7 do artigo 6º daquela Lei – art. 1º nº 2 da Lei 32/2008;
- o disposto no CPP quanto a intercepção e gravação de conversas telefónicas (cfr. o mesmo art. 1º nº 2) e
- o disposto no artigo 252º-A do CPP - art. 9º nº 5 da Lei 32/2008.
Estabeleceu-se, deste modo, em matéria de dados elencados no artigo 4º da Lei nº 32/2008 um regime diverso do antes consagrado no artigo 189º do CPP:
- o regime previsto no artigo 189º do CPP fazia coincidir os requisitos com os estabelecidos no artigo 187º para a intercepção e gravação do conteúdo de conversações telefónicas;
- o regime agora previsto na Lei 32/2008 afasta-se dessa similitude, fazendo coincidir o catálogo de crimes em que a transmissão de dados é admissível, não com o previsto no artigo 187º nº 1 mas, de outro modo, com o previsto no nº 2 do art. 187º. E esta alteração traduz uma opção deliberada - veja-se que no texto da proposta de Lei nº 161/X (que encetou o processo legislativo em causa) havia coincidência entre «crimes graves» para efeitos da Lei 32/2008 e crimes relativamente aos quais é admissível nos termos do CPP a intercepção de conteúdo de conversações, solução que foi abandonada na redacção final da Lei.
Assim sendo, o regime legal vigente é mais restritivo no que toca ao acesso, pata fins de investigação criminal, quanto aos dados previstos no artigo 4º da Lei 32/2008 do que relativamente à gravação e ao acesso ao conteúdo de conversações telefónicas e deixa de fora, quanto àquele acesso, a investigação do crime que está em causa nos presentes autos, ainda que cometidos por via informática, desde que não subsumíveis na categoria da «associação criminosa» e independentemente da moldura penal abstracta.
Tratou-se (como resulta da alteração do texto inicial da Proposta de Lei - cfr. DAR série A 99/X/13 de 23-5-2008) inequivocamente de uma opção do legislador que, sendo altamente discutível, não cabe a este Tribunal discutir.
Face ao exposto indefere-se o requerido por falta de fundamento legal.
Notifique o MP e, após, devolva.

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Vejamos, num primeiro momento, o particular condicionalismo histórico e legislativo que antecedeu a publicação da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, e que conduziu à respectiva publicação:
A Constituição da República Portuguesa dispõe, no art. 34º, nº 4, que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”, norma que está em conformidade com o disposto relativamente ao direito à protecção da vida privada no art. 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, veio impor aos Estados-Membros que garantam os direitos e liberdades das pessoas singulares no que respeita ao tratamento de dados pessoais, nomeadamente, o seu direito à privacidade, com o objectivo de assegurar a livre circulação de dados pessoais na Comunidade. Como se pode ler no seu considerando nº 11, os princípios presentes nesta directiva precisam e ampliam os princípios contidos na Convenção do Conselho da Europa, de 28 de Janeiro de 1981, relativa à protecção das pessoas no que diz respeito ao tratamento automatizado de dados pessoais.
A Directiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas (Directiva relativa à privacidade e às comunicações electrónicas), transpôs os princípios estabelecidos na directiva 95/46/CE para regras específicas do sector das comunicações electrónicas. O nº 1 do art. 15º desta directiva enumerou as condições em que os Estados-Membros podem restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos na directiva 95/46/CE, estatuindo que “Os Estados-Membros podem adoptar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.º e 6.º, nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º e no artigo 9.º da presente directiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a detecção e a repressão de infracções penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações electrónicas, tal como referido no n.º 1 do artigo 13.º da Directiva 95/46/CE. Para o efeito, os Estados-Membros podem designadamente adoptar medidas legislativas prevendo que os dados sejam conservados durante um período limitado, pelas razões enunciadas no presente número. Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º do Tratado da União Europeia” - Directiva transposta para a ordem jurídica nacional pela Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto..
Na declaração de 25 de Março de 2004 sobre a luta contra o terrorismo, o Conselho Europeu encarregou o Conselho de proceder à análise de propostas relativas ao estabelecimento de regras sobre a conservação de dados de tráfego das comunicações pelos prestadores de serviços, reafirmando em 13 de Julho de 2005, na Declaração em que condenou os ataques terroristas em Londres, a necessidade de aprovar rapidamente medidas comuns relativas à conservação de dados de telecomunicações.
Ulteriormente, a Directiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, alterou a Directiva nº 2002/58/CE, deixando claro, no considerando nº 25, que não é prejudicado o poder dos Estados-Membros de adoptarem medidas legislativas respeitantes à utilização dos dados e ao acesso aos mesmos por parte das autoridades nacionais por eles designados e que as questões que se prendem com o acesso das autoridades nacionais aos dados conservados de acordo com esta directiva no contexto das actividades enumeradas no nº 2 do art. 3º da Directiva 95/46/CE não são abrangidas pelo direito comunitário - O referido art. 3º, nº 2, dispõe que “A presente directiva não se aplica ao tratamento de dados pessoais: - efectuado no exercício de actividades não sujeitas à aplicação do direito comunitário, tais como as previstas nos títulos V e VI do Tratado da União Europeia, e, em qualquer caso, ao tratamento de dados que tenha como objecto a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado (incluindo o bem-estar económico do Estado quando esse tratamento disser respeito a questões de segurança do Estado), e as actividades do Estado no domínio do direito penal; - efectuado por uma pessoa singular no exercício de actividades exclusivamente pessoais ou domésticas”.. O objecto da directiva 2006/24/CE foi, aliás, linearmente vertido no respectivo art. 1º, aí se consignando que “A presente directiva visa harmonizar as disposições dos Estados-Membros relativas às obrigações dos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações em matéria de conservação de determinados dados por eles gerados ou tratados, tendo em vista garantir a disponibilidade desses dados para efeitos de investigação, de detecção e de repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro”.
Surge finalmente a Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, resultante de imperativo decorrente do art. 15º, nº 1, da Directiva nº 2006/24/CE – que impunha a sua transposição para o direito interno dos Estados-Membros o mais tardar até 15 de Setembro de 2007 (limitação temporal que, aliás, não foi observada) - O que parece ser frequente. A prestigiada revista “Sciences Humaines” acaba de publicar (nº 209 – Novembro de 2009) um artigo subordinado ao título “Europe: comment les États contournent les régles”, da autoria de Benoit Richard, em que identifica Portugal como um dos países do grupo negligente no estádio de transposição das directivas comunitárias. O artigo em questão segue de perto o estudo de Emmanuelle Falkner, “Les mondes de conformités”, publicado em “Les Cahiers européens”, Centre d`études européennes, Julho de 2009, nº 2/2009. – e que veio regular a conservação e a transmissão de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e pessoas colectivas, bem com dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, indicando expressamente que procedia à transposição da última directiva citada - Também por imposição do art. 15º, nº 1 da Directiva 2006/24/CE..
Não obstante, este diploma foi muito além da mera transposição daquela directiva, suscitando o respectivo teor diversas questões que, por estranhas ao objecto do recurso, não cumpre agora apreciar, mas que o decurso do tempo e a prática dos tribunais se encarregarão de evidenciar. Por ora, e face ao teor das conclusões do recurso de que agora cuidamos, importa exclusivamente apurar se a Lei nº 32/2008 obsta à obtenção da identificação do titular de um número de telefone para efeitos de investigação de crime que não seja um dos crimes de “catálogo” previstos no respectivo artigo art. 2º, nº 1, al. g).
Esta última norma define como crime grave apenas os crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
É precisamente esta a origem do problema, já que numa primeira abordagem a norma referida parece implicar restrição ao âmbito de aplicação das normas do CPP aplicáveis à obtenção de dados de telecomunicações. Contudo, uma análise mais detalhada do sistema vigente, ponderadas as diversas normas nas suas interacções e extraído o seu sentido útil, desmente aquela primeira impressão.
Desde logo, à obtenção da informação pretendida – informação relativa à atribuição de um determinado número de acesso à rede – não são aplicáveis as disposições dos arts. 187º e 189º do CPP, contrariamente ao que se entendeu no despacho recorrido.
Segundo o nº 2 do art. 189º do CPP, “a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registo da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do art. 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo”.
O nº 1 do art. 187º, a que se reporta a norma supra transcrita, estatui que “a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz e instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:
a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;
b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;
c) De detenção de arma proibida e de tráfico de armas;
d) De contrabando;
e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;
f) De ameaça com prática de crime ou e abuso e simulação de sinais de perigo; ou
g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores”.
Estas normas, como do respectivo teor literal resulta, têm em vista exclusivamente a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas e a localização celular ou registo da realização de conversações ou comunicações.
Por outro lado, a definição de crime grave constante art. do art. 2º, nº 1, al. g), da Lei nº 32/2008, vale apenas “para efeitos da presente lei…”, a qual tem como objecto, nos termos do art. 1º, nº 1, “… a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva nº 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.”

A interpretação teleológica da Lei nº 32/2008, enquadrado este diploma na globalidade do sistema jurídico e articulado com os demais normativos legais que regem sobre o tema, permite concluir que os “dados conexos” a que se reporta o art. 1º, nº 1, são os dados conexos com os dados protegidos.
Que esses dados conexos, enquanto isoladamente considerados, estão fora do âmbito da Lei n.º 32/2008, é facto que se patenteia pela consideração de que têm natureza contratual, existem na disponibilidade da operadora independentemente dos dados preservados para o efeito previsto na lei a que nos reportamos, e não serão destruídos no fim do período de conservação previsto no respectivo art. 6º.
De resto, o Projecto de Lei nº 217/IX/1, para transposição da Directiva nº 2002/58/CE, no respectivo art. 1º, procedia à separação dos dados em “dados de localização”, “dados de tráfego”, “dados de base” e “dados de conteúdo”, integrando nos “«dados de base», os dados pessoais relativos à conexão com a rede de comunicações, designadamente o número, identidade e morada do assinante, bem como a listagem de movimentos de comunicações, e que constituem elementos necessários ao estabelecimento de uma base para a comunicação” (al. c).
Sobre a tutela que deveriam merecer os chamados «dados de base», nomeadamente, a identificação e morada dos utilizadores, recaíram diversos pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, distinguindo em três categorias de dados – dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo – e reconhecendo aos dados de base a tutela pela regra da confidencialidade de génese privatística ou contratual, decorrente de um simples interesse pessoal do utilizador que de modo algum contende com a sua esfera pessoal íntima, podendo ser comunicados a pedido de qualquer autoridade judiciária para fins de instrução criminal, prevalecendo o dever de colaboração com a justiça - Cfr. nomeadamente, o Parecer nº 21/2000, resumido, quanto a esta matéria, na nota 10 do Parecer nº 101/2007..
Anteriormente, o Parecer nº 16/94 tinha entendido que tais elementos estariam submetidos às mesmas garantias que os elementos da comunicação propriamente dita e, como tal, abrangidos pelo regime do art. 269º do Código de Processo Penal - Quanto a este aspecto, fizemos fé na nota 10 do Parecer nº 101/2007, deixando consignado que não consultámos o original..
O recentíssimo acórdão do Tribunal Constitucional nº 486/2009 - Publicado no DR, 2ª Série, nº 215, de 5 de Novembro de 2009, pags. 45119 e ss. retomou a distinção entre dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo, reconhecendo que os dados de base, enquanto dados de conexão à rede, constituem elementos necessários ao estabelecimento de uma base para comunicação, estando aquém da comunicação; são prévios em relação a ela e “constituem, na perspectiva dos utilizadores, os elementos necessários ao acesso à rede, designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respectivo serviço”. Prossegue, sobre o tema, um pouco mais adiante, citando Costa Andrade - in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo III, pág. 797-798.: “Na verdade, por exemplo, a mera identificação do titular de um número de telefone fixo ou móvel, mesmo quando confidencial, surge com uma autonomia e com uma instrumentalidade relativamente às eventuais comunicações e, por isso mesmo, não pertence ao sigilo das telecomunicações, nem beneficia das garantias concedidas ao conteúdo das comunicações e aos elementos de tráfego gerados pelas comunicações propriamente ditas” - Em sentido oposto, considerando que também os dados de base beneficiam da protecção do direito ao sigilo das telecomunicações e do direito à privacidade, veja-se Ana Mercedes Oubiña, “As telecomunicações, a vida privada e o direito penal”, in “Direito Penal hoje – Novos desafios e novas respostas”, colectânea organizada por Manuel da Costa Andrade e Rita Castanheira Neves, Coimbra Editora, Agosto de 2009, págs. 16-17..

Em suma, a protecção (entendido o termo protecção como restrição à respectiva transmissão) destes dados conexos opera apenas enquanto tais dados sejam considerados em interligação com outros dados – dados de tráfego e dados de localização – que são aqueles que a lei em causa visa em primeira linha proteger. Fora desse âmbito, isto é, enquanto isoladamente considerados, tais dados não podem ser considerados como conexos, não estando abrangidos pela restrição legal (pela restrição decorrente da Lei nº 32/2008; a respectiva divulgação está abrangida por outras restrições, nomeadamente, pelas decorrentes do art. 65º, nºs 1 e 2, da Lei nº 5/2004, de 10 de Fevereiro – Lei das Comunicações Electrónicas – ou da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, diploma que transpôs para a ordem jurídica nacional a directiva nº 2002/58/CE, da Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas).

Ora, não estando os dados cuja obtenção se pretende em interligação com dados de tráfego ou de localização, pretendendo-se apenas a identificação de um assinante ou utilizador registado, independentemente de (sem que se pretenda também o acesso a...) dados de tráfego ou de localização, a questão que se coloca já não é uma questão de tutela da inviolabilidade das comunicações ou do direito à reserva ou intimidade da vida privada, mas sim uma questão de acesso a dados informaticamente tratados. Nesta medida, dados como a identificação do assinante ou utilizador registado estão a coberto do sigilo profissional que impende sobre o operador da rede telefónica, mas podem ser obtidos mediante despacho fundamentado de autoridade judiciária, aplicando-se o incidente previsto no art. 135º do CPP quando o operador deduza escusa - Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do código de Processo Penal”, 2ª Ed., pág. 529..

Em conclusão, o recurso afirma-se como procedente e a pretensão do M.P. deverá ter acolhimento.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso, determinando-se que o Mmº Juiz do tribunal “a quo” profira despacho no sentido pretendido pelo M.P. no requerimento que formulou a fls. 32/33.
Sem tributação.

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Coimbra, ____________
(texto processado pelo relator e
revisto por todos os signatários)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)