Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2509/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE DANO
COISA ALHEIA
ACÇÃO DIRECTA
Data do Acordão: 11/30/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º, 34º E 212º, DO C. PENAL
Sumário: I- A circunstância de um bem ser comum do casal não impede que possa ser considerado como “coisa alheia” para efeitos do crime de dano por parte de um dos cônjuges.
II- O facto de o agente ter sido confrontado com a impossibilidade de aceder à coisa comum não justifica, só por si, o recurso à acção directa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal deste Tribunal da Relação.
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I – Relatório.
1.1. Mediante acusação particular da assistente A... (que o Ministério Público acompanhou), o arguido B..., tal como aquela com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento pelo alegado cometimento material consumado de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal [vulgo doravante CP].
Tomando por base a factualidade constante da aludida acusação particular, a assistente deduziu também pedido cível contra o arguido, tendo em vista obter a sua condenação a solver-lhe a quantia de € 250,00, alegadamente devida a título de indemnização pelos danos patrimoniais sobrevindos e devidos à sua relatada conduta.
Após realização do contraditório, exarou-se sentença condenando o arguido e demandado cível: a) pela autoria do assacado ilícito, na pena de 15 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, ou seja, na multa de € 105,00, e a que, subsidiariamente, correspondem 10 dias de prisão; b) no pagamento à demandante, a título da reclamada indemnização, da quantia de € 178,50.
1.2. Por se não conformar com tal decisão, dela interpôs o arguido/demandado o presente recurso sendo que, depois de devidamente motivado, e clamando a sua absolvição quer criminal, quer cível, dele extraiu a formulação das conclusões seguintes:
1.2.1. Quanto à matéria de facto, de acordo com o depoimento da testemunha C... – ao qual, como se constata, o Tribunal atribuiu especial importância para alicerçar a sua convicção quanto à fundamentação de facto –, referiu, por várias vezes que o seu pai, o ora arguido Alfonso, partiu a porta da marquise (a única de que tinha chave para entrar na sua casa, atento que a assistente já tinha, por várias vezes, mudado as fechaduras das portas da casa do casal) porque a referida porta estava trancada ou fechada (aparentando a fechadura da mesma ter sido mudada).
Não tendo outro meio para entrar na sua própria casa, pois, nem a única chave que possuía, nem a chave da filha Nancy, davam para abrir, o arguido Alfonso, foi compelido a forçar a fechadura da porta, para assim, poder entrar em casa, e ir buscar os seus objectos pessoais (passaporte, bilhete de avião e roupas).
1.2.2. Depois de se analisar com cuidado o depoimento da testemunha Nancy (a única que presenciou os factos) o Tribunal a quo deveria dar como provado que o arguido praticou os factos descritos nos pontos 2 e 3 da fundamentação de facto (ou seja, que no dia 12 de Abril de 2003, em hora não concretamente apurada mas entre as 8 horas e as 21 horas e 30 minutos, o arguido muniu-se de uma alavanca e introduziu-a na junta entre a porta e o batente da marquise da casa de habitação sita no lote n.º 17 da Avenida de Portugal, em Cantanhede; e ao introduzir a alavanca no local referido, o arguido danificou a porta e o respectivo batente, destruindo também a fechadura) porque não tinha outro meio de entrar na sua casa, uma vez que a fechadura da aludida porta aparentava estar mudada e não tinha chave das outras portas da casa.
1.2.3. Ao não dar como provado tal facto, o Tribunal a quo apreciou incorrectamente esse ponto de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b) que se invoca para os efeitos legais – atento que a prova testemunhal produzida pelo depoimento da testemunha C... impunha como se disse anteriormente decisão diversa da ora recorrida –, havendo omissão na fundamentação de facto, violando, assim, o disposto nas normas dos artigos 124.º, n.º 1 e 125.º, ambos do Código de Processo Penal [CPP] e 32.º. n.ºs l e 5; 205.º, n.ºs 1 e 2 e 208.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa [CRP].
Ainda assim, e independentemente da apreciação das questões supra enunciadas:
1.2.4. A danificação da coisa (neste caso concreto, da porta), bem comum do casal, por um dos cônjuges, nas especiais circunstâncias em que foi realizada – note-se, que, perante a impossibilidade de abrir aquela porta, o recorrente foi forçado a praticar os factos descritos, para, única e simplesmente, poder entrar na casa de morada de família, ou seja, na sua própria casa, e cujo direito a habitar lhe tinha sido atribuído pelo Tribunal! - não deve ser considerado crime de dano nos termos do artigo 212.º, n.º 1 citado.
1.2.5. Será caso para perguntar se o comum cidadão desde País numa circunstância semelhante, que atitude diversa praticaria?
É que para que um acto danoso seja considerado crime, não basta dolo, é fundamental que a coisa danificada seja alheia.
Quanto à compropriedade, ou à propriedade colectiva dos bens comuns do casal, o legislador penal não se pronunciou.
E se o legislador não diz, não deve o Tribunal dizer. Sob pena de o fazendo, ir para além da letra da norma incriminadora, com uma interpretação extensiva, excessiva, indesejável e mesmo contrária aos princípios do Direito Penal nomeadamente aos princípios da legalidade e da tipicidade.
1.2.6. É sabido que o Direito Penal é fragmentário, que só são por ele abrangidas determinadas condutas, que a comunidade considera violadoras de valores sociais elevados. Para que um comportamento possa ser qualificado como crime, ele há-de preencher o tatbestand: deverá obedecer ao princípio da tipicidade. Se não satisfizer integralmente um tipo previsto na lei não será punível.
Ora, tratando-se, como se trata de propriedade colectiva, de que o arguido é igualmente titular, poderá eventualmente haver lugar a reparação civil, mas o comportamento sai naturalmente fora da alçada do domínio criminal (cfr. Ac. da R.L., de 6/11/1991, in CJ, Ano XVI, Tomo V, pág. 147).
Isto é, e de acordo com tal aresto “não é crime, por constituir mero ilícito civil, a danificação de bens comuns do casal, feita por um dos cônjuges, em detrimento do outro".
Em igual sentido, aliás, se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 11/11/1992, ao enunciar que “coisa alheia, para efeitos de crime de dano, é apenas aquela cujo direito de propriedade pertence a outrem que não o agente."
1.2.7. Não estando preenchido o tipo objectivo do ilícito, como não está, deveria o arguido ser absolvido do mesmo; e não, ao invés, ser condenado -como, ainda que de forma eloquente, a sentença a quo o condenou.
Ao interpretar a norma contida no artigo 212.º, n.º 1 do CP no sentido de considerar alheia a destruição por um dos cônjuges de uma coisa pertencente ao casal, o Tribunal a quo errou, pois, como já se disse, tal preceito legal deve ser interpretado no sentido de que não é alheia, para efeitos de punição criminal, a coisa que também pertence ao cônjuge.
1.2.8. Mesmo na hipótese, que só por mera cautela de patrocínio se invoca, de se concluir que a prática dos factos imputados ao arguido consubstanciariam uma crime de dano, ainda assim, tal conduta do agente sempre estaria a coberto de uma causa de exclusão de ilicitude.
1.2.9. Pois, o cônjuge marido – a quem, por sentença judicial, foi atribuído o direito de habitar a casa de morada de família –, perante a impossibilidade de entrar nessa casa, porque a cônjuge mulher mudou a fechadura daquela porta, danifica a porta de tal casa se não está a agir em legitima defesa (artigo 32.º do CP), está decerto a agir por direito de necessidade (artigo 34.º do mesmo diploma).
1.2.10. Ao decidir como o fez, a sentença recorrida violou o disposto nas normas dos artigos 124.º, n.º 1 e 125.º, ambas do CPP; 32.º, n.ºs 1 e 5; 205.º, n.ºs 1 e 2 e 208.º, todas da CRP; 31.º; 32.º; 34.º e 212.º, n.º 1, estas do CP.
1.3. Admitido o recurso, apesar de ambos (assistente e Ministério Público) notificados para o efeito, apenas o último respondeu sufragando a manutenção do decidido.
Realizada a pertinente transcrição da prova oralmente produzida em audiência de julgamento, subiram os autos a este Tribunal.
Aqui o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente à improcedência da impugnação.
Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, realizou-se audiência, na estrita observância do estipulado pelo artigo 423.º do CPP.
Cabe agora apreciar.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. A matéria de facto considerada como provada na decisão recorrida é do teor seguinte:
2.1.1. O arguido e a assistente são casados entre si, encontrando-se em processo de divórcio litigioso de há vários anos a esta parte, e mantendo um péssimo relacionamento entre ambos.
2.1.2. No dia 12 de Abril de 2003, em hora não concretamente apurada mas entre as 8 horas e as 21 horas e 30 minutos, o arguido muniu-se de uma alavanca e introduziu-a na junta entre a porta e o batente da marquise da casa de habitação sita no lote n.o 17 da avenida Portugal, em Cantanhede.
2.1.3. Ao introduzir a alavanca no local referido, o arguido danificou a porta e o respectivo batente, destruindo também a fechadura.
2.1.4. A casa em questão pertence ao património comum do casal constituído pelo arguido e pela assistente.
2.1.5. A reparação dos danos causados à porta, batente e fechadura importou na quantia de € 178,50, que foi pago pela assistente.
2.1.6. Ao agir da forma acima descrita, fê-lo o arguido de modo livre e voluntário, com a consciência de que danificava e destruía objectos que pertenciam ao património comum do casal que constituía (e ainda constitui) com a assistente, sua mulher, mais tendo a noção de que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
2.1.7. O arguido é comerciante, e encontra-se a maior parte do tempo na cidade de Caracas, Venezuela, vindo de quando em vez a Portugal.
2.1.8. Algum tempo antes da ocorrência dos factos acima descritos, fora proferida sentença decretadora do divórcio entre assistente e arguido, na qual (e além do mais) se atribuiu ao arguido o direito à utilização da casa sita no n.º 17 da Avenida Portugal, em Cantanhede, não vindo tal sentença, no entanto, a transitar em julgado, por efeito de recurso interposto pela assistente.
2.1.9. Assim, era a dita casa ocupada permanentemente pela assistente e, quando se deslocava a Portugal, também pelo arguido.
2.1.10. O arguido não tem antecedentes criminais.
2.2. Relativamente à factualidade não provada, exarou-se na dita sentença:
“Não se provaram outros factos. Designadamente, não se provou que:
- O custo da reparação dos danos causados à porta, batente e fechadura tivesse importado no montante de € 250.”
2.3. A motivação probatória constante da mesma decisão rege com o segue:
“Para alicerçar a sua convicção, o Tribunal atribuiu relevância ao conjunto da prova produzida, criticamente analisada e concatenada entre si, à luz da perspectiva própria das normais regras da experiência da vida.
Assim, foi muito importante o depoimento – ainda que algo "branqueador" e emotivamente ligado – da testemunha C..., filha de assistente e arguido, e tão afectivamente próxima e solidária de seu pai quanto incompatibilizada com sua mãe. Com efeito, esta testemunha confirmou que o arguido praticou os factos a ele imputados quanto à danificação da porta, batente e fechadura (por, segundo disse, a porta em causa se apresentar, na ocasião, fechada, e o seu pai não dispor de chave que lhe permitisse o acesso a casa, sendo também certo que a testemunha ali já não vivia com a mãe; mas, mais relevante, a testemunha admitiu até que foi ela como que a "fonte de incitamento" da atitude do seu pai, fornecendo-lhe a alavanca com que o mesmo forçou a porta). Não poderá deixar o Tribunal de referir que do depoimento ora em causa perpassa, mais do que qualquer outra nota, o evidente grau de degradação relacional que se gerou entre a assistente e o arguido, bem como a impossibilidade de existência de um normal e "civilizado" convívio entre ambos, com "ramificações" para os outros membros da família.
Depois, as declarações da assistente denotaram a natural parcialidade de quem se encontra numa (longa e árdua) disputa de dissolução do vínculo conjugal, e serviram, no essencial, para reforçar a ideia de péssimo relacionamento existente entre si e o arguido; quanto à danificação da porta em si mesma, a assistente nada presenciou, vindo a confirmar junto do arguido ter sido este o autor de tal acto e procedendo ela, perante a recusa do marido em fazê-lo, à reparação dos danos.
As testemunhas Rui Teixeira Simões e Mário Costa Ângelo moram em local bastante próximo da casa onde os factos ocorreram e aí foram chamados pela assistente, a fim de presenciarem o estado de danificação da porta, batente e fechadura após os factos praticados pelo arguido (factos esses não presenciados por aquelas testemunhas).
Por fim, relevou o teor dos documentos de fls. 86 (certificado do registo criminal do arguido), 95 a 107 (sentença - não transitada - proferida no processo de divórcio de assistente e arguido), e 108 e 109 (relativos ao custo e ao pagamento dos estragos causados à porta).”
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. Tendo sido documentadas as declarações prestadas oralmente em audiência, mediante gravação magnetofónica, entretanto também transcritas, na íntegra, os poderes de cognição desta Relação abrangem a matéria de facto e de direito (artigo 428.º do CPP).
No entanto, conforme jurisprudência corrente, uniforme e pacífica, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas da respectiva motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1, ambos do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais (artigos 428.º, n.º 2 e 410.º, n.ºs 2 e 3, ambos do mesmo CPP).
Nos autos é certo que não ocorre ou vem invocado(a) qualquer um(a) destes vícios ou nulidades.
Por outro lado, vendo as conclusões do recorrente, temos que o thema decidendum se traduz em averiguarmos, se:
A) O Tribunal a quo apreciou indevidamente a prova (mais concretamente o depoimento da testemunha C...) ao não considerar como provado que o mesmo praticou os factos descritos nos pontos 2 e 3 da fundamentação de facto, porque não tinha outro meio de entrar na sua casa, já que a fechadura da porta em causa aparentava estar mudada e não detinha o arguido chaves das demais portas da casa.
B) A danificação dessa porta, bem comum do casal, por um dos cônjuges, nas especiais circunstâncias em que foi realizada, não deve ser considerado crime de dano nos termos do convocado artigo 212.º, n.º 1.
C) Mesmo a considerar-se que subsiste a relatada conduta do recorrente tal como consta da sentença recorrida, e a confluírem os pressupostos do tipo aí acolhido, sempre se verificaria causa de exclusão da ilicitude, a saber, legítima defesa ou estado de necessidade.
Vejamos, então, das questões suscitadas, salvo eventual prejudicialidade de alguma em relação às subsequentes.
3.2. Se o Tribunal a quo apreciou indevidamente a prova (mais concretamente o depoimento da testemunha C...) ao não considerar como provado que o arguido praticou os factos descritos nos pontos 2 e 3 da fundamentação de facto, porque não tinha outro meio de entrar na sua casa, dado que a fechadura da porta em causa aparentava estar mudada e não detinha o recorrente chaves das demais portas da casa.
Decorre da motivação apresentada que o recorrente, apelando a elementos externos à sentença impugnada, pretende sobrepor a sua própria convicção àquela que o M.mo Juiz da 1.ª instância alcançou sobre os factos submetidos a julgamento, de acordo com as regras processuais, maxime, o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.° do CPP.
Esta livre apreciação da prova "não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica." - Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 1998, 9.ª edição, pág. 322 –.
O tribunal a quo não deixou de objectivar e motivar de forma lógica e racional a sua livre convicção, como resulta, expressamente, do exame crítico da prova, que satisfaz as exigências previstas no artigo 374.°, n.º 2, do CPP.
Na verdade, como dela bem decorre, a testemunha aludida foi a única presencial da materialidade em discussão. Sem descurar as particularidades que se lhe deparavam – testemunha filha do casal em dissídio e particularmente ligada ao progenitor/arguido, em detrimento de sua mãe, ora assistente –, e, pelo contrário, destacando-as, explicitou as razões pelas quais acabou por acolher a veracidade respectiva e concluir como o fez o que, aliás, bem se intui se repararmos no transcrito depoimento da mesma.
Acresce que o tribunal a quo, sempre esteve em melhores condições para valorar globalmente a prova produzida na audiência de julgamento do caso sub judicio, baseando-se nos princípios da oralidade e da imediação – este último, definido em geral, como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes do processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão – vd. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I Vol., pág. 232 –.
"Só aqueles princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto VIVO e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais" – autor e ob. cit., págs. 233/4 –.
E também não se pode olvidar que na convicção pessoal dos julgadores desempenha uma função de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo ocaso, também ela uma convicção objectivável e motivável – ainda autor e ob. cit., pág. 205-.
Não colhe, pois, a argumentação do recorrente quanto à modificação ou redefinição da matéria de facto nos moldes sugeridos devendo, neste ponto, ser rejeitado o recurso.
3.3. Se a danificação da porta, bem comum do casal, por um dos cônjuges, nas especiais circunstâncias em que foi realizada, não deve ser considerado crime de dano nos termos do convocado artigo 212.º, n.º 1.
Neste particular o recorrente convoca dois arestos; o entendimento de que se não mostra preenchido o tipo objectivo do ilícito exigido pelo citado artigo 212.º, n.º1, rectius, ser a porta bem alheio (ao próprio) e ainda a circunstância de, atentos os princípios da legalidade e da tipicidade que regem o direito penal, não ser facultada a analogia (o legislador reportar-se-á aí tão-só à propriedade, que não à compropriedade) para concluir que devia improceder a acusação.
Ressalvado o devido respeito, estamos, pelo contrário, com a decisão recorrida.
Na verdade, que:
O crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212., n.º 1 citado, sanciona os comportamentos de quem «(…) destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia».
O bem jurídico tutelado neste crime é, sobretudo, a propriedade plena sobre a coisa danificada (neste sentido, Prof. Costa Andrade, "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo II, Coimbra, 1999, pág. 212), dada a exigência legal de que a coisa seja alheia (cfr. Dr. José António Barreiros, "Crimes contra o património no Código Penal de 1995", Lisboa, 1996, pág. 29, e Dr. Luís Osório, "Notas ao Código Penal Português", tomo IV, 2.a edição, Coimbra, 1925, pág. 24: «a palavra "alheio" pressupõe a pertença a outra pessoa») mas, sem olvidar que também aí se tutelam os direitos de gozo, fruição e guarda, pois que é este, também, o interesse do sujeito passivo do ilícito (donde que cometa este crime quem ofende coisa de que o lesado é arrendatário – vd., Ac. da R.L., de 9 de Abril de 1997, in Col. Jur., Ano XXII, Tomo II, pág. 146 -).
A propriedade, enquanto específico bem jurídico-penal (fundado na tutela constitucional do direito de propriedade, inerente ao artigo 62.° da CRP), deve ser considerada como uma relação de exclusividade entre a pessoa e a coisa, de que resulta um direito à integridade desta última, abrangendo três dimensões essenciais: substância, utilizabilidade e valor estético, postas em causa pelas condutas previstas no crime de dano.
No dano simples, esta relação entre o proprietário e a coisa é afectada através da intervenção de um terceiro sobre a coisa, que deixa de ter a mesma função instrumental para o seu titular. O proprietário vê coarctados os seus direitos sobre a coisa, sofrendo uma intromissão de estranhos na relação com esta. Citando o Prof. Costa Andrade, é atingido «(…) o domínio exclusivo sobre a coisa, isto é, o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa (e de lidar com ela como) o que quiser, retirando dela, no todo ou em parte, as gratificações ou utilidades que ela pode oferecer» (obra e tomo citados, pág. 207).
Como se alcança da mera enunciação formal da lei, estamos perante uma figura típica bastante dúctil, que sanciona várias formas (mais ou menos "extremas": destruição, danificação, desfiguração ou inutilização) de afectação da relação do dominus com a coisa.
Atenta a não punição do dano negligente (cfr. artigo 13.º do CP), o cometimento do crime em causa pressupõe que saiba o agente, antes de mais, que a coisa lhe não pertence (nisto se traduzindo o elemento intelectual do dolo), a par da vontade (mais ou menos "intensa", consoante a modalidade directa, necessária ou eventual do dolo – artigo 14.° do CP), pelo mesmo agente, de praticar conduta conducente a um dos resultados previstos no tipo (elemento volitivo do dolo); acresce a óbvia consciência da ilicitude da conduta perpetrada (elemento intelectual do dolo).
«A qualificação da coisa como alheia é determinada pelos princípios, categorias e normas da lei civil», o que excluirá do âmbito de protecção da norma «as coisas pertinentes à propriedade exclusiva do agente»; no entanto, «já é alheia a coisa de que o agente é apenas comproprietário» (Prof. Costa Andrade, obra e tomo citados, pág. 212, e sublinhado nosso).
Por isso que, e ressalvado o respeito por entendimento contrário, não se nos afigure pertinente a invocação do entendimento segundo o qual a danificação, por um dos cônjuges, de bens comuns do casal (e estando reunidos os demais elementos objectivos e subjectivos do tipo, como é evidente) não constitui crime de dano.
Precisando, ainda com as pertinentes considerações da sentença recorrida:
Não carece de demonstração que uma das consequências patrimoniais inerentes ao consórcio conjugal (maxime - é o caso dos autos - quando celebrado segundo um dos regimes da comunhão de bens) é a da formação de um conjunto de bens comuns do casal [para os quais vale, aliás, a regra geral da administração conjunta – artigo 1678.º, n.º3, 2.º parte, do Código Civil [CC], e Prof. Pereira Coelho, in Curso de Direito da Família, Faculdade de Direito de Coimbra, 1986, págs. 406 e segs.-. Bens comuns do casal que não se confundem, a nenhum título, com os bens próprios de cada um dos cônjuges (artigo 1678.º, n.º 1 do CC), e bens comuns esses cuja oneração ou disposição por um só dos cônjuges, fora das condições previstas na lei e à revelia da vontade do outro consorte, gera as chamadas "indisponibilidades relativas" (cfr. artigo 1687.° do CC).
Como assim, se considerarmos a danificação de bens próprios como uma manifestação (porventura excessiva) dos limites inerentes ao jus utendi et abutendi (ou à plena in re potestas) próprios do direito de propriedade (artigo 1305.º do CC), não choca nem surpreende que não exista crime de dano, pois que não se verifica o elemento "coisa alheia". Situação distinta é a que decorre da danificação de bens pertencentes ao património comum do casal, ou seja, de acervo que não se confunde com o património próprio do agente que, aliás, após a dissolução do vínculo conjugal está sujeito a “partilha”. Neste último caso, e sufragando-se o entendimento de qual o bem jurídico tutelado, como dito supra, não se percebe como pode ser negada a característica de "coisa alheia" ao objecto do comportamento (típico, acrescente-se) em causa.
No caso presente estamos perante conduta do recorrente, clara e inequivocamente dirigida à danificação de bens que ele sabia pertencerem ao património comum do casal (e não ao seu próprio património pessoal). Configurados os demais pressupostos exigíveis ao efeito, é irrefutável o cometimento do apontado crime de dano, naufragando, consequentemente, as razões invocadas no recurso, a propósito.
Resta, então, e por fim ponderar:
3.4. Se, mesmo subsistindo a relatada conduta do recorrente tal como consta da sentença recorrida, e a entender-se a verificação mormente do elemento necessário ao tipo objectivo, sempre se verificaria causa de exclusão da ilicitude, a saber, legítima defesa ou estado de necessidade.
Os pressupostos necessários à verificação destas duas causas de exclusão da ilicitude, vêm definidos, respectivamente, nos artigos 32.º e 34.º, ambos do CP.
O recorrente confrontado com uma alegada impossibilidade de se introduzir na casa de morada de família que, inclusive, lhe fora judicialmente atribuída (embora provisoriamente, atenta a própria natureza de tal definição e o não trânsito em julgado, à data, da decisão respectiva), socorreu-se de uma nítida acção directa e agora clama pelo apelo àquelas duas figuras, embora sem grande convicção como decorre da motivação oferecida.
De facto, até as coloca em quase alternativa.
Mas, pergunta-se, onde a necessidade do meio utilizado, sabendo-se que esta impõe uma prévia impossibilidade de recorrer aos meios coercitivos públicos? E também a actualidade da agressão que o vitimara, se fora já algum tempo antes que se decretara a atribuição da que constituía a casa de morada de família? E, igualmente, a superioridade do valor a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado?
A autodefesa mostra-se legalmente proibida pelo artigo 1.º do Código de Processo Civil [CPC]. Aí se preceitua que «A ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvos nos casos e dentro dos limites declarados na lei».
Ora, estes requisitos mostram-se apertados como decorre do artigo 336.º do CC, sendo, a saber: a) fundamento real: é necessário que o agente seja titular de um direito, que procura realizar ou assegurar; b) necessidade: o recurso à força deve ser indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios normais, para evitar a inutilização do direito do agente; c) adequação: o agente não pode exceder o estritamente necessário para evitar o prejuízo; d) valor relativo aos interesses em jogo: através da acção directa não pode o agente sacrificar interesses superiores aos que visa realizar ou assegurar (A. Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4.ª edição).
Confrontado com a impossibilidade de aceder à sua morada, mais não restava ao arguido do que recorrer aos meios coercitivos normais (policiais e judicias).
Vale por dizer que igualmente improcede este fundamento do recurso.
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IV – Decisão.
São termos em que se decide:
- Rejeitar o recurso na parte em que vem impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto.
- Negar provimento ao recurso na parte em que vem controvertida estrita matéria de direito.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça devida em 8 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 30 de Novembro de 2005