Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1197/05.9
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
EXPROPRIAÇÃO POR ZONAS
AVALIAÇÃO
RESERVA ECOLÓGICA NACIONAL
REGIME APLICÁVEL
Data do Acordão: 11/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: : ARTIGOS 25º, Nº 2; 26º, Nº12º DO CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES DE 99; ARTIGOS 10º E 11º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Procedendo-se à expropriação de duas parcelas de terreno, com as áreas de 9.147 m2 (a que se reporta a DUP de 2000) e 8.599 m2 (a que se reporta a DUP de 2002), contíguas uma à outra, a destacar do mesmo prédio rústico, com vista à execução da mesma obra (via de comunicação), intervalando os processos expropriativos dois anos, reunindo a parcela expropriada em primeiro lugar as características a que alude o art. 25º, nº2, alínea a) do CE 99, deve considerar-se que, para efeitos de avaliação da parcela expropriada em segundo lugar, lhe aproveitam as características da primeira, como seria se, ab inicio, se tivesse procedido a uma única expropriação ou à expropriação por zonas ou lanços.
2. Essa conclusão impõe-se, por maioria de razão, quando a parcela anteriormente expropriada o foi por negociação amigável, tendo sido avaliada pela entidade expropriante como “solo apto para construção”, ainda que não se verifiquem os pressupostos do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
3. A integração da parcela expropriada em zona de Reserva Ecológica Nacional (REN) não obsta a que seja avaliada por aplicação dos critérios a que alude o art. 26º, n.º 12 do Código das Expropriações de 99 (por interpretação extensiva ou analógica) desde que verificados os demais pressupostos, a saber: a) estamos perante solo que reúne os requisitos indicados numa das alíneas do art. 25º, nº 2 do Código das Expropriações, evidenciando, pois, concretas condições materiais de edificação; b) a integração em zona de reserva ecológica ser determinada por plano municipal de ordenamento, em data posterior à aquisição do terreno por parte da expropriada.
Decisão Texto Integral: I- RELATÓRIO
Por despacho do Sr. Secretário de Estado Adjunto das Obras Públicas, datado de 9 de Julho de 2002, publicado no DR n.º 173, de 29 de Julho de 2002, II série, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação dos bens imóveis e direitos a ele inerentes, necessários à execução da obra IP 2 – lanço Guarda –Belmonte – sublanço Guarda – Benespera – e reformulação do nó de acesso ao parque industrial da Guarda.
Entre esses imóveis está incluída a parcela de terreno identificada com o nº 0.04-A, com área de 8.599 m2, a destacar do prédio situado na freguesia da Sé - Guarda, concelho da Guarda, inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo 1772, na Repartição de Finanças da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial do mesmo concelho, sob o nº 1830/19921027 e inscrito em nome da expropriada, A Predial da Corredoura Lda, pela inscrição G 1.
Não foi possível a expropriação amigável, pelo que a entidade expropriante, E.P. - Estradas de Portugal E.P.E. (que sucedeu ao Instituto das Estradas de Portugal), organizou o respectivo processo e enviou-o ao Tribunal Judicial da Guarda, onde foi autuado como expropriação litigiosa.
O Mº Juiz adjudicou à expropriante a propriedade sobre a parcela em questão.
A expropriada recorreu da decisão arbitral que fixou a indemnização em €13.800,00, pedindo que se fixe o valor total da indemnização devida em €150.000,00.
A expropriante respondeu e apresentou recurso subordinado, sustentando que deverá ser fixado como justo valor a indemnizar o montante de €8.984,98.
Proferiu-se despacho a admitir os recursos da expropriada e expropriante.
Nomeados os peritos, procedeu-se à avaliação, tendo sido apresentados dois laudos, com as respectivas respostas aos quesitos, sendo:
- um subscrito pelos peritos designados pelo tribunal e pela expropriante, que considerou dever fixar-se a indemnização de €27.603,00, valor que inclui o montante de € 517 relativo a benfeitorias;
- outro pelo perito designado pela expropriada, que considerou dever fixar-se a indemnização de €413.568,00.
A expropriada apresentou reclamação quanto às respostas.
Foram apresentadas alegações pela expropriada, que procedeu ainda à ampliação do pedido, requerendo que a indemnização seja fixada em valor nunca inferior a €413.568,00, “actualizado nos termos do art. 24º C.Exp.” e pela expropriante.
Proferiu-se sentença, que fixou a indemnização devida pela expropriação da parcela aludida “em 27.603€ (vinte sete mil seiscentos e três euros) (o valor da indemnização é actualizado pelo índice de preços no consumidor, fornecido pelo I.N.E., a partir de 9 de Julho de 2002 - data da declaração de utilidade pública (art ° 24.° do Cód. Das Exprop.) - e até efectivo pagamento)”.
A expropriada recorreu, pedindo a revogação da sentença e que seja fixada a indemnização de €413.568,00, actualizada “nos termos do art. 24º do C. Exp.”.
Apresenta alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
2ª e 3ª - A sentença apenas apurou alguns dos factos que devem ser ter-se como provados, mas, para além deles, foram alegados outros, descritos sob o nº III, que devem ser declarados assentes pela 2ª instância;
4ª e 5ª - A grande disparidade de valores de avaliação no processo resulta substancialmente da diferente classificação da parcela expropriada, por parte dos Srs. Peritos, uma vez que os peritos do tribunal e da expropriante consideram a parcela expropriada como solo “apto para outros fins” e o perito da expropriada como solo “apto para construção”;
6ª e 7ª - O laudo conjunto apresentado pelos Srs. Peritos designados pelo Tribunal e pela expropriada, em que se baseou a sentença recorrida, fixou a indemnização com base no entendimento de que o solo não é apto para construção, mas para outros fins, sendo que os Srs. Peritos não forneceram ao tribunal – apesar do que este lhe ordenou –, cálculos auxiliares para a decisão judicial, pelo que o tribunal não tem, neste campo, qualquer ajuda de tais peritos;
8ª - A sentença recorrida considerou o solo como “apto para outros fins” só com base nos factos dados como assentes e sem atender aos demais invocados pela expropriada e que também devem ter-se como provados, fixando o valor por adesão apenas aos factores de cálculo apresentados dos peritos do tribunal e expropriante;
11ª - No entanto, estão preenchidos todos os requisitos para a classificação da parcela expropriada como terreno “apto para construção”, em ordem a que seja avaliado como tal, sendo que o facto de um terreno estar incluído na Reserva Ecológica Nacional (REN), porventura como tal considerado também num PDM, como é o caso, não lhe retira a natureza de terreno apto para construção se nele convergirem alguns dos essenciais requisitos para o solo dessa natureza;
12ª a 14ª - Perante a manifesta inconstitucionalidade do art° 24°-5 do CExp. de 91, o legislador do CExp. de 99 suprimiu essa norma de modo que passaram a existir duas normas fundamentais: uma, a do art. 25º - 3, manteve a do Cód. de 91 (então art° 24°- 4 de 91); outra inovou em relação ao Cód. de 91, a do nº12 do art° 26°, que está integrada também num artigo que se reporta ao “cálculo do valor do solo apto para construção” e contém um conjunto de princípios que servem de orientadores para esse cálculo;
15ª - No caso concreto, a definição da área como REN e o PDM são posteriores à titularidade da propriedade por parte da expropriada;
16ª - Deste modo, se ainda hoje se pretender que, por força da classificação em zona de REN no PDM da Guarda da Parcela 0.04A, agora expropriada, deve esta ser classificada dentro da categoria de «solo para outros fins», que não o de «para construção», isso resultaria de uma interpretação do art° 25°-3 CExp. 99 manifestamente inconstitucional, até porque equivaleria a atribuir-se-lhe, por si só, uma interpretação equivalente à manutenção da revogada norma do art° 24°-5 do CExp. de 91;
17ª - Ou isso resultaria de uma interpretação restritiva do art° 26°-12 CExp. 99, ao não considerar equivalente, ou equiparado a «zona verde e de lazer» a que provém da sua classificação em PDM na área como restrita de RAN/REN, quando a razão de ser da norma é exactamente a mesma, assim sendo feita uma interpretação também inconstitucional daquela norma;
18ª - Ou isso resultaria de uma interpretação restritiva do mesmo art°26°-12 CExp. 99, ao não admitir que nela se contém a referência a solos (ora expropriados), que, estando incluídos por PDM em zona restrita de RAN/REN, dela tiveram de ser retirados, por natureza e para o fim da expropriação, para a construção de uma infra-estrutura ou equipamento público como é uma estrada, tal como o é a VICEG – Via de Cintura Externa da Guarda, assim sendo também feita uma interpretação inconstitucional daquela norma;
19ª - E, em qualquer dos casos, ocorreria violação dos princípios do direito de propriedade, da justa indemnização, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade;
21ª - O que releva é, precisamente, que o expropriante teve de obter, sempre, a desclassificação do terreno da REN para nele poder construir aquilo que nele constrói, no caso uma estrada;
22ª - Assim não entendendo, a sentença deu aos arts. 25º, nº3 e 26º - 12 uma interpretação inconstitucional, em violação dos princípios acima referidos;
24º a 28º - Sem prescindir, a simples comparação entre as plantas das 1ª e 2ª expropriação permite aquilatar que a parcela ora expropriada é contígua à 1ª, existindo ambas na mesma Quinta da Rasa, sendo o fim das expropriações o mesmo;
30ª - Só pelo facto de ter sido previamente destacada a primitiva parcela 0,04 (soma das 0,04 e da 0,04S) é que a parcela agora expropriada não confina a Norte com a mesma EM 351, mas sim a Norte com o IP2, entretanto construído sobre a primitiva parcela 0,04;
33ª - Não pode impor-se à expropriada o excessivo e injusto ónus de ver separar o seu terreno em várias Parcelas para o efeito de ser vítima de variação de valores: na primeira obtendo a avaliação como “solo apto para construção”, na segunda, actual, a avaliação como “solo apto para outros fins”;
34ª a 37ª - Obter uma avaliação e fixação de indemnização pela expropriação que lhe é favorável, através de facto que ela mesma e só ela criou – não procedeu à expropriação de parte da Quinta da expropriada de uma só vez, fazendo recair sobre a expropriada as consequências da imprevisão, do lapso ou de mera casualidade na construção de uma infra-estrutura –, seria também, não só “venire contra factum proprium”, como agir com verdadeiro abuso de direito e com locupletamento à custa alheia;
38ª e 39ª - Deste modo, o solo só pode ser avaliado como “apto para construção”, verificando-se todos os índices do art. 25º, nº1, a) e nº2 do C Exp;
42ª e 43ª - Quer a decisão arbitral, quer o laudo conjunto, a que a sentença aderiu, não contêm contas definitivas para a avaliação da parcela como “solo apto para construção”, pelo que o tribunal só tem como credível o laudo do perito da expropriada, aí encontrando o valor correcto da indemnização;
46ª - Assim não decidindo, a sentença violou os arts. 1º, 25º-3, 26º-12 do C.Exp.;
47ª - E os princípios consagrados no art. 62º- 1 e 2, 13º e 266º da CRP;
48ª - E os arts. 6º e 6º A do C.P.Adm. e 334º do C.Civ., “no uso interpretativo dos cit. Arts. 1º, 25º -3 e 26º-12 do C. Exp.;
49ª - Com o inerente desrespeito do art, 268º da CRP-2 “e o imanente princípio constitucional da boa fé da Administração”;
A expropriante não apresentou alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou assente a seguinte factualidade:
1 - A utilidade pública da expropriação da parcela foi reconhecida por despacho do Sr. Secretário de Estado Adjunto das Obras Públicas, de 9 de Julho de 2002, publicado no D.R. nº 173, Série II, de 29 de Julho de 2002, que reconheceu a urgência da expropriação e a autorização da posse administrativa imediata;
2 - Em 20/08/2002, realizou-se a vistoria “ad perpetuam rei memoriam” e em 11/10/2002 a expropriante tomou posse administrativa da parcela.
3 - A arbitragem foi realizada em Agosto de 2003 e nesta atribuída uma indemnização à expropriada de 13.800,00€.
4 - A parcela expropriada tem a área 8.599 m2, foi desanexada de um prédio com a área de 100.000;
5 - A área da parcela sobrante é de 91.401 m2;
6 - A parcela destacada tem as seguintes confrontações: a Norte com Sociedade Têxtil Manuel Rodrigues Tavares, Lda., a Sul com a Predial Corredoura, Lda., Nascente com IP2 e a Poente com Predial Corredoura, Lda.;
7- O solo da parcela é derivado de granitos, com declives entre os 2% e os 36 %.
8 - Esta parcela de terreno situa-se num prédio rústico sito no local de Quintãzinha, no limite da freguesia da Sé, concelho da Guarda;
9 - De acordo com o PDM da Guarda, os solos da parcela expropriada situam-se em área abrangida pela Reserva Ecológica Nacional (REN);
10 – No que concerne a equipamentos não existem equipamentos confinantes com a parcela. Há alguns a uma distância de cerca de 60m nas seguintes situações: separados da parcela pelo IP2, a Norte; estrada municipal pavimentada a betuminoso, servida das redes de água, esgotos, energia eléctrica e telecomunicações; estrada municipal pavimentada a betuminoso, com origem cerca da Quinta do Mouratão, a Nascente.
11- Segundo o Plano Director Municipal da Guarda (PDMG – publicado no D.R. I Série-B, nº177, de 20 de Julho de1994) e portarias nº 86/94 de 7 de Fevereiro aprovação da carta da Reserva Ecológica Nacional e nº 165/93 de 11 de Fevereiro – aprovação da carta de Reserva Agrícola Nacional, relativas ao concelho da Guarda, a área abrangida pela parcela do prédio em avaliação, é classificada em Área Rural (artigo 19º), como Mata e uso Florestal a Manter (artigo 20º), em Área de Salvaguarda Estrita (artigo 27º), como REN (Reserva Ecológica Nacional – artigo 29º).
12 - No âmbito da peritagem efectuada, os peritos designados pelo Tribunal e pela entidade expropriante atribuíram à mencionada parcela de terreno o valor de 27.603 €.
13 - O perito designado pela expropriada atribuiu à parcela o valor de 413.568 €.

III-FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 664 do C.P.C..
Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela apelante, assentamos que se impõe apreciar as seguintes questões:
- da ampliação da matéria de facto assente em ordem a incluir a factualidade enunciada pela expropriada em III das respectivas alegações (corpo);
- da classificação da parcela expropriada: a integração em zona de Reserva Ecológica Nacional (REN);
- características da parcela expropriada, em face de expropriação anterior e os requisitos a que alude o art. 25º, nº2 do C E;
- da aplicação extensiva ou analógica dos critérios de cálculo constantes do art. 26º nº12 do CE;

2. A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º do C.P.C., a saber:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
No caso em apreço, não se procedeu à produção de qualquer prova testemunhal e não está em causa, manifestamente, a situação a que alude a alínea c) supra referida.
Por outro lado, dispõe o art. 690º-A do CPC:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
A recorrente insurge-se contra a apreciação feita pelo tribunal de 1ª instância relativamente aos factos provados, sustentando a ampliação dessa factualidade e argumentando que há um conjunto de factos pertinentes que o tribunal não deu como assentes, devendo fazê-lo.
Para fundamentar essa pretensão a recorrente aludiu, expressamente, e com referência a cada um dos factos que enuncia, elementos de natureza documental juntos aos autos e elementos que resultam da perícia realizada, nomeadamente da resposta a alguns quesitos, apresentada pelo laudo maioritário (peritos do tribunal e expropriante), pelo que deu cumprimento à exigência supra aludida.
Acresce que, relativamente aos documentos, os factos a que se reportam esses concretos meios probatórios não foram postos em causa pela expropriada, sendo que se trata até de declarações emitidas pela entidade expropriante (art. 376º, nºs 1 e 2 do C.C.).
Por último, impõe-se reconhecer que, sem prejuízo de posterior análise quanto à concreta pertinência dos factos ora em causa, sempre se justificaria incluir essa factualidade na matéria assente, considerando as várias soluções plausíveis de direito (à semelhança do que dispõe o art. 511º, nº1 e por similitude de razões).
No entanto, há factos que a recorrente pretende ver aditados e que, manifestamente, não o devem ser, ou porque não podem ter-se por provados, por notória insuficiência de elementos probatórios para tal – é o que acontece, por exemplo, com a pretendida localização do terreno expropriado “dentro do perímetro urbano da cidade da Guarda”, tendo os Srs. Peritos, maioritariamente, respondido negativamente a esse quesito 5º, socorrendo-se a expropriada, apenas, da resposta afirmativa dada pelo seu perito –, ou porque são invocados de forma repetida, por referência a outros factos – v.d. a indicação que consta sob os nºs 10.36 a 10.39 sob a letra B, do corpo das alegações.
Por outro lado, relativamente a determinadas matérias, a recorrente alega de forma notoriamente conclusiva e, portanto, insusceptível de ser levada à factualidade assente. Por exemplo, não faz sentido dar-se por provado que “só pelo facto de ter sido previamente destacada a primitiva parcela 0.04 (0,04 + 0.04S) é que a subsequente parcela identificada com o nº 004A, mantendo o seu solo ligado e não separado, não confina a Norte com a mesma EM 351”(cfr. o que consta da resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 3º da expropriada, a fls. 313 dos autos).
Como também não faz sentido dar-se por provado que “só pelo facto de ter sido previamente destacada a primitiva parcela 0.04 (0,04 + 0.04S) é que a subsequente parcela identificada com o nº 004A, confronta a Norte com o IP2, entretanto construído sobre a primitiva parcela 0.04, enquanto a sul continua a confrontar com a expropriada (cfr. resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 4º da expropriada, a fls. 313 e 314 dos autos).
Estamos perante conclusões – com base em raciocínio silogístico –, que a recorrente extrai do facto, esse sim a dar-se como provado, alusivo à contiguidade das parcelas expropriadas, no âmbito do mesmo prédio.
Assim, considerando os elementos probatórios constantes do processo, justifica-se a ampliação da factualidade assente, em ordem a que se adite, ao elenco dos factos considerados provados pelo tribunal de 1ª instância, ainda, os seguintes:
14- Em 29 de Abril de 2000 o Instituto de Estradas de Portugal procedeu à avaliação a que se reporta o documento junto a fls. 215 a 217, tendo atribuído, com referência ao prédio aí identificado, por 9.147 m2, o valor global de esc. 27.441.000$00, assim discriminados:
- à parcela nº0,04, com a área de 6.897 m2 o valor de esc. 20.691.000$00, qualificando-a como “solo apto para construção”;
- à parcela nº 0.04S, com a área de 2.250 m2 o valor de esc. 6.750.000$00, qualificando-a como “solo apto p/ construção (sobrante);
15- O Instituto de Estradas de Portugal remeteu à expropriada a carta cuja cópia consta de fls. 213, enviada em 31 de Maio de 2000, comunicando conforme daí consta e, nomeadamente, que tal entidade ia requerer a declaração de utilidade pública com carácter urgente “das expropriações necessárias ao IP2-Guarda/Benespera”, para o que se torna necessária a aquisição da parcela nº 0.04, com área de 9.147 m2, sita na freguesia da Sé, concelho da Guarda, a destacar do prédio inscrito na matriz predial e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1830/19921027, convocando a expropriada para uma reunião para tratar dos “assuntos relacionados com a expropriação daquela parcela”.
16 – Em 28 de Julho de 2000 a expropriada e a expropriante celebraram o acordo consubstanciado no documento junto a fls. 222 a 224 dos autos, que intitularam de “Contrato –promessa de transferência do direito de propriedade”, alusivo à parcela nº 0.04 supra indicada, aí referenciada como tendo 9.147 m2, declarando a expropriante que promete adquirir e a expropriada que aceita transferir a propriedade dessa parcela de terreno, livre de ónus e encargos, pelo preço de esc. 27.441.000$00, “quantia que representa a totalidade da indemnização a atribuir pela expropriação da aludida parcela, através de auto de expropriação amigável a celebrar nos termos da lei”.
17 - O Secretário de Estado Adjunto das Obras Públicas, por despacho proferido em 7 de Agosto de 2000, publicado no D.R. nº 201, Série II, de 31 de Agosto de 2000, declarou a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação das parcelas de terreno necessárias à execução do empreendimento IP 2 – Guarda – Benespera e ligações ao Sabugal e à EN18, conforme documento junto a fls. 139 a 155 dos autos.
18 - Entre essas parcelas de terreno está incluída a parcela de terreno identificada com o nº 0.04, com área de 6.897 m2, supra referida, a destacar do prédio situado na freguesia da Sé-Guarda, concelho da Guarda, inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo 1772, na Repartição de Finanças da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial do mesmo concelho, sob o nº 1830/19921027 e inscrito em nome da expropriada, A Predial da Corredoura Lda, pela inscrição G 1.
19- Em 26 de Abril de 2001 as partes declararam conforme “auto de expropriação amigável” junto a fls. 239 a 243 e, nomeadamente, que:
- a expropriante “vai realizar a obra de construção do IP2 - Guarda – Benespera e ligações ao Sabugal e à EN 18, para a qual se torna necessário ocupar a parcela número 0.04 P1, com área de 6.897 m2, a integrar no domínio público rodoviário, a desanexar do prédio situado na freguesia da Sé, concelho da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda na ficha 1830/19921027, que confronta, a Norte, com Sociedade Textil Manuel Rodrigues Tavares Lda, a Sul, com Estrada Municipal, a Nascente, com Caminho e Herd. de Dr. Rebelo e a Poente, com Estrada Municipal, de que os Segundos Outorgantes declaram ser os únicos e legítimos proprietários, estando o prédio livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabiliodades;
- “Que nos termos da alínea b) do número 2 do artigo 3º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei 168/99 de 18 de Setembro, os Segundos Outorgantes requereram e o Segundo Outorgante aprovou, a aquisição da parcela sobrante com a área de 2.250 m2, que vai ser integrada no domínio privado do Instituto de Estradas de Portugal, a qual fica a confrontar, a Norte, com Caminho, a Sul, com Maria João da Cunha Serrano Paraíso Rebelo, a Nascente, com Caminho e a Poente, com o próprio”.
- “Que foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, desta expropriação, por despacho (…) de sete de Agosto de dois mil”, publicado no D.R., II série, nº 201, de 31/08/2000;
- que a expropriante acordou com a expropriada a expropriação amigável das parcelas supra identificadas, mediante o pagamento pelo Instituto de uma indemnização total de 27.441.000$00;
20 – A parcela 0,04 foi classificada, segundo o Plano Director Municipal da Guarda (PDMG – publicado no D.R. I Série-B, nº177, de 20 de Julho de1994) e portarias nº 86/94 de 7 de Fevereiro aprovação da carta da Reserva Ecológica Nacional e nº 165/93 de 11 de Fevereiro – aprovação da carta de Reserva Agrícola Nacional, relativas ao concelho da Guarda, como Área Rural (artigo 19º), como Mata e uso Florestal a Manter (artigo 20º), em Área de Salvaguarda Estrita (artigo 27º), como REN (Reserva Ecológica Nacional – artigo 29º) (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 3º da expropriada, a fls. 313 dos autos);
21- A parcela 0,04 é um terreno de configuração alongada, em “L”, aproximadamente trapezoidal, plano, com ligeiro declive a poente; a parcela margina, a sul, com arruamento ligando “Gata”, a nascente, a Quintãzinha do Mouratão, a poente, que foi parcialmente beneficiada e alargada aquando da realização da nova via, encontrando-se agora pavimento a betuminoso, com a largura de cerca de 6 m, sendo servido de electricidade e rede telefónica por via aérea, que entronca na EM 531 dispondo ainda das infra-estruturas, água canalizada e esgotos separados, destinadas às seguintes construções térreas:
.um restaurante, uma casa de habitação e uma oficina auto-esta não ligada a esgotos, e a um amplo pavilhão do tipo industrial afecto à lavagem industrial de lã de ovelha situado do outro lado da nova via e afastado desta cerca de 100 m; estes esgotos acabam em fossa da pequena povoação, sita a cerca de 100 m da nova via, em zona de alagamento provocado pelo Rio Noeme- no lado da Quintãzinha sendo os esgotos da EM 531dirigidos ao Rio Diz-no lado da Gata;
A EM 531 margina ainda a parte sobrante, também a expropriar;
Nas referidas povoações existem casas dispersas térreas e de 1º andar, sem comércio, indústria ou serviços, distam um pouco mais de 200 m da via em apreciação e ficam a menos de 5 Km da Guarda (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 3º da expropriada, a fls. 313 dos autos).
22- A parcela 0,04 A é contígua à primitiva parcela 0.04 (salvo a sub-parcela mais a sul ) e a sobrante 0.04S (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 1º da expropriada, a fls. 313 dos autos).
23- A parcela 0,04 A, 0.04 e a sobrante 0.04S estão todas dentro da mesma Quinta da Rasa, prédio com o mesmo artigo matricial, do qual foram todas destacadas (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 2º da expropriada, a fls. 313 dos autos).
24- A parcela expropriada (nº 0.04 A) fica situada no limite da freguesia da Sé e a cerca de 5 Km da Guarda (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 5º da expropriada, a fls. 314 dos autos).
25- Tem boa qualidade ambiental (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 6º da expropriada, a fls. 314 dos autos).
26- A cércea ou altura dos pisos existentes num raio de 300 m da parcela deve rondar, em média, 6 m, uma vez que, em termos de cércea, temos uma casa de um piso, um restaurante com um piso, uma oficina com um piso e pavilhões industriais, isto a menos de 300 m (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 7º da expropriada, a fls. 415 dos autos, na sequência de reclamação apresentada pela expropriada).
27- O PDM da Guarda foi aprovado pela Assembleia Municipal da Guarda em 17/03/1994, ratificado em Conselho de Ministros em 12/05/1994 (resposta dos peritos do tribunal e expropriante ao quesito 12º da expropriada, a fls. 316 dos autos).
28. Está inscrita na C.R.P. da Guarda, por apresentação nº 10 de 21/01/1994 a aquisição a favor da expropriada, por compra, do prédio supra identificado, descrito nessa Conservatória sob o nº 1830, de 27/10/1992, do qual foram destacadas as parcelas referidas (documento junto a fls. 237 e 238).
29. A expropriante e a expropriada trocaram entre si as missivas juntas a fls. 52 a 55 e 59 a 69, informando e comunicando conforme consta das mesmas.

3. Cumpre delimitar os termos em que a parcela expropriada foi avaliada no decurso do processo expropriativo. Temos, então, que:
- a decisão arbitral considerou-a como “solo apto para outros fins” e estabeleceu o valor de €13.800,00;
- em sede de recurso, no tribunal de 1ª instância, os três peritos do tribunal e o perito da expropriante consideraram-na como “solo apto para outros fins” e estabeleceram o valor de €27.603,85, sendo €27.086,85 o valor da parcela e €517 o valor das benfeitorias.
Na sequência de reclamação da expropriada os Srs. Peritos esclareceram que esse valor é reportado “à data da DUP mas actualizado para a data do Relatório de Peritagem, segundo o índice de preços ao consumidor, com exclusão de habitação, publicado pelo INE”, referindo que o valor da indemnização à data da declaração de utilidade pública (29/07/2002), seria de €24.958,27 (fls. 413 e 414 dos autos).
- o perito da expropriada considerou a parcela como “solo apto para construção”, com o valor de €413.568,00.
A divergência fundamental entre os peritos e que condiciona, obviamente, o valor arbitrado, prende-se com a classificação do terreno expropriado.
Da análise do relatório do laudo maioritário (três peritos do tribunal e perito da expropriante), resulta que os peritos recusaram ab inicio a classificação da parcela expropriada como constituindo “solo apto para construção”, indicando que se tratava de terreno integrado em Espaço Rural e Reserva Ecológica Nacional (REN), «pelo que, segundo o art. 25º do Código das Expropriações (CE – Lei 168/99 de 18 de Setembro) classifica o terreno como “solo apto para outros fins”» (cfr. fls. 300 dos autos), classificação que apelante questiona.
*
A determinação da indemnização devida pela expropriação rege-se pela lei substantiva em vigor à data da publicação da declaração de utilidade pública, por ser esse o facto constitutivo da relação jurídica expropriativa, pelo que, no caso em apreço, relevam os critérios que decorrem do Código das Expropriações aprovado pela Lei 168/99 de 18 de Setembro (CE, diploma a que aludiremos quando não se fizer outra menção).
Sem prejuízo, interessa breve abordagem ao CE aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, na parte em que, no seu art. 24º, nº5, preceituava que “para efeitos de aplicação do presente código é equiparado a solo para outros fins o que, por lei ou regulamento não possa ser utilizado na construção”.
Como é sabido, na vigência deste diploma foi proferido o Ac. do TC nº 267/97 (Relator: Guilherme da Fonseca), de 19/03/97, publicado no DR, II série, de 21/05/1997, que declarou inconstitucional, por violação dos princípios da justiça e da proporcionalidade, a referida norma, enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de “solo apto para construção” os solos integrados na Reserva Agrícola Nacional (RAN) expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola – estava aí em causa a construção de um quartel de bombeiros.
Refira-se que os argumentos são os mesmos, quer se trate de terrenos integrados em Reserva Agrícola Nacional (RAN) quer em Reserva Ecológica Nacional (REN).
Em sentido diferente foi o Ac. nº 20/2000 (Relator: Cons.Paulo Mota Pinto), publicado no D.R., II série, de 28/04/2000, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações vigente, interpretada por forma a excluir da classificação de "solo apto para a construção" solos integrados na Reserva Agrícola Nacional expropriados para implantação de vias de comunicação – estava aí em causa a construção de um sub lanço da auto-estrada Famalicão Guimarães. A “história do caso”, subjacente a ambos os acórdãos –que são paradigmáticos na análise desta questão – é diferente, mas é notória a divergência de orientações nos dois arestos, evidenciada, aliás, pelo voto de vencido do Cons. Guilherme da Fonseca, no Ac. nº20/2000 .
No Ac. nº267/97, o Tribunal detectou um comportamento da Administração que implicitamente considerou estar próximo da figura do "abuso de direito", reconhecendo-se ter havido alguma tentativa "de manipulação das regras urbanísticas por parte da Administração", traduzidas na classificação de um terreno como zona verde (ou reservada a uso agrícola), desvalorizando-o, para mais tarde o adquirir, por expropriação, pagando por ele um valor correspondente ao de solo não apto para construção, quando o que se ia fazer era exactamente construir. Como se referiu no Acórdão “A Administração classificou-o, bem ou mal, não interessa aqui, como terreno de utilidade pública agrícola e, por isso, integrou-o na RAN. Desvalorizado, a Câmara de Chaves adquire-o, pagando por ele um valor correspondente ao de solo não apto para construção (e note-se que a sua apropriação ocorreu apenas a uma semana da publicação da Portaria nº 380/93, que veio libertar da RAN todo o terreno em que se situava a referida parcela)”. Saliente-se que estava aí em causa uma parcela, com 4 420m2, integrada na área urbana de Chaves, sendo ladeada por áreas de edificações de ocupação muito elevada, de vias de comunicação, de rede pública de abastecimento de água, esgotos, electricidade e situava-se a menos de 300 metros de distância de prédios de grande envergadura, sendo a expropriação, como já se referiu, com a finalidade de construção de um quartel de bombeiros.
Ora, esse comportamento da Administração inexiste no caso objecto de apreciação pelo Ac. nº20/2000, havendo que centrar a divergência também noutro tipo de considerações.
Fundamentalmente, no Ac. 267/97 considerou-se que a restrição à utilização do terreno, decorrente das suas características intrínsecas, da sua qualidade (especial vocação agrícola, de tal sorte que foi integrado em RAN) impõe-se ao próprio Estado e não apenas aos particulares – “é antes de mais, a vinculação da Administração Pública ao princípio da igualdade”. Assim, se o terreno tem as características supra enunciadas e é expropriado para fim diverso da aptidão agrícola, então a indemnização deve aferir-se em função da sua capacidade edificativa pelo que é inconstitucional a norma do art. 24º, nº5, que impõe a sua classificação como “solo apto para outros fins”. Neste contexto, refere o Cons. Guilherme da Fonseca no voto de vencido que consignou no Ac. nº20/2000, “donde deriva que está sempre em causa uma proibição de impor aos particulares cujo prédio já foi, bem ou mal, integrado na RAN um sacrifício acrescido, o sacrifício da expropriação sem a indemnização justa, e qualquer que seja o fim subjacente à expropriação por utilidade pública, desde que diverso da aptidão agrícola”, acrescentando “pois que sempre a Administração deve respeitar, ela própria, o fim da afectação e não deve construir, seja "um quartel de bombeiros", seja "um sublanço da auto estrada".
No Ac. nº20/2000, pelo contrário, refere-se que a alteração da destinação agrícola (ocorrida com a expropriação) só por si, não impõe uma indemnização como “solo apto para construção”, pois não baseia a existência de uma muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa. Pode aí ler-se:
“Deve, pois, concluir-se que o acréscimo de contribuição dos expropriados para a prossecução do interesse público, que, segundo se decidiu no Acórdão citado (nº 267/97), os coloca em situação de desigualdade perante os demais cidadãos, resulta do concurso da expropriação para a finalidade de construção de um prédio urbano, sem indemnização como "solo apto para construção" com a anterior imposição da proibição de construção, pela integração do terreno na RAN. Mas tal desigualdade já não se verifica se a expropriação visa prosseguir, não a finalidade cujo afastamento estava subjacente à exclusão da qualificação como "solo apto para construção", mas sim uma outra, como a implantação de uma via de comunicação. Recorde-se, na verdade, que o proprietário de prédio integrado na RAN não tinha qualquer expectativa de poder vir a valorizar o solo para finalidades edificativas, pois ele próprio não podia construir, nem desafectar o solo da RAN, e a aptidão edificativa não é sequer confirmada pela utilização visada com a expropriação. Se a expropriação é justamente para edificação de prédio urbano, então mostra-se que a integração na RAN não poderia excluir a qualificação como "solo apto para construção" para efeitos de indemnização, pois a potencialidade edificativa do prédio é justamente confirmada pela utilização dada pelo expropriante – para mais, se o prédio foi anteriormente desanexado da RAN, como acontecia na situação do Acórdão n.º 267/97. Já não será assim, porém, numa situação como a dos presentes autos, em que a expropriação levada a efeito pela Brisa se destina exclusivamente a um sublanço da auto-estrada Famalicão Guimarães, não se destinando, pois, à edificação de construções urbanas, ainda que de interesse público, em terrenos com presumida e essencial vocação agrícola. Verifica-se, como bem notou o Ministério Público, que a parcela de terreno expropriada não passou a deter, supervenientemente ao acto expropriativo qualquer aptidão edificativa, sendo mesmo que a especial afectação de parcela à construção de tal via pública de comunicação se revela também (como a utilização agrícola) incompatível com qualquer vocação edificativa de construções urbanas no terreno expropriado”.

Este juízo de constitucionalidade veio a repetir-se em todas as decisões subsequentes do TC, coincidentes no entendimento de que, pese embora a expropriação de solo integrado em RAN ou REN, ainda assim a parcela expropriada não deixava de estar sujeita a limitações decorrentes da “vinculação situacional” da propriedade, que incide sobre os solos com essas características.
Estamos perante situações em que a impossibilidade de construção é determinada por razões de interesse público, atingindo o proprietário do terreno expropriado, que não tinha qualquer expectativa razoável de ver o terreno desafectado e destinado à construção por particulares – sem prejuízo de algumas particularidades consoante o fim da expropriação e sendo certo que nunca se colocou a questão da existência de indícios de actuação pré-ordenada da administração. A título exemplificativo, cfr. os seguintes arestos do TC, todos acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt: nº 247/00, proc. 233/99 (Relator: Fernada Palma), com voto de vencido do Cons. Guilherme da Fonseca, nº 219/2001 proc. 730/00 (Relator: Artur Maurício), nº 243/2001 proc. 15/01 (Relator: Messias Bento), nº 172/2002 proc. 227/01 (Relator: Paulo Mota Pinto), nº 121/2002 proc. 247/01 (Relator: Paulo Mota Pinto), nº 155/2002 processo 51/01 (Relator: Maria Helena Brito), nº 419/2002 proc. 51/01 (Relator: Maria Helena Brito), nº 333/2003 proc 403/01 (Relator: Gil Galvão)



É neste contexto que surge o C.E de 99.
Não se encontra, nesse diploma, disposição similar ao referido preceito (art.24º, nº 5).
E, nos termos do art. 25º, nº 1, o solo classifica-se em “apto para construção” (alínea a) e “apto para outros fins” (alínea b), sendo que a definição de solos aptos para construção consta do nº 2, em função da verificação de alguma das circunstâncias enumeradas nas alíneas respectivas e depois, pela negativa, no nº3, os solos “aptos para outros fins”.
Significa isto que o legislador abriu caminho ao entendimento de que podem ser classificados como solos aptos para construção todos aqueles que reúnam algumas das características indicadas no nº2 do art. 25º, independentemente de existir lei ou regulamento que impeça a sua utilização para construção, ou de alguma forma limite ou condicione a sua potencialidade edificativa, como entende a apelante?
No seguimento da orientação que já vinha do Ac. do TC nº20/2000, parte da jurisprudência vem entendendo que se exige, para a classificação do solo como apto para construção, para efeitos de cálculo da indemnização devida pela expropriação, não só a verificação de alguma das características elencadas nas várias alíneas do n.° 2 do art. 25º, mas ainda que, de acordo com as leis e regulamentos em vigor, seja possível a construção nesse solo e que esta constitua o seu aproveitamento económico normal.
Efectivamente, o legislador, ao distinguir o solo apto para construção do solo para outros fins, não adoptou um critério abstracto de aptidão edificatória – teoricamente, todo o solo é passível de edificação –, mas um critério concreto de potencialidade edificativa. E a jurisprudência constitucional sempre entendeu, de forma uniforme relativamente aos vários diplomas que foram regulando estas matérias, que “o jus aedificandi deveria se considerado como um dos factores de fixação valorativa, ao menos naquelas situações em que os respectivos bens envolvam uma muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa Ac. do TC nº131/88, publicado no DR. II série, de 24/06/88. .
Ora, nos casos de terrenos integrados em zona de reserva nacional (agrícola ou ecológica), do respectivo regime jurídico resulta, necessariamente, uma severa limitação à aptidão edificativa. Estamos perante instrumentos de ordenamento do território, traduzindo “uma disciplina jurídica dos solos que deve ser observada pelos planos – funcionando, por isso, como limites à discricionaridade de planeamento – e, simultâneamente, um conjunto de prescrições directamente vinculativas da actividade da Administração e dos particulares com reflexos na ocupação, uso e transformação do solo, em todas as áreas não abrangidas por qualquer plano de ordenamento do território”. Alves Correia Manual de Direito do Urbanismo, vol. I, 185.

Assim, quanto aos terrenos incluídos na Reserva Agrícola Nacional, o Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho, com as alterações resultantes do Dec. Lei 274/92 de 12/12/1992, que estabelece o respectivo regime jurídico, impõe que os solos devem ser exclusivamente afectos à agricultura, sendo proibidas todas as acções que diminuam ou destruam as suas potencialidades agrícolas, sem prejuízo de algumas excepções, contando-se, nestas, a utilização de solos integrados na RAN para vias de comunicação, seus acessos e outros empreendimentos ou construções de interesse público.
Quanto aos terrenos integrados em Reserva Ecológica Nacional, o respectivo regime jurídico consta do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, com as alterações resultantes do DL n.º 316/90, de 13-10, do DL n.º 213/92, de 12-10, e do DL n.º 79/95, de 20-04. Nos termos do referido diploma, a Reserva Ecológica Nacional “constitui uma estrutura biofísica básica e diversificada que, através do condicionamento à utilização de áreas com características ecológicas específicas, garante a protecção de ecossistemas e a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao enquadramento equilibrado das actividades humanas” (art.1º), abrangendo zonas costeiras e ribeirinhas, águas interiores, áreas de infiltração máxima e zonas declivosas, referidas e definidas nos anexos I e III (artigo 2º), competindo ao Governo, por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta das delegações das Direcções Regionais do Ministério do Ambiente e ouvida a Comissão da REN, aprovar a integração e a exclusão de áreas da REN, delimitando-a (artigos 2º e 3º, n.ºs 1 e 2 ). Saliente-se que nos termos dos arts. 4º e 15º do Dec. Lei 93/90, são nulos os actos administrativos que autorizem acções de iniciativa pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição do coberto vegetal.


É no seguimento desta orientação que no Ac. desta Relação de Coimbra de 15/06/2004, se decidiu que “apenas em dois casos pode um terreno integrado na RAN ou em REN, ser considerado apto para construção: (1) Se o proprietário do terreno demonstrar que, excepcionalmente, foi autorizada a construção de edifício na parcela em causa; (2) se a expropriação da parcela visa a construção de prédios urbanos Proferido no processo 276/04 (Relator: Jorge Arcanjo), acessível www.dgsi.pt. , entendimento também sufragado na sentença recorrida.
Para outros, no entanto, a inclusão de um terreno em zona de RAN/REN não acarreta, necessariamente, a extinção da capacidade edificativa do solo e, como tal, não obsta à sua classificação como solo apto para construção, desde que o terreno reúna as características definidas em algumas das alíneas do art. 25º, nº2 argumentando, desde logo, com a alteração legislativa ocorrida com o Cód. de 99 e a eliminação do nº5 do referido art.24º, que não pode deixar de significar que o legislador quis por fim àquela querela jurisprudencial, consagrando a solução mais acertada (art. 9º nº3 do Código Civil). Nesse sentido, Ac. desta R.C. de 16/12/2003, C.J., Ano XXVIII, T.II, pág.36 e de 22 de Junho de 2004, Ano XXIX, T.III, pág.30..
Ora, no caso concreto, para resolver a questão que vem colocada no recurso não é necessário tomar posição sobre esta controvertida temática.
Efectivamente, quer se considere a parcela expropriada como solo “apto para outros fins”, como se entendeu na sentença, quer se classifique a mesma como solo “apto para construção”, como pretende a recorrente, sempre se imporia, no caso, para a determinação do valor da parcela, a ponderação, em primeiro lugar, do contexto em que ocorreu a presente expropriação, tendo em conta uma outra expropriação efectuada anteriormente e, em segundo lugar, a aplicação do critério a que alude o art. 26º, nº12 do CE, como passamos a analisar.

4. Atentemos, então, nas características da parcela expropriada, com o nº 0.04 A.
Trata-se de um terreno, com a área 8.599 m2, que foi desanexado de um prédio rústico pertencente à expropriada sito no local de Quintãzinha, no limite da freguesia da Sé, concelho da Guarda, confrontando o terreno expropriado a Norte com Sociedade Têxtil Manuel Rodrigues Tavares, Lda., a Sul com a Predial Corredoura, Lda., Nascente com IP2 e a Poente com a expropriada;
O solo da parcela é derivado de granitos, com declives entre os 2% e os 36 %.
Não existem equipamentos confinantes com a parcela, mas apenas a uma distância de cerca de 60 m nas seguintes situações: separados da parcela pelo IP2, a Norte; estrada municipal pavimentada a betuminoso, servida das redes de água, esgotos, energia eléctrica e telecomunicações; estrada municipal pavimentada a betuminoso, com origem cerca da Quinta do Mouratão, a Nascente.
No auto de vistoria “Ad perpetuam rei memoriam” consta, sob a epígrafe “Ocupação actual”, que “A Norte/Poente, por estaleiros do empreiteiro de construção do IP2 e infra estruturas inerentes. No resto da área existem restolhos, ervagens espontâneas e as benfeitorias seguintes (…)”, referindo depois alguns carvalhos, pinheiros, e touca de 4 castanheiros de pequeno porte.
Ou seja, não havia qualquer edificação ou construção na parcela expropriada.
Salienta-se que a expropriada, ainda em fase de arbitragem, formulou, expressamente, os quesitos constantes de fls. 84 dos autos – “7 - É ou não verdade que o terreno em causa se encontra servido por: 7.1- rede de abastecimento de água? 7.2- rede de drenagem de esgotos domésticos? 7.3 – rede de drenagem de águas pluviais? 7.4 – rede telefónica? 7.5- rede viária pavimentada (antes e depois da 1ª expropriação da parcela 0.04?” –, quesitos que mereceram, todos, resposta negativa, esclarecendo os quatro peritos que a rede viária pavimentada do IP2, com a qual a parcela confina, não permite qualquer servidão. Esclareça-se, também, que nos parece evidente que os peritos, na resposta quanto à rede viária pavimentada, não tiveram em linha de conta qualquer outra expropriação que não a presente.
Por outro lado, em fase de recurso, os peritos que subscreveram o laudo maioritário, quando inquiridos ao quesito 5º da expropriada – “O terreno expropriado situa-se dentro do perímetro urbano da cidade da Guarda? –, responderam negativamente, esclarecendo que o terreno fica no limite da freguesia da Sé, a cerca de 5 Km da Guarda. Posteriormente, na sequência de reclamação da expropriada, os peritos voltaram a abordar esta matéria, concretizando.
- que o terreno se situa na freguesia da Sé, da cidade da Guarda, freguesia que é urbana;
- o perímetro urbano da cidade da Guarda (a definição consta no art. 6º do respectivo PDM) “não é coincidente com o limite das freguesias urbanas como é o caso da Sé. Existe terreno da freguesia da Sé que é Urbano e existe terreno que é Rural” (cfr. fls. 414 e 425 dos autos).
Porque a expropriada apresentou nova reclamação, os peritos do Tribunal responderam conforme fls. 438, referindo:
- “Como já se tinha respondido, a definição de perímetro urbano está contida no Plano Director Municipal da Guarda (artº. 6º).
- “Os solos urbanos e urbanizáveis, da freguesia da Sé fazem parte integrante do perímetro urbano da cidade da Guarda. Os solos rurais e solos de salvaguarda estrita (Reserva Agrícola Nacional, Reserva Ecológica Nacional e solos e subsolos de mineralizados a defender), da freguesia da Sé não são solos urbanos ou urbanizáveis”.
Ou seja, no laudo maioritário dos peritos, estes tiveram em conta, para efeitos de determinação do valor da parcela expropriada, apenas, as características da própria parcela, isolando-a do resto do prédio da qual foi destacada, abstraindo os Srs. Peritos, por completo, do terreno envolvente.
*
No entanto, a expropriada sempre chamou a atenção para as vicissitudes que antecederam a presente expropriação, salientando que a mesma sucede a outro acto expropriativo, que abrangeu duas parcelas, destacadas do mesmo prédio, matéria que se prende, exactamente, com a factualidade que ora se deu por assente neste tribunal da Relação.
Verifica-se, efectivamente, que dois anos antes – a respectiva declaração de utilidade pública data de Agosto de 2000 e a declaração de utilidade pública alusiva à parcela ora em causa data de Julho de 2002 –, já tinha sido destacada, do mesmo prédio rústico, com vista a expropriação, um terreno designado com o nº 0.04 (ou 0,04), a que acresceu, na sequência de pedido da expropriada, uma parte sobrante, designada com o nº 0,04 S, salientando-se que as referências constantes do processo, mesmo que indicando o nº 0.04 se reportam também, por vezes, à parte sobrante, estando em causa a área de 6.897 m2 e de 2.250 m2, respectivamente e que se tratou de uma expropriação amigável.
É inequívoco que a parcela ora expropriada era contígua à parcela nº 0.04 e com ela confinava (daí que a expropriada conclua que, “só pelo facto de ter sido previamente destacada a primitiva parcela” (…) é que o terreno agora expropriado “mantendo o seu solo ligado e não separado, não confina a Norte com a EM 351», conforme arts. 10.43 e 10.44 do corpo das alegações), sendo que entretanto foi construído no terreno da parcela 0.04, um troço do IP2.
Ora, essa parcela 0.04 tem as características indicadas sob o nº 21 dos factos assentes, salientando-se que confrontava a Sul, com arruamento e a poente o terreno era servido de electricidade e rede telefónica por via aérea, que entronca na EM 531 dispondo ainda das infra-estruturas, água canalizada e esgotos separados, destinadas às seguintes construções térreas:
.um restaurante, uma casa de habitação e uma oficina auto-esta não ligada a esgotos, e a um amplo pavilhão do tipo industrial afecto à lavagem industrial de lã de ovelha situado do outro lado da nova via e afastado desta cerca de 100 m;
Ou seja, o prédio rústico da expropriada tinha a área de 100.000 m2 e, desse prédio, foram destacadas 2 parcelas com vista à expropriação, uma com a área de 9.147 m2 (6.897 m2 + a parte sobrante, com 2.250 m2 ), a que se reporta a DUP de 2000 e outra, com a área de 8.599 m2, ora em causa nos autos, a que se reporta a DUP de 2002.
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A este propósito, a recorrente invoca que não pode impor-se à expropriada “o excessivo e injusto ónus de ver separar o seu terreno em várias parcelas para efeito de ser vítima de variação de valores”, “na primeira obtendo a avaliação como solo apto para a construção”, “na segunda a avaliação como solo apto para outros fins” – arts. 56 e 57 do corpo das alegações –, apelando aos princípios da justiça e da boa fé da Administração, que entende terem sido violados.
Acrescenta, ainda, que «arguir o Exp.te, agora, em benefício próprio, e obter, uma avaliação e fixação de indemnização pela expropriação “favorável” para si mesma através de facto que ela mesma, e só ela, criou, seria, também, não só “venire contra factum proprium” como agir com verdadeiro abuso de direito e com locupletamento à custa alheia» - art.60º do corpo das alegações.
Está assente que a parcela anteriormente expropriada, destacada do mesmo prédio que a presente, o foi por negociação amigável, tendo sido avaliada pela expropriante como solo apto para construção, na sequência do que foi paga à expropriada a indemnização de esc. 27.441.000$00.
Este circunstancialismo, no contexto supra referido – as expropriações reportam-se a parcelas confinantes uma com a outra, ambas a destacar do mesmo prédio, destinando-se à execução da mesma obra, ou seja, do IP 2, embora a troços diferentes, envolvendo ainda uma delas o nó de acesso ao parque industrial da Guarda, intervalando, no tempo, dois anos –, é de molde a considerar que a conduta da expropriante, no presente processo, ao sustentar a classificação da parcela como solo “apto para outros fins”, configura uma actuação abusiva, atentatória dos princípios da boa fé e da justiça que devem nortear a actuação da administração e, portanto ilegítima?
Vejamos.
O abuso de direito – art. 334º do Código Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, não se exigindo que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, mas apenas que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma evidente – a nossa lei acolheu a concepção objectiva do abuso do direito.
E, na modalidade de venire contra factum proprium, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
Venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo. (…). Feitas estas precisões, há venire contra factum proprium, em primeira linha, numa de duas situações: quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também a não ficar especificamente adstrita declare pretender avançar com certa actuação e, depois, se negue”. Meneses Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, 1984, 2º vol., pág.746 e 747
A nível da Administração, o art. 6º do CPA dispõe que “no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação” – princípio da imparcialidade – e o art. 6º A, nº1, que “no exercício da actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé – princípio da boa fé. Refere Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Almedina, vol.II, pág.134 e 135:«O respeito pela boa fé realiza-se através da ponderação dos “valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas”, concedendo-se especial importância à “confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa” e ao “objective a alcançar com a actuação empreendida” (nº2 do art. 6ºA). Como tivemos já a oportunidade de comentar a este propósito, a ideia geral desta autonomização foi satisfazer a necessidade premente de criar um clima de confiança e previsibilidade no seio da Administração Pública».

É, pois, fundamental, saber se a conduta da expropriante foi no sentido de criar, razoavelmente, uma expectativa concreta, sólida, de que não mais procederia a qualquer outra expropriação de terreno da recorrente, com vista à construção da via de comunicação aludida ou, pelo menos que, encetando outro processo expropriativo, como aconteceu, se adoptaria critério de avaliação do terreno idêntico ao anteriormente utilizado.
Ora, parece-nos que os elementos constantes dos autos são insuficientes para se concluir dessa forma, o que não significa que se considere juridicamente irrelevante o anterior acto expropriativo, para efeitos de aferição do valor da parcela ora expropriada.
Assim, no caso, tudo aponta que a expropriante devia ter-se socorrido do mecanismo a que alude o art. 4º do CE , procedendo à expropriação de uma só vez, ou por zonas ou lanços. Como refere Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Texto Editora, 1997, pág.130 “As expropriações parcelares constituem, em nosso entender, uma extensão do princípio da necessidade da expropriação, na medida em que se atende às necessidades futuras, e a execução faseada dos planos ou dos projectos é perfeitamente compatível com a regra agora consagrada na primeira parte do artigo 3º, nº 1 do CE 91”.
E, nesse caso, não temos dúvidas em considerar que se impunha proceder à avaliação conjunta da totalidade da área a expropriar, não se justificando qualquer distinção entre as parcelas.
Sabe-se que nada obsta, sendo até frequente, que um prédio, pela sua dimensão – saliente-se que o prédio em causa nos autos tinha a área de 100.000 m2 –, tenha solos com características variadas, de sorte que determinadas zonas têm uma concreta potencialidade edificativa e outras não.
Não é esse o caso dos autos, tendo em conta que estamos perante parcelas com áreas pequenas e perfeitamente similares (9.147 m2 + 8.599 m2), que são contíguas uma à outra.
Ou seja, deve considerar-se, para efeitos de avaliação da parcela ora expropriada, que lhe aproveitam as características da parcela objecto da 1ª expropriação – como seria se, ab inicio, se tivesse procedido a uma única expropriação, ou à expropriação por zonas ou lanços –, pelo que se conclui que a parcela reúne objectivamente as características a que alude o art. 25º, nº2, al) a do CE, sem prejuízo de estar integrada em zona REN.

5. Dispõe o artigo 26.º, sob a epígrafe “Cálculo do valor do solo apto para construção”:
“1 – O valor do solo apto para a construção calcula-se por referência à construção que nele seria possível efectuar se não tivesse sido sujeito a expropriação, num aproveitamento económico normal, de acordo com as leis e os regulamentos em vigor, nos termos dos números seguintes e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do art.º 23.º (…)
12 – Sendo necessário expropriar solos classificados como zona verde, de lazer ou para instalação de infra-estruturas e equipamentos públicos por plano municipal de ordenamento de território plenamente eficaz, cuja aquisição seja anterior à sua entrada em vigor, o valor de tais solos será calculado em função do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 m do limite da parcela expropriada”.
Esta disposição corresponde ao que o CE 91 dispunha, no seu art. 26º, nº2, Nos termos desse preceito: “Sendo necessário expropriar solos classificados como zona verde ou de lazer por plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, o valor de tais solos será calculado em função do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 m do limite da parcela expropriada”. sendo que se entendia que o preceito tinha em vista “evitar as chamadas classificações dolosas”, ratio que parece manter-se no actual diploma. A única diferença entre tais normativos residirá na maior amplitude que o preceito tem no actual Código, uma vez que abrange agora, também, a implantação de infra-estruturas e equipamentos públicos. José Osvaldo Gomes, obr. cit. pág. 195. No mesmo sentido, refere Alves Correia, in Introdução ao Código das Expropriações Por Utilidade Pública , Lisboa, 1992, pág.23: “Disposição inovadora é igualmente o nº2 do artigo 26º. (…) Aplaude-se o aparecimento desta disposição já que, ao prescrever um tal método de determinação do valor dos solos classificados como zona verde ou de lazer por um plano urbanístico, corta cerce quaisquer tentativas de “manipulação”das regras urbanísticas por parte da Administração, que poderiam traduzir-se na classificação dolosa por parte de um município, num plano urbanístico por si aprovado, de um terreno como zona verde, desvalorizando-o, para mais tarde o adquirir, por expropriação, pagando por ele um valor correspondente ao do solo não apto para construção(…)”.

O art. 26º, nº12 do CE funciona, exactamente, como “válvula de escape” do sistema, permitindo que os solos que reúnam os requisitos a que alude o art. 25º, nº 2 do CE, mas que sejam, posteriormente à sua aquisição, classificados por plano municipal de ordenamento como zona verde, de lazer ou “espaços canal”, possam ser avaliados em função da sua evidente potencialidade edificativa.
Nessa medida, entendemos que se impõe a aplicação desse critério de avaliação, por interpretação extensiva ou analógica (arts. 10º e 11º do C.C.), à hipótese em apreço, em que a parcela expropriada está integrada em zona de REN e uma vez que se verificam os demais pressupostos, a saber:
a) estamos perante solo que reúne os requisitos indicados numa das alíneas do art. 25º, nº2 do CE (no caso, a alínea a), evidenciando, pois, concretas condições materiais de edificação;
b) a integração em zona de reserva ecológica foi determinada por plano municipal de ordenamento, em data posterior à aquisição dos terrenos por parte da expropriada.
Concluindo, para efeitos de avaliação do valor da parcela ora expropriada, deve proceder-se ao cálculo do valor respectivo em função do critério estabelecido no art. 26º, nº12 do CE, tendo em conta, pois, o valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 m do limite da parcela expropriada.

6. Tendo em conta quanto fica exposto, no caso em análise, temos de concluir que o processo não fornece os elementos suficientes para proceder à fixação do valor da indemnização.
Assim, o laudo maioritário dos Srs. Peritos não pode subsistir, já que os mesmos não ponderaram tal critério de avaliação – mas, ao invés, o que resulta da classificação do solo como “apto para outros fins” –, sendo que foi com base nesse laudo que a Sra. Juiz proferiu a decisão recorrida.
E, quanto ao laudo do perito da expropriante, o mesmo padece de incongruências absolutamente inultrapassáveis. É de todo injustificado o valor a que chegou o perito da expropriada, de €413.586,00 e é evidente, lendo o laudo apresentado, que o Sr. Perito extravasa largamente o âmbito da perícia, tecendo considerações que não se concebem no específico domínio técnico da perícia, sendo mais consentâneas com uma análise jurídica – cfr. o relatório em causa, junto a fls. 272 a 282 e, mais precisamente, a análise de fls. 275 a 280 dos autos, em que o Sr. Perito alude aos preceitos constantes do CE e vária jurisprudência.
Por outro lado, resulta desse relatório que, pese embora o perito indique que a avaliação do terreno “irá ser calculada com base” no disposto no art. 26º, nº 12 do CE, o certo é que procede à fixação da “justa indemnização”, como refere, ponderando o “valor real e corrente dos mesmos (bens), numa situação normal de mercado”, abstraindo-se daquele critério de avaliação. O Sr. Perito indica, até, expressamente, que “nestas circunstâncias, iremos adoptar, para efeitos de avaliação, um coeficiente de ocupação do solo (COS) de 0,5 M2/ M2 que é o coeficiente normalmente utilizado numa urbanização de moradias”.
Aliás, não se percebe como, com referência a uma DUP de Agosto de 2000, em sede de expropriação amigável, as partes tenham considerado correcta a indemnização total de €136.875,13 (27.441.000$00) pela expropriação da aludida parcela de terreno, com a área de 9.147 m2 e venha agora o perito da expropriada, com referência a uma DUP de Julho de 2002, pela expropriação da outra parcela de terreno, com a área de 8.599 m2, considerar correcto o valor de €413.586,00, sabido, como é, que os valores do índice de preços ao consumidor têm sido pouco significativos, nos últimos anos.
Impõe-se, pois, a anulação dos laudos aludidos e sentença subsequente, devendo proceder-se a nova avaliação da referida parcela de terreno, em conformidade com o que supra se expôs.
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em anular os laudos aludidos e sentença recorrida, devendo proceder-se a nova avaliação da referida parcela de terreno, em conformidade com o que supra se expôs.
Custas a final.
Notifique.
Coimbra, 13 de Novembro de 2007

Relator: Isabel Fonseca; Adjuntos: Ferreira de Barros e Helder Roque.