Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1023/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
SUSPEIÇÃO SOBRE PERITO
INCIDENTE
Data do Acordão: 05/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 17º DO DL Nº 125/2002, DE 10/03 .
Sumário: I – O Código das Expropriações prevê a intervenção de peritos no procedimento relativo à declaração de utilidade pública, no procedimento atinente à efectivação da posse administrativa, no processo de expropriação litigiosa, na fase de arbitragem e no recurso desta, designadamente para efeitos dos artºs 61º e 62º .
II – Enquanto intervenientes no processo expropriativo, aos peritos compete prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos expropriados e demais interessados, estando sujeitos a observarem determinados princípios, designadamente o da imparcialidade .
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

No processo de expropriação nº468/04.6TJCBR, pendente na Comarca de Coimbra ( 5º Juízo Cível ), os expropriados, A... e B..., requereram ( em 14/9/2004 ) o incidente de suspeição do Senhor Perito, Eng. C..., nomeado pelo tribunal.
Alegaram, em resumo:
Em 25/8/2004, tiveram conhecimento que o senhor perito, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de D... e E..., está em negociações com a expropriante, Câmara Municipal de Coimbra, relativamente a um prédio pertencente à herança, no âmbito de um processo administrativo de expropriação, no sentido de chegar a um eventual acordo.
Sem porem em causa a dignidade e o profissionalismo do senhor perito, existe fundamento para questionar a sua isenção e imparcialidade, constituindo fundamento de suspeição, nos termos do art.17º do DL nº125/2002 de 10/5.
Notificados os peritos para se pronunciarem, consideraram injustificada a requerida suspeição, com excepção do indicado pelos expropriados, que se limitou a uma referência genérica, não concretizada, salientando aqueles que conjuntamente com o Eng. C... elaboraram o laudo maioritário não haverem notado, no decurso da avaliação, qualquer actuação deste que indiciasse uma quebra de isenção ou imparcialidade.
Por seu turno, o perito C..., rejeitando a suspeição, alegou ter-se limitado a não aceitar os montantes propostos pelos Câmara Municipal de Coimbra, dos quais lhe deu conhecimento, estando o processo na fase da arbitragem.
Por despacho de 15/10/2004, foi indeferida a arguida suspeição.
Inconformados, os expropriados recorreram de agravo, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
1º) - O pedido de suspeição teve por fundamento o facto do senhor perito se encontrar em negociações com a entidade expropriante tendentes à consecução de um acordo urbanístico relativamente ao mesmo processo administrativo de expropriação, o qual constitui uma circunstância susceptível de impedir a realização de um laudo baseado em critérios absolutamente objectivos.
2º) - O tribunal considerou que tal circunstância não faz parte do elenco taxativo previsto no art.17º do DL 125/2002 de 19/5.
3º) - No âmbito do processo expropriativo, os peritos desempenham um papel extremamente importante, recaindo sobre eles a elevada responsabilidade, na medida em que da sua actuação resulta a fixação do montante indemnizatório, e daí a criação de regras para o respectivo exercício.
4º) - Enquanto que o art.16º enuncia taxativamente as causas de impedimento, cuja verificação gera uma incapacidade absoluta para o exercício da função pericial, já no art.17º estão indicadas as causas de suspeição, de forma meramente exemplificativa.
5º) - No caso concreto, a situação enquadra-se na cláusula geral do art.17º, pois perante a certidão junta aos autos existem factos que conduzem a um justo receio de parcialidade.
6º) - Com efeito, não restam dúvidas da existência de uma relação negocial entre o senhor perito e um das partes neste processo, em virtude da ocorrência de negociações tendentes à resolução de uma questão pendente relativa ao mesmo processo administrativo de expropriação, o que constitui uma dificuldade acrescida para a realização de uma avaliação isenta por parte do perito.
7º) - A factualidade descrita constitui uma situação análoga à prevista na alínea c) do art.17º, porquanto as negociações a decorrer entre o senhor perito e a Câmara Municipal de Coimbra consubstanciam uma relação de crédito existente, na qual apenas falta acertar o valor da prestação.
8º) - O despacho recorrido violou a norma contida no art.17º do DL 125/2002 de 10/3.
Não foram apresentadas contra-alegações e o M.mo Juiz manteve o despacho agravado.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Do processo resultam, em síntese, os seguintes elementos:
1) - Para procederem à avaliação obrigatória, nos termos dos art.s 61 e 62 do CExp., o M.mo Juiz nomeou como peritos do tribunal, os engenheiros Júlio Fernando Granjo, C... e Francisco Ramos Moura.
As partes indicaram os peritos José Manuel Leal Barreto ( expropriante ) e Fernando Afonso Correia ( expropriados.
2) - Em 8/7/2004, os peritos prestaram compromisso de honra, sendo-lhes concedido o prazo de 30 dias para procederem à avaliação.
4) - Realizada a avaliação, os peritos apresentaram relatórios, constante de fls.39 a 49 ( elaborado pelos peritos do tribunal e da expropriante ( e de fls.50 a 55 ( elaborado pelo perito dos expropriados ), sendo divergentes ambos os laudos.

5) - A Câmara municipal de Coimbra emitiu, em 19/8/2004, a certidão junta a fls.61 e 61v, exarando-se no ponto três:
“ A Câmara Municipal de Coimbra encontra-se a encetar negociações com o Engenheiro C..., cabeça de casal da herança aberta por óbito de D... e E..., proprietários da parcela trinta e sete ( constituída pelas sub-parcelas trinta e sete ponto um, trinta e sete ponto dois e trinta e sete ponto três ) do processo administrativo de expropriação denominado “ Circular Externa/Terceiro Troço – Remodelação da Avenida Dr. Elísio de Moura “, no sentido de se chegar a um eventual acordo urbanístico. A referida parcela possui a área de cinco mil oitocentos e um metros quadrados e é parte do prédio inscrito na matriz predial rústica da Freguesia de Santo António dos Olivais sob o número cento e cinquenta e cinco mil duzentos e cinquenta e sete, Livro B cento e cinquenta e um “.

2.2. - De Direito:
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se o despacho recorrido, ao julgar improcedente o pedido de suspeição do perito C..., violou a norma do art.17º do DL 125/2002 de 10/3.
O Código das Expropriações prevê a intervenção de peritos no procedimento relativo à declaração de utilidade pública, no procedimento atinente à efectivação da posse administrativa, no processo de expropriação litigiosa, na fase de arbitragem e no recurso desta, designadamente para efeitos dos arts.61 e 62.
Com a instituição de uma lista oficial de peritos para intervirem nestas fases do processo de expropriação, procurou-se seleccionar um determinado número de pessoas com conhecimentos técnicos e experiência necessários para tal função e garantir o seu exercício com isenção.
Enquanto intervenientes no processo expropriativo, aos peritos compete prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos expropriados e demais interessados, estando sujeitos a observarem determinados princípios, designadamente, o da imparcialidade ( art.2º do C.Exp. ).
Considerando o seu estatuto funcional, como auxiliares da administração da justiça, e dada a especial relevância e responsabilidade dos peritos, cuja prova, embora não vinculativa, é um instrumento indispensável para se decidir sobre a “ justa indemnização “, com vista ao reforço de isenção, o DL nº125/2002 de 10/5 criou mecanismos de garantia de imparcialidade, através dos institutos do “impedimento” ( art.16º ) e da “suspeição” ( art.17º ).
Enquanto que para os impedimentos vigora o princípio da tipicidade, através das causas taxativamente enunciadas no art.16º, já para a suspeição o legislador utilizou uma técnica híbrida na norma do art.17º, pois para além de prever algumas situações meramente exemplificativas, instituiu uma cláusula geral com a seguinte redacção – “ quando ocorra circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da isenção “ – reproduzindo-se a formulação anterior, já constante do art.4º do DL 44/94 de 19/2, entretanto revogado.
O regime assim constituído diverge, em certa medida, do modelo estabelecido para os impedimentos e suspeições dos peritos no âmbito da prova pericial em processo civil ( art.571 nº1 do CPC ), ao remeter, com as devidas adaptações, para os atinentes aos juízes, o que significa que quando a suspeição é requerida pelas partes os fundamentos são apenas os taxativamente plasmados no art.127 do CPC.
Mas já relativamente ao pedido de escusa pelo próprio perito, também o art.126 nº1 do CPC prevê uma cláusula geral ( “ quando por outras circunstâncias ponderosas, entenda que possa suspeitar-se da sua imparcialidade “ ), apresentando alguma similitude com a constante do art.17º do DL 125/2002 de 10/3.
Tal como se afirmou no despacho recorrido, o fundamento invocado pelos agravantes não se enquadra em qualquer das alíneas do nº1 do art.17º.
Ainda que a expressão “ credor “ e “ devedor “ contida na alínea c) se deva interpretar em termos amplos, no sentido de abranger todas as relações de obrigação, qualquer que seja o título e o objecto da prestação, independentemente de estar ou não vencida, o que releva é que esteja constituída a obrigação, o que manifestamente não sucede aqui, quer directa ou analogicamente, como pretendem os agravantes ( cf, a propósito da norma similar do art.127 nº4 do CPC/39, Alberto dos Reis, Comentário, vol.1º, pág.443 ).
Resta indagar do possível enquadramento na cláusula geral, carecida de preenchimento valorativo de forma a permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, ou seja, uma “ individualização “ da solução, e daí o indispensável recurso ao pensamento tópico.
Dado o espectro normativo da cláusula geral e a sua função garantística, a imparcialidade, como exigência específica de um verdadeiro juízo pericial, que se pretende tutelar, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas por esse juízo, o que significa que o motivo ou circunstância que justifica a suspeição terá de radicar na relação do perito com o objecto da causa ou com os sujeitos, de modo a criar, neste caso, uma predisposição favorável ou desfavorável, princípio claramente aflorado nas situações exemplificativas das alíneas a) a e) do nº1.
Por outro lado, a “circunstância “ deve ser adequada a gerar desconfiança sobre a sua isenção, mas para tal há-de resultar objectivamente justificada, não pelo convencimento subjectivo do requerente, mas através de uma valoração objectiva das mesmas circunstâncias, a partir do senso e experiência comuns.
Concorrendo indirectamente a função pericial para um “ processo justo e equitativo “, como se extrai do princípio geral contido no art.2º do CExp., esta exigência de objectividade resulta ainda de uma interpretação da norma em conformidade com a garantia subjacente ao art.6º da CEDU, tal como tem sido interpretado pela jurisprudência do TEDH, ao pressupor o princípio da imparcialidade objectiva ( cf. Ireneu Barreto, Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2ª ed., pág.153 e segs. ).
Pois bem, a circunstância do senhor perito C..., na qualidade de cabeça de casal da herança da qual faz parte um imóvel, objecto de expropriação, no âmbito do mesmo procedimento expropriativo, no sentido de chegar a um eventual acordo urbanístico, por si só não é suficiente para razoavelmente, numa perspectiva objectiva, se poder suspeitar da sua isenção.
De resto, nem sequer os requerentes explicitaram em que consistiram tais negociações, tendo o senhor perito esclarecido na resposta não ter aceite os montantes propostos pelos Câmara Municipal de Coimbra, dos quais lhe deu conhecimento, estando o processo na fase da arbitragem.
Sendo assim, não se vê como essa intervenção possa ter gerado uma dificuldade acrescida para a realização da avaliação, criando uma predisposição desfavorável para os agravantes, de modo a afectar a sua imparcialidade.
A corroborar tal asserção, o facto de todos os peritos que com ele elaboraram o laudo haverem afirmado categoricamente que na diligência da avaliação se verificou uma franca e aberta análise sobre os aspectos específicos da perícia, sem que houvesse da parte dele qualquer interferência, como também foi pertinentemente salientado no despacho recorrido.
Note-se que já na vigência do art.4º do DL 44/94 de 19/2, com idêntica cláusula, decidiu-se no Ac da RP de 14/6/99, proc nº9950058 ( www dgsi.pt/jtrp ):
“ A circunstância de uma pessoa já ter intervindo várias vezes como perito da Brisa em outras avaliações e o ter feito relativamente a um empreendimento de que faz parte outra parcela em processo de expropriação, não constitui, por si só, fundamento de suspeição e de substituição, não sendo, por isso, questionável a sua isenção ou imparcialidade e não sendo circunstância impeditiva de efectuar um laudo baseado em critérios absolutamente objectivos “.
Para além de não existir fundamento razoável, objectivamente justificado, para a sua suspeição, parece até que, em bem rigor, o incidente deveria ter sido logo liminarmente rejeitado, por ser extemporâneo.
Com efeito, as partes podem requerer a declaração de suspeição até ao dia da realização da diligência, conforme determina o art.18 nº2 do DL nº125/2002 e o que se verifica é que os expropriados deduziram o incidente já depois dessa fase, como se depreende dos documentos juntos e das respostas dos peritos.
Em resumo, porque o despacho recorrido não violou, por erro de aplicação, a norma do art.17º do DL nº125/2002 de 10/5, improcede o agravo.
III – DECISÃO
Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente o agravo e confirmar o douto despacho recorrido.
2)
Condenar os agravantes nas custas.
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Coimbra, 24 de Maio de 2005.