Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3696/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ISAÍAS PÁDUA
Descritores: FIXAÇÃO DO VALOR EM CAUSA; INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data do Acordão: 02/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECEURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART.º 305.º C.P.C.
Sumário:
I- Na determinação do valor da acção deve, antes de mais, atender-se não só ao pedido como também à causa de pedir, que o explica (ao pedido) e o delimita.
II- Enquanto o artº 306, nº 1, do CPC se limita a explicitar o critério geral, de fixação do valor da causa, consagrado no artº 305, já os artºs 307, 308, nº 3, e 309 a 313, todos daquele mesmo diploma legal, consagram em si critérios especiais em relação àquele critério geral.
III- Assim, tendo os autores celebrado com o réu um contrato-promessa através da qual este se comprometeu a vender-lhes um imóvel, pelo preço de € 84,795,64, tendo logo recebido daqueles, como sinal, a importância à volta de € 1500, e vindo, mais tarde, os primeiros a demandar judicialmente o segundo pedindo que o mesmo seja condenado a restituir-lhes a quantia correspondente ao dobro do montante do sinal que lhe haviam entregue, alegando não ter cumprido a promessa a que se obrigara por aquele contrato, o valor da acção deve, por força do estatuído no artº 310, nº 1, do CPC, corresponder ao valor inicial do contrato (€ 84,795,64) e não valor que, na acção, é reclamado pelos autores.
Decisão Texto Integral:
Acordam neste tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1- Os Autores, A e B, C, instauraram contra , todos com os demais sinais dos autos, a presente acção declarativa condenatória, com forma de processo sumário, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
Terem celebrado com o réu um contrato-promessa, nos termos e condições constantes do documento junto a fls. 8/9, e através do qual este último prometeu vender-lhes, e aqueles comprarem-lhe, pelo preço de esc. 17.000.000$00, uma fracção autónoma designada pela letra “D” e respectivo arrumo, referenciado pela letra “U”, do prédio urbano ali identificado.
Como sinal e princípio de pagamento entregaram ao réu a quantia total de esc. 300.000$00.
Porém, o réu não cumpriu (culposamente) tal contrato, nos termos em que se obrigara, acabando mesmo por vender a referida fracção a terceiras pessoas, sem que sequer lhes tivesse dado conhecimento desse facto.
Pelo que, tornando-se impossível já dar cumprimento ao sobredito contrato-promessa, por culpa exclusiva do réu, terminam pedindo, tal como resulta do estipulado na cláusula 7ª do referido contrato, que o réu seja condenado a devolver-lhes aquela quantia que lhe entregaram em dobro, ou seja, no montante de esc. 600.000$00.
No final atribuíram à causa ou acção o valor de esc. 600.000$00.

2- Após ter sido citado para o efeito, o réu veio contestar a referida acção onde, para além de declinar qualquer responsabilidade no incumprimento do sobredito contrato-promessa, começou logo por impugnar aquele valor que os autores atribuíram à acção, defendendo que o mesmo deve ser fixado em esc. 17.000.000$00.


3- Apreciando tal incidente, o sr. juíz do tribunal a quo, através do seu despacho de fls.91/92, decidiu fixar o valor da causa em esc. 600.000$00, correspondente, assim, àquele que havia sido indicado pelos autores, acabando, em consequência, ainda por condenar o réu nas custas do incidente.

4- Por não se ter conformado com a decisão daquele incidente sobre o valor da causa, o réu veio dela interpôr, a fls. 100, recurso, o qual foi admitido, pelo despacho de fls. 118, como agravo, e com subida deferida,

5- Nas suas alegações de recurso, apresentadas a fls. 128/130, o réu-agravante concluiu nos seguintes termos:
“I- Apesar dos termos em que está formulado o pedido, a restituição do sinal em dobro é mera consequência da apreciação de uma questão que lhe é prejudicial e essencial: a averiguação do cumprimento ou incumprimento do contrato;
II- Assim, independentemente da expressão pecuniária do sinal ou do seu dobro, o valor da acção em que tal seja submetido à apreciação do Tribunal há-de ser, como é o caso presente, o valor do contrato, determinado pelo preço estipulado no mesmo contrato;
III- E que, no caso presente, é de Esc. 17.000.000$000/ E 84.795,64;
IV- Assim não se entendendo, no douto Despacho recorrido violou-se o disposto no artº 310, nº 1, do CPC.
Termos em que ...deve o presente recurso ser provido, em consequência se revogando o douto despacho recorrido e fixando-se à acção o valor correspondente ao valor do contrato, que é de Esc. 17.000.000$000/ E 84.795,64; anulando-se todo o processado posterior àquele douto Despacho....

6- Não foram apresentadas contra- alegações.

7- Entretanto os autos foram prosseguindo os seus ulteriores termos, com o sr. juíz do tribunal a quo a proferir despacho a sustentar o despacho agravado, até à realização do julgamento, e na sequência do qual veio a ser proferida a sentença, de fls. 212/221, que, a final, julgando procedente a acção, condenou o réu no pedido contra si formulado nestes autos pelos autores.

8- Por sua vez, os réus através do seu requerimento de fls. 226, vieram pedir a subida a esta Relação do sobredito recurso de agravo, tanto mais que não concordando com a referida sentença, dela não podem recorrer dado o valor que foi atribuído à causa pelo despacho recorrido.
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II - Cumpre-nos, pois, apreciar e decidir tal recurso.
Como é sabido, são as conclusões das alegações do recurso que delimitam e definem o âmbito do objecto do mesmo (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC).
Como resulta de tais conclusões a única questão que importa aqui apreciar e decidir consiste em saber qual o valor que deve ser atribuído à presente acção ou causa.
Dispõe o artº 305, nº 1, do CPC – diploma esse ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua origem -, que “a toda causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”.
Valor esse a que se atenderá para determinar a competência do tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal (nº 2 do citado artº 305).
Resulta, assim, deste último normativo que do valor da acção pode, depender a competência do tribunal (artº 68), a forma do processo declarativo comum (artº 462, nº 1), bem assim a admissibilidade do recurso ordinário (artº 678, nº 1) e ainda a obrigatoriedade do patrocínio judiciário, nas acções executivas e no apenso de verificação de créditos (artº 60).
Por outro lado, resulta do nº 1 do citado artigo 305, que a “utilidade económica” imediata do pedido, expressa em dinheiro, constitui o critério geral para a determinação do valor da causa (Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil anotado, vol. I, pág. 543”). Aliás, nas palavras do referido professor (in “Ob. e pág. cit”) “as disposições sobre o valor da causa que consagram critérios especiais (artºs 307, 308, nº 3, 309 a 313) representam a concretização e adaptação desse critério geral, em função da modalidade do pedido formulado. “Há, porém, que ter em conta – continua ali o insígne Mestre -, que o pedido se funda sempre na causa de pedir, que o explica e o delimita. Dela não abstrai o critério da utilidade económica imediata do pedido, pelo que este não é considerado abstractamente, mas sim em confronto com a causa de pedir, para apuramento do valor da causa...Tal como o pedido desligado da causa de pedir não basta à determinação do valor da acção, também a causa de pedir, por si, não o determina...”. (sublinhado nosso)
Por sua vez, preceitua o artigo 306, nº 1, - sob a epígrafe “critérios gerais para a fixação do valor” - que “se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela acção se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício”.
Tal normativo explicita, assim, o critério geral definido no citado artigo 305. (vidé autor e obra cit, pag. 544”)
Por fim, estatui-se no nº 1 do artigo 310 que “quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atender-se-á ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes”. (sublinhado nosso)
Comentando este último normativo, discorre o aludido prof. que vimos citando (in “Ob. cit. pág. 549”), “ estando em causa a existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um negócio jurídico, atende-se, ressalvada a especialidade do nº 3, ao valor sucessivamente resultante do preço, estipulado pelas partes ou decorrente das regras gerais”. (sublinhado nosso)

Ora, postas estas considerações e subsumindo-as ao nosso caso em apreço,diremos:
Que, como acima se deixou expresso, os autores alicerçam o seu pedido no facto de terem celebrado um contrato-promessa com o réu, através do qual este se comprometeu a vender-lhes, e aqueles a comprarem-lhe, pelo preço total de esc. 17.000.000$00, a fracção autónoma e respectivo arrumo acima identificados, nas demais condições estipuladas nesse contrato reduzido a escrito, e cujo documento se encontra junto a fls. 8/9 destes autos. Mais alegaram os autores que o réu, por causa que lhe é imputável (facto esse que o réu refutou na sua contestação), não cumpriu tal contrato (nomeadamente não tendo celebrado o contrato prometido), pelo que, com base nisso e à luz do disposto no artigo 442 do CC, reclamam que o mesmo seja condenado a devolver-lhes o dobro da quantia que lhe haviam entregue a título de sinal (esc. 300.000$00), ou seja, a quantia total de esc. 600.000$00.
Ora é evidente que o êxito da pretensão dos autores pressupõe, tal como resulta daquele último normativo legal, que se conclua previamente que o réu não cumpriu, por causa que lhe é exclusivamente imputável, o referido contrato-promessa que celebrou com aqueles. Ou seja, o pedido dos autores funda-se na seguinte causa de pedir: incumprimento por parte do réu, e por causa somente imputável ao mesmo, do contrato-promessa que com ele celebraram.
Portanto, nesta acção discute-se ou visa-se apreciar, como grande questão, se o réu cumpriu ou não o aludido contrato promessa, e depois extrair as necessárias consequências jurídicas conforme a conclusão ou juízo final a que se chegar (e, nomeadamente, se os autores têm depois direito a receber aquela importância que reclamam daquele). E para que a pretensão dos autores seja coroada de êxito necessário se torna que tal conclusão vá no seu sentido que o réu faltou, por causa que lhe é imputável, ao cumprimento do dito contrato.
Logo será aplicável ao caso em apreço a previsão o artigo 310, o qual contem em si um critério de excepção ao critério geral contido no artigo 305, nº 1, e que encontra a sua explicitação ou desenvolvimento no nº 1 do artº 306 (não esquecer que a epígrafe deste normativo se refere aos “critérios gerais para a fixação do valor”). E sendo assim o valor desta causa deve corresponder ao valor do contrato (promessa), cujo cumprimento aqui se discute, e que é determinado pelo preço que as partes (autores e réus) acordaram ou estipularam para o mesmo, ou seja, 17.000.000$00 (que na moeda corrente corresponde a euros 84,795,64). Vidé neste sentido, embora a propósito de situações não rigorosamente coincidentes com a destes autos, o Ac. do STJ de 25/5/95, in “CJ, Acs. do STJ, Ano III, T2 – 109; e Ac. do STJ de 9/3/2000, in “Sumários, 39º - 27”).
Pelo que, face ao exposto, se decide fixar o valor da presente causa em 17.000.000$00 (que na moeda actual corrente corresponde a euros 84,795,64), assim se revogando, o despacho recorrido, com a consequente anulação de todo o processado posteriormente ao mesmo, dadas as várias consequências jurídico-processuais que daí resultarão (inevitavelmente para certas situações) ou poderão resultar (no que concerne a outro tipo de situações), e que se encontram legalmente previstas (conforme o processo siga a forma ordinária – como passará a suceder com a alteração do valor da causa – ou siga a forma sumária - como sucedeu até aqui).
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se, no provimento do recurso (de agravo), revogar o despacho recorrido, e fixar o valor da causa em euros 84,795,64 (esc. 17.000.000$00), com as demais consequências daí decorrentes e supra referidas.
Sem custas.