Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/09.9T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESSUPOSTOS
INDEMNIZAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA - JGIC - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 483º Nº 1, 499º SS, 503º Nº 1, 506º E 562º, 564º E 566º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGOS 6º, 21º E 23º DO DECRETO-LEI Nº 522/85, DE 31/12, DECRETO-LEI Nº 18/93, DE 23 DE JANEIRO, DECRETO-LEI Nº 301/2001, DE 23 DE NOVEMBRO
Sumário: 1) Considerando que a vítima se encontrava normalmente parada junto de um semáforo ao volante do ciclomotor e quando foi ultrapassada por um furgão que a precedia se constatou, acto contínuo, que aquela ficou acidentada no chão com ferimentos graves e esvaindo-se sangue, até pelo recurso a uma presunção judicial terá de concluir-se que o acidente só poderia ter tido lugar entre a viatura e o velocípede.

2) Mau grado não se tenham apurado todas as características do furgão de caixa aberta que interveio num acidente com o velocípede, poderemos todavia considerar que, pela experiência comum, tais veículos são no mínimo ligeiros de grande porte; nesta conformidade é razoável fixar em ¾ e ¼ a proporção de risco com que respectivamente o furgão e o velocípede concorreram para a produção do sinistro.

3) Não tendo sido apurados elementos de identificação do furgão e respectivo condutor, que não parou depois do acidente, abandonando o local, é o Fundo de Garantia responsável pela indemnização à vítima a qual se processa tendo em linha de conta além do mais os limites estabelecidos para o seguro obrigatório que ma altura do acidente eram os estabelecidos no artigo 6º nº 1 do DL 522/85 de 31 de Dezembro na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

     Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     A..., divorciada, operária fabril, residente na... instaurou a presente acção com processo ordinário contra “Fundo de Garantia Automóvel”, com sede na Avenida da República, nº 59, Lisboa, pedindo a condenação do Réu no pagamento: A) da indemnização global líquida de Esc. 31.255.500$00 acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento; B) da indemnização que por força dos factos alegados nos artsº 71º a 76º da p. i. vier a ser fixada em decisão ulterior.

     Para tanto, alega, em síntese, que no dia 22-10-1998 foi vítima de um acidente de viação, ocorrido na EN nº 1, que resultou de ter sido abalroada por um veículo pesado de mercadorias que não respeitando a sinalização existente, não parou perante o sinal de cor vermelha; o embate deu-se entre a parte lateral traseira do velocípede da Autora e a frente direita, roda direita, do pesado; foi arrastada para debaixo das rodas do eixo traseiro do pesado; o condutor do pesado colocou-se em fuga; em resultado do acidente a Autora sofreu graves e extensas lesões que descreve e cujos tratamentos e sequelas enumera; concluindo pelos pedidos de indemnização.

     O Réu contestou impugnando a versão do acidente apresentada pela Autora; conclui sustentando que a sua responsabilidade é apenas subsidiária só respondendo desde que se verifiquem taxativamente as condições do DL nº 522/85, de 31.12.

     No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância tendo sido elencados os factos provados elaborada a Base Instrutória sem reclamações.

     Procedeu-se a julgamento acabando por ser proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente por não provada absolvendo o Réu Fundo de Garantia Automóvel do pedido formulado.

     Daí o presente recurso de apelação interposto pela Autora a qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença apelada substituindo-se a mesma por outra que fixe a indemnização condenando o Fundo de Garantia Automóvel a prestar a mesma, já que o mesmo logrou provar o acidente, os danos e o nexo de causalidade entre o facto e o acidente.

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,

     Conclusões:

     1) Face aos depoimentos das testemunhas B.... e C..., bem como face ao auto da GNR que não identificou o veículo atropelante nem o condutor porque não estava no local junto ao processo bem como às re­gras da experiência comum o condutor do veículo atropelante concomitantemente à eclosão do sinistro, se colocou em fuga deixando a sinistrada, aqui A., em desesperada agonia. (Sic).

     2) Deste modo impõe-se resposta positiva ao quesito 11º, dando-se o mesmo como provado.

     3) Face à prova produzida, mormente os depoimentos das testemunhas, D..., B.... e C.... (cassete 1, lado A e B), que ora por constatação no local ( B.... e C....), ora por recurso à observação dos ferimentos e às regras de experiência profissional (Enfermeiro D....), foram peremptórios em afirmar que a A. tinha ferimentos muito graves no lado esquerdo do corpo, sobretudo na perna e anca, havendo mesmo esmagamento.

     4) Deste modo impõem-se resposta positiva aos quesitos 9º e 10º, dando-se os mesmos como provados.

     5) A testemunha C...., no seu depoimento descreve o modo como se objectivou o embate entre a A. e o veículo atropelante, facto que é corroborado pela testemunha B...., que embora não tendo presenciado o sinistro, verificou a posição final da sinistrada – aqui A. – caída junto à berma direita, atento o sentido Águeda – Coimbra, pelo que, deveria a resposta ao quesito 8º ter sido afirmativa, isto é, dar-se o mesmo como provado.

     6) Decorre do depoimento das testemunhas B.... e C...., que a A. – sinistrada – estaria parada junto ao semáforo, encostada à berma direita, atento o sentido Águeda – Coimbra, pelo que, deveria o Tribunal à quo dar como provado que a A. imobilizou a Scooter que conduzia junto ao semáforo, e quando se encontrava parada, foi abalroada pelo veículo atropelante, carrinha ou camioneta, dá-se de barato, logo, também a resposta aos quesitos, 5º, deveria ser parcialmente provado e 6º provado. (Sic)

     7) Face à matéria provada e já aqui evidenciada, no momento do acidente a A. fazia-se transportar numa scooter e estava parada na berma direita, junto ao semáforo, atento o sentido Norte – Sul, logo, encontrava-se o mais encostada à direita possível.

     Assim,

     8) Ao quesito 3º não poderia deixar de se dar uma resposta positiva, isto é dá-la como provado.

     9) Atenta a prova produzida, bem como as regras da experiência, forçoso será concluir que o veículo atropelante, camião ou carrinha, não guardou uma distância de segurança que lhe permitisse circular de modo a evitar embater nos veículos que circulavam à sua direita, como foi o caso da sinistrada, aqui A..

     Pelo que,

     10) É patente que o condutor do veículo atropelante violou grosseiramente as mais elementares regras estradais, mormente, o artigo 13º, nº 1 do Código da Estrada,

     11) O que por si só faz presumir a sua culpa na eclosão do sinistro, como vem decidindo a nossa melhor jurisprudência.

     12) Estando assente a culpa do condutor do veículo atropelante, que se colocou em fuga concomitantemente à eclosão do sinistro, deverá o Fundo Garantia Automóvel, indemnizar a lesada, aqui A., tal como decorre da al. a) do nº 1 do Artigo 21º do DL 522/85 de 31 de Dezembro.

     Sem conceder,

     13) A Sentença que antecede afirma que a A., ora recorrente, “... teve um acidente rodoviário...”no local evidenciado nos autos.

     14) Aquela sentença deu como provados todos os tratamentos que a A. teve de realizar, mormente, internamentos, cirurgias, fisioterapia, bem como, tratamentos médicos e medicamentosos.

     15) Face ao exposto é por demais evidente que a A. foi vítima de acidente de viação que a limitaram de forma irreversível, tendo, inclusivamente sido atribuída a A. "... uma incapacidade permanente geral global fixável em 35%.”

     16) Atenta a violência do acidente, por demais evidenciada nos autos, e, se o causador do acidente nunca foi identificado, impunha-se que se considerasse demonstrado que o causador do mesmo se colocou em fuga.

     17) Tomando por base o que se deu como provado, e apenas isso, impunha-se decisão diferente, mormente, no que ao direito à indemnização diz respeito.

     18) Foi demandado o Fundo de Garantia Automóvel porquanto, o causador do acidente se colocou em fuga após a ocorrência do mesmo.

     19) A sentença recorrida viola o Artº 21º nº 2 a) do D.L. nº 522/85, de 31 de Dezembro, porquanto, à luz deste Artigo a A./recorrente não tem que demonstrar a culpa do condutor do outro veículo na eclosão do acidente.

     20) A propósito de um caso semelhante ao dos presentes autos proferiu o Venerando Tribunal da Relação do Porto, proferido em 12-02-2008, no âmbito do Proc. Nº 0722427, o qual prescreve que "Ocorrendo acidente de viação em que interveio veículo desconhecido, não sendo possível concluir pela culpa efectiva ou presumida do respectivo condutor, o caso deve ser resolvido com base na responsabilidade pelo risco”.

     21) Em sede de responsabilidade pelo risco incumbe à A. não a prova da culpa do outro condutor, antes, a prova dos restantes factos constitutivos do direito alegado consoante dispõe o artº 342º, n.º 1 e 487º, nº 1 do CC..

     22) Tal como nos autos sobre o qual versa o Acórdão que se tem vindo a citar, também nos presentes autos resulta evidente que a “... Autora logrou provar os factos em que assentam a responsabilidade aquiliana ou extracontratual – o facto (o acidente), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e os danos”, pelo que,

     23) Se impunha que a decisão que antecede condenasse o demandado Fundo de Garantia Automóvel a pagar indemnização à A. a fixar atenta a demais prova produzida e, recorrendo às demais circunstâncias do caso concreto – Artsº 496º, nº 3 e 494º do CC.

     24) Ao não decidir assim, violou a Sentença que antecede a norma prevista no artº 21.º nº 2, a) do D.L. nº 522/85, de 31 de Dezembro, porquanto, ainda que dentro do regime da responsabilidade civil, em casos como o dos autos, isto é, havendo fuga do causador do sinistro, o Demandado – Fundo de Garantia Automóvel - responde pelo risco.

     Não houve contra-alegações.

     Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                           *

     2. FUNDAMENTOS.

     2.2. Reapreciação da matéria de facto.

     Insurge-se a apelante no que toca às respostas à matéria de facto concernentes ao acidente que está vazada nas respostas aos quesitos 3º a 11º.

     Perguntava-se nos quesitos em análise respectivamente o seguinte:

     Quesito 3º: A Autora seguia o mais encostada à berma direita possível atento o seu sentido norte-sul?

     Quesito 4º: A uma velocidade inferior a 30 Km/h?

     Quesito 5º: A chegar aos semáforos que existem naquele cruzamento e porque se encontrasse aceso o sinal de cor vermelha a Autora imobilizou o 00-00 "AGD a fim de aguardar a abertura do sinal verde que lhe permitisse avançar?

     Quesito 6º: Quando assim se encontrava foi violentamente abalroada por um veículo pesado de mercadorias?

     Quesito 7º: Que não respeitando a sinalização existente não parou perante o sinal de cor vermelha?

     Quesito 8º: O embate objectivou-se entre a parte lateral traseira do velocípede e a frente direita, roda direita do veículo pesado de mercadorias?

     Quesito 9º: Devido à violência do embate a Autora foi arrastada para debaixo das rodas do eixo traseiro do veículo pesado de mercadorias?

     Quesito 10º: Que lhe calcaram e esmagaram todo o lado esquerdo do seu corpo com especial incidência na anca, coxa, perna e pé do mesmo lado?

     Quesito 11º: O condutor do veículo pesado colocou-se em fuga logo após o sinistro deixando a Autora a esvair-se em sangue e dor?

     O Tribunal respondeu "não provado" aos quesitos em análise.

     Cabe decidir:

     Analisada e ponderada a prova produzida entendemos que não são de manter algumas das respostas em análise.

     É bem certo que há apenas uma testemunha presencial do acidente C.... que foi aliás a primeira pessoa que socorreu a Autora. Todavia as naturais imprecisões da mesma, tendo em linha de conta o tempo decorrido desde o sinistro (cerca de 10 anos) e a posição relativa em que o C.... se encontrava no momento que antecedeu a colisão lateral entre ambas não nos impede de dar como provado a existência daquela colisão e a posição relativa dos veículos intervenientes nos momentos imediatamente anteriores. E se o embate em si foi obscurecido pela falta de ângulo de visão da testemunha que circulava atrás da viatura de quatro rodas, não é menos certo que a colisão se deu e foi esta que provocou o acidente considerando que a vítima se encontrava normalmente parada no semáforo, um pouco à frente do veículo e quando este a ultrapassou, verificou-se que a Autora ficou acidentada no chão esvaindo-se sangue. Até pelo recurso a uma presunção judicial terá de concluir-se que o acidente só poderia ter lugar entre a viatura e o velocípede.

     Nesta conformidade, tendo em linha de conta o depoimento da testemunha em análise cuja credibilidade não nos aparece abalada no seu essencial e a presunção hominis resultante da experiência entendemos alterar as respostas aos quesitos 5º, 6º, 7, 8º e 10º para o seguinte:

     Quesito 5º. Provado

     Quesitos 6º, 7º e 11º: Provado apenas que a dada altura um furgão de caixa aberta não identificado ultrapassa o velocípede verificando-se a colisão entre ambos em circunstâncias não apuradas. O condutor do furgão continuou a sua marcha sem se deter.     

    

     Quesito 8º: Provado apenas que o embate objectivou-se entre a parte lateral traseira esquerda do velocípede e a parte lateral direita do furgão.

    

     Quesito 10º: Provado apenas que após a colisão a vítima tinha esmagado todo o lado esquerdo do seu corpo com especial incidência na anca, coxa perna e pé do mesmo lado.

                           *

     Nesta conformidade entende esta Relação considerar provados os seguintes,

     2.3. Factos.

     2.3.1. No dia 21.10.1998, cerca das 11H30, a Autora teve um acidente rodoviário na EN nº 1, junto ao cruzamento que à esquerda dá acesso ao Vale Grande e à direita a Fujacos, em frente à fábrica de produtos cerâmicas “E....”, na zona de Águeda, atento o sentido Porto -» Coimbra

     2.3.2. A Autora seguia pela EN nº 1 num velocípede com motor auxiliar, no sentido norte-sul.

     2.3.3. Ao chegar aos semáforos que existem naquele cruzamento e porque se encontrasse aceso o sinal de cor vermelha, a Autora imobilizou o 00-00 0-AGD a fim de aguardar a abertura do sinal verde que lhe permitisse avançar.

     2.3.4. A dada altura um furgão de caixa aberta não identificado ultrapassa o velocípede, verificando-se a colisão entre ambos em circunstâncias não apuradas.

      O condutor do furgão continuou a sua marcha sem se deter.

     2.3.5. O embate objectivou-se entre a parte lateral traseira esquerda do velocípede e a parte lateral direita do furgão.

     2.3.6. Após a colisão a vítima tinha esmagado todo o lado esquerdo do seu corpo com especial incidência na anca, coxa perna e pé do mesmo lado.

     2.3.7. Após o sinistro a Autora foi transportada, de ambulância, ao Hospital de Águeda, onde recebeu os primeiros tratamentos.

     2.3.8. Dada a gravidade das lesões que apresentava e porque corria sério risco de ver a sua perna amputada, bem como de perder a própria vida, foi de imediato conduzida para o Hospital da Universidade de Coimbra onde foi operada de urgência.

     2.3.9. A Autora permaneceu no HUC, bloco de esfacelos – ORTO 5 - desde o dia 21.10.1998 até Fevereiro de 1999.

     2.3.10. Como consequência directa e necessária do sinistro, a Autora sofreu:

     - Esfacelo do membro inferior esquerdo, com fractura do fémur.

     - Lesão do ciático poplíteo externo.

     - Esfacelo da anca, coxa e pé esquerdos.

     2.3.11. A Autora foi sujeita a nova intervenção

cirúrgica nos Hospitais da Universidade de Coimbra em 27.11.1998, para colocação de enxerto.

     2.3.12. Tendo ainda posteriormente efectuado várias intervenções, limpezas cirúrgicas para limpeza de tecidos necrosados.

     2.3.13. Teve alta em 04.02.1999.

     2.3.14. Depois da alta a Autora passou a fazer tratamentos de fisioterapia numa clínica de Águeda.

     2.3.15. No dia 02.03.1999, foi a Autora novamente operada nos Hospitais da Universidade de Coimbra, para colocação de fixadores externos, que posteriormente foram retirados.

     2.3.16. No dia 17.03.1999, a Autora fez outra intervenção cirúrgica para colocação de cavilha, que foi retirada em Março de 2000.

     2.3.17. Desde a data do sinistro e até 04.02.1999 a Autora sofreu de incapacidade absoluta geral e esteve acamada.

     2.3.18. Presentemente a Autora encontra-se curada estando as lesões consolidadas, mantendo, contudo, lesão do CPE esquerdo grave, graves cicatrizes tróficas e dolorosas do membro inferior esquerdo com síndrome varicoso, edema da perna esquerda; Limitação de mobilidade e de articulação do pé esquerdo.

     2.3.19. A gravidade e extensão das lesões de que a Autora é portadora impossibilitam-na de andar mais de uma hora a pé, não suportando o pé do seu corpo.

     2.3.20. O que a impede de exercer a sua anterior profissão que lhe exigia se mantivesse durante grandes períodos de pé.

     2.3.21. A Autora sofre de uma incapacidade permanente geral global fixável em 35%.

     2.3.22. A Autora durante o período em que esteve no Hospital sofreu dores que a angustiaram.

     2.3.23. Para suportar as dores que sofria teve que recorrer à ajuda de analgésicos e anti-inflamatórios.

     2.3.24. Depois do acidente a Autora sofreu fortes dores.

     2.3.25. Sofreu a Autora os incómodos e a privação da sua liberdade pessoal ao ver-se na dependência de terceiros para realizar tarefas tão elementares corno comer ou tomar banho.

     2.3.26. A Autora sofreu desgosto.

     2.3.27. A Autora, à data do sinistro, exercia a profissão de operária não especializada na empresa “F.....".

     2.3.28. Auferindo a remuneração de esc. 67.000$00.

     2.3.29. Além disso, a Autora trabalhava nas horas vagas por conta própria, com o que auferia em média esc. 20.000$00 por mês.

     2.3.30. Durante o período de doença a Autora não recebeu os ordenados como anteriormente.

     2.3.31. Antes da ocorrência do sinistro a Autora era uma mulher ágil, forte e robusta.

     2.3.32. Ficou ainda impossibilitada de subir escadotes, de fazer força com a perna esquerda.

     2.3.33. Não pode estar muito tempo de pé, o que frustra e dificulta à Autora a possibilidade de novas oportunidades de formação e colocação profissional.

     2.3.34. Se não fosse o acidente a demandante continuaria a exercer a sua profissão.

     2.3.35. Em consequência do sinistro, a Autora ficou com as calças de ganga que vestia, no valor de esc. 7.500$00, inutilizadas.

     2.3.36. Com a camisa que vestia, no valor de esc. 5.000$00, inutilizada.

     2.3.34. Com o par de sapatos, no valor de esc. 8.000$00, inutilizados.

     2.3.35. A Autora nasceu a 04.12.1969.

                           +

     2.4. O Direito.

    

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - Estão verificados in casu os pressupostos da responsabilidade civil?

     - Do "quantum indemnizatório" à luz dos factos provados e das considerações expendidas.

                           +

     2.4.1. Estão verificados in casu os pressupostos da responsabilidade civil?

     Nos termos do preceituado no artº 483º nº 1 do Código Civil, — Diploma a que pertencerão os restan­tes normativos a citar sem menção de origem — "aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".

     Ali se estabelece pois o princípio geral da respon­sabilidade civil, fundada em facto que seja objectivamente controlável ou dominável pelo agente, isto é uma conduta humana, que tanto pode consistir num facto positivo, uma acção, como num negativo (omissão ou abstenção), violadora do direito de outrem ou de qualquer disposição legal que vise proteger interesses alheios — comportamento ilícito.

     Para que desse facto irrompa a consequente respon­sabilidade, necessário se torna, à partida, que o agente possa ser censurado pelo direito, em razão precisamente de não ter agido como podia e devia de outro modo; isto é que tenha agido com culpa.

     A ilicitude e a culpa são elementos distintos; aquela, virada para a conduta objectivamente conside­rada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito; esta, olhando sobretudo para o lado subjectivo do facto jurídico.

     Exige-se a verificação de um dano surgindo o prejuízo como um elemento novo a acrescer ao facto ilícito e à culpa, sem o qual o agente não se constituiria na obrigação de indemnizar.

     Finalmente terá que provar-se o nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o resultado da mesma. 

     Revertendo aos factos provados constatamos que se o acidente foi uma realidade iniludível, certo é que não foi possível apurar a forma como o mesmo ocorreu. Sabe-se apenas que as viaturas intervenientes colidiram e que em consequência do ocorrido a Autora sofreu graves lesões. No entanto ignora-se se foi o furgão que abalroou a Autora quando se encontrava montada no velocípede e parada junto ao sinal vermelho do semáforo, ou se foi porventura foi esta última que ao efectuar qualquer manobra menos conseguida (v.g. início de marcha) terá colidido lateralmente no veículo de quatro rodas.

     Está assim afastada a culpa no caso que analisamos. Só que a questão terá que ser vista de outra forma; os veículos são coisas potencialmente perigosas criadoras de um sério risco para os utentes da via pública pelo que quem aufere das vantagens da sua utilização terá igualmente de encarar os encargos com os prejuízos que aquela origina ideia já expressa no brocardo ubi commoda ibi incommoda e consagrada no instituto da responsabilidade pelo risco nos artigos 499º ss.

     Estatui o artigo 503º nº 1 do Código Civil que "1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

E no artigo 506º lê-se por seu turno que " 1. Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.

     2. Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.

     No caso concreto tendo em linha de conta o apurado e considerando que mau grado não se tenham colhido todas as características do furgão de caixa aberta teremos de qualquer forma de considerar que pela experiência comum tais veículos são no mínimo ligeiros de grande porte; nesta conformidade entende-se fixar em ¾ e ¼ a proporção de risco com que respectivamente o furgão e o velocípede concorreram para a produção do sinistro.

                           +

     2.4.2. Do "quantum indemnizatório" à luz dos factos provados e das considerações expendidas.

     A responsabilidade civil traduz-se na obrigação de indemnizar, de reparar os danos sofridos pelo lesado.

     Este dever de indemnizar compreende não só os pre­juízos causados, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão — artº 564º do Código Civil.

     Os danos podem ter um conteúdo económico (danos patrimoniais) abrangendo os danos emergentes, efectiva diminuição do património do lesado, o prejuízo causado nos seus bens, e o lucro cessante, os ganhos que se frustraram por causa do facto ilícito, ou imaterial (danos não patrimoniais ou morais, que resultam da ofensa de bens de carácter espiritual ou morais, e que não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, podem todavia ser compensados pelo sacrifício imposto no património do lesante).

     A reparação dos danos deve efectuar se em princí­pio mediante uma reconstituição natural, isto é repondo-se a situação anterior à lesão; mas quando isso não for possível, ou não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor, então haverá que subsidiariamente fixar‑se a indemnização em dinheiro. Cfr. artsº 562º e 566º do Código Civil. Nesta hipótese, o dano real ou concreto é expresso pecunia­riamente, reflectindo-se sobre a situação patrimonial do lesado (dano patrimonial ou abstracto)[1].

     Revertendo ao caso em análise, vem provado que vinculados ao acidente sofreu a Autora danos patrimoniais e não patrimoniais. Refiram-se à partida as graves lesões sofridas a saber: esfacelo do membro inferior esquerdo com fractura do fémur; lesão do ciático poplíteo externo; esfacelo da anca, coxa e pé esquerdos, tendo sido submetida aos vários tratamentos documentados nos factos provados, os quais foram vários e dolorosos tendo de recorrer à ajuda de analgésicos e anti-inflamatório. Tudo isto lhe causou incómodos e desgostos provocados também pela privação forçada de liberdade durante o período mais agudo da sua doença, tanto mais que anteriormente era uma mulher ágil e agora não pode subir escadas, estar muito tempo de pé.

     Trata-se de danos não patrimoniais que merecem a tutela do direito nos termos do disposto no artigo 494º do Código civil que entendemos equilibrado ressarcir com a importância de € 25.000,00.

     Actualmente encontra-se curada, sendo certo todavia que em consequência das lesões sofridas ficou com incapacidade permanente parcial de 35%.

     Prosseguindo agora no âmbito dos danos patrimoniais, referiremos à partida que aquela incapacidade repercute-se inegavelmente na capacidade de ganho da Autora, pelo que tem a mesma direito a uma compensação material, a cujo cálculo se procederá considerando que contava 30 anos à data do acidente, e auferia como operária não especializada a quantia de esc. 67 000$00/mês.

     A ideia base que preside à determinação do montante indemnizatório quando estão em causa danos futuros é a de que tal indemnização deve representar um capital que se extinga no fim da vida activa do lesado e seja susceptível de garantir as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho (cfr. Ac. do STJ de 09.01.1979, BMJ 283º, pág. 260).

     É nesta conformidade que iremos usar uma das conhecidas fórmulas de cálculo, tomando como limite da idade os 70 anos mas temperando todavia o resultado a que se chega pelo recurso à equidade, verdadeiramente o ponto de referência do nosso direito aplicável a este caso.

    

     Assim:

   

 

     Em que:

     “C” corresponde ao capital a depositar no 1º ano;

     “P”, à prestação a pagar no 1º ano,

     “i”, a taxa de juro a aplicar;

     “n”, o número de anos em que a prestação se manterá.

     A tal fórmula, e no que respeita à definição da taxa de juro, será necessário introduzir determinados factores de correcção resultantes da inflação ou expectativas de promoção profissional que implicam variações nas retribuições mensais ao longo da vida do lesado, para que o resultado obtido seja a taxa de juro real líquida, de forma a contemplar a inflação anual, os ganhos de produtividade e as evoluções salariais por progressão na carreira. Caso contrário, a fórmula afastar-se-ia “da realidade da vida e da própria equidade” por considerar “os salários futuros, perdidos pelo Autor, como constantes ao longo de toda a sua vida laboral” (cfr. Ac. desta Relação, 04.04.95, in CJ, II, pag. 23).

     Deste modo, a taxa de juro, representada por “i”, será igual a:

    

Sendo:

     “r” a taxa de juro nominal líquida

     “k” a taxa anual de crescimento da pensão, face à média corrente de aplicações financeiras.


 

    

     Nesta conformidade partindo de um vencimento anual de (€ 335,00 × 14) = € 390/mês; da incapacidade IPA de 35% e utilizando uma taxa de juro de 4% e de crescimento de 2% - e bem assim a idade limite de 70 anos e da idade que tinha à data do acidente praticamente 30 anos, o valor da indemnização em causa ascende assim a € 45.220,64, que equitativamente arredondaremos para € 46.000,00. Sabemos também que a Autora realizava ainda alguns trabalhos por conta própria auferindo cerca de esc. 20 000$00 por mês. Considerando a natureza algo aleatória de um cálculo nestas condições a longo prazo (40 anos) entendemos razoável fixar a indemnização a este título em € 8.000,00.

     A Autora não recebeu vencimentos enquanto esteve doente. Sabendo que aquela teve o acidente em 21-10-1998 e não nos sendo informado concretamente quando é que a mesma foi dada como curada, faremos coincidir essa data com a do termo da incapacidade absoluta ou seja 4-2-1999, o que tendo em linha de conta o vencimento mensal de esc. 67 000$00 perfaz a perda total de esc. 232 267$00 (€ 1.158,55).

     A impetrante aquando do acidente ficou ainda com o vestuário que envergava destruído, a saber um par de calças (esc. 7 500$00); camisa (esc. 5 000$00) e um par de sapatos (esc. 8 000$00) tudo no valor de € 100,00 em moeda actual.

     Ascende o total dos danos morais e patrimoniais, estes na modalidade de danos emergentes e lucros cessantes a 80.258,55 €, que terá que ser reduzido a 60.193,91 € por força da proporção supra-aludida.

     Tal indemnização uma vez que processada no âmbito da responsabilidade pelo risco, terá ainda que caber dentro dos limites máximos de indemnização fixados na lei aplicável:

     À partida consideraremos que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência Ac. do S.T.J. nº 3/2004, de 13-5-2004 veio estabelecer, que "o segmento do artigo 508º, nº 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro".

     Nesta conformidade será à luz do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12, que iremos verificar do cabimento da indemnização ora fixada.

     O Diploma em análise e sucessivas alterações ao mesmo introduzidas e que regula a institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil estatui no seu artigo 21º "compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer as indemnizações decorrentes de acidentes de viação originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, matriculados em Portugal, quando, entre outras circunstâncias, o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz". Tais indemnizações, nos termos estabelecidos no artº 23º, do diploma legal citado, devem ser satisfeitas pelo Fundo de Garantia Automóvel até ao limite, por acidente, das quantias fixadas no seu artº 6º. O legislador remete o âmbito da responsabilidade do FGA e a correspondente obrigação de indemnização para os limites quantitativos estipulados pelo legislador no citado artº 6º, sendo o capital mínimo obrigatoriamente seguro constituído pelo valor que decorre dessa norma.

     Tal normativo, segundo a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 18/93, de 23 de Janeiro, estabelecia que: “o capital obrigatoriamente seguro nos termos e para os efeitos das alíneas a) e c) do artigo anterior é de 35.000.000$00 por lesado, com o limite de 50.000.000$00 no caso de coexistência de vários lesados” – ou seja, efectuando a conversão em Euros, o limite cifrava-se em 175.000,00 € por lesado e 250.000,00 € no caso de coexistência de vários lesados;

norma posteriormente alterada, quanto ao capital seguro, pelo Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro, para: “120.000.000$00 por sinistro, para danos corporais e materiais, seja qual for o número de vítimas ou a natureza do dano” – o que, em conversão para Euros, dá um limite de 600.000,00 €.

     Mais recentemente pelo Decreto-Lei nº 301/2001, de 23 de Novembro, passando a ter a seguinte redacção: “O capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e c) do artigo anterior, é de 600.000,00 € por sinistro, para danos corporais e materiais, seja qual for o número de vítimas ou a natureza dos danos” - cf. seu nº 1.

     Acontece, porém, que o acidente de viação a que se reportam os presentes autos ocorreu em 22 de Outubro de 1998; Será, pois, tendo em atenção esta data e a redacção do citado artº 6º, então vigente, que se decidirá qual o capital mínimo seguro; ou seja, a que decorre do Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro, e impõe o limite de 600.000,00 €, seja qual for o número de vítimas ou a natureza do dano.

     Conclui-se assim que o FGA só é responsável até ao referido limite de € 600.000,00, importância onde cabe perfeitamente a quantia arbitrada i.e. 60.193,91 €.

     A apelação procederá assim nos termos supra-referidos.

                          

     Poderá assim concluir-se o seguinte:

     1) Considerando que a vítima se encontrava normalmente parada junto de um semáforo ao volante do ciclomotor e quando foi ultrapassada por um furgão que a precedia se constatou, acto contínuo, que aquela ficou acidentada no chão com ferimentos graves e esvaindo-se sangue, até pelo recurso a uma presunção judicial terá de concluir-se que o acidente só poderia ter tido lugar entre a viatura e o velocípede.

     2) Mau grado não se tenham apurado todas as características do furgão de caixa aberta que interveio num acidente com o velocípede, poderemos todavia considerar que, pela experiência comum, tais veículos são no mínimo ligeiros de grande porte; nesta conformidade é razoável fixar em ¾ e ¼ a proporção de risco com que respectivamente o furgão e o velocípede concorreram para a produção do sinistro.

     3) Não tendo sido apurados elementos de identificação do furgão e respectivo condutor, que não parou depois do acidente, abandonando o local, é o Fundo de Garantia responsável pela indemnização à vítima a qual se processa tendo em linha de conta além do mais os limites estabelecidos para o seguro obrigatório que ma altura do acidente eram os estabelecidos no artigo 6º nº 1 do DL 522/85 de 31 de Dezembro na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro.

                           *

     3. DECISÃO.

     Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e revogando a sentença em crise condena-se assim o Fundo de Garantia Automóvel a pagar à Autora A.... a quantia de € 60.193,91 € acrescida de juros de mora às taxas legais desde a data deste Acórdão no tocante a € 25.000,00 de danos morais e desde a citação desde o remanescente do quantitativo indemnizatório.

     Custas por A. e R. na proporção do vencimento/decaimento.

    



      [1] Cfr. por todos Pessoa Jorge "Ensaio dos Pressupostos da Responsabilidade Civil" pags. 61 ss e 371 ss e Dario Martins de Almeida "Manual de Acidentes de Viação", 3ª Edição pags. 39 ss e 76.