Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1467/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: ACESSÃO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 1340.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Não se provando que os autores da obra desconheciam que o terreno era alheio, ou que foi autorizada a sua incorporação pelos donos do prédio-mãe, ou, pelos autores, então, já titulares, de facto, da quarta parte fraccionada do prédio, encontra-se prejudicada a possibilidade de existência de boa-fé, por parte daqueles.
2. A acessão deve limitar-se ao, estritamente, indispensável para que o dono da obra adquira a parcela de terreno onde a mesma se incorporou, sendo certo que o fim da norma contende com a criação de uma nova unidade económica resultante da implantação da obra, só podendo abranger a totalidade do prédio em que se incorporam as obras, se estas se integrarem na aludida unidade económica do prédio.

3. Estando subjacente á construção de uma habitação, numa parcela fraccionada de prédio rústico, uma operação de loteamento, o Tribunal deve certificar-se se a aquisição parcelar, por efeito da acessão industrial imobiliária, não consolida uma situação desconforme com as regras de direito público que o disciplinam, mas nunca combater essa dificuldade, tornando extensível, à totalidade do prédio, o direito de aceder, sob pena de as imposições do Direito Público subverterem, condicionando em sentido diverso, a decisão do conflito privado intersubjectivo.

4. Sendo a acessão um direito cuja concretização depende da manifestação de vontade nesse sentido, por parte do respectivo titular, será este o momento a atender na fixação do montante da indemnização, porquanto é, nessa ocasião, que se opera a conversão em dinheiro do valor que a parcela de terreno tinha antes da incorporação, afastando-se a ideia de actualização do montante a pagar pelo beneficiário da acessão industrial imobiliária.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A... e mulher, B..., residentes na Rua Jean Franções Boch, nº 24, lote 1244, Luxemburgo, propuseram a presente acção, sob a forma de processo sumário, contra C... e mulher, D..., ambos residentes em Moinho de Vento, Almalaguês, Coimbra, pedindo que, na sua procedência, os réus sejam condenados a reconhecer os autores como únicos donos e legítimos possuidores do prédio rústico, sito na Covã, composto de vinha, duas oliveiras e cultura com a área de 2660 m2, inscrito na respectiva matriz sob o nº 3288, com o valor tributável de 7056$00, a confrontar do Norte com José da Silva Pereira Escola, do Nascente com José Simões Baltazar, do Sul com caminho e do Poente com Manuel Pires Correia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 66379 do Livro B174 e, como tal, condenados a demolir todas as edificações feitas no prédio, entregando-o, livre e devoluto.
Alegam, para tanto, a aquisição desse prédio, no ano de 1995, mediante escritura de justificação e doação, sendo transmitentes E... e mulher, F..., aquisição essa que se acha registada, definitivamente, a favor dos autores donatários, que, assim, beneficiam da presunção de propriedade, tendo os réus procedido à construção de uma casa de habitação, composta de rés-do-chão e 1º andar, com superfície coberta de 130 m2, durante os anos de 1982 e 1983, sendo certo que, há cerca de 5 anos, realizaram alterações, construindo mais uma garagem, servida de terraço, que serve, actualmente, de oficina de reparação automóvel para o réu marido, e, junto a esta, um galinheiro e arrumos, efectuando, ainda, a abertura de uma serventia, cimentada e delimitada por um murete, com a largura de três metros, para dar acesso à garagem que fica nas traseiras da casa, tendo as construções mais recentes sido feitas, sem o conhecimento e consentimento de doadores e autores, desconhecendo estes se os réus foram autorizados a construir a dita casa pelos, então, proprietários e doadores.
Deduzindo contestação-reconvenção, os réus suscitaram o incidente de intervenção principal provocada dos doadores, como associados dos reconvindos, pedindo que, na procedência da reconvenção, seja declarado que adquiriram, por acessão, a propriedade do prédio, supra-identificado, mediante o pagamento da quantia de 750.000$00, e declarada nula e de nenhum efeito a doação feita pelos intervenientes aos autores, por escritura pública de 1995-01-09, ordenando-se o cancelamento de todos os registos efectuados com base em tal doação.
Alegam, para tanto, que o dito prédio, anteriormente à mencionada escritura de doação, sensivelmente, em 1978, foi doado, por E... e F..., aos seus quatro filhos, C..., o ora réu marido, B..., a ora autora mulher, G... e H..., oralmente, mas com divisão material, em quatro partes iguais, ficando cada um dos donatários proprietários, plenos e exclusivos, de uma das quatro partes em que o prédio foi seccionado, pelo que os réus tomaram posse da sua parte, iniciando as diligências para construção, que foi principiada, em 1980, e concluída, em 1985, continuando a cultivar o quarto que lhes coube, amanhando a vinha aí existente e inscrevendo o prédio urbano na matriz.
Que o galinheiro e arrumos estão construídos, há mais de cinco anos, e a serventia está aberta, desde data anterior à construção, tendo o interveniente marido e os outros filhos ajudado os réus nas obras de construção, quer da casa, quer dos anexos, sendo certo que a casa tem hoje um valor não inferior a 30.000.000$00, enquanto que, à data da sua conclusão, em inícios de 1985, valia cerca de oito mil contos, e o prédio rústico onde se encontra implantada, à data da conclusão da casa, não valia mais do que 750.000$00, pois só após a sua edificação foi alcatroada a estrada que ali dá acesso e conduzida energia eléctrica e água canalizada.
Na sua resposta, os autores alterando, em parte, o vertido, inicialmente, aceitam a divisão do prédio em lotes, ficando dois deles, junto à estrada, com uma frente de 16,15 m e a profundidade de 41,176 m, cada, e os outros dois, que tinham a mesma dimensão, ficariam nas traseiras daqueles, sendo atribuído aos réus um dos lotes, junto à estrada, aos autores outro, também, junto à estrada, a Poente, e a cada um dos outros irmãos um lote, situado nas traseiras dos dois primeiros.
Que foram autorizados a construir no lote de 665 m2, mas, em Março de 1985, através do modelo 129, os réus requereram, malevolamente, a inscrição matricial do terreno, em seu nome, como se tivesse 2660m2 (área total), e, aproveitando-se da ausência dos autores no estrangeiro e do alheamento dos irmãos, relativamente aos seus lotes, procederam a alterações e ampliações, há cerca de 6 a 7 anos, clandestinamente, passando a ocupar com as construções e respectivos logradouros e acessos, uma área superior à do «lote» onde estavam autorizados a construir.
Assim, os autores aceitam que os réus adquiram, por acessão industrial imobiliária, o lote ou parcela de terreno correspondente a 1/4 do prédio, que lhes foi, verbalmente, doado para construção, devendo desocupar e entregar, livre e devoluta, a restante área que ultrapasse os limites de tal parcela.
Concluem no sentido da parcial procedência da reconvenção, reconhecendo-se aos réus a aquisição, por acessão, de tal parcela, mediante o pagamento aos autores da quantia de 1.734.000$00, com a consequente redução do pedido reconvencional, opondo-se ao incidente de intervenção principal.
A sentença julgou a presente acção, parcialmente, improcedente, pela procedência da excepção de acessão imobiliária e, parcialmente, procedente o pedido reconvencional deduzido e, em consequência, condenou os réus no pedido de reconhecimento dos autores como donos e legítimos proprietários do prédio supra-identificado, mas, por procedência da excepção de acessão imobiliária, condicionada ao pagamento da contrapartida de 3 740,90 (três mil setecentos e quarenta euros e noventa cêntimos), actualizada de harmonia com os índices de preços do Instituto Nacional de Estatística e em função da desvalorização da moeda, desde 1985, reconhecendo-lhes o direito de o adquirir, mediante tal contrapartida, absolveu-os do pedido de demolição das edificações efectuadas no aludido prédio e da sua entrega aos autores, livre e devoluto, declarando ainda que os réus adquiriram, por acessão, a propriedade do mesmo prédio, mediante o pagamento aos autores-reconvindos, e não aos intervenientes reconvindos, da quantia de € 3 740,90 (três mil setecentos e quarenta euros e noventa cêntimos), actualizada de harmonia com os índices de preços do Instituto Nacional de Estatística e em função da desvalorização da moeda, desde Julho de 1985, absolvendo os autores-reconvindos e os intervenientes-reconvindos do pedido de declaração da nulidade da escritura pública de 9 de Janeiro de 1995 e bem assim como do pedido de cancelamento dos registos efectuados com base na doação.
Desta sentença, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Devem ser alteradas as respostas dadas aos quesitos n°s 7,13 e 16 da base instrutória.
2ª - Ao quesito 7o deve ser dada a seguinte resposta: "provado que aquando do referido nas alíneas C) e D), dos factos assentes, os quatro filhos decidiram que os lotes dos autores e dos réus ficariam cada um, com uma área igual de 665m2.
3ª - " Ao quesito 13, deverá ser dada a seguinte resposta "O galinheiro e arrumos referidos na alínea J) dos factos assentes foi construído entre 1991 e 1998, com o esclarecimento de que tais construções são as representadas na planta de folhas132, junto à moradia".
4ª - Ao quesito 16 deverá ser dada a seguinte resposta, "o galinheiro e arrumos referidos na alínea J) dos factos assentes foram construídos entre 1991 e 1998, com o esclarecimento de que tais construções são apenas as representadas na planta de folhas 132, junto à moradia e não as construções representadas ao fundo do lote e separadas fisicamente das restantes, uma vez que estas foram construídos em 2004".
5ª - Tais respostas fundam-se na análise dos documentos juntos a folhas 132,191 a 201 e nos depoimentos das testemunhas: Eduardo Oliveira Fachada, depoimento este, que está registado na cassete n°1, lado A, rotações 0000 a 1543, da testemunha José Martins Rosado, cujo depoimento se encontra gravado na
cassete n°1, Lado A, rotações - 1544 a 2309, da testemunha Laurentino Lousa Dias, gravado na cassete n°1, Lado A, rotações - 2310 a 2528 e cassete n°1,Lado B, rotações - 0000 a 1798.
6ª - A acessão deve verificar-se não em relação à totalidade do prédio mas apenas relativamente à parcela ou lote com a área de 665 m2, com a largura de 16,15m e a profundidade de 41,176m.
7ª - Pois, só relativamente às construções edificadas naquele lote é que se verifica o requisito da boa-fé.
8ª - Constituindo tal lote com as construções nele existentes uma nova unidade económica independente, susceptível de aquisição autónoma pelo autor da incorporação.
9ª - Devem ser demolidas as construções efectuadas para além dos limites daquele lote, por não estarem ao abrigo da boa-fé, e excederem os limites do terreno no qual os réus tinham sido autorizados a construir.
10ª - Devem os réus pagar aos autores como contrapartida, o valor que tal lote tinha à data do início das construções, ou seja, em 1980, actualizada de harmonia com os índices de preços do Instituto Nacional de Estatística e em função da desvalorização da moeda, desde aquela data até ao seu integral pagamento.
11ª - A liquidação do valor do lote em 1980, bem como a sua actualização deverão ser relegadas para execução de sentença.
12ª - Mostram-se violadas as normas dos artigos 1340°, n°1 e 1341° do CC.
Nas suas contra-alegações, os réus entendem que o recurso deve ser julgado, totalmente, improcedente, confirmando-se, integralmente, a sentença recorrida.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II - A questão da extensão do direito de acessão.

I

DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Defendem os autores que devem ser alteradas as respostas dadas aos quesitos n°s 7,13 e16 da base instrutória.
Resulta da audição da prova objecto de gravação, no que contende com os pontos da matéria de facto em que os autores suscitaram a respectiva alteração, que C..., no seu depoimento de parte, que, em matéria que lhe seja desfavorável, como acontece, funciona como confissão, nos termos do preceituado pelo artigo 352º, do Código Civil (CC), disse que “é verdade que quando fizeram a divisão em quatro lotes concordaram todos em como os mesmos ficavam, cada qual, com a área de 665 m2, sensivelmente, tendo posto marcos na parte da frente do prédio, que dividiram em quatro fatias”.
Assim sendo, deve ser modificada a actual redacção do ponto nº 7, por forma a que, em vez de constar da mesma que “aquando do referido nas alíneas C) e D) dos factos assentes, os quatro filhos decidiram que os lotes ficariam, cada um, com uma área igual, por referência à área global do prédio então constante da matriz e que era de 2660m2”, passe a figurar que “aquando do referido nas alíneas C) e D) dos factos assentes, os quatro filhos decidiram que os lotes de todos eles, incluindo o dos autores e o dos réus, ficariam, cada um, com uma área de 665 m2, sensivelmente”.
Por seu turno, relativamente á matéria dos pontos nºs 13 e 16 da base instrutória, há que registar o depoimento da testemunha Eduardo Fachada, residente no local da situação do prédio, que referiu que “pensa que a casa dos réus foi feita em 2/3 anos, e que agregada á mesma foram construídas arrumações”, da testemunha José Rosado, empreiteiro e residente no local, que disse “que os barracões, exceptuando o último, que foi feito no ano passado, foram construídos depois de os réus terem feito a casa”, da testemunha Laurentino Dias, irmão do autor e, também, residente no local, que esclareceu que “a construção foi aos poucos, depois da casa e, por aí abaixo, foram avançando anexos, aos poucos, o último nem sequer há meio ano, mas que os anexos só começaram, vários anos depois da casa, que demorou anos a construir”.
A testemunha Armindo Correia, primo de ambas as partes e residente no local, disse que “a construção da casa começou em 1978 e demorou, vários anos, enquanto que as restantes construções, anexos e curral do porco foram feitas, gradualmente, com excepção do barracão que está no fundo, que foi remodelado há meses”.
A testemunha Manuel Machado, pai da ré e residente no local, disse que “a construção demorou onze anos, entre 1977/78 e 1988, e o anexo, onde o réu guarda o carro, demorou cerca de dez anos a fazer, depois de ter acabado a casa, e que depois desta fez a garagem, depois o barracão das galinhas, onde põe a máquina de frezar, e, há cerca de três meses, um novo barracão com telhado, exceptuando os quatro pilares que já tinha”.
Finalmente, a testemunha Martinho Cunha, empreiteiro e irmão da ré, disse que “a construção da casa demorou a acabar, dez ou mais anos, e que depois desta fez a garagem, depois o galinheiro e depois o barracão”.
Assim sendo, através da análise crítica dos depoimentos acabados de referir, importa, desde logo, afastar a versão da testemunha Manuel Machado, face à sua manifesta inconsistência, porquanto, tendo a construção, segundo disse, demorado até 1988, e o anexo, onde o réu guarda o carro, terminado, cerca de dez anos depois, e, seguidamente, ainda o barracão das galinhas, onde põe a máquina de frezar, então, estas duas última construções já teriam acontecido, após a propositura da acção, que ocorreu em Julho de 1998, totalmente, ao arrepio da versão das partes nos articulados.
Por outro lado, enquanto que a testemunha Eduardo Fachada diz que a casa foi construída, em dois ou três anos, as testemunhas Laurindo Dias, Armindo Correia e Martinho Cunha dizem que a casa demorou anos a construir e que os anexos só começaram, vários anos depois da casa, ou foram feitos, gradualmente.
Assim sendo, os elementos de prova recolhidos em audiência, sem esquecer o teor dos documentos existentes nos autos, não permitem, razoavelmente, fixar a realização das construções, referidas na alínea J) dos “factos assentes”, no período temporal de cinco anos, imediatamente anterior à data da propositura da acção, mas antes no marco temporal anterior a este último, em tributo à convicção colhida pelo Tribunal «a quo», dimanada do princípio da imediação processual, mas que, de todo em todo, não resulta abalada pela reapreciação da prova efectuada por esta Relação.
Como assim, manter-se-ão intactas as respostas aos pontos nºs 13 e 16 da base insrtrutória.
Nestes termos, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados os seguintes factos, a que se adita um outro, não submetido a alíneas ou a números:
Foi outorgada escritura pública de justificação e doação, em 9 de Janeiro de 1995, no 3º Cartório Notarial de Coimbra, através da qual E... e esposa, F..., na qualidade de primeiros outorgantes declaram doar a A... e mulher, B..., que declaram aceitar, o seguinte imóvel: prédio rústico sito na Covã, composto de vinha, duas oliveiras e cultura com a área de 2660 m2, inscrito na respectiva matriz sob o nº 3288, com o valor tributável de 7056$00, a confrontar do Norte com José da Silva Pereira Escola, do Nascente com José Simões Baltazar, do Sul com caminho e do Poente com Manuel Pires Correia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 66379 do Livro B-174 – A).
Na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, descrição nº 1411, encontra-se inscrita, desde 28-03-95, a aquisição do prédio descrito na antecedente alínea, a favor dos aqui autores, através da inscrição G1, sendo a causa de aquisição a doação – B).
E... e F..., antes da escritura referida na antecedente alínea A), oralmente, doaram aos seus quatro filhos (C..., aqui réu marido, B..., aqui autora mulher, G... e H...), o prédio ali descrito - C).
O sentido dessa doação foi o de que cada um daqueles quatro filhos ficasse dono exclusivo e pleno de cada uma das quatro partes em que o prédio foi seccionado – D).
Na altura, dividiu-se o terreno em quatro áreas idênticas e cada um daqueles irmãos tomou posse da parcela que lhe coube – E).
Em concreto, os réus ali começaram por arrancar as videiras no local onde iriam implantar a sua casa, iniciando, de imediato, as diligências necessárias à respectiva construção (nomeadamente a elaboração dos competentes projectos, a obtenção das autorizações necessárias), etc. e continuando a cultivar o dito terreno, na parte restante do quarto que lhes coube, amanhando a vinha então ali existente – F).
E os réus construíram, numa parcela de terreno do prédio descrito na antecedente alínea A), a sua casa de habitação, composta por rés-do-chão e primeiro andar e com uma superfície coberta de 130 m2 – G).
O interveniente marido, bem como os outros seus filhos, ajudaram o réu na construção da casa e anexos – H).
Em 1985, os réus, através do modelo 129, fizeram a competente participação da casa, na Repartição de Finanças de Coimbra, sendo que, actualmente, tal casa se encontra inscrita, na 1ª Repartição de Finanças de Coimbra, a favor do réu marido, sob o art. 1547, da matriz predial urbana da freguesia de Almalaguês – I).
Os réus procederam a consideráveis alterações daquela sua casa de habitação, construindo mais uma garagem, servida de terraço, e, junto à referida garagem, um galinheiro e arrumos e cimentaram e delimitaram com murete uma serventia, com a largura de três metros, para dar acesso à garagem – J).
A casa, referida na alínea G), à data da sua conclusão valia, seguramente, 8 mil contos – L).
Actualmente, a referida casa vale 30.000 contos – M).
O referido nas alíneas C) e D) da matéria assente aconteceu entre 1978 e 1980 – 1º e 2º .
Os réus iniciaram a construção da casa de habitação, em 1980 – 3º.
A casa só ficou, completamente, construída, em 1985 – 6º.
Aquando do referido nas alíneas C) e D) dos factos assentes, os quatro filhos decidiram que os lotes de todos eles, incluindo o dos autores e o dos réus, ficariam, cada um, com uma área de 665 m2, sensivelmente – 7º.
O terreno confina a Sul com estrada, tendo uma frente confinante com ela de 32,30 m – 8º.
Na divisão dos lotes foi acordado que dois deles ficariam junto à estrada e com uma frente de 16,15 e a profundidade de 41,76 m – 9º.
E os outros dois ficariam nas traseiras daqueles dois primeiros – 10º.
Aos réus foi atribuído um dos lotes, junto à estrada, a Poente – 11º.
E aos autores o outro lote, junto à estrada – 12º.
Com as construções, referidas na alínea J), a largura do lote passou a ser de 17,95 m – 14º.
Em profundidade, os réus ocuparam, também, uma área superior aos 41,76 m – 15º.
O galinheiro e os arrumos, referidos na alínea J) dos factos assentes, foram construídos, há mais de cinco anos, por referência à data do articulado da contestação – 16º.
A serventia já existia, aquando da construção da casa dos réus – 18º .
O prédio rústico onde a casa dos réus se encontra implantada, à data da conclusão desta, não valia mais do que 750.000$00 – 19º.
Os réus-reconvintes obtiveram aprovação camarária do projecto de construção da casa de habitação, a que se alude em F) e G) – Documentos de folhas 52 a 55.

II

DA ACESSÃO

Sustentam os autores que a acessão se deve restringir à parcela ou lote do prédio com a área de 665m2, a largura de16,15m e a profundidade de 41,176m, e não à totalidade do mesmo, porquanto, tão-só, relativamente às construções edificadas naquele lote, é que se verifica o requisito da boa-fé, devendo ser demolidas as construções efectuadas para além dos limites do mesmo lote, por não estarem a coberto da boa-fé, e excederem os limites do terreno no qual os réus tinham sido autorizados a construir.
A acessão constitui uma causa de aquisição originária retroactiva do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreendendo a sua noção legal o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa numa outra coisa da titularidade de outra, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1316º, 1317º, d) e 1325º, todos do CC.
Tratando-se da construção de um edifício, como ocorre no caso em apreço, releva, essencialmente, o disposto no artigo 1340º, nºs 1, 2 e 3, do CC, segundo o qual, se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio e o valor que a mesma tiver trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes da obra, mas se o valor acrescentado for menor, esta pertencerá ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o seu autor do valor que tinha ao tempo da incorporação, enquanto que se o valor acrescentado pela obra for igual ao do terreno, haverá licitação entre ambos.
Como assim, constituem elementos, essencialmente integrantes, da acessão industrial imobiliária, acabada de caracterizar, a construção de uma obra, que essa obra haja sido efectuada em terreno, a sua implantação em terreno alheio, que da obra tenha resultado uma incorporação, ou seja, a constituição definitiva de um todo único entre a construção e o terreno, o valor da obra e do terreno, para efeitos de determinação do adquirente desse todo, por forma a que o valor da obra seja superior ao valor que o terreno tinha antes da incorporação, e, finalmente, a actuação de boa-fé, por parte do autor da obra, isto é, da construção urbana.
Face à materialidade que ficou demonstrada, encontram-se verificados os quatro primeiros pressupostos, acabados de considerar, ou seja, a construção de uma obra, efectuada em terreno, a sua implantação em terreno alheio e a constituição definitiva de um todo único entre a construção e o terreno.
A questão complica-se, porém, na perspectiva dos autores, em relação aos requisitos do valor da obra e do terreno, para efeitos de determinação do adquirente desse todo, e da boa-fé.
Efectivamente, o requisito do valor relativo do terreno, antes da implantação da construção e desta própria é, também, imprescindível à procedência da aquisição do direito de propriedade, com fundamento na acessão industrial imobiliária, sendo certo, outrossim, que, para que os réus possam ver reconhecido o seu direito à acessão, necessitam de provar que o valor das obras é superior ao valor do prédio.
Efectivamente, ficou demonstrado que o valor do prédio rústico onde a casa dos réus foi implantada, após a conclusão desta edificação, era de 750000$00, enquanto que a construção, na mesma ocasião, valia, seguramente, 8000000$00.
Como assim, está verificado, no caso concreto, o requisito do valor da obra e do terreno.
Por seu turno, nos termos do estipulado pelo nº 4, do artigo 1340º, do CC, entende-se que houve boa-fé se o autor da obra desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.
Neste particular, acentue-se que ficou provado que os réus procederam à construção da sua casa de habitação, composta por rés-do-chão e primeiro andar, com uma superfície coberta de 130 m2, numa parcela de terreno do prédio rústico em discussão, com o consentimento, conhecimento e autorização do interveniente marido e dos outros seus filhos, que ajudaram os réus na construção da casa e dos anexos.
Com efeito, os réus-reconvintes agiram de boa fé, relativamente à construção da sua habitação, que decorreu entre 1980 e 1985, por força da doação verbal efectuada pelos progenitores comuns aos seus quatro filhos, incluindo a autora mulher e o réu marido, de modo a que, cada um deles, ficou dono, exclusivo e pleno, de cada uma das quatro partes em que o prédio-mãe foi seccionado, cada uma delas, com uma área de 665 m2, sensivelmente, tomando, cada qual, posse da parcela que lhe coube, o que, no caso dos réus, correspondia a uma figura geométrica irregular, com de 16,15m de largura, por 41,76 m de profundidade.
Assim sendo e, neste particular, inteiramente de acordo com a sentença recorrida, aos réus-reconvintes assiste o direito de adquirir a propriedade da parcela de terreno que ocupam, através da acessão industrial imobiliária, onde procederam à construção da sua habitação, desde 1978 ou 1980.
Porém, os réus-reconvintes, para além da construção da sua casa de habitação, procederam à edificação de uma garagem, servida de terraço, e, junto à referida garagem, de um galinheiro e arrumos, tendo ainda cimentado e delimitado com um murete uma serventia, com a largura de três metros, para dar acesso à garagem, alterando, em consequência, as dimensões do lote que haviam sido consensualizadas entre os progenitores comuns e todos os quatro irmãos, seus filhos, de modo que o lote passou a ter 17,95 m de largura e uma profundidade superior a 41,76 m, sendo certo, outrossim, que o galinheiro e os arrumos foram construídos, há mais de cinco anos, por referência à data do articulado da contestação, ou seja, anteriormente, a Outubro de 1993, e, portanto, também antes da celebração da escritura de justificação e doação.
Contudo, não se provou que esta incorporação tivesse ocorrido com autorização expressa dos doadores do prédio rústico, seus proprietários, em parte do qual as aludidas construções suplementares tiveram lugar.
Assim sendo, não se demonstrando que os réus, autores da obra, desconheciam que o terreno era alheio, ou que foi autorizada a sua incorporação pelos donos do prédio-mãe, ou, se se quiser, pelos autores, então, já titulares, de facto, da quarta parte fraccionada do prédio, junto à estrada, contígua à fatia dos réus, encontra-se, portanto, prejudicada a possibilidade de existência de boa-fé, por parte daqueles, cujo ónus de prova, aliás, a si competia, nos termos do preceituado pelo artigo 342º, nº 1, do CC, e, em consequência, em termos de, eventualmente, poderem não beneficiar da aquisição da propriedade do prédio, com fundamento no instituto da acessão industrial imobiliária( STJ, de 14-12-1994, CJ, Ano II, 1994, T3, 180; e de 6-3-1986, BMJ nº 355, 373 e ss. ), no que respeita, como é óbvio, às edificações a que procederam, após a construção da sua casa de habitação.
Aliás, a autorização para a pratica de actos materiais, em que a acessão se traduz, tanto pode ser atribuída, através de uma declaração de vontade expressa, realizada pelo proprietário da coisa, como resultar de uma manifestação de vontade tácita, como seja a de um negócio que pretende envolver a disposição ou a oneração do prédio, a favor do autor da incorporação, designadamente, de um contrato translativo nulo, por falta de forma( Pires de Lima, RLJ, Ano 100º, 12 e ss; STJ, de 16-10-03, http://www.stj.pt/jur files/seccoes files/civeisOut2003.html), ou de um contrato-promessa em que se convencione a imediata entrega da coisa ao promissário, para que dela se sirva, como se já lhe pertencesse( Vaz Serra, RLJ, Ano 102º, 167 e ss.).
Tratando-se, «in casu», de uma situação em que o dono do prédio rústico não autorizou a incorporação, porquanto os réus, como bem se demonstrou, conheciam que o terreno onde edificaram as construções anexas pertencia aos autores ou, de todo em todo, aos progenitores comuns, o momento, juridicamente atendível, para a apreciação da boa fé do autor da obra coincide com o momento fáctico da incorporação da acessão, devendo existir, no momento da construção, enquanto esta se realiza, e cessando, com a citação do mesmo construtor para a acção de reivindicação desse terreno( Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 164; STJ, de 2-2-73, BMJ nº 224, 162; e de 12-2-80, BMJ nº 294, 341.), se, anteriormente, tal já não tivesse acontecido, como se demonstrou.
Com efeito, contrariamente ao que acontece com a hipótese da prescrição, a boa fé, em matéria de frutos, benfeitorias e acessão, deve ser contínua, deixando de se aplicar ao possuidor, desde o momento em que ela cessa, o regime estabelecido para a posse de boa fé, que só se mantém, na regulamentação dos actos que, até então, tenham acontecido.
E a boa fé deixa de existir, desde o momento em que se prove que o possuidor conhece os vícios da sua posse, ou seja, que está a lesar com a sua posse os direitos de outrem( Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 38, 20 a 22; Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, 318; Vaz Serra, Anotação ao Acórdão do STJ, de 17-3-70, RLJ, Ano 104º, 116.).
A sentença recorrida considerou, a propósito das construções adicionais à habitação, ultrapassado o obstáculo da sua aquisição, por acessão “invertida”, porquanto, não obstante a falta da boa fé da ocupação da parcela de terreno alheio, a acessão deveria referir-se à totalidade do prédio, e não, apenas, à da parcela onde foi edificada a habitação.
Dispondo sobre a designada acessão invertida, o artigo 1343º, nº 1, do CC, torna esta figura dependente da verificação de determinados pressupostos substantivos, que se reconduzem à construção de um edifício, em terreno próprio, com a ocupação de uma parcela de terreno alheio, realizada de boa fé, sem oposição do proprietário, verificada pelo decurso do prazo de três meses, a contar do início da ocupação, mediante o pagamento do valor do terreno e da reparação do prejuízo causado.
Muito embora a noção de edifício não deve ser redutora, mas antes compreendendo qualquer construção que tenha incorporação estável no solo e seja susceptível de alguma utilização, desde que levantada, apenas, em parte, no terreno vizinho, enquanto que a outra parte se situa no terreno do dono da construção( Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 171. ), e os autores, ou os progenitores comuns, por comodidade de raciocínio, enquanto proprietários do terreno ocupado com a construção, não tenham deduzido oposição a esta, no decurso do prazo de três meses, a contar do início da ocupação, considerando ainda que o não pagamento pelos réus do valor do terreno ocupado não pode impedir, só por si, a acessão, pois que este requisito é susceptível de ser suprido, não se verificando a boa fé do construtor na ocupação do terreno alheio, não se acham preenchidos os requisitos legais exigidos para a aquisição da propriedade de parte da parcela, onde se levantaram as construções adicionais, pela via da acessão industrial imobiliária invertida.
Defende-se, igualmente, na sentença apelada, a incidência da acessão sobre a parcela de terreno onde foi incorporada a obra, e não sobre a totalidade do prédio ode ocorreu a incorporação, desde que dela resulte uma unidade independente, mas, também, facultativamente, apenas quando tal for a vontade do acedente, não estando em causa a violação de normas limitadoras de fraccionamento de prédios rústicos, ou loteamentos, na medida em que corresponda a um destaque.
Dispõe o já citado artigo 1340º, nº 1, do CC, que “se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio…e o valor que a obra tiver trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes da obra…”.
Quer isto dizer, salvo sempre melhor entendimento, tendo presente que a acessão significa um sacrifício para o dono do terreno, uma vez que constitui uma limitação imposta ao seu direito de propriedade, e a lei só, excepcionalmente, consente limitações deste género, nomeadamente quando apenas estão em jogo interesses privados, deve, como se afigura razoável, limitar-se ao, estritamente, indispensável para que o dono da obra adquira a parcela de terreno onde a mesma se incorporou, sendo certo que o fim da norma contende com a criação de uma nova unidade económica resultante da implantação da obra e, aliás, também, jurídica, porquanto os réus obtiveram a inscrição da casa de habitação, a seu favor, na competente matriz predial urbana, com um artigo autónomo.
Esta interpretação restritiva da norma do nº 1, do artigo 1340º, do CC, no sentido de que a aquisição pode abranger a totalidade do prédio ou apenas a parte em que se incorporam as obras, conforme se integram na unidade económica do prédio ou, pelo contrário, fazem surgir uma unidade económica distinta, é aquela que se defende e que, aliás, tem vindo a merecer o acolhimento da grande maioria da jurisprudência dos tribunais superiores( STJ, de 4-2-2003, CJ (STJ), Ano XI, T1, 76; de 17-2-2000, CJ (STJ), Ano VIII, T1, 105; de 10-2-2000, BMJ nº 494, 347; de 5-3-96, CJ (STJ), Ano IV, T1, 129; e de 16-4-98, BMJ nº 476, 428; Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, CJ (STJ), Ano IV, T1, 23; RL, de 24-1-2002, CJ, Ano XXVII, T1, 87; RC, de 25-5-99, CJ, Ano XXIV, T3, 30; RC, de 7-11-89, CJ, Ano XIV, T5, 50; de 8-1-85, CJ, Ano X, T1, 56; RP, de 3-4-95; BMJ nº 446, 344.), em oposição a uma corrente que procede à sua interpretação literal, segundo a qual a solução a encontrar dependeria do valor das coisas incorporadas, em relação com o valor da totalidade do prédio, adquirindo-o o autor da incorporação, se valessem mais, enquanto que, se valessem menos, as coisas incorporadas seriam adquiridas pelo proprietário deste( Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 165; STJ, de 25-7-75, com a anotação discordante de Sá Carneiro, RT, Ano 94º, 44. ).
Por outro lado, do ponto de vista da razoabilidade, nem seria aceitável outro entendimento, pois que, ao contrário, os réus, que construíram a sua casa de habitação, com uma superfície coberta de 130 m2, foram avançando, gradualmente, com a edificação de outras construções, ultrapassaram a área da parcela que, consensualmente, lhes estava afectada, com 665 m2, preparando-se, finalmente, para adquirir, por acessão, a totalidade do prédio rústico, com a superfície de 2660 m², acabando por vir a obter, pela via da acessão industrial, o que pela via negocial poderiam não conseguir, o que constituiria uma situação de manifesto abuso de direito, que o ordenamento jurídico, na expressão consagrada pelo artigo 334º, do CC, terminantemente, repele.
Entendimento diverso só seria admissível se os réus-reconvintes tivessem provado, o que nem sequer alegaram, v.g., que todo o terreno rústico lhes tinha sido cedido, para nele construírem a sua habitação, com uma exploração agrícola complementar.
Trata-se, assim, de uma situação que ocorre, em qualquer caso em que o direito de acessão a favor do autor da incorporação em que a nova unidade económica criada á volta da obra se traduz, não abranja toda a área do prédio onde a intervenção ocorreu.
A aplicação prática desta orientação não pode fazer-se, porém, ao arrepio das limitações impostas por lei que condicionam o fraccionamento de prédios rústicos e, também, das que derivam do regime legal das operações de loteamento urbano, devendo o julgador, antes de se decidir pelo reconhecimento de uma aquisição parcelar, por efeito da acessão industrial imobiliária, certificar-se de que se não irá consolidar uma situação desconforme com as aludidas regras, tendo em vista o princípio da harmonia do sistema jurídico, por forma a que os vários institutos, quer de direito público, quer de direito privado, convergentes na questão decidenda, não se entrechoquem, sob pena de o Tribunal dever recusar a sobredita aquisição parcelar, não obstante a consideração isolada das normas do direito de acessão apontarem em sentido contrário, mas nunca, em caso algum, com o devido respeito, como acontece com a sentença recorrida, combater essa dificuldade, considerando que o direito de aceder dos réus-reconvintes deve operar, relativamente à totalidade do prédio, sob pena de as imposições do Direito Público subverterem, condicionando em sentido diverso, a decisão do conflito privado intersubjectivo.
Efectivamente, o loteamento, isto é, o fraccionamento de terrenos para a construção, está sujeito a legislação especial, dependendo de licença camarária, sendo fundamental sobre a matéria o disposto no DL nº 289/73, de 6 de Junho, cujo artigo 1º estipula que “a operação que tenha por objecto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais e destinados imediata e subsequentemente à construção depende de licença da câmara municipal da situação do prédio ou prédios”, acrescentando, porém, o artigo 8º, nº 1, do DL nº 194/83, de 17 de Maio, que restringiu o âmbito de aplicação daquele primeiro preceito, que “não constitui operação de loteamento abrangida pelo DL nº 289/73, de 6 de Junho, a celebração de negócios jurídicos que tenham como efeito a transmissão de terrenos para construção com projecto aprovado pela câmara municipal”.
Assim sendo, a divisão do prédio rústico pelos intervenientes, em quatro fracções, por cada um dos seus quatro filhos, ocorrida entre 1978 e 1980, numa das quais os réus construíram a sua casa de habitação, que concluíram em 1985, na sequência de prévia aprovação pela Câmara Municipal de Coimbra do respectivo projecto de edificação, não constituiu, enquanto tal, uma operação de loteamento, nos termos e para os efeitos do preceituado pelo DL nº 289/73, de 6 de Junho, normativo legal aplicável, em função do momento relevante da consolidação da incorporação, em que a acessão se traduz( STJ, de 12-2-80, BMJ nº 294, 341.).
Como assim, a aquisição por acessão, pelos réus, da parcela de terreno em causa não está, no caso «sub júdice», porque de operação de loteamento se não tratou, dependente de demonstração da emissão de alvará de loteamento, pela Câmara Municipal de Coimbra, ou, por qualquer outra forma, de autorização do destaque.
Porém, os autores sustentam ainda que os réus lhes devem pagar, como contrapartida, o valor que tal lote tinha, à data do início das construções, devidamente actualizado, em função da desvalorização da moeda.
A espécie da acessão industrial imobiliária em análise representa uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento, necessariamente, judicial, em que o pagamento do valor da unidade predial em causa funciona como condição suspensiva da transmissão do direito, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação( Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, CJ (STJ), Ano IV, T1, 20 e 21; STJ, de 4-4-95, BMJ nº 446, 245.).
Considerando, porém, que o montante da indemnização só se define, por via da sentença final de mérito, o princípio da adequação formal aponta no sentido de o autor da obra pagar ou depositar o preço, no prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de caducidade do respectivo direito, aplicando-se, subsidiariamente, a solução consagrada pelo artigo 28º, nº 5, do DL nº 385/88, de 25 de Outubro (Lei do Arrendamento Rural)( Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, CJ (STJ), Ano IV, T1, 26; RL, de 24-1-02, CJ, Ano XXVII, T1, 87.).
Para saber se é possível a sua actualização, importa, sobretudo, determinar se se trata de uma obrigação pecuniária ou de uma dívida de valor, porquanto o artigo 550º, do CC, subordinou o cumprimento das primeiras ao princípio nominalista, segundo o qual “o cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se…pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário”, o que significa que, nesta modalidade de obrigações, é o credor quem suporta o risco da desvalorização da moeda.
Por seu turno, e, em contrapartida, a dívida de valor, sujeita no direito português constituído, ao princípio da sua permanente actualização, em função do valor oscilante da moeda, atento o estipulado pelo artigo 551º, do CC, é uma dívida cujo objecto não é, directamente, uma soma de dinheiro, mas uma prestação de outra natureza, intervindo o dinheiro, apenas, como um objecto temporal ou transitório de referência ou como meio da sua liquidação( Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, 887; Vaz Serra, Obrigações Pecuniárias, 152.), não lhe sendo aplicável, por isso, o princípio nominalista, atento o estipulado pelo artigo 551º, do CC, pelo que, muito embora se venha a converter numa obrigação de dinheiro, enquanto não se cristalizar num montante fixo, o credor da respectiva obrigação escapa á inerente depreciação monetária.
Tratando-se de uma dívida de valor, o montante a pagar pelo beneficiário da acessão deve assumir uma expressão pecuniária actualizada, segundo o valor dos bens no momento da conversão em dinheiro, em relação ao valor que a parcela de terreno, autonomizada como unidade económica, tinha antes da incorporação( STJ, de 10-2-2000, BMJ nº 494, 347; RL, de 24-1-2002, CJ, Ano XXVII, T1, 87; RP, de 4-3-97, CJ, Ano XXII, T2, 177.).
Porém, sendo o direito de acessão, como se disse, um direito cuja concretização depende da manifestação de vontade nesse sentido, por parte do respectivo titular, será este o momento a atender na fixação do montante da indemnização, porquanto é, nessa ocasião, que se opera a conversão em dinheiro do valor que a parcela de terreno tinha antes da incorporação, razão pela qual a interpretação literal decorrente do artigo 1340º, nº 1, do CC, «valor que o prédio tinha antes das obras», deve ceder o seu lugar à interpretação semântica da norma, por forma a manter intacto o espírito e a intenção da lei, por força da qual, em substituição do advérbio de tempo «antes» se coloque a preposição simples «sem», lendo-se o segmento normativo em causa como o «valor que o prédio tinha sem as obras», nunca reportado à data da decisão proferida sobre a acção, mas sempre pelo seu valor antes do começo das obras, mesmo sem a mais valia das obras realizadas( Antunes Varela, Acessão Industrial Imobiliária, CJ (STJ), Ano VI, T2, 5 e ss.; STJ, de 5-3-96, CJ (STJ), Ano IV, T1, 129, RL, de 21-1-2003, CJ, Ano XXVIII, T1, 64.).
Deve, pois, afastar-se a ideia de actualização do montante a pagar pelo beneficiário de acessão industrial imobiliária, a que alude o artigo 1340º, nº 1, do CC.
Efectivamente, dispõe o artigo 1340º, nº 1, do CC, que “se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio…e o valor que as obras…tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras,…”.
Assim sendo, é a própria lei que, aparentemente, ao contrário do defendido pelos apelantes, determina que o autor da incorporação pagará ao dono do prédio o valor que este tinha antes da realização das obras, não sendo de actualizar o valor do prédio urbano a pagar pelo autor da obra( Neste sentido, Antunes Varela, Acessão Industrial Imobiliária, CJ (STJ), Ano VI, T2, 11 e 12; STJ, de 17-3-98, CJ (STJ), Ano VI, T1, 134; RL, de 21-1-2003, CJ, Ano XXVII, T1, 64. ).
A quantia que os réus têm a pagar aos autores consiste, assim, em 1/4 do valor que o prédio tinha antes da realização das obras, ou seja, de 187500$00 (750000$00:4=187500$00), a que corresponde o contra-valor em euros de 935,24€ (novecentos e trinta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos).
Ora, valendo a parcela destacada do prédio, antes da realização das obras, a quantia de 935,24€, foi o próprio Tribunal que determinou a sua actualização, de harmonia com os índices de preços do Instituto Nacional de Estatística, e em função da desvalorização da moeda desde 1985, com referência ao meio do ano, por não se ter apurado, concretamente, a data precisa em que, nesse ano, foi concluída, entendimento e critério que se têm de aceitar, em virtude de, nesta parte, a sentença não ter sido objecto de recurso.

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CONCLUSÕES:

I - Não se provando que os autores da obra desconheciam que o terreno era alheio, ou que foi autorizada a sua incorporação pelos donos do prédio-mãe, ou, pelos autores, então, já titulares, de facto, da quarta parte fraccionada do prédio, encontra-se prejudicada a possibilidade de existência de boa-fé, por parte daqueles.
II – A acessão deve limitar-se ao, estritamente, indispensável para que o dono da obra adquira a parcela de terreno onde a mesma se incorporou, sendo certo que o fim da norma contende com a criação de uma nova unidade económica resultante da implantação da obra, só podendo abranger a totalidade do prédio em que se incorporam as obras, se estas se integrarem na aludida unidade económica do prédio.
III – Estando subjacente á construção de uma habitação, numa parcela fraccionada de prédio rústico, uma operação de loteamento, o Tribunal deve certificar-se se a aquisição parcelar, por efeito da acessão industrial imobiliária, não consolida uma situação desconforme com as regras de direito público que o disciplinam, mas nunca combater essa dificuldade, tornando extensível, à totalidade do prédio, o direito de aceder, sob pena de as imposições do Direito Público subverterem, condicionando em sentido diverso, a decisão do conflito privado intersubjectivo.
IV – Sendo a acessão um direito cuja concretização depende da manifestação de vontade nesse sentido, por parte do respectivo titular, será este o momento a atender na fixação do montante da indemnização, porquanto é, nessa ocasião, que se opera a conversão em dinheiro do valor que a parcela de terreno tinha antes da incorporação, afastando-se a ideia de actualização do montante a pagar pelo beneficiário da acessão industrial imobiliária.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar, parcialmente, procedente a apelação e, em consequência, condenam os réus-reconvintes a reconhecer os autores como únicos donos e legítimos possuidores do prédio rústico, sito na Covã, composto de vinha, duas oliveiras e cultura, com a área de 2660 m2, inscrito na respectiva matriz sob o nº 3288, com o valor tributável de 7056$00, a confrontar do Norte com José da Silva Pereira Escola, do Nascente com José Simões Baltazar, do Sul com caminho e do Poente com Manuel Pires Correia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o nº 66379 do Livro B174, com excepção de uma parcela do mesmo, com a área de 665 m2, sensivelmente, a que corresponde um lote, junto à estrada, a Poente, com uma frente de 16,15m e uma profundidade de 41,76m, condenando-os ainda a demolir todas as edificações nele realizadas, situadas fora da área acabada de definir e, em consequência, a entregar o mesmo prédio, com a ressalva da parcela referida, aos autores-reconvindos, livre e devoluto.
Na procedência parcial do pedido reconvencional, declara-se que os réus-reconvintes adquiriram, por acessão industrial imobliária, a parcela já bem identificada do prédio rústico em questão, condenando-se os mesmos a pagar aos autores a quantia de 935,24€, com a actualização operada no Tribunal «a quo», ou a depositar a mesma, no prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado deste acórdão, sob pena da caducidade do direito, confirmando, quanto ao mais, a sentença recorrida.

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Custas, a cargo dos autores e dos réus, na proporção de 1/4 e de 3/4, respectivamente.

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