Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
363/07.7TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTO PARTICULAR
MÚTUO
NULIDADE
Data do Acordão: 06/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS - COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ALÍNEA D) DO N.º 1 DO ARTIGO 668.º DO CPC, ARTIGOS 376.º E 1142.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) A reclamação da decisão de facto só pode ter por fundamento a deficiência, obscuridade ou contradição ou a falta da sua motivação; nessa medida, a sua falta não arreda a possibilidade de impugnar a matéria de facto em via de recurso,

2) Não é nula a sentença que, julgando a acção apenas parcialmente procedente, não absolve expressamente o réu do pedido na parte em que o mesmo improcedeu.

3) Não se justifica a ampliação da matéria de facto, quando os factos em questão, sendo meramente instrumentais, não teriam qualquer influência na sorte da acção.

4) Não violam o princípio dispositivo as respostas explicativas aos quesitos que se socorrem de factos instrumentais não alegados;

5) A impugnação de documento particular não obsta à sua utilização como elemento de prova, a apreciar livremente pelo tribunal.

6) A declaração de nulidade do contrato de mútuo tem como consequência a restituição, para além das quantias prestadas, dos juros de mora entendidos como frutos civis.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. Relatório:

        A..., divorciada, doméstica, residente no ..., intentou, no Tribunal Judicial de Penacova, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra B... , divorciado, reformado, residente na ..., alegando, em resumo, que:

            Viveu maritalmente com o réu entre 1998 e 2003; durante esse período de tempo, emprestou-lhe as quantias de 1.000.000$00, 240.000$00, 650.000$00, 600.000$00 e 1.329.588$00, que ele nunca lhe devolveu, apesar de se ter obrigado a tanto.

            Por outro lado, enquanto viveram um com o outro, apresentaram a declaração de IRS em conjunto, sendo que, no ano de 2001, o réu recebeu a importância de 180.000$00, que nunca lhe entregou.

            Terminou, pedindo se declarassem nulos os contratos de mútuo celebrados entre ambos e se condenasse o réu a restituir-lhe a quantia de € 19.949,86, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

            Regularmente citado, o ré contestou por excepção e por impugnação; em via de excepção, arguiu a incompetência territorial do Tribunal de Penacova (contrapondo a competência da Vara Mista de Coimbra), a caducidade do direito de accionar, pelo facto de a acção ter sido proposta mais de três anos e meio depois da nomeação de patrono à autora, e a restituição da importância de 1.000.000$00, que aceita ter-lhe sido entregue pela autora, com vista à realização do capital social de uma sociedade que ele havia constituído; impugnando, alegou não ser verdade que a autora lhe tenha emprestado outras quantias.

            A autora replicou, por forma a rebater as excepções deduzidas.

            Subsequentemente, foi proferido despacho que declarou incompetente, em razão do território, o Tribunal de Penacova e ordenou a remessa do processo à Vara Mista de Coimbra.

            Após algumas vicissitudes destituídas de relevo para a sorte da acção (substituição do ex.mo patrono nomeado à autora e apresentação de um articulado superveniente, que acabou por ser desentranhado), foi elaborado despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de caducidade aduzida pelo réu e afirmou, no mais, a validade e a regularidade da lide.

            A selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória) foi alvo de reclamação de autora e réu, a daquela parcialmente atendida e a deste indeferida no seu todo.

            Realizado o julgamento e fixados factos, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o réu a pagar à autora a importância de € 11.619,94, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde 30 de Abril de 2007 e até integral pagamento.

            Inconformado o réu interpôs recurso (recebido como apelação, com efeito devolutivo), alegou e formulou 26 conclusões, que se condensam, sem dificuldade alguma, em, apenas, seis:

1) A sentença é nula, por omissão de pronúncia, já que julgou a acção, apenas, parcialmente procedente, mas não o absolveu dos pedidos improcedentes;

            2) Deve ser ampliada a matéria de facto, com o assentamento, por falta de impugnação, do teor dos artigos 15.º a 21.º da contestação e a quesitação do dos artigos 25.º, 26.º e 29.º a 32.º da mesma peça, tal como requereu na reclamação oportunamente apresentada e que foi desatendida.

            3) As respostas aos quesitos 6.º, 7.º e 8.º devem ser consideradas não escritas, por violação do princípio dispositivo, já que incorporam matéria não alegada e em relação à qual a autora não manifestou a intenção de se aproveitar.

            4) Em qualquer caso, sempre se imporia a resposta “não provado” aos mesmos quesitos, por força dos depoimentos das testemunhas C... , D... , E... e F... e por não terem valor probatório os documentos apresentados;

            5) Alterada a matéria de facto pela sobredita forma, terá o réu de ser absolvido.

            6) Mas, ainda que se considere a existência de contratos de mútuo nulos, nunca serão devidos juros de mora, na medida em que a restituição implica, tão-somente, a restituição do que foi recebido.

            A autora respondeu à alegação pela fora seguinte:

            1) As conclusões formuladas pelo recorrente são deficientes e, mesmo, obscuras, pois que tanto pede a sua absolvição, como a ampliação da matéria de facto, como a alteração das respostas, como, ainda, a revogação da sentença, pelo que deve ser convidado a esclarecê-las ou completá-las, sob pena de se não conhecer do recurso;

            2) Não tendo o recorrente reclamado da decisão de facto, nos termos do artigo 653.º do CPC, não deve ser aceite o recurso no segmento da impugnação da matéria de facto;

            3) A sentença não é nula, já que a procedência parcial significa que houve absolvição na parte restante;

            4) A ampliação da matéria de facto é injustificável, porquanto os factos em apreço são irrelevantes para a decisão da causa;

            5) As respostas aos quesitos 6.º, 7.º e 8.º, porque explicativas e dadas em consonância com a prova produzida, não violam o princípio dispositivo, sendo certo, por outro lado, que os factos aproveitam às partes independentemente de qualquer manifestação;

            6) A prova foi correctamente apreciada, não merecendo censura as respostas dadas aos artigos 6.º, 7.º e 8.º da base instrutória;

            7) O recurso deverá improceder.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            São seis as questões colocadas pelo recorrente à apreciação desta Relação, a saber:

            a) A nulidade da sentença;

            b) A ampliação da matéria de facto;

            c) A violação do princípio dispositivo;

            d) O erro na apreciação da prova;

            e) Os pressupostos do direito invocado pela autora;

            f) Os juros de mora.

           

            Previamente, porém, haverá que esclarecer duas outras questões, suscitadas estas pela recorrida – a deficiência ou obscuridade das conclusões da alegação do apelante e a inadmissibilidade da impugnação da matéria de facto, por não ter sido utilizado o mecanismo da reclamação previsto na segunda parte do n.º 4 do artigo 653.º do CPC –, que, a serem procedentes, conduziriam, a primeira ao convite à correcção das conclusões, e a segunda à rejeição do recurso da matéria de facto.

            II. Os factos dados por assentes na sentença recorrida:

            1. A autora e o réu, pelo menos entre 1999 e 31 de Outubro de 2001, viveram maritalmente, habitando juntos numa casa pertença do réu, sita na .....

            2. Essa situação manteve-se pelo menos até Março de 2002.

            3. Em 15 de Julho de 1999 a autora entregou ao réu a quantia de 1.000.000$00, quantia que o mesmo necessitou para constituir o capital social de uma empresa denominada G... .

            4. (…) tendo para o efeito emitido, em 15 de Julho de 1999, a favor do réu, o cheque cuja cópia figura a folhas 18, que aqui se dá por reproduzido, sacado sobre o BNU, no montante de 1.000.000$00.

            5. Em 28 de Dezembro de 2000, a pedido do réu, a autora ordenou a transferência do montante de 1.329.588$00 da sua conta bancária da Caixa Geral de Depósitos – Rede BNU, correspondente a dinheiro seu, para pagamento a I... , de parte de um contentor de cerveja que havia sido expedido para Cabo Verde por ordem do réu, transferência essa que foi efectuada nos termos ordenados.

            6. O réu comprometeu-se perante a autora a restituir-lhe as quantias referidas em 3.º a 5.º.

            7. A autora e o réu, nos anos de 1999 e 2000, apresentaram declaração conjunta de rendimentos para efeito de IRS.

            8. A liquidação do IRS relativo ao ano de 2000, efectuada a 23 de Julho de 2001, relativamente à declaração de rendimentos apresentada por autora e réu no ano de 2001, resultou no reembolso pelos serviços fiscais de 234.703$99.

            III. O direito:

            A. As questões prévias colocadas pela recorrida:

            a) A deficiência ou obscuridade das conclusões da alegação do recorrente

            Estabelece o n.º 2 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-lei 303/07, de 24 de Agosto, diploma de que serão os restantes preceitos a citar sem indicação de origem, que, versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar as normas jurídicas violadas – alínea a) –, o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas – alínea b) – e, invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que devia ter sido aplicada – alínea c).

            Segundo a recorrida, o recorrente não indicou as normas jurídicas violadas ou erradamente aplicadas, como não adiantou, de forma clara, a norma a aplicar e o sentido que lhe deveria ser atribuído, como nunca concretizou a sua pretensão, pois tanto pediu a sua absolvição – conclusões j) e y) das alegações de recurso –, como a ampliação da matéria assente e da base instrutória, o que pressupõe a repetição do julgamento – conclusão e) –, como, ainda, a alteração das respostas à matéria de facto – conclusão l) –, o que já dispensaria a repetição da prova e, logo, do julgamento. Por outro lado, e em relação à alteração das respostas aos quesitos, não pediu ao tribunal que o fizesse, limitando-se a utilizar a expressão “impondo decisão diversa…”, presumindo-se que é isso que pretende, sendo que na conclusão y) acabou por pedir a revogação da sentença, o que, tudo conjugado, conduz a uma imprecisão inaceitável.

            Sem serem modelares, as conclusões formuladas pelo recorrente são, quando correlacionadas com a respectiva alegação, suficientemente claras quanto ao sentido da sua pretensão.

            Para além da questão da nulidade da sentença, pretende o apelante se ordene a ampliação da matéria de facto, indicando, para tanto, a norma violada (artigo 511.º, n.º 1), se declarem não escritas as respostas aos quesitos 6.º, 7.º e 8.º, por desrespeito aos artigos 664.º e 264.º, ou se alterem as mesmas, por não encontrarem suporte na prova produzida (para além de especificar os meios probatórios que, alegadamente, lhe dariam razão, citou a lei, mormente o artigo 665.º), e, na sequência da alteração da matéria de facto, se considere não provado o contrato de mútuo, cuja nulidade foi substrato da procedência parcial da acção, com a consequente absolvição do pedido, e, em qualquer caso, se declare não serem devidos juros de mora, pela circunstância de, da declaração de nulidade, só resultar a restituição do que foi prestado, nos termos do artigo 289.º do Código Civil, e não qualquer outra consequência.

            Tudo absolutamente claro, porque cada conclusão tem o seu lugar próprio e resulta consequente da matéria alegada: a ampliação da matéria de facto, da insuficiência da que foi levada à selecção; a declaração de se considerarem não escritas as respostas, da inobservância do princípio dispositivo; a alteração das respostas, do erro na apreciação da prova; e a absolvição do pedido, da falta de prova dos elementos integrantes do direito invocado.

            Diga-se, de qualquer modo, para esclarecimento da recorrida, que não ocorre contradição alguma entre o pedido de ampliação da matéria de facto e o de alteração das respostas, uma vez que se reportam a situações diferentes: a ampliação tem a ver com a insuficiência da matéria de facto levada à selecção e a alteração com o erro de julgamento. A ordenar-se a repetição do julgamento, por via da ampliação da matéria de facto, ficaria, naturalmente, prejudicada a apreciação da impugnação da decisão de facto (a menos que se tratasse de questão unicamente de direito, como acontecerá, por exemplo, nas hipóteses a que alude o n.º 4 do artigo 646.º), até porque o novo julgamento pode abranger outros pontos da matéria de facto, nos termos do n.º 4 do artigo 712.º, a fim de serem evitadas contradições na decisão.

            Não é exacto, por outro lado, que o recorrente não pedisse a alteração das respostas, porque na conclusão l) a expressão “impondo decisão diversa” foi seguida desta outra: “devem considerar-se não provados os preditos factos”.

            A conclusão y), por fim, é uma afirmação genérica do erro de julgamento (de facto e de direito), que não briga com o pedido específico da alteração da matéria de facto assente anteriormente formulado.

            Em resumo, o recorrente indicou com clareza os fundamentos do recurso, sem esquecer as normas que entendeu violadas e o sentido a dar à decisão, pelo que é injustificada a asserção da recorrida de serem deficientes e obscuras as conclusões apresentadas.        

           

            b) A omissão da reclamação a que alude a segunda parte do n.º 4 do artigo 653.º

            A recorrida interpretou menos bem o preceito em análise. A reclamação da decisão de facto dirige-se exclusivamente à sua deficiência, obscuridade ou contradição ou à falta da sua motivação; nunca ao erro de julgamento (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume IV, páginas 552 e seguintes; Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, páginas 656/657).

            É evidente, assim, que a falta de reclamação, porque assente em fundamento diverso do que subjaz à impugnação da decisão de facto, não arreda a possibilidade de atacar o erro de julgamento em via de recurso.

            Note-se, de toda a maneira, que a falta de reclamação não ultrapassa os eventuais vícios das respostas, uma vez que a Relação tem sempre o poder de anular a decisão de facto, com base na deficiência, obscuridade ou contradição daquelas, como decorre, com plena clareza, do n.º 4 do artigo 712.º (neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 29.01.2004, CJ, Ano XXIV, Tomo I, página 93).  

            A arguição não tem, pois, a menor razão de ser.

            B. As questões colocadas pelo apelante:

            a) A nulidade da sentença

           

            Entende o apelante que a sentença é nula, por o não ter absolvido do pedido na parte em que a acção improcedeu.            

            A posição da apelada é a de se não verificar a arguida nulidade, pelo facto de a absolvição resultar da procedência apenas parcial da acção.

            O ex.mo juiz, chamado a pronunciar-se, seguiu um raciocínio idêntico ao da apelada: a absolvição resulta necessariamente da procedência parcial.

            E esse é, de facto, o entendimento correcto.

            A nulidade da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º abrange os casos de omissão de pronúncia e de pronúncia indevida, consistindo o primeiro em o Tribunal deixar de conhecer de questões que lhe foram expressamente colocadas e o segundo em apreciar questões que lhe não foram colocadas; a omissão de pronúncia, hipótese que o recorrente ora suscita, está em correlação com a primeira parte do n.º 2 do artigo 660.º, que preceitua que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 142; Antunes Varela, ob. cit., página 690).

            A verdade é que a sentença decidiu todas as questões que os interessados colocaram nos seus articulados e que subsistiam, ainda, na altura da sua prolação: a celebração de contratos de mútuo, a respectiva nulidade por falta da forma legal e as consequências jurídicas daí advenientes.

            Mais especificamente, considerou verificados, em face da prova produzida, apenas dois dos cinco contratos de mútuo alegadamente realizados e, em consequência, declarou a procedência parcial da acção e condenou o réu a restituir à autora os valores referentes a esses dois contratos, acrescidos de juros.

            É verdade que não absolveu expressamente o réu do pedido, na parte em que a acção improcedeu. Só que a falta dessa declaração formal não configura qualquer nulidade, tal como os artigos 668.º, n.º 1, alínea d), e 660.º, n.º 2, a configuram, por se não enquadrar no conceito de questão.

            De resto, a absolvição resulta implícita da procedência apenas parcial da acção, pelo que se não vê onde estejam os problemas do apelante.

            À validade das fórmulas decisórias indirectas ou implícitas faz referência o Sr. Prof. Alberto dos Reis, que considera, mesmo, redundantes as fórmulas directas ou explícitas, quando aquelas não deixam dúvidas quanto ao sentido da decisão.

            Focando hipótese idêntica à que ora nos ocupa, esclarece que, para o caso de procedência apenas parcial da acção, está indicado o uso de uma fórmula decisória assim redigida: “julgo procedente, em parte, a acção e condeno o réu a pagar ao autor a quantia de …” (Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 43).

            Tal e qual o que foi feito no caso em apreço.

            A arguida nulidade é, manifestamente, improcedente.

            b) A ampliação da matéria de facto

            Segundo o apelante, estando em causa alegados contratos de mútuo, seria relevante para a boa decisão da causa apurar a situação económica das partes, vertida na contestação, com o consequente assentamento, em sede de selecção factual, da matéria dos artigos 15.º a 21.º, porque não impugnada, ou, ao menos, a sua quesitação e, bem assim, a quesitação da matéria dos artigos 25.º, 26.º, 29.º, 30.º, 31.º e 32.º, que foi impugnada.

            A apelada pronunciou-se pela irrelevância da matéria em causa para o desfecho do pleito.

            Diga-se, antes de mais, que a impugnação é legítima, uma vez que o apelante reclamou em tempo oportuno, mas sem sucesso, contra a selecção (artigo 511.º, n.ºs 2 e 3); mas, ainda que assim não fosse, o certo é que a selecção da matéria de facto não tem valor definitivo, [1] não faz caso julgado, [2] podendo ser corrigida até ao encerramento da discussão (cfr. a alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º) e, mesmo, até ao julgamento na Relação (artigo 712.º, n.º 4).

            Ponto é que exista matéria (alegada ou resultante da discussão, neste caso se verificado o condicionalismo dos n.ºs 2 ou 3 do artigo 264.º) relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (artigo 511.º, n.º 1).  

            O problema é, exactamente, o de saber quando é que um facto é relevante. Alberto dos Reis, depois de chamar a atenção para duas realidades extremas (os questionários excessivos e os questionários comprimidos), dá-nos a resposta, mas, de algum modo, pela negativa: devem excluir-se os factos que, seja qual for a solução a adoptar, não contam para o julgamento da causa (Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 220/222).

            Esta era, também, a solução preconizada por Manuel de Andrade no seu ensino, ao falar na selecção dos factos pertinentes à causa e indispensáveis para a resolver e no afastamento daqueles de que não pudesse depender, segundo a lei, a sorte do litígio, para, em jeito de conclusão, afirmar: “mas só devem pôr-se de parte como irrelevantes aqueles que verdadeiramente não interessem à decisão final, em face de qualquer das soluções plausíveis que a questão de direito possa comportar” (Noções Elementares de Processo Civil, página 175).

            É claro que na selecção se não podem perder de vista as regras do ónus da prova, estabelecidas no artigo 342.º do Código Civil, dada a necessidade de alegação dos factos por parte do interessado a quem os mesmos aproveitam.

            Posto isto, vejamos em concreto. A autora pretende ter celebrado com o réu diversos contratos de mútuo, nulos por falta de forma e requer, à luz da nulidade, a restituição dos valores mutuados, acrescidos de juros.

            A posição do réu é a de que a autora nada lhe emprestou, até porque não dispunha de capacidade económica para tanto, pois que os seus rendimentos, oriundos do trabalho, não ultrapassavam os € 500,00 por mês, ao passo que ele auferia uma quantia mensal na ordem dos € 1.400,00 e não tinha encargos fixos, pelo que não necessitava dos pretensos empréstimos.

            A questão da capacidade económica de um e de outro, que se encontra plasmada nos artigos 15.º a 21.º da contestação, não foi levada à selecção. O ré reclamou, pugnando pelo seu assentamento ou quesitação, mas viu ser-lhe negada razão, sob o entendimento de não interessar para a decisão da causa, por revestir a natureza de mera impugnação.

            Há que dizer, antes de tudo, que, de acordo com as regras do ónus da prova, o réu nada tinha de provar, na justa medida em que se defendeu somente por impugnação, contrariando a versão da autora de que lhe emprestara várias quantias em dinheiro; à autora é que cabia a prova dos elementos constitutivos do direito invocado, no caso, a existência dos contratos de mútuo e o modo da sua celebração.

            O que não significa, porém, que a factualidade alegada ao abrigo da impugnação motivada não possa ter interesse para a decisão; só que não parece ser esse o caso dos autos.

            Os factos em questão são, obviamente, de natureza instrumental; e nem de outra forma poderia ser, porque não respeitam à procedência de qualquer pedido (não foi deduzida reconvenção) nem à procedência de excepções. Trata-se, como diz Anselmo de Castro, de factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores (ob. cit., página 275).

            Na hipótese em causa, melhor se diria, para se concluir pela sua inexistência, porque, na realidade, é essa a intenção do réu; procurar demonstrar, provando a incapacidade económica da autora, que esta lhe não poderia ter emprestado dinheiro.

            Só que a eventual prova de que o réu auferia € 1.400,00 por mês e que não tinha encargos fixos e de que a autora, no final do ano de 1999, auferia € 500,00, na Caritas Diocesana de Coimbra, e, antes disso, ganhava igual quantia, como mulher a dias, em casa de um vizinho do réu, não tem virtualidade para infirmar os empréstimos, pela simples razão de que a autora poderia ter acumulado bens materiais em tempo anterior.

            Note-se, de resto, que o réu acaba por, de algum modo, se contradizer, ao aceitar que, no dia 15.07.1999, a autora emitiu um cheque, no montante de 1.000.000$00, a seu favor, para ele realizar o capital social de uma sociedade (artigo 22.º da contestação); afinal, o baixo salário em determinado momento e a capacidade económica não andam de mãos dadas.

            Mesmo que a matéria em questão viesse a ser dada por provada, não resultavam contrariados os factos referentes aos empréstimos considerados verificados, pelo que a sua relevância para a decisão é rigorosamente nula.

            O seu assentamento ou a sua quesitação não teriam, pois, utilidade alguma.

            Inútil é, também, a matéria dos artigos 25.º, 26.º, 29.º, 30.º, 31.º e 32.º da mesma peça processual.

            O artigo 25.º não passa de uma duplicação do 24.º, que passou para o artigo 13.º da base instrutória; no 24.º vem alegada, pelo réu, a restituição do valor do cheque referido na alínea b) dos factos assentes e, no 25.º, o recebimento do mesmo valor pela autora. Se houvesse restituição, é claro que haveria recebimento; a matéria é espúria.

            O artigo 26.º reporta-se a pretensas declarações da autora de nada dever ao réu. Não se alega, porém, quando tal teria ocorrido, se antes, se depois dos empréstimos dados por existentes, pelo que a sua eventual prova seria processualmente inócua.

            Nos artigos 29.º e 30.º alega o réu ter sido ele a pagar as viagens a Cabo Verde. Como a matéria alegada pela autora neste âmbito (empréstimo de 240.000$00 para o réu se deslocar àquele país) foi julgada não provada (quesito 4.º), a quesitação é totalmente despida de sentido.

            O mesmo se diga dos artigos 31.º e 32.º, onde o réu nega a instalação de uma filial de uma sua sociedade em Cabo Verde e, consequentemente, o arrendamento de espaço para o efeito. Dada, como foi, resposta negativa ao quesito 5.º, onde se questiona a entrega pela autora ao réu de 650.000$00, por uma vez, e de 600.000$00, por outra, para acorrer às despesas de arrendamento, mobiliário e outros equipamentos para a filial, a matéria desses artigos é despicienda.

            Em conclusão, a questão da ampliação da matéria de facto não poderá proceder. 

           

            c) A violação do princípio dispositivo

            Considera o recorrente que a resposta dada aos quesitos 6.º e 7.º viola as disposições conjugadas dos artigos 664.º e 264.º, por ter dado por assente matéria que não foi alegada nem em relação à qual a autora manifestou a intenção de se aproveitar ao longo do processo.

            Em termos breves, é este o seu raciocínio: o tribunal quesitou, de acordo com o alegado no artigo 12.º da petição inicial, um mútuo entre autora e réu, ocorrido em 2002, cujo dinheiro se destinava a comprar cerveja à empresa J... , mas acabou por considerar provado que o mútuo aconteceu em 28 de Dezembro de 2000, para pagamento de parte de um contentor de cerveja à empresa I.... Os factos dados por provados consubstanciam uma relação jurídica completamente distinta daquela que o recorrente teve oportunidade de contraditar em sede de contestação. A recorrida, ao longo do processo, não manifestou intenção de se aproveitar de tais factos não alegados e, por isso, o recorrente não exerceu o seu direito de defesa. Logo, tal matéria deve ser considerada não escrita, por aplicação analógica do n.º 4 do artigo 646.º.

            Ora, vejamos:

            Em causa nos presentes autos está a pretensa celebração de contratos de mútuo, nulos por falta de forma legal; no que toca à hipótese concreta suscitada pelo recorrente, os quesitos 6.º e 7.º, formulados em função de matéria alegada pela recorrida, têm a seguinte redacção:

            6.º – “Em 2002, o réu solicitou à autora a quantia de 1.329.588$00, a fim de adquirir um contentor carregado de cerveja, para vender em Cabo Verde, à empresa J...?”.

            7.º – “Face a essa solicitação, a autora ordenou ao seu banco que pagasse a J... o montante referido em 6.º?”.

            A resposta, dada em conjunto a ambos os quesitos, foi esta: “provado apenas que em 28 de Dezembro de 2000, a pedido do réu, a autora ordenou a transferência do montante de 1.329.588$00 da sua conta bancária da Caixa Geral de Depósitos – Rede BNU, correspondente a dinheiro seu, para pagamento a I..., de parte de um contentor de cerveja que havia sido expedido para Cabo Verde por ordem de réu, transferência essa que foi efectuada nos termos ordenados”.

            Visto que a resposta difere do que foi quesitado, a questão que, muito simplesmente, se coloca é a de saber se tal configura ampliação da matéria de facto alegada pela autora.  

            Como se sabe, as respostas não podem, por princípio, ultrapassar o âmbito do princípio dispositivo, que, basicamente, modela o nosso ordenamento processual civil. As respostas restritivas ou simplesmente explicativas não estão vedadas, é certo, mostrando-se, aliás, por vezes, necessárias para traduzir a verdade dos factos; o que se não pode é, a coberto da explicação, dar por adquirida matéria essencial ao desfecho da questão, que as partes não tiveram o cuidado de submeter à apreciação do tribunal.

            A regra, afirmada no n.º 1 e na primeira parte do n.º 2 do artigo 264.º e reafirmada no artigo 664.º, é a de que a matéria de facto integrante das pretensões deduzidas há-de ser carreada pelas partes (o autor tem de alegar os factos constitutivos do direito invocado – ou seja, a causa de pedir – e o réu os que sejam impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito – que é como quem diz, os que respeitam às excepções) e a de que a decisão só pode levar em consideração esses factos e não outros.

            Só que a regra sofre excepções, como emerge da segunda parte do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 264.º. O primeiro permite a consideração, mesmo oficiosamente, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e o segundo a dos factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados, desde que o interessado manifeste o desejo de deles se aproveitar e tenha sido observado o contraditório.

            Factos essenciais são, como o nome indica, aqueles em que as partes se baseiam para deduzir as respectivas pretensões (tendentes à afirmação do direito, no caso do autor, e à sua aniquilação, no caso do réu), ou seja, “os factos integradores da previsão ou «tatbestand» da norma aplicável à pretensão ou à excepção” (Antunes Varela, ob. cit., página 416).

            Factos instrumentais ou indiciários, por sua vez, são, como acima se disse, citando Anselmo de Castro, os que “não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção”; são factos que permitem estabelecer uma ligação com os factos essenciais e, por essa via, aferir da realidade destes; e, exactamente, porque de simples factos probatórios ou acessórios se trata, não precisam de ser alegados nem incluídos na base instrutória, sendo atendidos desde que venham à tona na instrução ou na discussão da causa (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, página 466).

            A resposta diverge do que foi quesitado em dois pontos: na data da solicitação do dinheiro e na finalidade para que o pedido foi formulado; por um lado, perguntou-se se o réu pediu o dinheiro à autora em 2002 e respondeu-se que isso aconteceu em 28 de Dezembro de 2000; por outro, quesitou-se se o dinheiro se destinou a pagar um contentor carregado de cerveja a J... e respondeu-se que foi para pagar parte de um contentor de cerveja a I....

            Trata-se, em qualquer dos casos, e como é bom de ver, de factos meramente instrumentais, porque não integrantes da “previsão ou tatbestand da norma aplicável à pretensão” deduzida, susceptíveis, portanto, de ser considerados, ao abrigo do n.º 2 do artigo 264.º. Essencial à pretensão deduzida pela autora é, tão-somente, como facilmente se extrai dos artigos 1142.º e 1143.º do CC, o empréstimo de dinheiro, a obrigação de restituir e a forma negocial utilizada.

            O destino da quantia mutuada é absolutamente indiferente e não precisava, sequer, de ser quesitado.

            A data da celebração teria, eventualmente, relevância, se estivessem em causa questões influenciadas pelo factor tempo (prescrição, por exemplo), o que, de todo em todo, não sucede (pelo menos, não foram invocadas).

            Diga-se, ainda assim, que o artigo da petição inicial (12.º) de onde foi extraída a matéria que deu origem ao quesito 6.º, enferma de um manifesto lapso material no que tange à data e ao destino do dinheiro, uma vez que o documento logo junto para prova dos factos (folhas 19) demonstrava claramente que os mesmos se haviam passado em 28 de Dezembro de 2000 e que o dinheiro fora transferido para a conta de I....

            A autora ainda requereu, por via da reclamação, que o lapso fosse corrigido no despacho de selecção, mas o seu pedido não foi atendido; mal, a nosso ver, porque, de facto, o lapso era evidente no contexto da alegação e os erros de escrita rectificam-se, como deflui do disposto no artigo 249.º do Código Civil.

            A resposta aos quesitos 6.º e 7.º mais não fez do que dar guarida àquela disposição legal.

            E não diga o recorrente que não teve oportunidade de contrariar a versão que resultou provada, porque a verdade é ele mesmo chamou a atenção para a divergência entre o conteúdo do artigo 12.ºda petição inicial e o documento junto para a respectiva prova (artigos 37 e 38 da contestação).

            Em conclusão, a resposta aos quesitos 6.º e 7.º não violou o princípio dispositivo, pois que não ampliou a matéria de facto alegada, antes, e apenas, se limitou a consignar factos instrumentais e a corrigir um manifesto lapso material.

            Daí que haja de improceder a questão (que, a verificar-se nos termos expostos pelo recorrente, teria de ser solucionada por via do regime da nulidade estabelecido no artigo 201.º, e não pela aplicação analógica do n.º 4 do artigo 646.º).    

           

            d) O erro na apreciação da prova       

            Os quesitos 6.º e 7.º, transcritos no item anterior, receberam a resposta conjunta ali, também, plasmada.

O quesito 8.º (“ficou acordado entre a autora e o réu que este devolveria à autora as quantias referidas em 2, 4, 5 e 6 quando começasse a realizar dinheiro com a empresa e a vender cerveja em Cabo Verde?”) teve a seguinte resposta: “provado apenas que o réu se comprometeu perante a autora a restituir-lhe as quantias referidas nas respostas aos factos de 2, 3, 6 e 7”.

            Ao quesito 2.º (“em 15 de Julho de 1999 a autora entregou ao réu a quantia de 1.000.000$00 que o mesmo necessitou para criar uma empresa denominada G... com o intuito de realizar exportações e importações, nomeadamente para Cabo Verde?”) respondeu-se assim: “provado que em 15 de Julho de 1999 a autora entregou ao réu a quantia de 1.000.000$00, quantia que o mesmo necessitou para constituir o capital social de uma empresa denominada G...”.

             O quesito 3.º (“tendo para o efeito emitido a favor deste o cheque referido em b)?”) teve a resposta “provado”.

            A alínea b), por fim, referida no quesito 3.º e respectiva resposta, está assim redigida: “em 15 de Julho de 1999 a autora emitiu a favor do réu o cheque cuja cópia figura a folhas 18, que aqui se dá por reproduzido, sacado sobre o BNU, no montante de 1.000.000$00”.

            A resposta aos quesitos 6.º e 7.º foi fundamentada nos documentos de folhas 19,143 e 181, que, segundo o despacho, confirmam a realização da transferência bancária e nos depoimentos das testemunhas C..., que mostrou conhecimento da transferência bancária efectuada e D..., que acompanhou a autora ao banco, a pedido dela, aquando da transferência bancária, tendo narrado a forma como ocorreu e a razão da transferência.

            A resposta ao quesito 8.º teve por base o depoimento da testemunha F..., que assistiu a uma discussão entre a autora e o réu, em casa da mãe daquela, na sequência da qual a autora solicitou ao réu o pagamento daquilo que lhe devia e que passava de € 17.000.000,00, tendo o réu respondido que “ainda não lhe tinha negado” o pagamento dessa quantia, com o sentido de reconhecimento da existência de dívida para com ela nesse montante.

            Resumidamente, está em causa saber se se provou, ou não, o circunstancialismo factual seguinte:

1) Se a autora, a pedido do réu, transferiu dinheiro seu (1.329.558$00) para a conta bancária de uma determinada empresa, com vista ao pagamento de parte de um contentor de cerveja adquirido pelo réu;

2) Se o réu se obrigou a restituir à autora essa importância e, bem assim, a de 1.000.000$00, que esta lhe entregara mediante cheque, para constituir o capital social de G....

            Na tese do recorrente, tal prova não foi feita, na medida em que os documentos chamados à liça não têm valor probatório, porque impugnados, sem que tenha sido demonstrada a sua genuinidade, para além de que o documento de folhas 143 é um depoimento reduzido a escrito, mas sem a observância do disposto no artigo 639.º, e os depoimentos das testemunhas foram pouco consistentes ou confusos. 

            Diga-se, antes de mais, que, consagrado, que está, o princípio da liberdade de julgamento (o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção, diz o n.º 1 do artigo 655.º), as respostas aos quesitos só podem ser alteradas em casos excepcionais, concretamente, quando for manifesto o erro na apreciação da prova.

            Daí que sejam muito estreitos os limites da modificabilidade da decisão de facto, previstos no artigo 712.º, n.º 1.

            Com o quer que seja, a alteração é admissível quando do processo constem todos os elementos de prova que serviram da base à decisão ou, tendo ocorrido gravação dos depoimentos, tiver a mesma sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A. Nesta hipótese, porém, torna-se necessário que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os meios probatórios que impunham decisão diversa, e indique, ainda, se fizer apelo a prova gravada, os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do artigo 522.º-C.

            As exigências formais foram respeitadas, pelo que importa averiguar, agora, se a prova produzida dá razão ao recorrente.

            A resposta é, decididamente, negativa, quando conjugados os depoimentos prestados com os documentos juntos.

            Começando pela prova testemunhal, foram inquiridas cinco testemunhas, todas arroladas pelo autor: C..., D..., E..., F... e H....

            A primeira é amiga da autora e só conhece o recorrente de vista. Em determinada altura, estando a recorrida na retrosaria onde o depoente trabalha, sita na Praça...., acompanhada da testemunha D..., apercebeu-se de ter ela recebido um telefonema do recorrente, que se achava fora de Portugal, numa ex-colónia, a pedir dinheiro. Foram, então, os três à agência do BNU, localizada na mesma Praça, onde a recorrida fez uma transferência de mil trezentos e tal contos, após o que ela lhe pediu para guardar o documento da transferência (o que se encontra a folhas 181). Segundo o que a recorrida lhe disse na altura, o dinheiro era, apenas, emprestado, devendo vir a ser devolvido pelo recorrente. Mais tarde, “em Outubro do ano passado”, presenciou uma conversa entre a recorrida e o recorrente, junto ao átrio da Loja do Cidadão, em Coimbra, em que ela lhe perguntava quando é que ele lhe dava o que lhe devia, tendo ele respondido que a ia buscar outra vez para a companhia dele.

            A testemunha D..., que é prima direita da recorrida, acompanhava-a, geralmente, para todo o lado, segundo diz. Numa certa ocasião, aquela foi ao Banco, juntamente com o recorrente, mas, antes, pediu à depoente que os seguisse, ficando, porém, afastada deles, o que ela fez; constatou, aí, que a recorrida pediu um cheque avulso, que preencheu com o valor de mil contos e entregou ao recorrente; este declarou, nessa altura, que lhe devolveria o dinheiro. Mais tarde, em Dezembro de 2000, acompanhou, de novo, a recorrida ao Banco, onde esta efectuou uma transferência de mil e tal contos, e da qual lhe entregou cópia, que corresponde ao documento de folhas 181; a testemunha C... foi, igualmente, com eles.

            A testemunha E... é tio da recorrida. Em data que não tem presente, mas pensa ter sido em 2002, o recorrente e a recorrida foram a sua casa; em conversa aí havida, falou-se que a recorrida tinha emprestado três mil e tal contos ao recorrente e este dizia, então, que ela não tivesse medo, que ele pagava tudo, só que, na altura, ainda precisava de mais quatro mil contos.

            A testemunha F..., que é prima direita da mãe da recorrida, presenciou uma discussão entre esta e o recorrente na cozinha da casa da mãe dela. Não tem a certeza da data, mas teria sido, muito provavelmente, em Março de 2002; o que sabe é que, ao tempo, eles ainda viviam juntos. A recorrida falava que ele lhe devia € 17.000,00, a passar, e ele respondia que lhe não tinha negado, ainda, o dinheiro.

            A testemunha H... é amiga da recorrida e não conhece o recorrente; a única coisa que sabe é que aquela lhe disse, há já muito tempo, que tinha emprestado dinheiro ao recorrente e que ele lho não havia devolvido.

            No que toca a prova documental, temos os documentos de folhas 19, 143 e 181. O de folhas 19 é um ofício da Caixa Geral de Depósitos, Rede BNU, agência de Coimbra, dirigido à recorrida, a informar que, conforme instruções dadas por ela, havia sido feita uma transferência de 1.329.588$00 a favor de I....

            O de folhas 143 é uma mensagem fax enviada por I... à recorrida, onde se refere o recebimento do valor de 1.329.588$00, através de transferência bancária a partir da conta daquela, destinado ao pagamento de parte de um contentor de cerveja expedido por ordem do recorrente para a firma dele em Cabo Verde.

            O de folhas 181 é uma cópia de uma transferência bancária, no valor de 1.329.588$00, efectuada sobre uma conta da recorrida existente no Banco Nacional Ultramarino.

            Quanto a estes documentos, importa desmistificar a ideia do recorrente de que não têm qualquer valor probatório, por terem sido impugnados e não haver sido demonstrada a sua genuinidade.

            De acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do Código Civil, os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos 373.º a 375.º faz prova plena quanto às declarações atribuídas aos seu autor, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.

            Uma coisa, porém, é a prova plena, que só funciona nas relações declaratário-declarante, e na medida em que as declarações sejam prejudiciais a este, outra, muito diferente, o valor do documento como elemento de prova.

            A prova plena só pode ser invocada pelo declaratário contra o declarante; no mais, o documento é um elemento de prova igual a tantos outros, que o tribunal apreciará livremente.

            A recorrida não invocou o valor probatório pleno dos documentos, nem o podia fazer, uma vez que nem é ela a declaratária nem o recorrente o declarante. Limitou-se a juntá-los aos autos (os de folhas 19 e 143, porque o de folhas 181 foi junto por iniciativa do tribunal) em apoio da tese factual que defende, para que o tribunal lhes desse o valor que a liberdade de julgamento lhe consente.

            A este regime não escapa o documento de folhas 143, que não é, de facto, um depoimento reduzido a escrito, como sustenta o recorrente, mas uma mera resposta de I... a um outro fax que a recorrida lhe dirigiu e cujo teor se ignora. Vale o que valem inúmeras cartas, telegramas ou ofícios juntos a cada passo nos mais diversos processos: aquilo que a prudente convicção do julgador lhe atribuir (em conjugação, normalmente, com os demais meios de prova).  

            Pois bem: ponderados os falados depoimentos e o conteúdo dos documentos em presença, não se vê como divergir da decisão de primeira instância; a transferência da quantia de 1.329.588$00 da conta da recorrida para a conta de I..., a pedido do recorrente, resulta com absoluta nitidez dos depoimentos das testemunhas C... e D... e dos documentos de folhas 19 e 181 (notando-se que estas testemunhas acompanharam a recorrida ao banco e presenciaram o acto de transferência, do qual, aliás, ficaram com cópia); a assunção da obrigação de devolver esta importância e, bem assim, a quantia referida na resposta ao quesito 2.º, extrai-se de forma clara dos depoimentos das testemunhas C..., D..., E... e F..., as quais, em diferentes ocasiões, escutaram conversas entre recorrente e recorrida, donde emergia, com suficiente grau de segurança, que as importâncias em questão eram para ser devolvidas.

            Não se descortina, pelo menos, o erro notório na apreciação da prova, pelo que a decisão de tribunal “a quo” não pode senão merecer a aceitação desta Relação.

            Assim sendo, julgam-se definitivamente assentes os factos fixados em primeira instância.    

             

             e) Os pressupostos do direito invocado pela recorrida

            Em rigor, o recorrente não questiona o mérito da acção, enquanto fundamentado nos factos dados por provados; o que parece defender é a sua improcedência por via do afastamento da matéria de facto emergente das respostas dadas aos quesitos 6.º, 7.º e 8.º, em especial a este último, já que o contrato de mútuo tem como requisitos, não, apenas, a entrega de dinheiro, mas, também, a obrigação de o restituir.

            É evidente que a manutenção “in totum” da matéria de facto considerada na primeira instância destrói por completo a sua pretensão.

            Em face da definição legal de mútuo dada pelo artigo 1142.º do Código Civil (contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade), é inquestionável que recorrente e recorrida celebraram entre si dois contratos dessa natureza, pois que, como se disse na sentença, “por esse número de vezes a autora emprestou dinheiro ao réu, com a promessa deste em devolver as quantias em causa”.

            Desrespeitada pelas partes a forma legal exigida pelo artigo 1143.º do mesmo diploma para a declaração (documento assinado pelo mutuário, por ser superior a € 2.000,00 o valor de qualquer dos empréstimos), são ambos os contratos nulos, nos termos do artigo 220.º do referido Código.

            A declaração de nulidade acarreta a restituição de tudo o que tiver sido prestado (artigo 289.º, n.º 1, daquele diploma).

            A recorrida tem, portanto, direito a haver para si a importância de € 11.619,94 (correspondente ao valor de 2.329.588$00) e o recorrente tem a obrigação de a restituir.

            f) Os juros de mora

            Na sentença fez-se acrescer ao mencionado montante, o pagamento de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

            Na perspectiva do recorrente, os juros moratórios estariam completamente fora de causa, em virtude de a disposição do n.º 1 do citado artigo 289.º só falar na restituição do que foi prestado.

            Mas continua a falecer-lhe a razão. É jurisprudência corrente e pacífica, como se escreveu no acórdão do STJ de 25.01.2007 (CJ de Acórdãos do Supremo, Ano XV, Tomo I, página 43), que a consequência da declaração de nulidade, por falta de forma, do contrato de mútuo é a restituição de tudo o que tiver sido prestado, com os frutos civis, nos termos do n.º 3 do artigo 289.º, e com referência aos artigos 212.º e 1271.º, todos do Código Civil, que, no caso das obrigações pecuniárias, correspondem aos juros, à taxa legal estabelecida para a indemnização pela mora.

            Inexistindo prazo estipulado para a devolução, tem de entender-se que a boa fé cessa com a citação – alínea a) do artigo 481.º do CPC –, pelo que são devidos juros, à taxa legal, desde essa altura, como se decidiu na decisão recorrida.

           

            IV. Síntese final:

            1) A reclamação da decisão de facto só pode ter por fundamento a deficiência, obscuridade ou contradição ou a falta da sua motivação; nessa medida, a sua falta não arreda a possibilidade de impugnar a matéria de facto em via de recurso,

            2) Não é nula a sentença que, julgando a acção apenas parcialmente procedente, não absolve expressamente o réu do pedido na parte em que o mesmo improcedeu.

            3) Não se justifica a ampliação da matéria de facto, quando os factos em questão, sendo meramente instrumentais, não teriam qualquer influência na sorte da acção.

            4) Não violam o princípio dispositivo as respostas explicativas aos quesitos que se socorrem de factos instrumentais não alegados;

            5) A impugnação de documento particular não obsta à sua utilização como elemento de prova, a apreciar livremente pelo tribunal.

            6) A declaração de nulidade do contrato de mútuo tem como consequência a restituição, para além das quantias prestadas, dos juros de mora entendidos como frutos civis.

            V. Decisão:

            Por tudo o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença apelada.

            Custas pelo apelante.


[1] A especificação e o questionário constituem simples projectos parcelares de julgamento e de selecção da matéria de facto (Antunes Varela, ob. cit., página 428).
[2] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, páginas 282 e seguintes.