Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2678/05.0TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
RESPOSTAS AOS QUESITOS
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 690.º-A DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL;ARTIGOS 1287.º, 1294.º; 1547.º DO CÓDIGO CIVIL























Sumário: 1. A lei não obriga o juiz a fundamentar a resposta aos quesitos individualizando, com referência a cada quesito (ou grupo de quesitos), os concretos elementos probatórios a que atendeu. Desde que seja perceptível o percurso de avaliação feito pelo tribunal, nada obsta a que a fundamentação da resposta aos quesitos se faça globalmente, indicando o tribunal, a propósito de cada específico meio probatório, quais os elementos a que atendeu e porquê e, por exclusão de partes, quais os que considerou irrelevantes e por que razão.
2. A mudança do leito de servidão, que passou a localizar-se em outro local ou sítio, pertencente ainda ao mesmo prédio dos réus – mudança do locus servitutis – não implica a constituição de uma nova servidão de passagem, por contrato. Pese embora se tenha alterado o traçado da servidão “o respectivo direito é o mesmo” pelo que não se iniciou uma nova situação possessória.
3. O estreitamento da passagem e as demais características da mesma, nomeadamente a inclinação com que foi construída, não prejudicam os interesses da autora, proprietária do prédio dominante, que continua a ter acesso a pé, de carro e com tractor, pelo que, implicando a pretensão da autora (de condenação dos réus a proceder às obras necessárias para repor a passagem nos moldes convencionados) o desabamento da casa de habitação dos réus, conclui-se que o exercício desse direito excede, manifestamente, os limites impostos pela boa fé.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra
I- RELATÓRIO
A...., divorciada, (….) instaurou a presente acção com forma de processo sumário contra B.... e mulher C...., residentes (….), pedindo que:
a) seja declarado e reconhecido o seu direito de propriedade sobre determinado prédio urbano e outro rústico e o direito dos réus sobre outro prédio urbano;
b) seja declarado que sobre prédio urbano dos réus, na estrema norte, está constituída a favor da autora, por destinação de pai de família e usucapião, determinada servidão de passagem, de pé, carro e tractor, com três metros de largura - no sentido nascente-poente, que entesta a nascente com a rua pública e segue no sentido nascente poente, até ao referido prédio rústico da autora e ao arrumo ou dependência da casa de habitação desta;
c) sejam os réus condenados a proceder aos trabalhos necessários no novo leito da servidão, por forma a permitir a passagem da autora pelos referidos meios, directamente para os seus prédios, como antes e conforme o acordado, devendo, para tanto, elevar o leito da serventia (a rampa), desde a entrada até ao nível dos prédios da autora, e devendo, ainda alargar a passagem de modo a perfazer a largura de 3 metros, demolindo o que para tanto do seu prédio necessário for e que sejam ainda os réus condenados a demolir o muro em blocos que construíram a todo o comprimento e a toda a altura do antigo troço de passagem que fica defronte e a nascente do prédio urbano da autora, entre este e a rua pública;
d) se assim não for entendido, sejam os réus condenados a repor o leito da passagem, tal como estava antes da mudança e, como tal, demolir a casa de habitação que entretanto construíram, a nascente e sul, na parte correspondente a três metros da primitiva servidão de passagem, que incluíram nessa construção;
e) sejam os réus condenados a indemnizar a autora de todos os prejuízos materiais e morais que se verificarem por força da sua conduta, cuja liquidação se relega para execução de sentença, por não estarem ainda verificados ou serem por ora insusceptíveis de liquidação;
f) se proceda ao cancelamento do registo predial (descrição e inscrições) relativo ao prédio urbano referido na alínea a) do nº 1 do artigo 1º da petição inicial.
Para fundamentar a sua posição invoca o seguinte:
- A 17-02-2000, os réus acordaram com a autora outorgar um escrito designado por “ contrato de mudança de servidão”, por via do qual ficou constituída em prédio urbano dos réus uma servidão de passagem de pé, carro e tractor, a favor do prédio da autora, “na direcção nascente/poente composto por uma faixa de terreno com 3 metros de largura e comprimento de 12,08 metros, assinalada a vermelho, numa planta topográfica anexa a esse contrato, ficando a mesma situada entre as duas casas e mudada do lado sul para a estrema norte;
- ora, em 2003, após insistências da autora, os réus construíram a servidão no local acordado, mas sem a largura contratada - apenas 2,40 m - e com ligação directa à rua pública, o que não fora acordado, sendo que, para tanto, escavaram e enramparam profundamente o local da passagem até à rua pública, deixando a serventia, à entrada, ao nível da rua, e deixando de ser possível por aí aceder aos prédios da autora, seja de tractor, de carro, ou mesmo a pé, devido à inclinação acentuada da rampa, em virtude do rebaixamento ( a rampa tem cerca de 12 metros, sendo o desnível entre o cimo e a entrada de cerca de 2 metros, sendo esta a medida de rebaixamento, à entrada, a nascente, junto à rua;
- tornou-se impossível à autora aceder à sua casa, por qualquer meio, pois o troço da antiga passagem existente defronte da casa na esquina nascente sul, à entrada do novo leito de passagem, ficou com a altura de pouco menos de dois metros e a casa a mais de um metro de altura do referido leito; o leito da passagem foi cimentado, ficando sem aderência, tornando-se escorregadio; na ausência da autora, os réus muraram, a todo o comprimento e a toda a altura, com blocos de cimento, o troço da antiga passagem que restou defronte da casa da autora, não tendo deixado qualquer abertura ou espaço que permita aceder à casa da autora pelo novo local de passagem ou dela provir directamente para ele e assim, directamente dela aos seus prédio rústico e dependência ou arrumo da casa através desse local.
- tal situação transtornou a autora e deprimiu-a, deixando-a nervosa, e quando se desloca a Portugal fica em casa de pessoas amigas e não mais teve ânimo para ir ao local; e por tal razão, não pode conservar a sua casa, por falta de acesso a toda ela, podendo mesmo vir a ruir, deixando de ter condições de ser habitada, dela não podendo extrair qualquer rendimento; também o rústico deixou de poder ser cultivado, por causa do acesso, pelo que enquanto a passagem assim se mantiver, o autor nenhum rendimento retirará desse prédio, a que título for.
Os réus deduziram contestação, referindo litigar a autora com má fé, porquanto a serventia construída obedeceu integralmente ao acordado, permitindo efectivamente a ligação directa à via pública, e é dela que os réus se servem para aceder, sem qualquer dificuldade, a pé, de carro, de tractor à sua casa e propriedade; o prédio rústico da autora está repleto de mato, ervas daninhas e bicharada, devido à sua incúria; concomitantemente com os trabalhos de melhoria do leito da serventia, os réus realizaram obras de sustação de terras vindas do nível superior do prédio da autora, que além da sujidade, colocavam em perigo quem por lá passasse; é incompreensível a pretensão da autora na elevação do novo leito da passagem até ao nível do seu prédio, pois a sua elevação iria impedir o acesso ao prédio da autora e dos réus.
Feito o saneamento dos autos, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações.
Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:
“Por tudo o exposto, julgo parcialmente provada e parcialmente procedente a causa e nesta medida,
a) declaro e reconheço o direito de propriedade da autora sobre o prédio urbano constituído por casa de habitação de rés-do-chão, dependência e páteo, sita no lugar de ……, concelho de Coimbra, com a área de sensivelmente 73 m2, a confrontar de norte com ….., de sul com a casa seguinte, do nascente com caminho e do poente com ….;
b) declaro e reconheço o direito de propriedade dos réus sobre o prédio urbano destinado a habitação, composto de rés-do-chão e 1º andar, sito no lugar de …., freguesia de …., concelho de Coimbra, com a área matricial de 900 m2, a confrontar de norte com …. ( hoje a autora), do sul com ….., do nascente com caminho público e do poente com …., inscrito na matriz sob o art. 1273º- e que resultou do fraccionamento do prédio urbano mãe inscrito na matriz da freguesia de ….. sob o artigo 112 e descrito na Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob a ficha nº 00639/250990 da freguesia de ….., mais concretamente de “duas terças partes do mesmo” e do rústico inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1566;
c) e em consequência, determino cancelamento do registo predial (descrição e inscrições) relativos ao prédio urbano referido na alínea a) do nº 1 do artigo 1º da petição inicial.
d) Mais declaro que sobre prédio urbano dos réus está constituída a favor da autora servidão de passagem, de pé, carro e tractor, - actualmente na estrema norte e com três metros de largura, conforme acordo de mudança de 17 de Fevereiro de 2000 - no sentido nascente-poente, que entesta a nascente com a rua pública e segue no sentido nascente poente, até ao referido prédio rústico da autora inscrito na matriz rústica sob o artigo 1565 e ao arrumo ou dependência da casa de habitação desta (nas traseiras).
e) Absolvo os réus do pedido de elevação do leito da serventia (a rampa), desde a entrada até ao nível dos prédios da autora,
f) e bem assim do sub-pedido de alargamento da passagem de modo a perfazer a largura de 3 metros, demolindo o que para tanto do seu prédio necessário for;
g) absolvo os réus do pedido de demolição do muro em blocos que os réus construíram a todo o comprimento e a toda a altura do antigo troço de passagem que fica defronte e a nascente do prédio urbano da autora, entre este e a rua pública;
h) absolvo os réus do pedido subsidiário de condenação na reposição do leito da passagem, tal como estava antes da mudança e, como tal, demolir a casa de habitação que entretanto construíram, a nascente e sul, na parte correspondente a três metros da primitiva servidão de passagem, que incluíram nessa construção;
i) absolvo os réus do sub-pedido de condenação em indemnização à autora dos materiais e morais.
Custas pela autora, na medida em que decaiu relativamente a todas as pretensões controvertidas”.
A autora recorreu, peticionando a revogação da decisão recorrida e substituição por outra que julgue a acção procedente, formulando, em síntese Que, por falta de concisão, não se reproduzem na íntegra., as seguintes conclusões:
(…….)
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTOS DE FACTO
(….).

III- FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C.–, salientando-se, no entanto, que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 664 do C.P.C..
Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar, fundamentalmente:
- do erro de julgamento na apreciação da matéria de facto;
- da insuficiência da fundamentação da resposta aos quesitos;
- das nulidades da sentença;
- da excepção do abuso de direito;

2. Está em causa apreciar a resposta do tribunal de 1ª instância aos quesitos 7º, 10º, 14º, 15º, 16º 17º e 20º da Base instrutória, sustentando a apelante que os depoimentos de algumas testemunhas, apreciados na sua globalidade e em conjunto com a restante prova, justificaria decisão diferente, isto é, que se respondesse positivamente aos quesitos 7º (que teve resposta restritiva), 10º (com resposta restritiva), 14º, 15º e 16º (que mereceram resposta negativa) e negativamente aos quesitos 17º e 20º (que mereceram, respectivamente, resposta positiva e restritiva), sendo que se procedeu à gravação da prova produzida em audiência de julgamento. Atente-se na redacção dos quesitos:
“7º: Tendo este sido cimentado, ficando liso, sem aderência e escorregadio?
10º: Não podendo a autora aceder à sua casa, para ela ser habitada, e ao seu prédio rústico, para ele poder ser cultivado?
14º: Não podendo a A. habitar, arrendar ou mesmo conserva-la, podendo ela ruir?
15º: Nem cultivar ela própria o seu prédio rústico, nem havendo quem o queira cultivar?
16º: Causando-lhe isso também problemas materiais?
17º: Utilizam os RR a nova serventia para aceder ao seu prédio, sem qualquer dificuldade?
20º: Sendo isso (isto é, o prédio da autora encontra-se repleto de ervas daninhas, mato, entulho, ratos e outras bicharadas) apenas devido a incúria, desleixo e total abandono da A?”
A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º do C.P.C., a saber:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Por outro lado, dispõe o art. 690º-A do mesmo diploma:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
Vejamos, então, em que termos se deve processar a reapreciação da prova produzida.
Na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção.
Desde logo, e fazendo apelo ao preâmbulo do Dec. Lei 39/95 de 15 de Fevereiro Refere-se no preâmbulo: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”
, o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador.
Depois, não pode o tribunal da Relação pôr em causa regras basilares do nosso sistema jurídico, o princípio da livre apreciação da prova – arts. 396º do C.C. e 655º, nº1 – e o princípio da imediação, sendo inequívoco que o tribunal de 1ª instância encontra-se em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, acessível in www.dgsi.pt, podendo ler-se, neste:«De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)».

O que não obsta, necessariamente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade.
*
Depois de se proceder à audição dos depoimentos constantes do registo- audio, entendemos que não se justifica qualquer alteração à resposta aos quesitos aludidos pela apelante, sendo que, no caso em apreço, a Sra. Juiz até fundamentou devidamente essa resposta, conjugando os vários elementos de prova ao seu dispor, a saber, prova pericial, inspecção ao local A 1ª instância determinou inspecção judicial por despacho de fls. 143, diligência que foi realizada (cfr. acta de fls. 144), sem que se desse cumprimento ao disposto no art. 615º do C.P.C., o que se impunha. Efectivamente, nessa diligência o tribunal de 1ª instância recolheu elementos úteis para o exame e decisão da causa, como resulta à evidência do despacho de fundamentação da resposta aos quesitos, em que a Sra. Juiz até consignou alguns desses elementos. Trata-se de irregularidade que deve ter-se por sanada uma vez que não foi objecto de reclamação, nem aquando da inspecção nem posteriormente, em face do despacho de fundamentação.
, fotografias juntas ao processo e relativas quer ao leito da serventia quer às casas da autora e réus, e depoimentos das testemunhas, analisando-os com recurso a regras de experiência comum, em suma, valorando, criticamente a prova produzida, como impõe o art.653º, nº2 e explicando o seu percurso de avaliação, de uma forma que temos por particularmente minuciosa. Pode ler-se no despacho de fundamentação, a fls. 148 e 149:
“Desde já se sublinha que, no caso, a prova testemunhal será de somenos importância, considerando o teor objectivo da maior parte dos quesitos – incidindo sobre factos susceptíveis de observação directa – e que cabalmente o tribunal pode esclarecer, por via da prova pericial produzida e resultado da inspecção ao local, assim como as reproduções fotográficas juntas a fls. 140 e 49 que reproduzem com fidelidade o que ali se acha erigido. No seu laudo de fls. 110, os Srs. peritos responderam de forma objectiva às questões suscitadas e que passaram por medições várias, aí exaradas, tendo compulsado na largura da serventia um pequeno espaço transitável mas destinado a valeta, rebaixado (de ambos os lados do leito propriamente dito), visível na fotografia I de fls. 140 e fls. 49. Assim, ressalta que a largura de três metros de parede a parede não foi observada, em toda a extensão, justificando os réus tal facto (…). Não obstante, (…) ainda assim, a largura mínima que se detecta permite a passagem de qualquer veículo de pequeno ou médio porte, assim como carro de bois ou tractor médio.
Da inspecção ao local retiramos confirmação das medidas apontadas pelos Srs. Peritos, resultando ainda das medidas tiradas que para chegar à entrada da serventia, saindo da porta da frente da sua casa de habitação, terá a autora que percorrer cerca de 12 metros (percurso que se vê na fotografia II de fls. 140); por outro lado, no local, procedendo à subida da rampa por meio de veículo (Toyota Dyna com caixa e um Fiat Uno), fez-se com relativa facilidade, sendo certo que o troço é direito e não sinuoso; e a pé, do mesmo modo se conclui, apesar do tempo chuvoso, que o leito oferece aderência, embora a rampa seja efectivamente íngreme, oferecendo dificuldade a pessoa que tenha limitações de locomoção em resultado de doença ou de idade avançada. Confirmamos, ainda a alegação de que tal rampa é o único acesso, pedonal ou de carro, que os réus têm para aceder à sua casa de habitação.
Na referida segunda fotografia de fls. 140 ainda vemos parte do trajecto antigo da serventia que atravessava o logradouro da frente da casa da autora, contornando pela frente o conjunto do casario existente, de que restou a ora casa da autora, casario aquele entretanto demolido para edificação da casa dos réus, razão pela qual, na sua extensão, a actual serventia permitirá um encurtamento desse trajecto.
No local, é possível ver que há acesso da traseira da casa de habitação da autora (e do interior desta) para os prédios rústicos da mesma, e, bem assim, que estes se acham ao abandono, estando a casa de habitação desocupada – com o aspecto que a fotografia de fls. 48 evidencia; por outro lado, o muro de blocos de cimento feito permite suportar as terras do logradouro da frente da casa de habitação da autora, estendendo-se até á parece lateral da referida casa, na sua continuação”. Depois, a Srª juiz faz a valoração da prova testemunhal e por fim, refere:
“Os factos aos quais foi dada resposta não provado resultaram da total falta de prova (nomeadamente quanto ao apontado risco de derrocada em resultado da abertura da serventia ou da impossibilidade de acesso) ou de melhor prova ter sido produzida relativamente ao facto oposto”.
Vejamos, no entanto, com mais pormenor, os depoimentos a que a apelante alude, tendo por referência as questões que esta suscitou.
Em parênteses, salientamos apenas que, no que aos depoimentos de parte concerne, para além do que foi referido pela Srª Juiz, as alegações de recurso nada acrescentam de pertinente. Aliás, o que a apelante pretende retirar desses depoimentos mais não são senão conclusões, quando não juízos valorativos, que nem sequer se prendem com a factualidade concretamente quesitada e, portanto, nunca teriam a virtualidade de fundamentar as respostas pretendidas. Acresce que não se vislumbra qualquer outro facto como confessado pelos réus, em sede de depoimento de parte – para além do aludido “rampeamento da serventia” que é referido apenas no despacho de fundamentação –, pelo menos a avaliar pelas actas de audiência, em que não se fez consignar qualquer depoimento confessório e sem que conste, também, registada, qualquer reclamação da autora apelante em virtude disso (cfr. o art. 563º do C.P.C.).
Relativamente às testemunhas:(…..)
Improcedem, pois, as conclusões de recurso, mantendo-se a resposta aos quesitos, nos seus precisos termos.

3. A apelante pretende a anulação da sentença e consequente remessa do processo à 1ª instância com vista a que “a matéria de facto seja devidamente fundamentada”, uma vez que a Sra. Juiz motivou as respostas aos quesitos de forma genérica, omitindo a “obrigação de, a cada quesito (ou, pelo menos, a grupos de quesitos interligados) dizer quais foram os fundamentos probatórios em que o julgador se baseou”.
Nos termos do art. 653º, nº2 do C.P.C. o tribunal deve proceder ao julgamento da matéria de facto “analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador” – trata-se de corolário do dever de fundamentação das decisões, que impende sobre os tribunais e que está constitucionalmente consagrado (art. 205º, nº1 da C.R.P.).
Mas a lei não obriga o juiz a fundamentar a resposta aos quesitos nos moldes indicados pela apelante e utilizando esse tipo de procedimento, ou seja, individualizando, com referência a cada quesito (ou grupo de quesitos), os concretos elementos probatórios a que atendeu. Desde que seja perceptível o percurso de avaliação feito pelo tribunal, nada obsta a que a fundamentação da resposta aos quesitos se faça globalmente, indicando o tribunal, a propósito de cada específico meio probatório, quais os elementos a que atendeu e porquê e, por exclusão de partes, quais os que considerou irrelevantes e por que razão. Como se referiu no Ac. do T.C. de 17/01/2007, proferido no proc. 27/2007 (Relator: Cons. Mota Pinto), acessível in www.tribunalconstitucional.pt, “Importa, porém, notar que, como este Tribunal também já afirmou, “a fundamentação não tem que ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética” (Acórdão n.º 258/2001, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal”.

Foi o que aconteceu no caso em apreço, sendo que, como decorre do que já se expôs, a 1ª instância fundamentou criteriosamente a resposta aos quesitos, enunciando os motivos pelos quais relevou em particular a prova pericial e documental A 1ª instância referiu que “a prova testemunhal será de somenos importância, considerando o teor objectivo da maior parte dos quesitos – incidindo sobre factos susceptíveis de observação directa – (…)”. e especificando, relativamente às testemunhas, as razões por que atendeu ao depoimento de umas e desconsiderou, quanto a algumas matérias, o depoimento de outras – veja-se, por exemplo, a referência feita no despacho às testemunhas Clarisse Figueiredo e Sílvio Cortez –, particularizando a respectiva razão de ciência.
Improcedem as conclusões de recurso.

4. Sob a epígrafe “nulidades”, a apelante suscita um conjunto de questões, algumas das quais se reconduzem à análise do mérito da causa, traduzindo a apelante mera discordância com a decisão.
Comecemos por abordar a invocada omissão de pronúncia (art. 668º, nº1, alínea d) do C.P.C.).
A autora pretende que se reconheça que sobre o prédio urbano dos réus está constituída a favor do seu prédio, por destinação de pai de família e usucapião, uma servidão de passagem, de pé, carro e tractor.
A 1ª instância abordou essa matéria, no que concerne à constituição por destinação do pai de família, em sede de fundamentação de direito, concluindo que se verificam os respectivos pressupostos de aquisição do direito de servidão mas, na parte conclusiva da sentença, nada se referiu a este propósito.
Também quanto à constituição da servidão por usucapião nada se disse. Trata-se de questão que se prende com a factualidade que esta Relação ora deu por provada e que a 1ª instância ignorou por completo, até em sede de fixação de factos provados, sendo notório que inexiste sequer divergência entre as partes quanto a essa matéria.
Efectivamente, os réus não discutem que, com a divisão dos prédios, se manteve a passagem existente entre a casa mãe e o caminho público a nascente, correspondente a um espaço em terra batida, com cerca de 3 metros de largura, sendo por este espaço de terreno que se fazia o acesso das casas e prédios rústicos, para o caminho (rua), acesso esse bem pisado e com marcas de passagem de pessoas, animais e veículos, respeitado por todos os respectivos proprietários por mais de 20, 30 40 e mais anos.
Como não discutem que essa passagem sempre foi feita à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma continuada, estando os proprietários – logo, a autora - convictos do seu direito de passagem para os seus prédios e que não lesavam o direito de ninguém.
Ou seja, verificam-se todos os requisitos da constituição da servidão de passagem a favor da autora, por usucapião, nos termos do art. 1547º do C.C. e tendo em conta o disposto nos arts. 1287º e 1294º, al) b do mesmo diploma.
É certo que se operou, depois, uma mudança no leito da servidão.
Assim, apurou-se que há cerca de seis anos, os réus construíram uma nova habitação “nos seus “ 2/3” (parte determinada) referidos na alínea D) supra, (utilizando também o seu prédio rústico com a inscrição 1566º referido na alínea B) supra - 2ª parte-), nova habitação que tem hoje a inscrição matricial sob o artigo 1273º dessa dita freguesia”, sendo que essa habitação englobou, pelo menos em parte, o espaço de passagem constituído pelo referido leito de servidão.
Por essa razão é que as partes acordaram na “mudança da servidão”, que mais não é senão uma mudança do leito de servidão, que passou a localizar-se em outro local ou sítio, pertencente ainda ao mesmo prédio dos réus – mudança do locus servitutis –, pelo que não estamos perante a constituição de uma nova servidão de passagem, por contrato. Refira-se que a constituição de servidão de passagem por contrato, porque estamos perante direito real constituído sobre imóveis, deve ser feita por escritura pública, sob pena de nulidade e está sujeito a registo, sob pena de não produzir efeitos em relação a terceiros.

Pese embora se tenha alterado o traçado da servidão “o respectivo direito é o mesmo” pelo que não se iniciou uma nova situação possessória. Ac. R.C. de 06/12/2005 (Relator: Cura Mariano), proferido no processo 2564/05, acessível in www.dgsi.pt. Neste sentido refere Tavarela Lobo, in Mudança e alteração da servidão, Coimbra Editora, 1984, p. 94 e 95: “A servidão é sempre a mesma, quer se fixe em definitivo o sítio indeterminado do seu exercício, quer esse sítio seja mudado de lugar para outro do mesmo prédio que por inteiro suporta o ónus. Estamos perante uma simples modificação objectiva de uma servidão que mantém o mesmo conteúdo, modificação que para alguns autores é uma simples modificação de uma modalidade de exercício”

Impõe-se, pois, proferir decisão que especifique o modo de constituição da servidão, por destinação do pai de família e por usucapião, como a apelante pretende, assim se suprindo a nulidade cometida.
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A autora pretende que se reconheça que o prédio urbano dos réus está onerado por uma servidão de passagem a pé, carro e tractor, com três metros de largura, constituída a favor do prédio da autora e, consequentemente, a condenação dos réus a proceder aos trabalhos necessários no novo leito da servidão de forma a permitir a passagem como anteriormente se fazia e conforme o acordado, “devendo, para tanto, elevar o leito da serventia (a rampa), desde a entrada, a nascente, junto da rua pública, até à altura dos prédios da autora e devendo ainda alargar a passagem de modo a perfazer a largura de 3 metros, demolindo o que para tanto do seu prédio necessário for”.
Da factualidade assente resulta que as partes procederam a uma mudança da servidão, por acordo de 17 de Fevereiro de 2000 e o que fundamentalmente está em causa nos autos é apreciar se os réus cumpriram as obrigações emergentes desse acordo.
Quanto a esta matéria, está provado que em 2000-02-17 os réus acordaram com a autora outorgar um escrito designado por “contrato de mudança de servidão”, ficando constituída no prédio dos réus uma servidão de passagem de pé, carro e tractor, do prédio da autora, na direcção nascente/poente composto por uma faixa de terreno com 3 metros de largura e comprimento de 12,08 metros, assinalada a vermelho, numa planta topográfica anexa a esse contrato, ficando a mesma situada entre as duas casas e mudada do lado sul para a estrema norte ( alínea G) dos factos assentes).
A autora invoca o incumprimento desde logo porque o leito da servidão não tem as dimensões acordadas, ou seja, foi construído com largura inferior a três metros que, saliente-se, era já a largura que tinha a servidão no local onde inicialmente estava implantada.
Ora, provou-se, efectivamente, que os réus construíram a servidão com uma largura variável entre 2,85 m e 3,40 m (resposta ao artigo 1º).
Sustenta a apelante que “para além do incumprimento contratual por parte dos recorridos e da falta de fundamentação e ilegalidade da alínea f) da decisão, é manifesto que a resposta ao quesito 1º é contraditória ou incompatível com a alínea d) da decisão, e esta, bem como a alínea g) dos factos assentes, são incompatíveis com a alínea f) da decisão”.
O vício em causa, a que se reporta o art. 668º, nº1, alínea c) do C.P.C. verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados conduzem, logicamente, a um resultado oposto àquele que foi consignado na decisão.
Na hipótese em apreço não ocorre qualquer contradição.
A 1ª instância, apreciando do direito invocado pela autora, e com fundamento no acordo relativo à mudança de servidão, para o qual expressamente remete, declarou que a servidão em causa é uma “servidão de passagem, de pé, carro e tractor, - actualmente na estrema norte e com três metros de largura, conforme acordo de mudança de 17 de Fevereiro de 2000 - no sentido nascente-poente, que entesta a nascente com a rua pública e segue no sentido nascente poente, até ao referido prédio rústico da autora” – alínea d) da parte conclusiva da sentença
Assim, a circunstância de se ter provado que o leito do caminho construído pelos réus, na sequência desse acordo, tem uma largura variável entre 2,85 m e 3,40 m (resposta ao artigo 1º), não é susceptível de colidir com essa declaração, que se limita a declarar o direito em função do acordo celebrado.
Por outro lado, a 1ª instância desvalorizou a divergência de valores verificada, pelos motivos enunciados na decisão – naturalmente, o que interessa é o limite inferior, de 2,85, e não o excedente.
Concomitantemente, o tribunal absolveu os réus do pedido feito pela autora e alusivo à condenação dos réus no alargamento da passagem de modo a perfazer a largura de 3 metros, demolindo o que para tanto do seu prédio necessário for – alínea f) da parte conclusiva da sentença.
Pode ler-se na sentença:
“Provou-se que os réus construíram a servidão com uma largura variável entre 2,85m e 3,40m, razão pela qual urge concluir que não observa ao longo de toda a dimensão os referidos 3,00 metros de largura mínima.
O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”, n.º 1 do artigo 762º do Código Civil. Acrescenta o nº 2 do mesmo preceito que “no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”. Nos termos do n.º 1 do artigo 763º do Código Civil “a prestação deve ser realizada integralmente e não por partes, excepto se outro for o regime convencionando ou imposto por lei ou pelos usos”.
Mas será que tal incumprimento, pela sua dimensão, importa a conclusão de que para sua estrita observância deverá demolir-se “o que necessário for” ( no caso, a parede norte da nova construção edificada pelos réus, o que teria por natural consequência o colapso da mesma habitação)?
A resposta não pode deixar de ser negativa. O espaço mínimo de passagem disponível - de 2,85m permite que qualquer tractor ou carro aí circule: o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tem escassa importância.
Neste conspecto, afigura-se manifestamente excessivo que, perante um incumprimento de tão pequena dimensão e gravidade, a autora usando do seu direito possa obter a demolição de uma casa de habitação.
A hipótese fáctica configurada chama necessariamente à colação o instituto do abuso de direito. O instituto do abuso do direito tem aplicação sempre que o titular de um direito, baseando-se nesse mesmo direito, o use de forma a violar a própria ideia de justiça. Pesquisando a doutrina, encontramos a definição de J.M. Coutinho, no seu “Do abuso de direito”, Almedina, 1983, pag. 42 : “há abuso do direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”. Cunha e Sá escreve: “abusa-se da estrutura formal desse direito, quando numa certa e determinada situação concreta se coloca essa estrutura ao serviço de um valor diverso ou oposto do fundamento axiológico que lhe está imanente ou que lhe é interno” (O Abuso do Direito, pag. 456). É necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. Permitir tal demolição seria um manifesto abuso do direito.
Neste ponto improcedem, pois, as conclusões de recurso.

5. A apelante insurge-se, ainda, contra a decisão recorrida na parte em que aí se considerou manifestamente abusivo permitir a demolição da casa de habitação que os réus construíram no seu prédio, na medida do necessário para alargar a passagem para os três metros, nos moldes a que supra se aludiu.
Concordamos inteiramente com o raciocínio expendido na decisão, parecendo-nos que a exigência de demolição formulada pela apelante excede, de forma manifesta, os limites impostos pela boa fé.
A boa fé em sentido objectivo significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legitima confiança ou expectativa dos outros.
O abuso de direito (art. 334º do C.C.) é uma das figuras sintomáticas concretizadoras da cláusula geral da boa fé. Ele verifica-se quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.
No caso, a apelante alegou que os réus”construíram a servidão de passagem no novo local, o local acordado” mas “construíram-na com apenas 2,40 metros de largura”, o que, aliado ao facto dos réus terem ligado a passagem directamente à via pública, escavando e enrampando o leito da serventia, sobretudo à entrada, tornou “impossível aceder por aí aos prédios da A. (ou a qualquer parte deles), seja de tractor (armado ou não de alfaias agrícolas e carregado ou não), de carro ( de bois ou de automóvel) e mesmo a pé, em virtude da inclinação acentuada da rampa de subida, por força do rebaixamento do solo” – arts. 51º a 55º da petição inicial.
Ora, provou-se apenas que os réus construíram a servidão com uma largura variável entre 2,85 m e 3,40 m e que o leito da serventia é cimentado e inclinado, com inerente dificuldade para o acesso pedonal, mormente a quem tiver dificuldades de locomoção, mas não se encontra escorregadio. Ou seja, com referência ao valor previsto pelas partes e que a antiga servidão já tinha, (3 metros) estamos a falar de uma diferença na largura do leito da servidão, em algumas partes do seu percurso, no valor de 15 centímetros, o que, rigorosamente, corresponde ao seguinte segmento de recta:
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Quanto ao mais, a apelante não logrou provar a factualidade que invocou, como resulta da conjugação da resposta aos quesitos 8º a 11º e da resposta negativa ao quesito 18º O quesito 18º tem a seguinte redacção:
“Obras de elevação da rampa iriam impedir o acesso aos prédios da A., dos R.R. e de quem quer que seja?” . Aliás, a propósito desta matéria, salienta-se a expressividade do relatório pericial quando os Srs. Peritos, por unanimidade, à pergunta “A Autora pode aceder à sua casa ou ao seu prédio rústico desde a servidão em apreço? Em caso afirmativo, com que meios e com que dificuldade?” responderam da seguinte forma:
“Sim. A largura varia entre 2.85 m e 3,40 m e a inclinação é de 16%, sendo a serventia acessível com as limitações inerentes aos aspectos referidos, a pé, de carro e com tractor”.
Ou seja, o estreitamento da passagem e as demais características da mesma, nomeadamente a inclinação com que foi construída, não prejudicam os interesses da autora, proprietária do prédio dominante, que continua a ter acesso a pé, de carro e com tractor, pelo que, implicando a alteração pretendida pela apelante o desabamento da casa de habitação dos réus, como se referiu na sentença e a apelante não questiona – a casa tem a sua parede norte encostada ao leito da serventia, como se nota nas fotografias juntas a fls. 140 –, conclui-se que o exercício desse direito excede, manifestamente, os limites impostos pela boa fé.
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Entende ainda a apelante que a factualidade assente, nomeadamente a vertida na alínea G), é suficiente para concluir “pelo incumprimento contratual por parte dos réus” – essencialmente, o que a autora alegou foi que “o acesso de cada uma das partes ao novo local de passagem, desde a rua pública, era feita pelos respectivos prédios urbanos, e não que as partes acediam directamente da via pública à nova passagem por um e só mesmo local, situado defronte da passagem” –, pelo que sempre a acção devia ser julgada procedente.
A apelante não aduz qualquer questão nova, tendo essa matéria sido expressamente abordada na decisão recorrida, como segue:
“Para aceder ao seu rústico (e bem assim às dependências da traseira da sua casa de habitação), a partir da porta da frente da casa, a autora tem de percorrer (apenas) 12 metros até à entrada da nova serventia, pela via pública.
A abertura de passagem no muro edificado pelos réus apresentaria uma utilidade marginal acrescida para a autora inegável: poder aceder ao rústico existente na traseira da casa (ou traseira do próprio prédio de habitação) a partir da frente da sua habitação sem necessitar de ir à via pública ou de atravessar o interior da sua casa …… Mas se não foi deixado no muro qualquer abertura ou espaço que permita o acesso de e para a casa da autora, a partir do leito da nova serventia, tal não constitui qualquer incumprimento, pois tal previsão não consta do acordo.
Na verdade, o seu urbano confina directamente com a via pública. As servidões de passagem destinam-se a permitir a ligação dos prédios à via pública e não entre prédios do mesmo dono ou de uma parte de um prédio para outra do mesmo.
A edificação do muro é decorrência do novo traçado, que liga directamente o prédio rústico da autora sito nas traseiras da sua habitação, (e dependências da parte de trás do prédio de habitação), à via pública, - tendo a solução adoptada resultado em natural benefício da autora, pois o espaço sito à frente da sua casa, originariamente ocupado com o troço inicial da serventia, deixou de estar onerado relativamente aos prédios dos réus…
Ou seja, pelo anterior traçado, para acederem aos seus prédios, os réus passariam no logradouro (frente) da habitação da autora; por via da nova serventia, esta deixou de todo de onerar o prédio da autora, mormente o de habitação (seu logradouro da frente).
A pretensão da autora não tem assim fundamento, à luz da alteração operada, sendo desproporcionada e sem fundamento.”
Concordamos com a Sra. Juiz pelo que também neste ponto improcede a argumentação da apelante.
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Conclusões
1. A lei não obriga o juiz a fundamentar a resposta aos quesitos individualizando, com referência a cada quesito (ou grupo de quesitos), os concretos elementos probatórios a que atendeu. Desde que seja perceptível o percurso de avaliação feito pelo tribunal, nada obsta a que a fundamentação da resposta aos quesitos se faça globalmente, indicando o tribunal, a propósito de cada específico meio probatório, quais os elementos a que atendeu e porquê e, por exclusão de partes, quais os que considerou irrelevantes e por que razão.
2. A mudança do leito de servidão, que passou a localizar-se em outro local ou sítio, pertencente ainda ao mesmo prédio dos réus – mudança do locus servitutis – não implica a constituição de uma nova servidão de passagem, por contrato. Pese embora se tenha alterado o traçado da servidão “o respectivo direito é o mesmo” pelo que não se iniciou uma nova situação possessória.
3. O estreitamento da passagem e as demais características da mesma, nomeadamente a inclinação com que foi construída, não prejudicam os interesses da autora, proprietária do prédio dominante, que continua a ter acesso a pé, de carro e com tractor, pelo que, implicando a pretensão da autora (de condenação dos réus a proceder às obras necessárias para repor a passagem nos moldes convencionados) o desabamento da casa de habitação dos réus, conclui-se que o exercício desse direito excede, manifestamente, os limites impostos pela boa fé.
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Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, altera-se a sentença recorrida na parte em que aí se conclui conforme consta da alínea d), pelo que se declara que sobre prédio urbano dos réus está constituída a favor do prédio da autora, identificado sob a alínea a), por destinação do pai de família e usucapião, a servidão de passagem, de pé, carro e tractor, - actualmente na estrema norte e com três metros de largura, conforme acordo de mudança de 17 de Fevereiro de 2000 - no sentido nascente-poente, que entesta a nascente com a rua pública e segue no sentido nascente poente, até ao referido prédio rústico da autora inscrito na matriz rústica sob o artigo 1565 e ao arrumo ou dependência da casa de habitação desta (nas traseiras).
No mais, mantém-se a decisão.
Custas a cargo de ambas as partes, fixando-se em 90% a cargo da apelante e 10% a cargo dos recorridos.