Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1006/10.7TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONTRATO DE MANDATO
SUBMANDATO
PROCURAÇÃO
DIREITO À REMUNERAÇÃO
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 262º, 265º, 1157º, 1165º, 1170º, 1158º E 1167º DO C. CIV.
Sumário: I - Na nossa lei civil fundamental a representação é dominada pela procuração. Esta tem, na linguagem jurídica corrente, um duplo sentido: traduz o acto pelo qual se confiram, a alguém, poderes representação – e, em simultâneo, exprime o documento em que tal negócio tenha sido exarado (artº 262 do Código Civil).

II - Enquanto acto, a procuração é um negócio jurídico unilateral: reclama apenas um única declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que produza os seus efeitos: caso não queria ser procurador, o beneficiário terá de renunciar á procuração (artº 265 nº 1 do Código Civil). A procuração, enquanto negócio jurídico, está, naturalmente, submetida aos respectivos preceitos gerais.

III - O Código Civil actual cindiu a procuração do mandato: a primeira promove a concessão de poderes de representação; o segundo dá lugar a uma prestação de serviço (artº 1157 daquele diploma legal).

IV - O mandato civil corresponde a uma das mais antigas formas de cooperação e resolve-se no contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, que, por qualquer motivo, não quer ou não pode praticá-los pessoalmente (artº 1170 nº 1 do Código Civil).

V - Sendo o mandato oneroso, ao mandatário assiste o direito à remuneração devida pela execução do mandato, remuneração que, quanto à sua medida, não havendo acordo das partes, é determinada pelas tarifas profissionais, na sua falta, pelos usos, e na falta daquelas tarifas e destes usos, por juízos de equidade (artº 1158 nº 2 e 1167 b), 1ª parte, do Código Civil). Relativamente aos advogados, aquela medida, ou melhor, os seus parâmetros, é dada pela sua lei estatutária (artº 100 nºs 1 a 3 do EOA).

VI - É elemento essencial do contrato de mandato que o mandatário esteja obrigado, por força do contrato, a praticar um ou mais actos jurídicos (artº 1157 do Código Civil).

VII - Ao mandatário é lícito, na execução do mandato, fazer-se substituir por outrem ou servir-se de auxiliares, nos memos termos que o procurador o pode fazer (artº 1165 do Código Civil).

VIII - O exercício da faculdade de substituição só é admissível se o mandante o permitir ou se essa faculdade resultar do conteúdo do mandato (artº 264 nº 1, ex-vi artº 1165 do Código Civil). Todavia, salvo indicação diversa do mandante ou do conteúdo do mandato, o mandante goza de inteira liberdade na escolha do substituto, sem prejuízo, obviamente, da sua responsabilidade por essa escolha, devendo notar-se que se a substituição foi autorizada, o mandatário só é responsável para com o mandante se agiu com culpa na escolha do substituto ou nas instruções que lhe deu – culpa in eligendo vel instruendo (artº 264 nº 4, ex-vi artº 1165 do Código Civil).

IX - No submandato – como, aliás, em qualquer outro subcontrato - a posição relativa das partes não se altera, em princípio, pelo facto de se celebrar o contrato derivado. O mandante continua titular do direito à prestação a que o mandatário se vinculou, e adstrito – se o mandato for oneroso - ao dever de pagar a remuneração ou os honorários; o mandatário, por seu lado, continua obrigado à realização da prestação e credor da remuneração ou dos honorários acordados. Com a conclusão do submandato ocorre, simplesmente, a substituição da actividade de execução.

X - A lei não disponibiliza ao submandatário uma acção directa contra o mandante. Esta conclusão não deixa sem tutela a posição jurídica do submandatário, a que sempre fica aberta a porta da commodum representationis, da acção sub-rogatória, do enriquecimento sem causa e da responsabilidade aquiliana (artºs 794 e 803, 606, 473 e 483 nº 1 do Código Civil).

XI - O acto de substabelecimento dos poderes forenses conferidos através do mandato forense ou judicial compreende-se nos limites dos poderes de representação conferidos pelo mandante ao mandatário judicial; por força do carácter representativo do mandato forense, os efeitos do acto de substabelecimento repercutem-se, não na esfera do mandatário, mas directamente na do mandante; com o acto de substabelecimento dá-se a conclusão, por intermédio do mandatário, de outro e novo contrato de mandato que vincula directamente o mandante e o mandatário substabelecido, passando a coexistir, se o substabelecimento é feito com reserva, dois mandatários.

Decisão Texto Integral:                 Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                              

1. Relatório.

                O Sr. Advogado, Dr. F…, propôs, no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã, contra C…, Lda., acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, pedindo a condenação da última a pagar-lhe a quantia de € 14 400,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos, no valor de € 437,13, e vincendos.

                Fundamentou a sua pretensão no facto de a ré haver contratado dos serviços do Advogado, Dr. L…, que, com conhecimento e assentimento da ré, substabeleceu em si os poderes que aquela lhe conferiu, tendo-lhe pago, da conta de honorários que lhe apresentou em Fevereiro de 2009, no valor de € 150 000,00, a quantia de € 60 000,00, ficando a dever-lhe a quantia € 93 000,00, acrescidos de IVA, e de a ré, apesar das solicitações, não lhe ter pago a quantia de € 14 400,00, referente a seis processos em que trabalhou.

                A ré defendeu-se alegando que actuação do autor não se inscreveu no quadro de contratação dos seus serviços, mas num quadro de colaboração com o Dr. L…, seu mandatário, que contratou para que a representasse em processos fiscais e administrativos, não existindo qualquer procuração a favor do autor, sempre tendo entendido que as suas contas se fariam com o Dr. L…, que depois faria as que tivesse a fazer com o autor, que, em princípios de 2009, ponderou contratar directamente o autor, tendo sido confrontada, em Fevereiro desse ano com um pedido de pagamento parcial e provisão de honorários do autor, com a cominação de que são os liquidasse, renunciaria aos mandatos, e que não tendo conseguido encontrar novo mandatário, continuou a relação com o autor, tendo-lhe pago, em Julho de 2009, € 60 000,00, valor equivalente ao que pagara, no ano anterior, ao Dr. L…, não lhe tendo solicitado o envio de uma lista discriminada dos honorários de cada processo, que não se obrigou a liquidar.

                Na sequência da audiência de discussão e julgamento – realizada com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – foi proferida sentença que julgou a acção procedente.

                Apelou a ré, pedindo a revogação desta sentença e a sua absolvição do pedido.

                Ordenada pelo propósito de mostrar o mal fundado da decisão impugnada, a recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões:

                Na resposta, a recorrida concluiu pela improcedência do recurso.

               

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

                2.1. O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto do modo seguinte:

                2.3. O decisor do tribunal a quo adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1.1. e 2.1.2., a seguinte motivação:

Os factos dados como provados colhem a sua demonstração na confissão das partes sobre os factos vertidos em a, b, c, e serviços prestados e vertidos em r) e respectivos honorários. Sobre as circunstâncias em que o autor prestou os serviços forenses à ré valorou-se, essencialmente, o depoimento da testemunha Dr. L…que de forma clara relatou todo o circunstancialismo em que exerceu o mandato forense conferido pela ré, que substabeleceu com reserva no Dr. F… e se desligou dos processos; que a independência do autor era total; que nunca teve contas com o Dr. F…; que era a ré que pagava os honorários ao Dr. F…;

Depoimento do SR…., que de forma clara, relatou que era advogado no escritório do autor; que fazia a ligação com a ré; que várias vezes se deslocou a Viseu para contactos com a ré, através do Sr. Dr. …, advogado e funcionário da ré; que a independência do autor era total;

Depoimento da testemunha …, funcionária do autor e gestora d clientes, que de forma clara, coerente e sustentada relatou os contactos telefónicos que manteve com o departamento financeiro da ré; que lhe era respondido que iriam pagar;

Depoimento da testemunha …, advogado e funcionário da ré que corroborou os contactos com o Sr. Dr. …, advogado do escritório do autor; que era através deste sr. advogado que a ré fazia a ligação com o autor; que recebia directamente da Covilhã as peças processuais elaboradas pelo autor; que a ré continuou a mandar processos, directamente, para o autor; mais disse que a ré fez um pagamento de honorários ao autor;

A testemunha … confirmou os pagamentos de honorários ao autor e o envio de taxas de justiça e processos directamente para a Covilhã;

Face a tais depoimentos e ao teor da nota de pedido de honorários e listagem de processos de fls. 27, cheques de fls. 73 e 74 relativos ao pagamento de honorários ao escritório do autor; faxe de fls. 75 onde o autor relembra à ré os honorários em falta; doc. de fls. 78 e lista de processos; e, ainda, sobre os honorários a documentos de fls. 04, dirigido pela ré ao autor em que aquela expressamente afirma “ … não nos merecendo qualquer reparo os honorários …” deu-se como provado o mandato forense e os honorários devidos pela ré ao autor. Sobre os pagamentos ao Dr. L… atendeu-se ao depoimento deste e recibos juntos aos autos.

Não se valoraram os depoimentos prestados em contrário ao supra decidido, bem como se não faz qualquer referência aos restantes documentos porque inócuos para a decisão ou reportados à relação entre a ré e Dr. L…, que é estranha ao objecto destes autos.

               

3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].

                Nestas condições, de harmonia com a vinculação temática deste Tribunal ao conteúdo da sentença impugnada e das alegações das partes, a questão concreta controversa consiste em saber a decisão da matéria de facto do tribunal de que provém o recurso deve ser, com fundamento nu error in iudicando, modificado, e se, em face dessa modificação, a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente do pedido.

                A resolução deste problema vincula, naturalmente, à aferição dos poderes de controlo desta Relação relativamente ao julgamento da matéria de facto da 1ª instância e à reponderação desse julgamento.

                Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com o recorte sumário do contrato de mandato e do conteúdo da posição jurídica do mandante e do mandatário e obrigações que dele emergem para o mandante e para o mandatário.

3.2. O contrato de mandato.

                Na nossa lei civil fundamental a representação é dominada pela procuração. Esta tem, na linguagem jurídica corrente, um duplo sentido: traduz o acto pelo qual se confiram, a alguém, poderes representação – e, em simultâneo, exprime o documento em que tal negócio tenha sido exarado (artº 262 do Código Civil).

                Enquanto acto, a procuração é um negócio jurídico unilateral: reclama apenas um única declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que produza os seus efeitos: caso não queria ser procurador, o beneficiário terá de renunciar á procuração (artº 265 nº 1 do Código Civil). A procuração, enquanto negócio jurídico, está, naturalmente, submetida aos respectivos preceitos gerais.

                O Código Civil actual cindiu a procuração do mandato: a primeira promove a concessão de poderes de representação; o segundo dá lugar a uma prestação de serviço (artº 1157 daquele diploma legal).

                Contudo, a lei pressupõe a existência sob a procuração de uma relação entre o representante e o representado, de um negócio-base, em cujos termos os poderes e deveres dela emergente devem ser exercidos.

                Normalmente, esse negócio-base é um contrato de mandato. A procuração e o mandato ficam, assim, numa específica situação de união. De resto, é a própria lei a mandar aplicar ao mandato regras próprias da procuração (artºs 1179 e 1179 do Código Civil).

                Esta circunstância explica que, muitas vezes, a lei, tendo em vista a procuração, não se refira directamente a esta – mas ao negócio que lhe subjaz: o mandato.

                Assim, por exemplo, considera-se mandato forense o mandato judicial para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz (artº 62 nº 1 a) do EOA, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, com as alterações decorrentes do DL nº 226/2008 e da Lei nº 12/2010, de 25 de Junho, e 2 da Lei nº 49/04, de 24 de Agosto). O exercício do mandato forense constitui acto próprio dos advogados e, portanto, só pode ser praticado por advogado com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados (artº 1 nºs 1 e 5 a) da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto).

                O mandato civil corresponde a uma das mais antigas formas de cooperação e resolve-se no contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, que, por qualquer motivo, não quer ou não pode praticá-los pessoalmente (artº 1170 nº 1 do Código Civil).

                Na sua configuração mais típica, o assunto ou negócio que é objecto da gestão pertence ao mandante, sendo este o titular da necessidade a cuja satisfação se dirige a actividade do mandatário.

                Nos seus traços descritivos gerais, o mandato é um contrato consensual, sinalagmático imperfeito e supletivamente gratuito: a lei não sujeita o mandato a nenhuma forma solene; no caso de ser gratuito, as prestações a que o mandante se encontre vinculado não equivalem às adstrições do mandatário; o mandato presume-se oneroso quando é exercido no âmbito da profissão do mandatário[2] (artºs 1157 e 1158 nº 1 do Código Civil).

                Sendo o mandato oneroso, ao mandatário assiste o direito à remuneração devida pela execução do mandato, remuneração que, quanto à sua medida, não havendo acordo das partes, é determinada pelas tarifas profissionais, na sua falta, pelos usos, e na falta daquelas tarifas e destes usos, por juízos de equidade (artº 1158 nº 2 e 1167 b), 1ª parte, do Código Civil). Relativamente aos advogados, aquela medida, ou melhor, os seus parâmetros, é dada pela sua lei estatutária (artº 100 nºs 1 a 3 do EOA).

                A obrigação de renumerar o mandatário que vincula mandante constitui uma obrigação pecuniária. Se se constituir em mora no tocante ao cumprimento dessa obrigação – constituição que ocorre, regra geral, com a sua interpelação para o cumprimento – o mandante fica vinculado à obrigação de reparar o dano causado ao mandatário com o retardamento da realização da prestação (artºs 804 nºs 1 e 2 e 805 nº 1 do Código Civil). Tratando-se de uma obrigação pecuniária, essa indemnização corresponde, em princípio, aos juros legais, contados desde a constituição do mandante em mora (artº 806 nºs 1 e 2 do Código Civil.

                O mandato implica, para o mandatário, uma prestação de facere: a prática de um ou mais actos jurídicos - por conta da outra (artº 1157 do Código Civil).

                É elemento essencial do contrato de mandato que o mandatário esteja obrigado, por força do contrato, a praticar um ou mais actos jurídicos (artº 1157 do Código Civil). A natureza do seu objecto - prática de actos jurídicos é, de resto, o que o mandato tem de específico em relação aos demais contratos de prestação de serviço[3]. Esse acto jurídico é um acto alheio, o que faz com que o mandato surja nitidamente como um contrato de cooperação jurídica entre sujeitos e, além disso, um contrato gestório (artº 1161 b) do Código Civil)[4].

                É igualmente elemento essencial do mandato que o mandatário actue por conta do mandante. Um negócio jurídico é praticado por conta de outrem, sempre que os seus efeitos ou parte deles se devam projectar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não interveio. Por conta de outra, significa que os actos a praticar pelo mandatário se destinam á esfera do mandante.

                Note-se, porém, que por conta de não significa no interesse de: o mandato pode ser exercido contra os interesses do mandante, mas nem por isso deixará de haver mandato[5].

                Estruturante, neste domínio, é, por outro lado, a distinção entre mandato sem representação e mandato com representação.

Pelo mandato simples, os efeitos do acto jurídico praticado pelo mandatário repercutem-se na sua própria esfera jurídica (artº 1180 do Código Civil); quando o mandato seja representativo, repercutem-se na esfera jurídica do mandante nos mesmos termos em que os actos praticados pelo representante se repercutem directamente na esfera do representado. A representação não faz, portanto, parte da essência do mandato: é algo que se lhe pode acrescentar, mas que não lhe é estrutural; com poderes de representação, o mandatário actua contemplatio domini, em nome do mandante.

                O mandato, na sua configuração típica, é sempre no interesse do mandante e este interesse mantém-se ainda que concorra interesse de terceiro[6]. O mandato deve ser cumprido pelo mandatário, no interesse do mandante. Actuar no interesse do mandante não é a mesma coisa que actuar um interesse de outrem: agir no interesse alheio é agir em benefício ou vantagem de outrem, defendendo aquilo que se sabe – ou se pensa ser – o interesse dessa pessoa.

                Não deve confundir-se a actuação da interposta pessoa no interesse do principal com a contemplatio domini, que constitui uma das condições da representação. A contemplatio domini não significa propriamente actuação do representante no interesse do representado – mas sim que aquele deve revelar que realiza o acto em nome deste.

                O conhecimento pela outra parte de tal situação – conhecimento que, aliás, pode resultar das circunstâncias – é indispensável para se dar a eficácia directa total do negócio representativo sobre a esfera jurídica do representado.

                O negócio representativo só produz os seus efeitos na esfera do representado se ocorrerem dois elementos: o poder de representação, concedido pela lei ou pelo representado, e a actuação do representante em nome deste. É evidente que não se torna indispensável empregar a expressão em nome de; pode usar-se de outras fórmulas, ou pode mesmo a contemplatio domini resultar das circunstâncias.

                A declaração de actuar em nome alheio tem um triplo significado e alcance: o mandatário não quer que o negócio produza efeitos na sua esfera jurídica; esses efeitos ficam à disposição da pessoa em cujo nome o negócio foi praticado; a outra parte não pode impedir que os efeitos se projectem sobre o representado, se este efectivamente declarou ou vier a declarar que deles se apropria.

                Quando o mandatário não declara, nem por qualquer modo, manifesta a vontade de actuar em nome alheio, nem esta intenção se extrai das circunstâncias, entende-se que actua em nome próprio – ainda que porventura a outra parte saiba que ele pratica o acto por conta de outrem[7].           Como actua em nome próprio, assume a posição de parte e, em princípio, recebe na sua esfera jurídica os efeitos que decorrem do negócio.

                Ao mandatário é lícito, na execução do mandato, fazer-se substituir por outrem ou servir-se de auxiliares, nos memos termos que o procurador o pode fazer (artº 1165 do Código Civil). O exercício da faculdade de substituição só é admissível se o mandante o permitir ou se essa faculdade resultar do conteúdo do mandato (artº 264 nº 1, ex-vi artº 1165 do Código Civil). Todavia, salvo indicação diversa do mandante ou do conteúdo do mandato, o mandante goza de inteira liberdade na escolha do substituto, sem prejuízo, obviamente, da sua responsabilidade por essa escolha, devendo notar-se que se a substituição foi autorizada, o mandatário só é responsável para com o mandante se agiu com culpa na escolha do substituto ou nas instruções que lhe deu – culpa in eligendo vel instruendo (artº 264 nº 4, ex-vi artº 1165 do Código Civil).

                Não é, portanto, incompatível com o mandato que o mandatário constitua um novo mandato dependente do primeiro, que com base nos direitos que lhe advém do contrato de mandato – dito contrato base ou principal – celebre um outro contrato da mesma espécie, subordinado ao primeiro, i.e., um subcontrato de mandato.

                O Código Civil – contrariamente à sublocação – não oferece qualquer definição de submandato, mas não deixa de fazer-lhe várias referências indirectas (artºs 261 nº 2, 264 e 1165 do Código Civil).

                O submandato é um subcontrato pelo qual o mandatário dispõe do conteúdo da sua posição contratual – sem, contudo, em regra, a perder – e outorga um novo contrato de mandato a terceiro, a fim de este cumprir as obrigações que emergiam, para aquele, do primitivo negócio jurídico. No submandato, o mandatário assume a posição de mandante – submandante – em face do submandatário, ao mesmo tempo que conserva os seus poderes e deveres relativamente ao dominus.

                O mandatário pode transferir para terceiro – que no caso do mandato forense tem, necessariamente, de ter a qualidade de advogado – os seus poderes sempre que o mandato não tenha sido celebrado intuitus personae, o mandante o tenha autorizado ou seja necessário para o bom desempenho do encargo (artº 264 nº 1 do Código Civil).

                O mandatário pode, portanto, transferir para terceiro todos ou parte dos poderes que lhe foram conferidos. Todavia, mesmo no caso de transferência total, haverá submandato desde que subsistam os laços contratuais entre ele e o mandante.            

No submandato – como, aliás, em qualquer outro subcontrato - a posição relativa das partes não se altera, em princípio, pelo facto de se celebrar o contrato derivado. O mandante continua titular do direito à prestação a que o mandatário se vinculou, e adstrito – se o mandato for oneroso - ao dever de pagar a remuneração ou os honorários; o mandatário, por seu lado, continua obrigado à realização da prestação e credor da remuneração ou dos honorários acordados. Com a conclusão do submandato ocorre, simplesmente, a substituição da actividade de execução.

O submandato, à imagem, de resto, de qualquer outro subcontrato, dá lugar a uma pluralidade de relações jurídicas: as relações contratuais derivadas do contrato base, que vinculam o mandante e o mandatário; as relações, emergentes do subcontrato, que ligam o mandatário e o submandatário ou substabelecido. O terceiro, tornando-se (sub)mandatário do mandatário, não entra na relação jurídica pré-existente.

Problema delicado é o de saber se o subcontratado goza de uma acção directa – i.e., do benefício concedido a certos credores que lhes permite demandar directamente o devedor do seu devedor imediato – portanto, no caso do submandato, se o submandatário está autorizado a demandar directamente o mandante do contrato base de mandato.

A acção directa tem, decerto, carácter excepcional, excepcionalidade que é imposta por três razões: por apenas ser admitida nos casos expressamente determinados na lei; por constituir uma excepção à relatividade dos contratos; por excepcionar a regra de que o património do devedor é garantia comum de todos os credores e que todos eles estão em pé de igualdade.

Na verdade, a acção directa não tem carácter genérico[8], dado que está somente consagrada em normas esparsas da lei, que, por conseguinte, não podem fundamentar o carácter um princípio geral. É o que sucede no sistema jurídico português, em que só está prevista a acção directa do locador contra o sublocatário para cobrança e rendas e alugueres em mora; sendo mais que duvidoso que o legislador tenha querido disciplinar a categoria do subcontrato a propósito da sublocação, a doutrina que se extrai daquela regra não é extensível às restantes figuras sub-contratuais, designadamente ao submandato (artº 1063 do Código Civil). Quer dizer: não se pode deduzir um princípio geral de acção directa no subcontrato, com base na sublocação[9]. Além disso, a admissibilidade da acção directa, com figurar de carácter geral, inutilizaria um meio conservatório da garantia patrimonial: a acção sub-rogatória (artº 606 do Código Civil).

Todavia, o principal argumento usado para fundamentar o carácter excepcional e, portanto, restritivo da acção directa reside no facto de constituir uma excepção a um princípio geral e estruturante dos contratos: o princípio da relatividade (artº 406 nº 2 do Código Civil).

Por último, acção directa é também uma excepção à regra de que o património do devedor é a garantia comum dos credores (artº 601 do Código Civil). Na realidade, por força desta acção, alguns dos credores ficam como que titulares de um privilégio que lhes permite pagarem-se, prioritariamente, em detrimento dos demais.

A conclusão a tirar é, assim, a de que a lei não disponibiliza ao submandatário uma acção directa contra o mandante[10]. Nem esta conclusão deixa sem tutela a posição jurídica do submandatário, a que sempre fica aberta a porta da commodum representationis, da acção sub-rogatória, do enriquecimento sem causa e da responsabilidade aquiliana (artºs 794 e 803, 606, 473 e 483 nº 1 do Código Civil)[11].

De resto, para o exercício da acção directa é necessário, desde logo, o preenchimento deste requisito: o vencimento de ambas as prestações; o incumprimento por parte de ambos os devedores. Na verdade, ao contrário da acção sub-rogatória em que se admite a sua actuação por um crédito vincendo, na acção directa exige-se o vencimento de todas as prestações (artº 607 do Código Civil). Assim, por exemplo, no tocante ao submandato, reclama-se não só o vencimento da prestação que o submandatário tem para o seu credor – o submandante – como também do crédito deste sobre o devedor imediato – o mandante. Doutro modo, possibilitar-se-ia que um credor, sem o consentimento do seu devedor, recebesse a prestação antes do seu vencimento.

De outro aspecto, a acção directa está sujeita a um duplo limite. Por um lado, o limite do crédito do credor sobre o seu devedor; por outro, o limite do débito do seu devedor em relação ao seu credor directo. Assim, o credor que vem reclamar uma quantia, no exercício da acção directa, não poderá exigir montante superior ao seu crédito, nem superior ao débito do subdevedor. Assim, por exemplo, ao locador só é lícito exigir do locatário o que este dever de rendas ou de aluguer, até ao montante do seu próprio crédito (artº 1063, in fine, do Código Civil).

                Simplesmente, o submandato não constitui o único modo admissível de o mandatário se fazer substituir na execução do encargo que para ele decorre do contrato de mandato. Se este contrato o admitir, ao mandatário é lícita a celebração, em representação do mandante, de um novo mandato com terceiro, pelo qual este passa a ser mandatário directo do dominus[12]. Quando isso suceda, a substituição é parcial, subsistindo dois contratos de mandato com conteúdo diverso.

                Abstraindo da cessão do mandato, a substituição na actividade da execução, pode concretizar-se mediante a conclusão de um submandato – em que o terceiro tornando-se (sub)mandatário do mandatário não entra na relação jurídica pré-existente – ou através da conclusão de outro contrato de mandato por intermédio do mandatário, mas em que são partes o mandante e o terceiro, passando, então, a subsistir dois contratos de mandato com conteúdo diverso.

                Note-se, porém, que se o mandatário celebra o submandato em nome do mandante e não em seu próprio nome, o submandatário será um verdadeiro mandatário e os actos praticados por ele entram, imediatamente, na esfera jurídica do mandante. No caso contrário, o submandatário não entra em relação directa com o mandante e os negócios por aquele celebrados repercutem-se na esfera jurídica do mandatário que, por sua vez, os transfere para o dominus. Só neste caso é que é verdadeiramente um subcontrato, portanto, um submandato.

                 Modalidade particular do mandato é, decerto, o mandato forense ou judicial.

                O mandato judicial atribuiu poderes ao mandatário para representar o mandante em todos os termos e actos do processo principal e respectivos incidentes, incluindo-se, entre os poderes que a lei presume conferidos ao mandatário o de substabelecer (artº 36 nºs 1 e 2 do CPC). Quando o mandante se limite a declarar que dá poderes forenses ou para ser representado em qualquer acção, o mandato tem aquele conteúdo (artº 37 nº 1 do CPC).

                O mandato forense ou judicial é, portanto, necessariamente, um mandato representativo[13].

                Figura específica é o substabelecimento do mandato judicial, que se traduz na substituição do mandatário judicial por outrem: o mandatário judicial faz-se substituir por outra pessoa no exercício dos poderes contidos naquele mandato (artº 36 nº 2 do CPC).

                O substabelecimento pode ser instituído com ou sem reserva.

                Entendia-se, em regra, que o substabelecimento sem reserva implica que o mandatário transfere, definitivamente, todos os poderes que lhe foram conferidos, renunciando, consequentemente, ao mandato. O substabelecimento sem reserva significaria a exclusão do mandatário primitivo; inversamente, no substabelecimento com reserva, o mandatário não se desligaria da relação que o liga ao mandante.

                Alguma doutrina sustentava, no entanto, que a cláusula sem reserva, inserta num substabelecimento, podia ter dois significados: renúncia ao mandato ou à procuração inicial; outorga, ao substabelecido, de poderes com conteúdo igual aos do mandato primitivo. A determinação do alcance da cláusula seria, pois, um problema de interpretação, pelo que só em face do caso concreto, e tendo em conta a vontade das partes, será possível averiguar o valor da cláusula.

                Porém, no tocante ao mandato judicial a lei disponibiliza uma solução expressa do problema: o substabelecimento sem reserva implica a exclusão do anterior mandatário (artº 36 nº 3 do CPC).

3.4. Parâmetros dos poderes de controlo da Relação relativamente à decisão da questão de facto da 1ª instância.
                A apelação, dado o seu carácter de recurso global, destina-se também a facultar o controlo da decisão do tribunal de 1ª instância relativamente à matéria de facto e, pode, de resto, ter por único fundamento, um error in judicando dessa matéria.
                Uma modalidade de controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto – de longe a mais relevante – tem por objecto o error in iudicando da questão de facto, resultante do erro na apreciação ou valoração da prova (artº 712 nºs 1 e 2 a) a c) do CPC).

                É indiscutível a afirmação de que, a par da utilização de um processo justo e da escolha e interpretação correctas da norma jurídica aplicável, um dos fundamentos de uma decisão justa é o da verdade na reconstituição dos factos objecto do processo.

De nada vale ao juiz uma compreensão exacta da norma aplicável ao caso se, do mesmo passo, se deixa equivocar na apreciação da matéria de facto. O error in judicando da questão de facto traz consigo, inevitavelmente, um erro de direito; erro esse que, nem por ter aquela causa, resultará menos sensível para os destinatários lesados.

A reconstrução da espécie de facto, o saber na realidade como as coisas são ou se passaram, quando este conhecimento dependa de elementos de prova cuja apreciação é deixada ao prudente critério do juiz, é uma actividade extraordinariamente delicada – que ele terá de levar a cabo sem nenhuma ou quase nenhuma ajuda, pode dizer-se, da ciência do direito, que, nada ou quase nada, lhe pode dizer[14].

As dificuldades do controlo da exactidão do julgamento da questão de facto resultam, fundamentalmente, da falta de homogeneidade da assunção das provas pelo tribunal de 1ª instância e pela Relação e da natureza da actividade de julgamento da questão de facto. A atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe que a esse Tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que são asseguradas ao tribunal recorrido.

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[15]. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Mas para que a Relação altere e, portanto, substitua, a decisão da matéria de facto da 1ª instância não é suficiente um qualquer erro. Este erro há-de ser manifesto, ostensivamente contrário às regras da ciência, da lógica e da experiência, que aponte, decisiva e inequivocamente, para, o julgamento do facto, um sentido diverso daquele que lhe imprimiu o decisor da 1ª instância - e não, simplesmente, que se limite a sugerir ou a tornar provável ou possível esse outro sentido[16].

Nem, aliás, é difícil explicar a exactidão de um tal entendimento dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei adjectiva actual reconhece à Relação.

De um aspecto, porque esse controlo e a reponderação correspondente da matéria de facto é efectuado, em regra, a partir da reprodução de registos sonoros, rectior, gravações áudio, de depoimentos, ou da leitura fria e inexpressiva da sua transcrição. Ora, é irrecusável que depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode alguma vez ser medido pelo tom em que foram proferidos; a palavra é simultaneamente um meio de exprimir conteúdos de pensamento e de os ocultar; todas as formas de comunicação não verbal do depoente influem, quase tanto como a sua expressão oral, na força persuasiva do seu depoimento[17]. Realmente, a expressão oral é apenas uma parte bem diminuta da comunicação e, por isso, existem aspectos e reacções dos depoentes que apenas podem ser apreendidos e apreciados por quem os constata presencialmente e que a gravação sonora, e muito menos a transcrição, não tem a virtualidade de registar e que, por isso, são irremissivelmente subtraídos à apreciação do último tribunal relativamente ao qual ainda seja lícito conhecer da questão correspondente[18]. Tratando-se de prova pessoal, rectius, testemunhal, o registo – sonoro ou escrito - comporta o risco de tornar formalmente equivalentes declarações substancialmente diferentes, de desvalorizar depoimentos só aparentemente imprecisos e de atribuir força persuasiva a outros que só na superfície dela dispõem.

A decisão da matéria de facto, respeita, por definição, à averiguação de factos – i.e., a ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, a qualquer mudança do mundo exterior, ao estado, qualidade ou situação real das pessoas e coisas[19] – e o resultado dessa actividade pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Todavia, essa actividade não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, não é uma operação pura e simplesmente lógico-dedutiva – mas uma formação lógico-intuitiva. A dificuldades que daqui decorrem para o controlo dessa actividade são meramente consequenciais.

Por último, convém ter presente que o controlo da matéria de facto tem por objecto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base (artºs 652 nº 3 e 655 nº 1 do CPC)[20].

Decerto que liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objectivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjectiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros. Mas não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente.

O procedimento desenvolvido para estabelecer os factos sobre os quais o tribunal deve construir a sua decisão não é puramente cognitivo, o que explica a inevitável relatividade da certeza histórica de um facto que a prova disponibiliza.

Contudo, esse procedimento, na medida em que assenta num esquema lógico, permite estabelecer uma regra de valoração da prova que se analisa nas proposições seguintes: a valoração da prova é uma operação mental que resolve num silogismo em que a premissa maior é a fonte ou o meio de prova – o depoimento, o documento, etc. - a premissa menor é uma máxima de experiência e a conclusão é a afirmação da existência ou a inexistência do facto que se pretendia provar; as regras de experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos. Deste ponto de vista, a única diferença entre um sistema de prova livre e um sistema de prova legal, consiste no facto de na última, a máxima de experiência, que constitui a premissa menor do silogismo, ser estabelecida ou objectivada pelo legislador, ao passo que, no primeiro, se deixa ao juiz a determinação da máxima de experiência que deve aplicar no caso. Em ambos os casos, o método de valoração da prova não deve ser contrário à lógica, devendo antes ser actuado de harmonia com um critério de normalidade jurídica, derivado do id quod plerumque accidit - daquilo que normalmente sucede[21].

Nestas condições, a apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference. Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[22].

O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis – a realidade ou a inveracidade de um facto – tem menor probabilidade de não ser a correcta.

3.4.1. Reponderação da decisão relativa à matéria de facto da 1ª instância.

Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, no sentido já apontado. É o caso, por exemplo, da prova testemunhal (artº 396 do Código Civil). Essa apreciação baseia-se – já se notou – na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em máximas de experiência (artº 655 nº 1 do CPC). Neste contexto, nada impede, por exemplo, que a convicção do juiz se funde no depoimento de uma única testemunha[23].
Constitui património comum dos operadores judiciários a extraordinária cautela com que deve ser manejada a prova testemunhal, dado o perigo da sua infidelidade, seja ela involuntária – v.g., por erro de percepção ou de retenção do facto – ou voluntária – por vício de parcialidade.
Dadas todas as possíveis causas de erro que actuam sobre a prova testemunhal, é natural um atitude de desconfiança e desânimo por parte de quem se vê forçado a decidir sobre a base de semelhante prova e uma atitude de desconforto por banda de quem tem de controlar uma decisão assente numa prova a que se associa uma tão larga falibilidade. O desencanto é tanto mais lamentável quanto é certo que na prática dos tribunais a prova por testemunhas vem à cabeça de todas as outras, é a prova de uso mais frequente porque é, na maioria dos casos, a única que se pode produzir.
Considerada a enorme variedade de causas que podem dar lugar a que a testemunha não possa ou não queria dizer a verdade, deve usar-se de grande cautela em relação a esta prova e só a sua valoração sob o signo estrito da oralidade e da imediação permite estabelecer, adequadamente, o efeito persuasivo que, em cada caso, lhe deve ser assinalado. De resto, aquele princípio e este seu corolário são comprovadamente adequados a extirpar um dos maiores males da prova testemunhal: a mentira.
Como já se reparou, o resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática.
No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[24].

As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
                Por último, deve ter-se presente que de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa[25].

Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição com o suprimento da decisão daquela instância, a solução e o enquadramento jurídicos do objecto da causa permanecerem inalterados, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser suficiente ou inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação.

O mesmo sucede quando os factos julgados provados na instância recorrida que o recorrente não impugna no recurso impuserem, decisiva e irrecusavelmente, a realidade ou a veracidade dos factos que, segundo o impugnante devem ser declarados não provados, ou, inversamente a inveracidade ou a inexactidão, dos factos que, de harmonia com a alegação do recorrente, devem ser julgados provados.

A controvérsia entre as partes no tocante quaestio facti gravita em torno deste facto capital: a existência ou não de um contrato de mandato forense que vincule a recorrente e o recorrido.

A recorrente sustenta na sua alegação que deve ser aditado aos factos provados que a escolha do autor – recorrido – foi uma escolha pessoal do Dr. L… de que só teve conhecimento já depois de aquele iniciar a sua intervenção nos seus processos. Razão: estes factos resultam do depoimento das testemunhas … e … e de regras de experiência.

 Porém, tais factos são de todo irrelevantes para a decisão segundo a única solução plausível da questão de direito, já que não concorrem em nada para o único enquadramento possível do enquadramento jurídico do objecto da acção. De resto, rigorosamente a apelante nem sequer os alegou no articulado em que deduziu a sua defensa, não sendo, evidentemente, suficiente, para que se devam ser considerados, que a sua realidade tenha resultado da prova produzida.

O mesmo sucede com o facto relativo à continuação do acompanhamento pelo Dr. L… dos processos da recorrente. Esse facto também em nada concorre para qualquer solução jurídica plausível do objecto da causa, visto que o facto de aquele advogado continuar a acompanhar os processos não é incompatível – bem pelo contrário - com a qualidade do autor de mandatário da recorrente, que constitui o nó górdio do litígio que separa aquele e a apelante.

Por essa mesma razão, são também irrelevantes os factos declarados provados pelo tribunal da 1ª instância, identificados na sentença apelada pelas alíneas h) a m) e o) – que a impugnante acha que devem ser declarados não provados - relativos à reclamação pelo autor do pagamento dos honorários que julga serem-lhe devidos, à confirmação pela recorrente do pagamento dos honorários reclamados pelo autor, à ausência de reparos aos honorários apresentados pelo autor, e aos contactos pela apelante apenas com o autor durante mais de mais de 2 anos.

Em primeiro lugar, e de um aspecto, porque a exigibilidade do pagamento dos honorários a que autor se acha com direito não está dependente do reconhecimento pela recorrente do dever do seu pagamento; de outro, porque a recorrente não discute, nem na acção nem no recurso, a razoabilidade do valor dos honorários reclamados pelo autor nem a violação, pelo último, dos parâmetros a que obedece a determinação da sua medida. Depois, porque a exclusividade dos contactos entre o autor e recorrente e a interpelação por aquele desta, exigindo o pagamento dos honorários, resulta dos factos provados identificados nas alíneas q) e s), respectivamente, cujo julgamento a recorrente não impugna no recurso.

A recorrente advogada ainda, na sua impugnação, a adição, aos factos julgados provados pelo decisor da 1ª instância, deste outro facto: que o autor sabia que o pagamento que recebeu lhe foi feito em lugar do Dr.L… e para que fossem feitas contas com ele.

Quanto a este ponto, a impugnação é asperamente infundada: é que a recorrente nem sequer alegou este facto, mas sim o facto inverso: que sempre entendeu que as suas contas se fariam com o Dr. L… e este depois faria as que tivesse que fazer com o autor.

É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção (artº 264 nº 1 do CPC). No tocante aos factos essenciais vale, por inteiro, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes.

A esse poder de disposição quanto aos factos da causa, corresponde um limite do julgamento: o juiz não pode utilizar factos que as partes não tragam ao processo (artº 664 do CPC). Correspondentemente, o decisor da matéria de facto não pode pronunciar-se sobre facto que as partes não tenham alegado. Caso o faça, essa resposta deve considerar-se não escrita, portanto, inexistente (artº 646 nº 4, por interpretação extensiva, do CPC)[26]. O tribunal da audiência só pode conhecer da matéria alegada e não pode responder ao que lhe não foi perguntado.

 A recorrente não invocou, logo na contestação, o facto considerado, precludindo, assim, irremediável e definitivamente, a alegação correspondente: ao tribunal não é lícita a sua consideração.

Maneira que os únicos factos cujo julgamento deve ser reponderado são os julgados não provados e o declarado provado, identificado na sentença impugnada pela alínea n) dado que só eles são, de algum modo, relevantes para o único enquadramento jurídico possível do objecto da causa: a questão de saber se o autor era realmente mandatário da recorrente e se a remuneração dos seus serviços era mediatizada ou feita por intermédio do Sr. Advogado, Dr. L…, que – para, usar a alegação mesma da recorrente, depois faria com o autor as contas que tivesse que fazer.

De harmonia com a alegação da recorrente, o tribunal a quo teria incorrido num error in iudicando destes enunciados de facto por equívoco na valoração dos depoimentos das testemunhas Dr. L…, Dr. … e …, arroladas pelo autor, e …, produzidas pela apelante.

A testemunha Dr. L… – cujo depoimento, a par do da testemunha …, como decorre da motivação adiantada pelo tribunal da audiência para justificar o seu julgamento, foi decisivo para a formação da sua convicção – depois de explicar que, em Agosto de 2007, transferiu os processos em que a recorrente era parte - com excepção do 1º processo que lhe tinha sido entregue, o tal que foi o início da relação – para o escritório do Dr. F…foi terminante em declarar que nunca mais trabalhei em nenhum desses processos, em nenhum dos outros processos fiquei a trabalhar, não fiz nenhum trabalho nesses processos e que relativamente ao Dr. F… não tinha nenhum tipo de acordo de honorários, nenhum tipo de partilha de honorários relativamente a esses processos.

A mesma testemunha asseverou que nunca teve contas com o Dr. F… relativamente à C…, L.dª, que nunca teve um cêntimo do dinheiro que o Dr. F… recebeu da C…, e que substabeleceu e desvinculou-se daqueles processos, salvaguardando o que fosse necessário, pois não ia deixar o cliente. Garantiu ainda que nunca supervisionou o Dr. F…, eu não acompanhava os processos e que não faz ideia dos pagamentos que foram feitos e que a relação entre o Sr.e o Dr. F… era directa.

A recorrente acha, porém, que o depoimento desta testemunha deve ser desvalorizado por parcialidade, dado que o depoente fez fortíssimas críticas à recorrente, que na sua perspectiva lhe deve largos milhares de euros, mantendo uma forte animosidade para com esta e com o seu gerente, e por lhe não ser indiferente o desfecho do processo, dado ser sua a responsabilidade pelos pagamentos dos serviços que ele próprio tinha requisitado.

Esta testemunha, por ter sido o intermediário ou pivot da relação que se estabeleceu entre a recorrente e o autor, está num posto de observação que torna especialmente qualificado o seu depoimento. A testemunha conhece os factos melhor do que ninguém; resta, porém, saber se está em condições de independência e isenção que lhe permitam fazer um depoimento consciencioso e verdadeiro.

É exacto que esta testemunha se queixou que a recorrente lhe deve honorários e que o seu depoimento – sobretudo o prestado na audiência realizada no dia 28 de Dezembro de 2010 – foi marcado por um tom de indignação e de censura, dirigida tanto à recorrente como ao seu sócio e gerente. Mas isso deveu-se ao facto de, no exercício do direito de audiência no tocante à junção de documentos oferecidos pelo autor, a recorrente lhe ter imputado o facto desonroso do preenchimento abusivo de um documento que, alegadamente, lhe teria sido entregue em branco.

Seja como for, a verdade é, por um lado, que a razão de ciência desta testemunha sobreleva consideravelmente as demais testemunhas, e, por outro, que a nítida degradação da sua relação com a recorrente não o privou da liberdade e da espontaneidade para dizer a verdade.

De resto, o seu depoimento é quanto à cessação da sua intervenção ou o seu alheamento nos processos em que o autor exerceu o patrocínio, inteiramente corroborado pelo da testemunha, Dr. ….

Esta testemunha – que é advogado e trabalhou com o autor desde 2002 até cerca de 2010 e desenvolveu a sua actividade essencialmente nos processos administrativos e fiscais em que a recorrente era parte – foi, realmente, peremptório em declarar que os processos foram recebidos no escritório do autor em Agosto de 2007 – tendo sido ele mesmo a ir buscá-los ao escritório do Dr. L… no Porto – e que no início houve troca de informações, mas que a partir do momento em que a C… passou a mandar directamente para o escritório, deixou de haver esse tipo de informações, e que o Dr. L… não dava orientações nem instruções, e que, mesmo depois de ter sido apresentada, pelo autor à recorrente, a nota de honorários, ainda recebeu processos daquela. Nas instâncias a que foi sujeito pelo Exmo. Mandatário da recorrente, a testemunha reiterou que a C… enviava directamente os processos para o autor.

Por seu lado, o depoimento da testemunha …– funcionária do escritório do autor, secretária deste, coordenadora administrativa do escritório e responsável pela gestão financeira – concorre para convencer do carácter directo da relação da recorrente com o autor, dado que depois de afirmar que exceptuados os processos que foram levantados no escritório do autor, todos os outros, os processos novos, vinham directamente da C...

Ora, os depoimentos das duas primeiras testemunhas inculcam, realmente, por um lado, que entre o Dr. L… e o autor não houve qualquer relação de subordinação, que o patrocínio da recorrente foi exercido pelo apelado, não num contexto de parceria, de coadjuvação ou de cooperação com o primeiro, mas com inteira autonomia e independência relativamente a ele, e, por outro, que os honorários devidos pelo exercício desse patrocínio deveriam ser pagos ao autor e não ao Dr. L…, que depois os acertaria com o recorrido.

Nem esta conclusão é incompatível com o facto – assegurado pelas testemunhas … e … – da manutenção de contactos entre a recorrente e o Dr. L… e o pagamento a este de honorários. Convém, realmente, recordar a este propósito – como, aliás, aquelas testemunhas reconheceram, que o Dr. L… reteve um dos processos em que a recorrente era parte – justamente o que tinha um valor particularmente elevado – e que aquele causídico não tinha perdido a qualidade de mandatário da recorrente, dado que, como todas as testemunhas asseveram una voce, o substabelecimento, a favor do autor, dos poderes representativos forenses que lhe haviam sido conferidos pela recorrente, foi feito com reserva.

É verdade que a testemunha … – que foi administradora da recorrente da ré de 2004 até final do ano de 2007 e é filha do sócio e gerente daquela – afirmou que só se apercebeu da intervenção do autor nos processos em que a recorrente era parte - que havia um advogado daqui de baixo - quando começou a receber multas por falta de pagamento de taxas que haviam sido pagas e que, na perspectiva da recorrente, o seu advogado era o Dr. L… e não o autor, que era com ele que tinham que se entender e que ele estava sempre a acompanhar toda a situação e que durante o ano de 2008 continuaram a fazer pagamentos ao Dr. L...

Abstraindo do facto não ser patente a razão de ciência desta testemunha – visto que grande parte dos factos sobre recaiu o seu depoimento são posteriores ao final de 2007, altura em que aquela já não era administradora da recorrente – a verdade é que ela acabou por admitir que passaram a haver contactos directos com o escritório da Covilhã, e que lhe continuaram a mandar processos novos e – o que é mais – que pagaram € 50 000,00 de honorários directamente ao autor. Como este facto é irrecusavelmente incompatível com o restante conteúdo do seu depoimento – no qual sustenta que não contratou o autor e o Dr. L… continuava a receber por esse trabalho - a testemunha dá para ele esta justificação: que foi feito o pagamento ao autor em vez de ter feito ao Dr. L…, mas seria depois para fazer acertos com ele. Mas – como já notou – a recorrente alegou justamente o inverso.

Por último a testemunha Dr. … – advogado e funcionário da recorrente desde Agosto de 1998 – depois de declarar que foi surpreendido em, Outubro de 2007, com o aparecimento, via Dr. L… de peças processuais com o timbre do novo escritório de advogados, admitiu que passou a haver contacto directo com o escritório do Dr. F…, embora sob égide do Dr. L... Asseverou ainda que o autor nunca foi mandatado pela recorrente, que o escritório do Dr. F… apareceu como uma longa manus do Dr. L… e esclareceu, finalmente, que a recorrente pagou honorários ao autor, porque começaram as pressões, quer do Dr. L… quer do Dr. F… de que iriam renunciar aos mandatos se não houvesse pagamento.

                Todavia, a verdade é que há boas razões para depreciar estes dois depoimentos – que, no essencial, confortam o ponto de vista sustentado pela recorrente na acção e no recurso – e, portanto, para lhe retirar a força persuasiva que a recorrente lhes associa.

                Manifestamente as declarações de qualquer destas testemunhas não se compaginam com o facto indiscutível do pagamento pela recorrente directamente ao autor de parte dos honorários a que este se acha com direito: de harmonia com regras de experiência e critérios sociais não é razoável supor que a recorrente tenha pago ao recorrido, a título de honorários, uma tão avultada soma, não existindo - como sustentam à uma ambas as testemunhas - qualquer relação directa entre a recorrente e o autor, que este era mero auxiliar do Dr. L… e que era a este que era devida e paga a remuneração do exercício, pelo primeiro, do mandato.

                De resto, de harmonia com as regras de experiência e com os critérios sociais apontados, não é razoável admitir que o gerente da recorrente – a que lei vincula à observância da diligência de um gestor criterioso e ordenado – não saiba quem é, verdadeiramente, o seu mandatário judicial, quem actua, efectivamente, o mandato e quem tem, realmente, o direito a ser remunerado pelo exercício do patrocínio judicial. Como não é comum – de harmonia com regras de normalidade maioritária – que os serviços prestados por um escritório de advogados sejam pagos a outro advogado que não os prestou, singularidade em cuja explicação, aquelas testemunham nem sequer são acordes.

                De resto – como melhor se procurará mostrar - o depoimento destas duas testemunhas, no segmento em que garantem que a recorrente não tinha qualquer relação ou vínculo contratual com autor, assenta, no plano jurídico, num claro equívoco.

Todas as contas feitas, é lícito assentar-se nisto: apesar da refracção provocada pela distância entre este tribunal e as provas e o modo como delas conheceu, não há motivo para que se conclua que a decisão da matéria de facto contém um error in judicando – por ter incorrido em erro lógico, em uma contradição material ou ter violado regras da vida e da experiência - e, portanto, para modificar esse julgamento. Um tal julgamento dos factos provados e não provados, considerado, ao menos a posteriori, à luz das regras da lógica, da experiência e de critérios sociais, não é desrazoável.

                Não há, por isso, fundamento para que esta Relação o modifique.

                E em face desses factos é irremissível a procedência da pretensão do autor e irrecusável a improcedência do recurso.

               

3.5. Concretização.

                O autor – recorrido – alegou como causa petendi a celebração entre a recorrente e o Dr. L… de um contrato de mandato forense e o substabelecimento pelo último, a seu favor, dos poderes representativos forenses que, através daquele contrato lhe foram conferidos pela primeira.

Desta causa de pedir, o recorrido fez derivar o direito de exigir da recorrida a satisfação dos honorários que lhe são devidos pela execução do mandato e para cujo pagamento a interpelou no dia 30 de Outubro de 2009.

E, realmente, o tribunal da 1ª instância declarou provado – julgamento cuja exactidão não é discutida no recurso – que a recorrente contratou os serviços do Sr. Dr. L…, Advogado, e que em Julho de 2007, o Sr. Dr. L…, com o conhecimento da recorrente, substabeleceu os poderes que lhe foram conferidos pela última ao recorrido, que também é Advogado. A sentença apelada extraiu destes factos esta conclusão: dúvidas não há da existência de um contrato de mandato entre o autor e ré (…) formalizado através do substabelecimento, instrumento que mais não é que o meio adequado para exercer o mandato acordado.

                A recorrente sem nunca discutir o valor dos honorários reclamados pelo recorrido nem a sua interpelação para o seu pagamento, sustenta, porém, tanto na acção como no recurso, que não existiu qualquer contrato de mandato entre si e o apelado, já que na relação entre o cliente e o advogado não pode afirmar-se que com cada substabelecimento sem reserva feito pelo primitivo mandatário surge um novo contrato de mandato a vincular o cliente ao advogado assim substabelecido, ficando a dever-se honorários pelos serviços assim prestados.

                Esta proposição – que constitui o núcleo central da defesa deduzida pela recorrente – não é, de todo exacta.

                O contrato de mandato judicial concluída entre a recorrente e o Dr. L… é – notou-se já – um contrato de mandato necessariamente representativo. Por força dele, aquele Sr. Advogado ficou investido na qualidade de representante da recorrente, qualidade que resulta da atribuição de poderes representação, que se processa através da procuração.

                Que estes poderes representativos se não restringem aos actos praticados no processo mas a todos os actos que, com base no mandato seja lícito ao mandatário praticar, é coisa que se compreende por si.

                Entre os poderes de representação em que aquele Advogado ficou investido conta-se o de substabelecer esses mesmos poderes.

                Na actuação destes últimos poderes, o mesmo advogado substabeleceu no recorrido os poderes representativos que lhe foram conferidos pela recorrente, quer dizer, celebrou com o último um outro contrato de mandato forense.

                Por força dos poderes de representação que para ele decorriam do mandato que a recorrente lhe conferia, o Dr. L…, agiu, no acto de substabelecimento, não só por conta, mas em nome do mandante – a recorrente - já que actuou contemplatio domini, invocando o nome do mandante.

Como se notou já, a contemplatio domini não significa propriamente actuação do representante no interesse do representado – mas sim que aquele deve revelar que realiza o acto em nome deste. O conhecimento pela outra parte de tal situação – conhecimento que, aliás, pode resultar das circunstâncias – é, portanto, indispensável para se dar a eficácia directa total do negócio representativo sobre a esfera jurídica do representado.

                Ora, para substabelecer os poderes forenses que lhe foram concedidos pela parte, o mandatário tem necessariamente de actuar contemplatio domini, invocando o nome do seu representado, e o mandatário substabelecido tem, também evidente e necessariamente, conhecimento dessa situação, visto que só nessas condições lhe é possível actuar no processo: o recorrido praticou no processo toda uma multiplicidade de actos processuais, não em nome e como representante do Dr. L…, mas em nome e em representação da recorrente.

                Portanto, os efeitos do acto de substabelecimento, que se encontra abrangido nos limites dos poderes de representação conferidos, repercutem-se, não na esfera do mandatário, mas na do mandante: a recorrente.

                Quer dizer: o mandatário da recorrente, Dr. L…, celebrou o submandato, não em seu próprio nome, mas em nome e em representação do mandante – a recorrente. Por esse motivo, o autor é um verdadeiro mandatário e os actos por ele praticados entram, directa e imediatamente, não na esfera jurídica do primeiro mandatário – mas na esfera jurídica do mandante. Só assim não seria se, não sendo o mandato representativo, o mandatário tivesse celebrado o submandato em nome próprio, hipótese em que o submandatário – o autor - não entraria em relação directa com o dominus – a recorrente – e os actos e negócios jurídicos por aquele praticados se repercutiriam na esfera do mandatário que, por sua vez, os transferiria para o mandante. E só nesta último caso é que, verdadeiramente, haveria um submandato e se justificaria – pelas razões apontadas – a recusa ao autor de uma acção directa relativamente ao mandante – a recorrente.

                Maneira que a conclusão a tirar é, assim, a de que, por força do carácter representativo do mandato conferido pelo recorrente ao Dr. L…, com o substabelecimento, por este, desses poderes representativos no autor, com invocação dessa qualidade, deu-se a conclusão, por intermédio do mandatário, de outro contrato de mandato. E uma vez que – como a recorrente assevera na sua alegação - o substabelecimento foi feito com reserva, o primeiro mandatário não se desligou da relação que o liga ao mandante, passando a coexistir dois verdadeiros contratos de mandato.

                Neste sentido a proposição, contida na sentença impugnada, da existência de um contrato de mandato entre o autor e ré é inteiramente exacta.

                Portanto, o autor é, realmente, mandatário da recorrente, embora com a particularidade de o contrato de mandato em que ocupa essa posição jurídica, não ter sido celebrado directamente pelo mandante – a recorrente – mas por intermédio do primeiro mandatário desta: o Dr. L...

                De resto, só uma tal conclusão é compatível com o facto – cuja veracidade não vem discutida no recurso – de a recorrente ter pago ao recorrido, na sequência de pedido deste – honorários no valor de € 60 000,00. Se, como sustenta a recorrente, o autor não era seu mandatário, se as suas contas se fariam com o Dr. L… que depois faria as que tivesse que fazer com o autor, como que é explica que lhe tenha pago, directamente, a título de honorários, quantia tão avultada?

                O autor era, portanto, mandatário da recorrente; tem, por isso, o direito de exigir da recorrente a prestação a cuja realização foi vinculada pela sentença apelada.

                O conjunto da argumentação exposta para sustentar a decisão de improcedência do recurso bem pode resumir-se nestas proposições: o acto de substabelecimento dos poderes forenses conferidos através do mandato forense ou judicial compreende-se nos limites dos poderes de representação conferidos pelo mandante ao mandatário judicial; por força do carácter representativo do mandato forense, os efeitos do acto de substabelecimento repercutem-se, não na esfera do mandatário, mas directamente na do mandante; com o acto de substabelecimento dá-se a conclusão, por intermédio do mandatário, de outro e novo contrato de mandato que vincula directamente o mandante e o mandatário substabelecido, passando a coexistir, se o substabelecimento é feito com reserva, dois mandatários.

                O recurso não deve, pois, ser provido.

                As custas do recurso deverão ser satisfeitas pelo sucumbente: a apelante (artºs 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

               

4. Decisão.

                Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

                Custas do recurso pela apelante, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.

                                                                                                                                          

                                                                                                                                             Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                                             Regina Rosa

                                                                                                                                             Artur Dias


[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 74.
[3] Galvão Telles, Contrato Civil, BFDUL, vol. IX, págs. 210 e 211.
[4] Januário Gomes, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Coimbra, 1989, págs. 87 a 90.
[5] Januário Gomes, Contrato de Mandato, Direito das Obrigações, 3º volume, AAFDL, 1991, sob a coordenação de António Menezes Cordeiro, págs. 279 e 280.
[6] Irene de Seiça Girão, Mandato de Interesse Comum, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, volume III, Direito das Obrigações, 2007, Coimbra Editora, págs. 24 e 25.
[7] Fernando Pessoa Jorge, O Mandato sem Representação, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 190 e 191.
[8] Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial, BMJ nº 75, págs. 175 e 176.
[9] Pedro Romano Martinez, O Subcontrato, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 177.
[10] A resposta pode ser diversa no tocante a outros tipos sub-contratuais, como por exemplo, a subempreitada, em que alguma doutrina tem admitido a acção directa do dono da obra relativamente ao subempreiteiro. Contudo, mesmo neste caso, a doutrina dominante e a jurisprudência, recusam ao dono da obra essa acção directa. Cfr., por todo, João Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 4ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, págs. 195 a 199
[11] Pedro Romano Martinez, O Subcontrato, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 179 a 181.

[12] Vaz Serra, “Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes legais ou dos Substitutos”, BMJ nº 72, págs. 67 e 68
[13] Fernando Pessoa Jorge, O Mandato Sem Representação, Almedina, Coimbra, (Reimpressão), 2001, pág. 24 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 469.
[14] Manuel de Andrade, Sentido e Valor da Jurisprudência, BFDUC, Vol. XLVIII, Coimbra, 1972, pág. 227.
[15] Ac. do STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[16] Acs. da RL de 10.11.05 e de 19.02.04, www.dgsi.pt. e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 150.
[17] Eurico Lopes Cardoso, BMJ nº 80, págs. 220 e 221.
[18] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição, Almedina, 2000, págs. 273 e 274.
[19] Acs. do STJ 08.11.95, CJ, STJ, 95, III, pág. 293 e da RP de 20.02.01, www.dgsi.pt.
[20] Ac. do STJ de 29.09.95, www.dgsi.pt.
[21] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[22] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[23] Ac. da RC de 18.05.94, BMJ nº 437, pág. 598.
[24] Neste sentido, Antunes Varela, RLJ Ano 116, pág. 330.
[25] Ac. da RE de 09.06.94, BMJ nº 438, pág. 571.
[26] Ac. da RC de 11.10.94, BMJ nº 440, pág. 560. O ponto não é líquido, sendo discutível se não se trata, antes, de uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC).