Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
262/10.5JACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
Data do Acordão: 11/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 79º, N.º 2, AL. D), DO RGICSF (REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS) E 135º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Perante a nova redacção introduzida na al. d), do n.º 2, do artigo 79.º, do RGICSF, pela Lei n.º 36/2010, de 02/09, desapareceu a necessidade de prévia autorização de um tribunal superior para o levantamento do sigilo bancário, no âmbito de uma investigação em processo penal.
Com a actual redacção da mencionada alínea d), ao atribuir competência às autoridades judiciárias para solicitar as informações cobertas pelo segredo de justiça, o legislador pretendeu agilizar procedimentos, permitindo o acesso a quaisquer informações abrangidas pelo segredo bancário, por decisão directa da autoridade judiciária titular da fase em que se encontre o processo penal.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:

I - O Senhor Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Soure, no âmbito dos autos de Inquérito registados sob o n.º 262/10.5JACBR , Serviços do Ministério Público de Soure, em 9/6/2011, determinou que a WWW..., S. A. no prazo de 10 dias prestasse a informação solicitada pelo Ministério Público (fls. 79).

II – Inconformada, a “WWW..., S.A.”, em 30-06-2011, interpôs recurso, defendendo que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que considere legítima a respectiva escusa na prestação da informação bancária solicitada e, sendo caso disso, desencadeie a aplicação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1. Andou mal o Tribunal a quo ao determinar à WWW..., S.A. que prestasse a informação solicitada pelo Ministério Público de fls. ;
2. Tal informação encontra-se sujeita a segredo, nos termos do disposto no artigo 78.º do RGICSF;
3. O Tribunal a quo não interpretou correctamente a alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF que dispõe que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
4. E aplicou indevidamente ao caso o disposto no artigo 135.º, n.º 2, do CPP, pretendendo não ter a WWW..., S.A. legitimidade para se escusar à prestação da informação em causa, o que equivale a dizer que entendeu não existir in casu dever de guardar segredo profissional;
5. Nos termos do disposto no artigo 9.º do Código Civil, a norma contida na alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGISSF não pode ser interpretada fora do contexto sistémico em que se integra;
6. E devem, antes de mais, aplicar-se, no âmbito de um processo penal, as normas da CRP, designadamente a disposição contida no seu artigo 26.º que dispõe que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar;
7. Atendendo à forma como é actualmente utilizado o sistema bancário, o acesso à informação bancária dos cidadãos permite determinar os exactos contornos da respectiva vida privada;
8. Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, a lei apenas pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos;
9. A ponderação exigida pela CRP para que ocorram as restrições referidas em 8 apenas poderá resultar da intervenção de um tribunal superior, nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP;
10. A interpretação que o Tribunal a quo faz da norma contida na alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF não respeita o disposto nos artigos 18.º e 26.º da CRP, facto que aqui se argui para todos os efeitos;
11. A alteração legislativa que esteve na origem da actual redacção da alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF visou apenas clarificar o regime anteriormente vigente, procedendo designadamente à harmonização da expressão com a que consta da alínea f) da mesma disposição legal;
12. O n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF pretende apenas determinar as entidades às quais a informação sujeita a sigilo pode ser revelada, contendo regras de apuramento de legitimidade passiva para recepção da informação em causa, tal não significando, contudo, que não devam ser respeitadas as normas casuisticamente aplicáveis para que a informação possa ser prestada às entidades aí referidas;
13. Ao contrário do que pretende o Tribunal a quo, não veio o legislador introduzir na alínea d) do n.º 2 do artigo em causa qualquer excepção ao padrão constante das restantes alíneas do mencionado preceito, que devem ser complementadas com as regras procedimentais aplicáveis que possibilitem a prestação da informação coberta pelo dever de segredo;
14. Assim, quando se refere que a informação bancária pode ser revelada, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF, às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal, deverá entender-se que tal informação deve ser prestada nos termos das disposições aplicáveis do processo penal, que se mantiveram inalteradas;
15. A introdução do actual n.º 3 do artigo 79.º do RGICSF em nada interfere com as conclusões supra expendidas, antes evidenciando incongruência na interpretação que o Tribunal a quo faz da alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF;
16. Atendendo ao que antecede, é legítima a escusa por parte da WWW..., S.A. na prestação da informação solicitada, ao abrigo do disposto nos artigos 78.º do RGICSF e 135.º e 182.º, ambos do CPP;
17. A quebra de sigilo pela WWW..., S.A. fá-la-ia, aliás, incorrer na violação do dever de segredo, nos termos e com as consequências previstos nos artigos 84.º do RGICSF e 195.º do Código Penal;
18. É assim ilícita a aplicação feita in casu pelo Tribunal a quo do disposto no artigo 135.º, n.º 2, do CPP, violando o disposto nos artigos referidos em 16 antecedente;
19. Acresce que, ao usar da competência atribuída ao Tribunal da Relação pelo n.º 3 do artigo 135.º e pelo artigo 12.º, ambos do CPP, verifica-se a nulidade insanável a que se refere a alínea e) do artigo 119.º, do CPP, que aqui expressamente se argui, com as consequências estatuídas no n.º 1 do artigo 122.º, do CPP;
20. O despacho referido deverá assim ser revogado e substituído por outro que permita à WWW..., S.A. que guarde segredo acerca da informação em causa, a menos que venha a ser determinada a quebra de tal segredo, nos termos legais;
21. Assiste à WWW..., S.A. legitimidade para interposição do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP.


III – Em resposta, veio o Ministério Público na 1ª instância, em 13/6/2011, defender a manutenção do despacho recorrido, formulando as seguintes conclusões:
“Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição devem ser revelados às autoridades judiciárias quando solicitados no âmbito de um processo penal.
Por força da nova redacção da al. d) do n° 2 do art. 79° do DL n.° 298/92 a recusa da WWW... em fornecer os elementos pedidos é manifestamente ilegítima pelo que não há que observar o procedimento previsto no n.° 3 do art.º 135.° do CPP, devendo assim cumprir-se apenas o n.° 2 do mesmo artigo.”

IV – Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, pronunciou-se no sentido da admissibilidade do recurso, assim como da sua improcedência, previamente questionando “a legitimidade da WWW... para interpor recurso da decisão posta em crise, adiantando que sobre esta problemática, já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto que, analisando o estabelecido no artº 401°, n° l, al. d) do CPP, afirma poderem recorrer, além do mais, "aqueles que tiverem a defender um direito afectado pela decisão" e o exarado no seu n° 2 que "não pode recorrer quem não tiver interesse em agir", e, assim, entendeu que aquela entidade bancária, em iguais circunstâncias às do presente processo, para além de ter legitimidade tem também interesse em agir, para efeitos de interposição de recurso do despacho judicial que ordena o fornecimento de elementos bancários cobertos pelo sigilo.”

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Colhidos os vistos, efectuada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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B – DESPACHO RECORRIDO:
No âmbito do presente inquérito, em que se investigam factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de burla informática e nas comunicações, p. e p, pelo artigo 221.° do Código Penal, o Digno Magistrado do Ministério Público ordenou à WWW... que, no prazo de cinco dias, viesse aos autos juntar informação sobre o actual saldo da conta identificada a fls. 38, tendo feito expressa referência que, face à redacção introduzida pela Lei n.° 36/2010, de 2 de Setembro, no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (DL n.° 298/92, de 31 de Dezembro) não se vislumbravam fundamentos para ser recusada a informação solicitada (fls. 74).
Após alguma insistência veio aquela Instituição Bancária aludir que os elementos solicitados estão sujeitos a sigilo bancário e que a nova redacção da alínea d) do n.° 2 do artigo 79.° do RGICSF efectuada pela Lei n.° 36/2010, de 2 de Setembro, não fundamenta a derrogação do segredo, não havendo qualquer redução, ampliação ou, por qualquer forma, alteração do regime de tutela do segredo em sede de processo penal, de processo civil ou noutro qualquer tipo de processo. E assim, recusou a informação solicitada.
O Digno Procurador Adjunto, por despacho de fls. 95, que aqui se dá por reproduzido, manifestou a sua discordância relativamente à posição assumida pela Caixa.
Novamente notificada, a WWW... apresentou extensa resposta, na qual recusou dar a informação solicitada. De tal articulado resulta, em suma, que:
a informação solicitada se encontra protegida pelo sigilo bancário (art. 78.° do RJICSF);
não obstante a nova redacção da al. d) do n.° 2 do artigo 79.° do referido regime, a Lei n.° 36/2010, de 2 de Setembro, não introduziu qualquer alteração substancial no regime legal aplicável ao segredo profissional no processo penal, decorrendo do artigo 135.° n.° 1 do CPP aplicável, ex vi artigo 182.° do mesmo diploma legai, que a WWW... pode escusar-se a prestar a informação solicitada sobre factos abrangidos pelo segredo profissional. E havendo fundadas dúvidas acerca da escusa apresentada, dispõe o n.° 2 do citado preceito legal que a autoridade judiciária deverá proceder às averiguações necessárias, sendo que, caso conclua, após estas, pela ilegitimidade da escusa, poderá ordenar ou requerer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento. No presente caso, não resulta dos elementos processuais que tenham sido feitas quaisquer averiguações prévias à qualificação da escusa da WWW... como não legítima, sendo que esta incorrerá na prática de crime de violação de segredo, p. e p. pelo artigo 195.° do Código Penai, caso disponibilize os elementos em causa em violação do dever a que se encontra adstrita.
— Acresce que o segredo bancário é corolário do direito à reserva da vida privada, que a CRP prevê, devendo ceder quando se entenda prevalecer outro direito ou interesse constitucionalmente relevante, juízo esse que apenas poderá ser feito por tribunal superior, nos termos do artigo 135.° n.° 3 do CPP. E assim sendo, deve concluir-se que a alteração efectuada à al. d) do n.° 2 do artigo 79.° do RGICSF não teve a abrangência pretendida pelo Ministério Público, antes tendo almejado a respectiva harmonização com a alínea e) do mesmo preceito, determinando-se consequentemente a legitimidade da escusa em face do dever de sigilo invocado, o que constitui interpretação conforme à unidade do sistema jurídico;
Na promoção que antecede, o Digno Magistrado, considerando ilegítima a recusa da WWW..., requer que se ordene a prestação da informação solicitada, nos termos da parte final do n.° 2 do artigo 135.° de CPP.
Cumpre apreciar e decidir,
Abstemo-nos de tecer aqui quaisquer considerações teóricas acerca do segredo bancário e importância do mesmo, já que se trata de um conceito com o qual as partes se encontram familiarizadas. No entanto, salienta-se que o dever segredo profissional em que se traduz o sigilo bancário não é um dever absoluto, não prevalecendo sobre qualquer outro dever conflituante, já que sofre, desde logo, as excepções elencadas no artigo 79.° n.° 1 e 2 do RJICSF.
Dispõe o artigo 182.° do CPP que as pessoas indicadas nos artigos 135.° a 137. ° apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado [n.° 1]. Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.° 2 e 3 do artigo 135.° e no n.° 2 do artigo 136.°[n.°2].
Nos termos do artigo 135.° n.° 2 do CPP havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requerer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. E acrescenta-se no n.° 3 que o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
O incidente de quebra do sigilo profissional está dividido em duas fases: a questão da legitimidade da escusa é tratada no n.° 2 do artigo 135.°; a questão da justificação da escusa é tratada no n.° 3 do artigo 135.°. O legislador separou intencionalmente a resolução destas questões, conferindo competência para decidir a questão da legitimidade da escusa ao tribunal de primeira instância e competência para decidir a questão da justificação da escusa apenas ao tribunal superior. Aliás, a polémica desencadeada na jurisprudência acabou por ser resolvida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 2/2008, nos termos do qual, requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação de informação, nos termos do n.° 2 do artigo 135.° do CPP. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.° 3 do mesmo artigo. E esta jurisprudência, fixada a propósito da quebra do segredo bancário, vale para a quebra de qualquer outro segredo profissional, nos termos do artigo 135.°, com excepção do segredo religioso.
Ora, no presente caso, o Ministério Público solicitou directamente à WWW... que disponibilizasse informação sobre o actual saldo da conta identificada a fls. 38, considerando que tal informação será importante para a investigação; e a WWW... recusou, alegando estar tal informação protegida pelo sigilo bancário.
A recusa da WWW..., porém, foi ilegítima, face ao regime legal actualmente em vigor.
Dispõe, com efeito, o artigo 79.° n.° 2 al. d) do RJICSF que fora do caso previsto no número anterior [existência de autorização do cliente transmitida à instituição] os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados às autoridades judiciárias no âmbito do processo penal.
Em causa está uma alteração introduzida pela Lei n.° 36/2010, de 2 de Setembro (21.a alteração ao DL 298/92, de 31 de Dezembro, que entrou em vigor em 1 de Março de 2011), e que, no nosso entender modificou substancialmente o regime jurídico até então vigente, pois a solicitação da autoridade judiciária, no âmbito do processo penal (Juiz ou Ministério Público), passam a poder ser revelados os factos ou elementos cobertos pelo sigilo bancário, independentemente do incidente de quebra de sigilo a que supra se fez referência. Na verdade, se antes a recusa do Banco em fornecer, no âmbito do processo penal, informações cobertas pelo sigilo bancário era legítima - por não estar em causa nenhuma das excepções elencadas no artigo 79.° n.° 2 do RJICSF -, agora, estando expressamente prevista tal excepção na al. d), deixou de ser necessário lançar mão do incidente supra descrito, não carecendo de autorização prévia de um tribunal superior o levantamento do sigilo bancário no âmbito de uma investigação em processo penal. Aliás, o legislador foi particularmente cuidadoso em restringir tal excepção ao âmbito do processo penal - em que estão em causa razões de ordem pública -, deixando de fora v.g. o processo civil.
Discordamos, pois, com o entendimento defendido pela WWW... que, mais não é do que a manutenção do regime vigente até 1 de Março de 2011, na convicção de que o legislador se deu ao trabalho de alterar a norma em causa para, afinal... ficar tudo na mesma! Note-se que na sua anterior redacção a al. d) do n.° 2 do artigo 79.° do RGICSF estabelecia uma mera remissão para a lei penal e de processo penal, obrigando a lançar mão do incidente aí previsto; enquanto agora prevê, expressamente, que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo podem ser revelados às autoridades judiciárias, no âmbito do processo penal, no que deve ser entendido como uma simplificação do regime vigente, a qual vem de encontro aos anseios há muito manifestados pelas autoridades judiciárias - mormente o Ministério Público - no âmbito do Processo Penal.
E não se diga que esta interpretação da norma legal viola do direito à reserva da vida privada previsto na CRP, já que no processo penal são sobretudo razões de ordem pública que prevalecem (e não interesses privados ou egoísticos das partes, como sucede v.g. no processo civil), sendo que o sigilo bancário é apenas uma das dimensões daquele direito, que não é absoluta, antes cedendo perante as aludidas razões de ordem pública.
Conclui-se, assim, que há, por parte da WWW..., um dever de colaboração para com o Tribunal que deverá ser respeitado, desta forma se ordenando que, no prazo de 10 dias, preste a informação solicitada pelo Ministério Público.
Notifique.”
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C – Cumpre apreciar e decidir:·
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente na respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].

De acordo com o disposto no n.º 1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995). A única questão a apreciar resume-se a saber se a escusa pela “WWW..., S.A.” na prestação da informação bancária solicitada é legítima.
- DA QUESTÃO PRÉVIA:·
A ausência das condições necessárias para recorrer, em que se inscreve a ilegitimidade, constitui fundamento de rejeição de recurso, ao abrigo do disposto no artigo 414.º, n.º 2, do CPP.
Nos termos do artigo 401.º, n.º 1, al. d), do CPP, têm legitimidade para recorrer aqueles que tenham a defender um direito afectado pela decisão..
Simas Santos e Leal-Henriques recursos penais, 8ª ed 2011 – pag 59 entendem que “É necessário que o prejuízo causado ao recorrente pela decisão seja directo e efectivo e não meramente eventual”
Ainda que se considere que o direito ao sigilo bancário não é um direito da entidade bancária, mas sim um direito dos titulares das contas em causa, importa ter presente o regime geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, nos termos do qual estas entidades estão vinculadas ao dever de observar o sigilo sobre as informações bancárias. No caso presente, a recorrente reage contra despacho judicial que lhe dirige uma ordem, que considera ilegal e que na prática a sujeita a um conflito de deveres: por um lado, cumprir a injunção judicial, de acordo com o artigo 205.º, n.º 2, da CRP, ou, por outro, corresponder ao dever de observar sigilo sobre a informação bancária que lhe é imposto pelo regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras e infringir a sua posição de garante.
Assim sendo, é manifesto que a instituição bancária se defronta com prejuízos directos e efectivos, nomeadamente em sede de responsabilidade civil, em termos que lhe conferem plena legitimidade para o recurso – neste sentido, Acórdão do TRC, de 30/9/2009, Processo n.º 214/07.2GAVZL-A.C1, em www.dgsi.pt.
Não há pois qualquer motivo para rejeitar o recurso.
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DA LEGITIMIDADE DA ESCUSA: No caso em apreço foi solicitado à “C.G.D., S.A.”, ao abrigo do disposto no artigo 79.º, n.º 2, al. d), do RGICSF, na redacção resultante da lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, a prestação de um conjunto de informações respeitantes a uma conta bancária.
Vejamos então se face à actual redacção do artº 79°, n°2, al. d), do DL, n° 292/92, de 31.12, introduzida pela Lei 36/2010, de 02/09, se mostra desnecessário o levantamento do sigilo bancário, nos termos do disposto no art0 153°, n°3 do CPP.
Nos termos do artigo 78.º, do RGICSF, que consagra o dever de segredo bancário, consideram-se abrangidos por tal dever todos os “factos ou elementos respeitantes à vida da Instituição de Crédito ou às relações desta com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha, exclusivamente, do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”, não podendo tal informação ser utilizada ou revelada (n.º 1).
Nos termos do n.º 2 do citado artigo, consideram-se abrangidos por tal dever, designadamente, “os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos, e outras operações bancárias”.
Antes da entrada em vigor da Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, no dia 1/3/2011, o dever de segredo bancário só tinha as excepções consagradas no artigo 79.º, do RGICSF, epigrafado de “Excepções ao dever de segredo”, o qual dispunha: 1 – Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2 – Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições; b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respectivas atribuições;
d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal; e) À Administração tributária, no âmbito das suas atribuições;·
f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo”.
Ora, antes da entrada em vigor da Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, e de harmonia com o disposto no artigo 135.º, do CPP, quando fosse invocado o direito de escusa de dispensa do sigilo profissional, a autoridade judiciária podia tomar uma de duas posições: 1 - ou não aceitava a escusa como legítima, e, nessa situação, determinava, após as necessárias averiguações, que o respondente depusesse sobre o que lhe era perguntado – artigo 135.º, n.º 2, do CPP, cometendo este o crime de recusa de depoimento se o não fizesse – artigo 360.º, 2, do C. Penal;
2 – ou aceitava a escusa como legítima e, aí, tomava uma de duas atitudes: 2.1. – aceitava a manutenção do dever de segredo;
2.2. – entendia que se justificava a quebra do segredo e suscitava o respectivo incidente perante o tribunal superior, ao qual competia decidir em conformidade – artigo 135.º, n.º 3, do CPP.
Em resumo, o incidente de quebra do sigilo profissional estava dividido em duas fases:
a) a da legitimidade da escusa (artigo 135.º, n.º 2, do CPP);
b) a da justificação da escusa (artigo 135.º, n.º 3, do CPP).
Ao tribunal da 1ª instância competia decidir sobre a questão da legitimidade da escusa e ao tribunal superior decidir sobre a justificação da causa, o que ficou bem expresso no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2008, de 13 de Fevereiro, in DR, I Série, n.º 63, de 31/372008.
Acontece que, com a redacção introduzida pelo artigo 1.º, da lei n.º 36/10, de 2 de Setembro, o artigo 79.º, do RGICSF, passou a estabelecer o seguinte:
1 – Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição. 2 – Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições; b)À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições; c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respectivas atribuições;·
d) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
e) À Administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
3 – É criada no Banco de Portugal uma base de contas bancárias existentes no sistema bancário na qual constam os titulares de todas as contas, seguindo-se para o efeito o seguinte procedimento:
a) No prazo de três meses a contar da entrada em vigor da presente norma, todas as entidades autorizadas a abrir contas bancárias seja de que tipo for, enviam ao Banco de Portugal a identificação das respectivas contas e respectivos titulares, bem como das pessoas autorizadas a movimentá-las, incluindo procuradores, indicando ainda a data da respectiva abertura;
b) Enviam, ainda, ao Banco de Portugal informações sobre a posterior abertura ou encerramento de contas, indicando o respectivo número, a identificação dos seus titulares e das pessoas autorizadas a movimentá-las, incluindo procuradores, a data de abertura ou de encerramento, o que deverá ocorrer mensalmente e até ao dia 15 de cada mês com referência ao mês anterior;
c) O Banco de Portugal adopta as medidas necessárias para assegurar o acesso reservado a esta base, sendo a informação nela referida apenas respeitante à identificação do número da conta, da respectiva entidade bancária, da data da sua abertura, dos respectivos titulares e das pessoas autorizadas a movimentá-las, incluindo procuradores, e da data do seu encerramento, e apenas podendo ser transmitida às entidades referidas na alínea d), do n.º 2 do presente artigo, no âmbito de um processo penal.
Os termos do novo texto legal sugerem, de forma clara e expressa, sem margem para dúvidas, a intenção legislativa de colocar um fim à aplicação ao sigilo bancário do incidente de quebra de segredo profissional regulado no código de processo penal.
Tenhamos presente que a nova redacção teve origem no Projecto de lei n.º 218/XI do Partido Socialista, em que a redacção proposta para a alínea d) supra referida (salientada a negrito) era “Aos juízes de direito, no âmbito das suas atribuições.”, sendo certo que, no âmbito dos trabalhos da “Comissão eventual para o acompanhamento político do fenómeno da corrupção e para a análise integrada de soluções com vista ao seu combate”, foi apresentada uma proposta de substituição que veio a culminar na actual redacção do mencionado artigo, em que se consagrou que as informações solicitadas e que se encontram abrangidas por segredo profissional só podem ser reveladas às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal.
Obviamente, perante a nova redacção introduzida na al. d), do n.º 2, do artigo 79.º, do RGICSF, “desapareceu, sem margem para dúvidas, a necessidade de prévia autorização de um tribunal superior para o levantamento do sigilo bancário no âmbito de uma investigação em processo penal. O pedido de informações proveniente de autoridade judiciária, formulado no âmbito de um processo penal, constitui agora causa justificativa para a quebra do sigilo profissional por parte das pessoas a ele obrigadas, nos estritos limites do pedido formulado pela autoridade judiciária, traduzindo-se, por outro lado, em dever de colaboração com o Tribunal.” – ver, neste sentido, Acórdão do TRC, de 30/3/2011, 5ª Secção Criminal, Processo n.º 335/09.7SLPRT-A.C1.
Salvo o devido respeito, a interpretação feita pela recorrente, ao fazer apelo ao disposto no artigo 135.º, n.º 2, do CPP, não tem em consideração que era a anterior redacção da alínea d), do artigo 79.º, do RGICSF que remetia para “(…) os termos previstos na lei penal e de processo penal (…)”, o que não acontece actualmente.
Com a actual redacção da mencionada alínea d), ao atribuir competência às autoridades judiciárias (o artigo 1.º, al. b), do CPP, estabelece que são o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência) - para solicitar as informações cobertas pelo segredo de justiça, o legislador pretendeu agilizar procedimentos, permitindo o acesso a quaisquer informações abrangidas pelo segredo bancário por decisão directa da autoridade judiciária titular da fase em que se encontre o processo penal.
A informação pretendida não colide como o artigo 26.º, da CRP, pois, de acordo com a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais, no conflito entre o respeito pelo segredo bancário e o acatamento das ordens das autoridades judiciárias competentes (e já vimos que essa competência existe no caso presente, tendo em conta a alteração legislativa mencionada), visando a obtenção de informações úteis para uma investigação criminal que se encontra a decorrer, deverá sempre prevalecer este último, de valor superior, sem embargo do respeito devido ao princípio da proporcionalidade.·
Também não ocorre violação do artigo 18.º, da CRP, já que a quebra do sigilo, em circunstâncias a apurar casuisticamente pelas autoridades judiciárias competentes, radica na realização de um interesse colectivo relevante (a investigação criminal) que justifica a lesão de outros interesses, de natureza individual.
Em síntese, não foi violada qualquer norma legal e/ou constitucional, pelo que se afirma que a recusa da “WWW..., S.A.” carece de fundamento legal.

D - Dispositivo: Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em entender que a recusa da “WWW..., S.A.” a fornecer os elementos solicitados é ilegítima, pelo que é de negar provimento ao recurso, confirmando-se, assim, a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em sete UC.

Isabel Valongo (Relatora)
Paulo Guerra