Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
478/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO F.MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PREDISPOSIÇÃO PATOLÓGICA DO SINISTRADO : NÃO EXCLUSÃO DO DIREITO À REPARAÇÃO INTEGRAL
ÓNUS DA PROVA
SEGURANÇA NO TRABALHO
Data do Acordão: 06/01/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 9º, Nº 1, DA LEI Nº 100/97, DE 13/09 (LAT); E D.L. Nº 143/99, DE 30/04 . D.L. Nº 441/91, DE 14/11 .
Sumário: I – Nos termos do artº 9º, nº 1, da LAT, a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada .
II – Perante este preceito e ao contrário do que acontecia com o estatuído no nº 1 da Base VIII da Lei nº 2127, de 3/08/65, mesmo que a predisposição patológica tenha sido causa única da lesão ou doença, não fica excluído o direito à reparação, apenas ocorrendo tal exclusão quando, além de existir a predisposição patológica, ela tenha sido ocultada .

III – Cabe à entidade responsável demonstrar que o trabalhador não só conhecia a sua predisposição patológica, de forma clara e inequívoca, como a ocultou da entidade empregadora, no momento em que celebrou o contrato de trabalho ou equivalente, ou no momento em que dela teve conhecimento .

IV – Estando-se perante tarefa ou trabalho que não se enquadre na actividade laboral normal do trabalhador, impõe-se a tomada de cautelas suplementares de segurança ou de prestação de informações por parte da entidade patronal, com vista a evitar-se a ocorrência de um qualquer sinistro .

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juizes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:
I- RELATÓRIO
1. A... instaurou contra B... e C... a presente acção declarativa sob a forma de processo especial( Proc. nº 1062/03.4TTAVR da 1ª Secção do Tribunal de Trabalho de Aveiro ), pedindo a condenação das RR. a pagarem-lhe a pensão anual e vitalícia de € 12 290,32, a quantia de € 4 279,20 de subsídio por morte e a quantia de 2 852,80 de despesas de funeral e juros à taxa legal.
Alega, em resumo, que o sinistrado D... foi vitima de acidente de trabalho, que ocorreu devido à má, senão à total falta de organização do trabalho por parte da 1ª R., a qual não forneceu os meios para fazer deslocar uma máquina de umas instalações da empresa para outras instalações, nem prestou aos seus trabalhadores a formação e informação necessária para o efeito, de modo a evitar a queda daquela, o que veio a ocorrer. Em consequência de tal acidente, aquele D... sofreu múltiplas e gravíssimas lesões, que foram causa directa e necessária da sua morte.
Mais alegou os factos atinentes ao contrato de trabalho entre o sinistrado e a 1ª R., nomeadamente o salário que aquele auferia, e a transferência da responsabilidade infortunístico-laboral para a 2ª R., concluindo que as RR. devem ser condenadas a pagar-lhe a pensão e quantias peticionadas.
Contestaram ambas as RR.
A R. seguradora (2ª R.) pedindo que seja considerada apenas responsável subsidiariamente e apenas quanto ao valor coberto pelo seguro. Estriba a sua defesa no facto de o acidente se ter ficado a dever à má organização do trabalho e à falta de formação e informação do trabalhador, tendo assim ocorrido violação das normas e condições de segurança no trabalho.
Por sua vez, a R. entidade patronal (1ª R.) pede que a acção seja julgada improcedente no que a si respeita.
Alega, em sua defesa, que não houve qualquer má organização do trabalho, nem incúria ou negligência, não lhe sendo exigível outro comportamento face à tarefa pontual em que consistiu a deslocação da máquina que esteve na origem do acidente. Acresce que a responsabilidade pela produção do acidente é de imputar ao sinistrado por ter tido comportamento temerário, indesculpável e reprovado por um elementar sentido de prudência, já que, sendo diabético em ultimo grau e até tomando regularmente insulina, encontrava-se à hora do acidente com o estômago vazio, o que lhe criou fraqueza e diminuição do tempo de reacção.
Na resposta às contestações a A impugna a factualidade em que se basearam as defesas das RR., reafirmando que o salário anual do sinistrado era de € 12 290,32 e que o acidente ocorreu nas circunstâncias já invocadas na p.i.
Por sua vez, a 2ª R respondeu à contestação da 1ª R. para impugnar a versão por esta apresentada e concluindo que apenas deve ser subsidiariamente responsabilizada.
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2. Prosseguindo o processo os seus regulares termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a 1ª R. a pagar à A. a pensão anual e vitalícia no valor de € 4 992,40 desde 08.11.2003, a pagar em prestações e a quantia de € 4 279,20 a titulo de subsídio por morte, acrescidas de juros de mora, à taxa legal de 4% desde a citação (30.06.2004). Mais se decidiu, naquela sentença, condenar a 2ª R., subsidiariamente, no pagamento daquelas quantias.
3. É desta decisão que, inconformadas, vêm a A e a 1ª R. apelar.
Alegando, conclui a A:
(…)

Por sua vez, a 1ª R. rematou as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)

4. Nas contra-alegações foram tomadas as seguintes posições:
- a 1ª R. pugna por ser negado provimento ao recurso da A com improcedência de todas as suas conclusões;
- a A entende que deve ser negado provimento ao recurso da 1ª R. e que devem improceder as conclusões deste recurso;
- a 2ª R. remete para conclusões parcelares das recorrentes e termina no sentido de a decisão recorrida dever ser mantida na íntegra.
5. Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador Geral Adjunto no sentido do provimento parcial do recurso da A., no que tange ao montante da pensão anual vitalícia e com correcção do montante a cargo da R. seguradora, e improcedência das restantes questões colocadas pelas recorrentes.
Nem a A nem a 1ª R. responderam a este parecer.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto
Da factualidade assente, do despacho de fls. 371/2 que decidiu a base instrutória e do qual não houve reclamação tempestiva, e da alteração da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a resposta dada ao nº 1 da base instrutória – nos termos abaixo fundamentados -, é a seguinte a matéria de facto provada (entre parêntesis indica-se a al. da matéria de facto assente e a resposta ao ponto da base instrutória respectivo ou o doc. que fundamenta a prova daquele facto):
1. A ré “B...” dedica-se à actividade de importação, transformação e comércio de materiais e equipamentos metalomecânicos. (A);
2. No âmbito dessa actividade admitiu ao seu serviço subordinado o sinistrado D..., a fim de, como indiferenciado, trabalhar sobre as suas ordens, direcção e fiscalização. (B e C);
3. No dia 07.11.2003, pelas 10 horas, D... encontrava-se a trabalhar na sede da ré entidade empregadora, na Zona Industrial dos Padrões, concelho de Sever do Vouga. (D);
4. O sinistrado, juntamente com três colegas, procedia à mudança de uma máquina polidora, deslocando-a para outras instalações da empresa, o que faziam com o auxílio de um empilhador, e utilizando dois “porta paletes”, que colocaram um em cada extremidade da máquina. (E, F e G);
5. Quando desempenhavam aquele trabalho, a máquina que se encontrava solta sobre o empilhador, ao ser levantada, tombou para a extremidade mais pesada, caindo sobre o sinistrado. (H);
6. Os demais trabalhadores que procediam à mudança da máquina com o sinistrado, aperceberam-se da instabilidade da máquina, e avisaram de imediato o sinistrado, que não reagiu atempadamente. (2 e 3);
7. O sinistrado acabou por ser entalado e esmagado pela máquina. (I);
8. Em consequência do acidente, o sinistrado sofreu múltiplas lesões que foram causa directa e necessária da sua morte. (J);
9. A tarefa de deslocar a máquina para fora das instalações da ré entidade empregadora não se integra nas tarefas habituais pela ré desempenhadas. (9);
10. Os trabalhadores procediam a tal tarefa, sem os meios de apoio para fazer deslocar a máquina, tais como grua, guincho ou ponte rolante, e inexistência de meios auxiliares de movimentação, tais como cordas, cintos, cabos, correntes. (K);
11. Os trabalhadores não tinham formação nem informação necessária sobre o risco destas operações manuais. (L);
12. O sinistrado era diabético em último grau, e tomava insulina regularmente. (4 e 5);
13. No dia e hora do acidente o sinistrado encontrava-se em jejum. (P);
14. À data do acidente o sinistrado recebia pelo menos o salário anual de € 4.992,40, acrescido de um subsídio de alimentação diário de € 4,86. (1);
15. A ré entidade patronal celebrou com a “K-Med, Centro de Medicina, Higiene e Segurança no Trabalho” contrato no sentido de assegurar o cumprimento das normas relativas à medicina, higiene e segurança no trabalho. (12);
16. A empresa “K-Med” visitava e vistoriava as instalações da ré entidade empregadora e elaborava relatórios de vistoria. (13);
17. A ré entidade empregadora tinha a sua responsabilidade infortunístico-laboral transferida para a ré seguradora “Assicurazioni Generali, SPA”, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 001210014334000, pelo salário anual de € 4.992,40. (M);
18. Em sede de tentativa de conciliação de 27 de Maio de 2004, a ré seguradora declarou que aceita o acidente como de trabalho, bem como o nexo de causalidade entre as lesões e a morte do sinistrado, mas não aceitou como certo o salário reclamado pela viúva, reconhecendo o salário anual de € 4.992,40; e declinou a responsabilidade no acidente por se verificar, por parte da entidade patronal, violação das regras de segurança e higiene no trabalho. (N);
19. A ré entidade patronal declarou [na mesma tentativa de conciliação] que aceita o acidente dos autos como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e a morte, mas apenas reconhece o salário anual de € 4.992,40, cuja responsabilidade se encontrava transferida para a seguradora; declarou que não aceita o valor do salário anual reclamado pela viúva, nem qualquer violação, da sua parte, da organização e higiene no trabalho. (O);
20. A autora casou com D... em 9.08.78 (certidão de fls. 38).
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2. De direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil( Adiante designado abreviadamente de CPC.).
Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:
A) Recurso da A
A.1.) A sentença é nula por omissão do exame crítico das provas que lhe terão servido de base?
A.2) Ocorre erro manifesto na apreciação da prova?
B) Recurso da 1ª R
B.1.) É de excluir o direito à reparação por se verificar predisposição patológica do sinistrado para a ocorrência do acidente?
B.2) A 1ª R. actuou sem qualquer desrespeito pelas regras sobre segurança no trabalho?
Vejamos pois.
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A) Recurso da A
A.1) Nulidade da sentença
Nas suas alegações a recorrente baseia esta nulidade invocando que na sentença sob recurso se omitiu o exame crítico das provas que lhe terão servido de base, nomeadamente a prova testemunhal gravada em suporte magnético e os documentos juntos aos autos.
Daí que, na perspectiva da recorrente, teriam sido violados os artºs 659º nº 3, 660 nº 2 e 668º nº 1 al. b), sendo que na conclusão 18ª são acrescentadas, também como violadas, as als. c) e d) do nº 1 deste art. 668º, embora nada se alegue no que consistiria a violação destas últimas normas, face ao seu conteúdo normativo.
Analisado o requerimento de interposição de recurso por parte da A, junto a fls. 423, constata-se que no mesmo não se procedeu à arguição da nulidade da sentença.
Assim, não foi dado cumprimento ao disposto no art. 77º nº 1 do Código de Processo de Trabalho, que impõe que tais nulidades devem ser arguidas “expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”.
Nesta medida, ao abrigo deste preceito, e em bom rigor, impunha-se não conhecer desta questão.
Porém, na medida em que a invocada nulidade tem alguns pontos de ligação com a outra questão suscitada no recurso, o do erro notório na apreciação da prova, vamos ultrapassar a questão de forma referida e, apesar de tudo, conhecer do mérito da invocada nulidade.
E procedendo a tal conhecimento impõe-se dizer que, analisados os fundamentos do recurso, bem como a sentença recorrida e compaginados os preceitos legais indicados como objecto de violação, cremos poder afirmar, com segurança, que não assiste razão à recorrente.
Com efeito, quando se procede a julgamento por tribunal singular, com produção de prova testemunhal, como foi o caso, o momento próprio e adequado para proceder à análise critica das provas e à especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador é aquando da prolação do despacho previsto no art. 653º nº 2.
Esse despacho mostra-se proferido a fls. 371/2 e, quando da sua leitura, não foi formulada qualquer reclamação tempestiva ao mesmo, como se vê pela acta de fls. 373.
Logo, o “exame critico das provas” de que ao juiz cumpre conhecer na sentença, nos termos previstos no art. 659º nº 3, é para os outros factos de que ainda aí é possível conhecer – os admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito - e não para aqueles que já foram dados como provados, por decisão anterior do tribunal.
Como nestes autos, na sentença, apenas se tomaram em consideração os factos considerados como assentes na base instrutória, os resultantes das respostas dadas aos diversos números da base instrutória e o provado pela certidão de fls. 38, não havia que proceder, na sentença, a qualquer análise critica da prova, além de consignar que se tomou em consideração a certidão de fls. 38.
Conclui-se, desta forma, que improcede a conclusão 17 ª, não enfermando a sentença em análise de qualquer nulidade, nem tendo sido violadas as disposições legais aí citadas.
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B.2) Do erro manifesto na apreciação da prova
Nos termos do nº 1 do art. 690º-A, quando houver impugnação da matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre aqueles concretos pontos da matéria de facto.
Ainda nos termos do nº 2 deste preceito, quando os meios probatórios invocados tiverem sido gravados, incumbe ao recorrente “indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C”.
Analisadas as alegações da A recorrente cremos adequado concluir que são especificados os pontos de facto considerados incorrectamente julgados e são indicados os depoimentos em que se funda para discordar da decisão da matéria de facto.
Resolvida a questão formal, no sentido de concluir que a recorrente deu adequado cumprimento ao ónus previsto no nº 2 do art. 690º-A citado, passemos à questão de fundo.
Consiste esta questão em saber se o despacho que decidiu a matéria de facto fez uma correcta valoração da prova produzida, em face dos depoimentos das testemunhas Vera Lúcia Martins Pina Silva e José de Jesus Ferreira ou se, pelo contrário, houve erro notório nessa apreciação da prova e, “de toda a prova, documental e testemunhal”. Importa, no fundo saber se dos depoimentos daquelas testemunhas deve considerar-se provado o facto perguntado no nº 1º da B.I. - este nº mereceu resposta restritiva - e deveriam dar-se como não provados os factos questionados nos nºs 4º e 5º da mesma peça processual - que mereceram resposta positiva -, como pretende a recorrente.
No art. 712º do CPC definem-se as circunstâncias em que o tribunal da Relação pode sindicar e proceder à modificação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
Entre essas circunstâncias, e para o que ao caso interessa, é de salientar a prevista na al. a) do nº 1 de tal preceito: “do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida”.
Para esta segunda hipótese, impugnação da decisão proferida com base nos depoimentos prestados, preceitua o nº 2 do art. 712º citado que “a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Esta reapreciação das provas, em função do duplo grau de jurisdição em matéria de facto que se visou efectivar com os referidos normativos, acrescentados ou alterados pelo DL 39/95 de 15.02, não deverá envolver, como se assinala no preâmbulo deste diploma legal, uma “reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
E se dúvidas existissem que assim era elas são dissipadas logo de seguida pois, como se reafirma ainda no referido preâmbulo, “o objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)”.
Cabe pois proceder a este trabalho de reapreciação da prova, no que tange aqueles concretos pontos de facto questionados, com a delimitação e sentido acima explicitados, que decorrem da interpretação dos referidos textos legais, mormente do elemento interpretativo lógico( V. sobre este e os outros elementos interpretativos o Prof. Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, págs. 345 e segs, especialmente pág. 358. ).
Para o efeito teve-se em conta a transcrição da prova constante do doc. de fls. 463 e segs, tendo até procedido ao confronto dessa transcrição com a audição dos depoimentos daquelas duas testemunhas, para termos uma maior proximidade com a prova, isto na parte relevante de tais depoimentos quanto àqueles aspectos concretos, bem como se ponderou e atentou na prova documental pertinente, nomeadamente nos documentos de fls. 304/7 e 246/251.
E podemos adiantar que não assiste razão à recorrente.
Na verdade, é de salientar que o ónus da prova do montante da retribuição auferida pelo falecido marido da A incumbia a esta, nos termos do art. 342º nº 1 do Código Civil, pois estamos perante factos constitutivos do direito que a A. se arroga.
Assim, considerações como as constantes da conclusão 7ª das alegações da recorrente – “A Ré entidade patronal não logrou demonstrar que tivesse acordado com o sinistrado qualquer outro vencimento … Sendo certo que lhe competia o ónus da prova …” - não têm suporte legal, dado o ónus da prova que cabia à recorrente, como se justificou.
Aspecto diferente da presunção legal é a possibilidade de utilização das regras de experiência comum para formar a convicção do julgador, dentro dos princípios em que são admitidas as presunções judiciais e da livre apreciação da força probatória dos depoimentos das testemunhas, como decorre da conjugação do estatuído nos artºs 351º, 392º, 393 nº 2 e 396º, todos do Código Civil.
E, neste aspecto, não vemos que o tribunal recorrido tenha feito uso incorrecto daqueles princípios. Antes se nos afigura que fez uma adequada apreciação critica das provas e formou a sua convicção de forma prudente, não olvidando as regras do ónus da prova. Isto sem prejuízo da falta de consideração de um aspecto, bem salientado no parecer do Mº Pº, e ao qual nos referiremos adiante.
Como se diz no despacho de fls. 371 e “quanto ao salário do sinistrado (ponto 1) não houve prova convincente do seu valor …” E mais adiante, analisando os depoimentos das duas testemunhas invocadas pela recorrente, afirma-se que embora tenham referido que o salário iria ser superior ao já assente, “…não convenceram que o salário efectivamente fosse superior”.
E a fls. 372, ainda daquele despacho, fundamentam-se as respostas aos pontos 4 e 5 da matéria de facto nos elementos clínicos de fls. 246 e ss e na sua confirmação pelo depoimento daquelas duas testemunhas.
Também nós, embora não tendo a imediação do julgamento, subscrevemos estas decisões.
Quanto às respostas aos nºs 4 e 5 da base instrutória a prova foi segura e indubitável, justificando plenamente as respostas de “provado” dadas na 1ª instância.
Relativamente ao nº 1 da base instrutória, a falta de convencimento do tribunal recorrido bem se compreende se atentarmos no facto de não haver qualquer prova documental do vencimento na data do sinistro – a prova documental existente é do mês anterior – e considerando as relações de parentesco (Vera Lúcia) e amizade (José Ferreira) com o sinistrado por parte das testemunhas. Acresce que esta não tinha conhecimento directo da possível negociação sobre o salário do sinistrado e foi muito hesitante quanto aos termos em que teria presenciado uma conversa, posterior ao falecimento, entre a filha do sinistrado e o gerente da 1ª R. Quanto àquela testemunha admite mesmo que não sabe se o seu pai (o sinistrado falecido) falou ou não com o gerente da 1ª R., depois de uma primeira conversa que presenciou e que ocorreu antes de o sinistrado ter trabalhado para a 1ª R.
E relativamente aos argumentos esgrimidos pela recorrente para invocar as regras da experiência e do bom senso, é de notar que os factos em que se baseia não estão provados – vencimento anterior de 120 000$00 e possibilidade de subsidio de desemprego por mais de 100 000$00 – além de que não é de olvidar que num mercado de trabalho onde cada vez é mais difícil obter emprego estável, atenta até a idade do sinistrado, 44 anos (v. fls. 16), não é descabida a possibilidade de o sinistrado ter acordado num vencimento mais baixo, mas com a estabilidade de um contrato de trabalho sem prazo.
Conclui-se, assim, que realizado o trabalho de reapreciação da prova não se vê fundamento para alterar a resposta dada ao nº 1 da base instrutória, no sentido pretendido pela recorrente de integralmente provado.
Improcedem, desta forma, as restantes conclusões das alegações da A recorrente, neste aspecto, não tendo sido violadas as normas substantivas e processuais indicadas na conclusão 18ª.
Como atrás se disse, no parecer do Mº Pº foi bem salientado o facto de na participação do acidente de fls. 16 se ter declarado que o vencimento do sinistrado era a retribuição mensal de € 356,60, “acrescida de 4,86 x 22 dias, a titulo de “subsidio de alimentação”.
Assim, na medida em que tal documento é o que está na origem da posição das RR., ao admitirem que o vencimento mensal do sinistrado era o salário mínimo nacional, € 356,60, o que levou a darem-se como assentes os factos elencados nas als. N) e O), então com base na mesma prova e ao abrigo do disposto no art. 712º nº 1 al. a) do CPC, é de alterar a resposta dada ao nº 1 da base instrutória, nos seguintes termos:
Provado apenas que à data do acidente o sinistrado recebia pelo menos o salário anual referido nos pontos N) e O) dos factos assentes, acrescido de um subsidio de alimentação diário de € 4,86.
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B) Recurso da 1ª R
B.1) Predisposição patológica
A recorrente argumenta que sendo o sinistrado uma pessoa diabética em último grau, que tomava regularmente insulina, e encontrando-se à hora do acidente, de manhã, em jejum, tinha todas as condições para que lhe ocorresse uma crise de hipoglicémia, com os sintomas inerentes, considerando até a tarefa em que se ocupava. E conclui que é assim patente a predisposição patológica do sinistrado para a ocorrência do acidente, o que exclui o direito à reparação integral do mesmo, nos termos do art. 9º nº 1 da Lei nº 100/97 de 13.09( Adiante designada abreviadamente de LAT (Lei dos Acidentes de Trabalho) ).
Analisados os argumentos da R. recorrente, cremos que não lhe assiste qualquer razão.
Senão vejamos.
Desde já importa tomar em consideração que perante a data em que ocorreu o acidente, 07.11.2003, a legislação aplicável é a LAT e o DL 143/99 de 30.04( Adiante designado abreviadamente de RLAT (Regulamento da Lei dos Acidentes de Trabalho) ), atento o disposto nos artºs 71º nº 1 deste último diploma legal e art. 1º do DL 382-A/99 de 22.09.
Nos termos do art. 9º nº 1 citado “a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada”.
Perante este preceito, e ao contrário do que acontecia com o estatuído no nº 1 da Base VIII da Lei nº 2127 de 03.08.65, mesmo que a predisposição patológica tenha sido causa única da lesão ou doença, não fica excluído o direito à reparação. Apenas ocorrerá tal exclusão quando, além de existir a predisposição patológica, ela tenha sido ocultada.
E “cabe à entidade responsável demonstrar que aquele [o trabalhador] não só conhecia [a predisposição patológica], de forma clara e inequívoca, como a ocultou da entidade empregadora, no momento em que celebrou o contrato de trabalho ou equivalente, ou no momento em que dela teve conhecimento”( Citámos Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição, pág. 70. ).
Ora, analisada a contestação da 1ª R., se não há dúvidas que vem alegada a doença de que padecia o sinistrado – v. artºs 43º a 50º daquela peça processual, a fls. 122/3 – já nada é aí dito sobre a ocultação dessa doença à entidade patronal. E compreende-se que assim seja já que a tese da 1ª R., na contestação, ia no sentido de lograr a descaracterização do acidente, como resulta do alegado nos citados artºs da sua contestação, no ultimo dos quais aliás invoca a Base VI da Lei 2127, que precisamente previa a descaracterização do acidente, na Lei anterior dos acidentes de trabalho.
Logo, não vindo alegada sequer a ocultação da eventual predisposição patológica do sinistrado, - dizemos eventual porque nem se provou o nexo de causalidade entre a doença do sinistrado e o acidente, em face das respostas negativas aos nºs 7 e 8 da base instrutória - é patente que não é possível excluir o direito à reparação integral, como pretende a R. recorrente.
Desta forma, resta apenas concluir pela improcedência das conclusões 1ª a 6ª das alegações da R. recorrente, não tendo sido violadas as normas legais aí invocadas.
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B.2) Desrespeito das regras sobre segurança no trabalho
A R. recorrente insurge-se ainda contra a decisão de 1ª instância por, em súmula, entender que o sinistro não ocorreu por falta de observação de regras sobre segurança no trabalho, como se concluiu naquela decisão, além de não se encontrar demonstrado o nexo de causalidade entre a forma como foi organizada a tarefa e o acidente em si.
Mais uma vez a argumentação da recorrente não nos convence que a razão lhe assista, como a seguir se procurará demonstrar.
Atentemos, nos factos provados.
Deles ressalta que a R. entidade patronal decidiu proceder a um trabalho, que não se integrava nas suas tarefas habituais, e que consistiu em deslocar uma máquina polidora, utilizando para o efeito a força manual de quatro trabalhadores, com o auxilio de um empilhador e de dois “porta-paletes”. Não deu qualquer formação nem a informação necessária sobre o risco destas operações manuais e os trabalhadores realizavam aquela tarefa sem apoios para deslocar a máquina, como grua, guincho ou ponte rolante, nem cordas, cintos, cabos ou correntes. Nestas circunstâncias, quando realizavam aquela tarefa, a máquina, que se encontrava solta sobre o empilhador, ao ser levantada tombou e caiu sobre o sinistrado, entalando-o e esmagando-o, o que lhe causou múltiplas lesões e, como causa directa e necessárias destas, a morte.
Ora, perante este conjunto de factos ressalta, com clareza, a absoluta e total omissão, por parte da R. recorrente, da adopção das medidas básicas de segurança que se impunham.
Desde logo porque, estando perante tarefa ou trabalho que não se enquadrava na sua actividade laboral e, portanto, nas suas tarefas normais, impunha-se a tomada de cautelas suplementares. Ora, nenhuma foi tomada, nomeadamente o auxilio ou aconselhamento de pessoas especializadas ou preparadas para realizarem a tarefa de transporte de maquinaria pesada.
A não optar por aí, a omissão completa de qualquer informação ou formação sobre os riscos inerentes ao transporte de uma máquina pesada, bem como a não utilização de meios auxiliares de amarração da máquina para a movimentar, não podem deixar de ser vistos e entendidos como a absoluta falta de observância das mais elementares regras de segurança no trabalho.
Tão elementares que cremos bastam os preceitos genéricos do DL 441/91 de 14.11 para se poder afirmar estar preenchido um dos pressupostos exigidos pelo art. 18º nº 1 da LAT, qual seja a “falta de observação das regras sobre segurança … no trabalho”.
Desde logo não foram observados os princípios de prevenção, no que tange à identificação dos riscos previsíveis relativamente aos processos de trabalho e à avaliação dos riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores, como se preceitua nas als a) e b) do nº 2 do art. 8º do DL 441/91, donde decorre o não cumprimento da obrigação de assegurar condições de segurança como impõe o nº 1 do mesmo preceito. Acresce que igualmente não foi dada informação sobre os riscos para a segurança, nem mobilizados os meios necessários, neste domínio, para aplicação das medidas de prevenção, como decorre do estabelecido no art. 9º nº 1 al. a), conjugado com o nº 3 do mesmo art. 8º. Finalmente é de salientar, ainda, que ao sinistrado não foi ministrada qualquer formação, muito menos a formação adequada e suficiente no domínio da segurança, como se preceitua no art. 12º nº 1, ainda do DL 441/91.
Igualmente não tem razão a 1ª R. ao pretextar não estar demonstrado o nexo de causalidade entre a forma como foi organizada a tarefa e o acidente em si.
Na verdade, em face da factualidade acima realçada e perante as circunstâncias concretas, cremos que é de afirmar que um empregador médio, normalmente cuidadoso e diligente, teria tomado as providências que se impunham, por forma a que o transporte da máquina pesada em causa fosse feita por forma diferente daquela como foi realizada e sem os riscos de a mesma tombar do empilhador.
Ora foi precisamente esta queda da máquina do empilhador que veio a provocar lesões no sinistrado, causadoras da morte deste. Existe assim uma relação de causa e efeito, em termos do que é aqui de exigir, ou seja o nexo de causalidade adequada, entre a omissão das providências de segurança que a 1ª R. devia ter tomado, o cair da máquina e a morte do sinistrado.
Mostra-se assim igualmente verificado o requisito exigido pelo nº 1 do art. 18º da LAT, isto é, é de afirmar que o acidente resultou da falta de observação das regras de segurança.
Resta terminar este ponto para afirmar que não têm fundamento as conclusões 7ª a 20ª das alegações da R. recorrente, não se mostrando pois violados os preceitos legais citados nas mesmas.
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3. Conclusões
Tudo visto e ponderado, ressalvando o devido respeito por entendimento diverso, é de concluir que o recurso da 1ª R. é de julgar integralmente improcedente.
Já quanto ao recurso da A, o mesmo é de julgar parcialmente procedente, no que toca à pretensão dirigida à 1ª R., pois por força da alteração da resposta ao nº 1 da base instrutória, nos termos atrás decididos, o salário anual do sinistrado a tomar em consideração, para efeito de cálculo da pensão anual vitalícia passou a ser de € 6 186,52 = 356,60x14+4,86x22x11).
Por outro lado, estando como estamos perante caso especial de reparação, por falta de observância das regras sobre segurança no trabalho, a pensão anual vitalícia é igual à retribuição, nos termos do art. 18º nº 1 al. a) da LAT.
No que tange à R. seguradora, sendo a mesma responsável apenas subsidiariamente e “pelas prestações normais previstas na presente lei”, como dispõe o art. 37º nº 2 da LAT, então as pensões anuais terão de ser calculadas em função apenas do valor transferido por força do contrato de seguro – 356,60 x 14 = € 4 992,40 – e com base nas percentagens estabelecidas no art. 20º nº 1 al. a), da lei que vimos citando. Ou seja, 30% da retribuição do sinistrado até a beneficiária atingir a idade da reforma por velhice, o que dá o montante de € 1 497,72 = 4 992,40 x 30%. Ou 40% daquela retribuição a partir daquela idade e ainda no caso de doença física ou mental da beneficiária que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho, sendo assim a pensão de € 1 996,96 = 4 992,40 x 40%.
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III- DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, delibera-se revogar parcialmente a decisão recorrida e, em consequência, decide-se:
a) Manter a condenação da R. B... proferida em 1ª instância, excepto quanto ao valor da pensão anual e vitalícia que se fixa em € 6 186,52 (seis mil cento e oitenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos);
b) Condenar a R. C..., subsidiariamente, no pagamento à A da pensão anual e vitalícia de € 1 497,72 (mil quatrocentos e noventa e sete euros e setenta e dois cêntimos) até aquela atingir a idade da reforma por velhice e a pensão de € 1 996,96 (mil novecentos e noventa e seis euros e noventa e seis cêntimos) após a A atingir tal idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho, bem como a quantia de € 4 279,20 (quatro mil duzentos e setenta e nove euros e vinte cêntimos) a titulo de subsídio por morte, acrescidas de juros de mora à taxa legal, desde a citação.
Custas a apelação a cargo de A e 1ª R., na proporção dos decaimentos.
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Coimbra,
(António F. Martins)
(Bordalo Lema)
(Fernandes da Silva)