Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2554/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA
ATROPELAMENTO DE UM CÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL DA CONCESSIONÁRIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 01/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 493º, Nº 1, E 799º, DO C. CIV. .
Sumário: I – A responsabilidade civil da Brisa, enquanto concessionária de auto-estradas, pelos danos decorrentes de um acidente de viação provocado pelo aparecimento súbito de um cão, é simultaneamente extra-contratual, com o regime previsto no artº 493º, nº 1, do C. Civ., e contratual, verificando-se uma situação de concurso aparente de responsabilidades, conferindo-se ao lesado a possibilidade de optar por um ou outro regime e até de cumular regras de uma e outra modalidade da responsabilidade, segundo a chamada "teoria da opção" .
II – Em ambos os casos impende sobre a Brisa uma presunção legal de culpa – artºs 493º, nº 1, e 799º, nº 1, do C. Civ. - , mas sem qualquer restrição no modo de ilisão .

III – Fazer depender a ilisão da presunção do modo concreto da intromissão do animal é tornar impossível a prova, implicando na prática uma situação de responsabilidade objectiva, e a norma nesta dimensão interpretativa seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade .

IV – Não é suficiente para ilidir a presunção a mera alegação genérica de que “junto ao local do acidente existe vedação que estava em bom estado de conservação”, impondo-se a concreta alegação das características físicas da vedação, designadamente o tipo de vedação, a estrutura material, a altura da mesma, para se aquilatar da efectiva condição de segurança .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1. - A Autora – A... – instaurou na Comarca de Leiria acção declarativa, com forma de processo sumário, contra a Ré – B....
Alegou, em resumo:
No dia 20/6/02, quando o seu filho circulava na auto-estrada A1, no sentido sul/norte, com o veículo de matrícula 40-50-EL, de que é proprietária, embateu num animal de raça canina que inopinadamente se atravessou na via, acabando por despistar-se, sofrendo danos patrimoniais.
A responsabilidade do acidente é imputável à Ré, por não ter acautelado, como era seu dever, a possibilidade de aparecimento de qualquer animal na via, mantendo as vedações da dita AE em bom estado.
Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 7.859,05 €, acrescida de juros, à taxa legal em vigor, desde a data da citação e até efectivo reembolso.
Contestou a Ré, defendendo-se por impugnação, ao alegar que ao longo da A1 efectua vigilância constante, através das suas patrulhas de oficiais mecânicos e através de um departamento denominado “Obra Civil”, tanto das vedações que se encontram espalhadas pelas mesmas, como na detecção e verificação de situações anómalas, pondo termos às mesmas. Junto ao local do aludido embate existe uma vedação que à altura se encontrava em bom estado de conservação.
Concluiu pela improcedência da acção e requereu a intervenção acessória da C..., para quem transferira a sua responsabilidade.
Admitido o chamamento, contestou a interveniente, pedindo a improcedência da acção.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença a condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 7.859,05, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação e até efectivo pagamento.
1.2. – Inconformadas, recorreram de apelação a Ré B... e a interveniente C....

1.2.1. - Apelação da Ré B... – súmula das conclusões:
1º) – Ficou provado que a recorrente efectuou na data do sinistro o patrulhamento, como sempre o faz, das auto-estradas sob a sua jurisdição, durante 24 horas por dia.
2º) - E que nada foi detectado, até momentos antes do sinistro, durante esses patrulhamentos qualquer cão na via, quer pela patrulha da B... quer pela GNR-BT, igualmente nos seus patrulhamentos;
3º) - Que não foi detectado por ninguém, em momentos posteriores ao acidente, qualquer cão no local ou nas imediações do acidente;
4º) - A sentença recorrida considera como provado que a vedação estava em bom estado de conservação;
5º) - Reportando-nos, em particular, ao versado na douta P.II o canídeo foi atropelado pelo rodado do veículo, tendo o mesmo ficado enrolado sob o mesmo (art° 13° da p.i.),
6º) - Quando a versão das testemunhas arroladas pela A., Fernando de assunção Costa (cassete n° 1, lado B, da volta 817 à volta 1699) e Gonçalo Guerreiro Pizarro de Sampaio e Melo condutor e filho da A. - cassete n° 2, lado A, da volta 000 à volta 1660), não corroboraram tal versão, uma vez que os mesmos no seu depoimento disseram que o cão não tinha sido atropelado pelo EL, mas que o condutor se tinha desviado, e por tal entrou em despiste.
7º) - Destes depoimentos e versão da A. existe pois uma contradição insanável, pelo que tal bastaria para que não fossem dado como provados os pontos 4° e 5° da Base instrutória - pontos 12 e 13° da Sentença.
8º) - Perante, tudo o que supra se referiu, não se pode levar a crer que por culpa da B..., se deu o acidente dos presentes autos.
9º) - No caso vertente importa referir que ninguém sabe como surgiu o cão na AE, e mesmo que a A. o soubesse, tendo o mesmo originado os danos que o veículo sofreu, não se vislumbra, ainda assim, um facto ilícito cometido pela B...,
10º) - Pois, não impede sobre a mesma, nem decorre do D.L. n° 294/97 de 24 de Outubro, a obrigação de a todo o tempo e em toda a extensão da auto-estrada assegurar que não existe qualquer obstáculo que possa dificultar ou pôr em perigo a circulação automóvel.
11º) - Tão somente se exige que em termos razoáveis, em tempo oportuno e de modo eficaz, a B... assegure a boa circulação nas auto-estradas concessionadas, fazendo as reparações devidas, mantendo uma vigilância permanente (esta em termos realistas).
12º) - Ora a douta Sentença peca por defeito dando como provada a matéria supra referida para, posteriormente, considerar que tais factos não afastam a falha concreta das condições de segurança específicas da auto-estrada, a concessionária encarregada da vigilância dessas condições e da sua permanente eficácia, responde pelos danos que estejam numa relação causa efeito com essa falha de segurança, salvo se provar que não houve culpa sua pelo facto de o animal ali surgir.
13º) - A douta sentença recorrida não pode extrair "in casu" a culpa da B..., tendo sido dado como provado as respostas aos quesitos 11 a 16, e, posteriormente, vir dizer que "(...) a simples presença de um animal na auto-estrada é uma anomalia que faz presumir a culpa do encarregado da vigilância da coisa.."
14º) - Muito menos pode o tribunal "a quo" estabelecer a aplicabilidade do estatuído no art° 493° n° 1 do C.C., pois o seu regime só opera perante danos causados pelo imóvel, não no imóvel.
15º) - E como provado está, igualmente, que a Ré tem ao seu dispor meios efectivos de fiscalização que são compostas por veículos automóveis da B... que constantemente, 24 horas sobre 24 horas, circulam pelas várias auto-estradas do país, compreendidas no contrato de concessão, a fiscalizar, a verificar e a solucionar eventuais problemas que surjam e a prestar assistência aos demais utentes dessas mesmas auto-estradas.
16º) - A douta sentença de todo pode presumir da culpa e prática de facto ilícito por parte da Ré B..., pelo que atrás foi referido.
17º) - Não podendo a douta sentença recorrida extrair "in casu" a culpa da B...., uma vez que nada se sabe quanto à origem do aludido "obstáculo", às condições e modo por que surgiu na via ou ao momento em que ali apareceu, logo, é manifesto que não é possível concluir-se que a B... podia, em tempo útil, ter removido tal obstáculo, e, assim, ter evitado o acidente.
18º) - Lendo-se as Bases anexas, Decreto-Lei n° 294/97 de 24 de Outubro, fácil é concluir que a responsabilidade da R. B... será civil extra-contratual subjectiva;
19º) - Esta regula-se unicamente pelo princípio geral contido no arts 483 e 487 nº1 do Código Civil.
20º) - A douta Sentença, ora recorrida, ao contrário das regras da responsabilidade extra -contratual entendeu que caberia à Ré B... o ónus da prova.
21º) - A A. deveria ter alegado e provado, o que não o fez, o nexo causal entre o facto ilícito e o dano, bem como a culpa da B..., para que a douta Sentença, ora recorrida, pudesse vir a condenar, como o fez, a Ré B....
22º) - Nos presentes autos, apenas se provou que houve danos no veículo automóvel da A. mas não se provou a culpa da Ré B..., dado que a douta sentença recorrida considerou que caberia a esta última ilidir a presunção de culpa.
23º) - Não ficou, portanto, provado que a conduta da Ré, B..., tenha sido culposa e ilícita.
24º) - Concluindo a douta Sentença do tribunal "a quo", ora recorrida, pela condenação da Ré B..., violou as regras da responsabilidade extra-contratual, uma vez que não seria a ora apelante, que competia ilidir a presunção de culpa que sobre ela impedia, mas precisamente o contrário, deveria ter sido o lesado a provar a culpa do autor da lesão.
25º) - Violou, igualmente a douta sentença, ora recorrida, a Base anexa do Decreto-Lei n° 294/97 de 24 de Outubro, nomeadamente, o n° 1 da Base XLIX onde se estabelece que "Serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que nos termos da lei sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão".
26º) - Querendo isto tão somente dizer que e apenas o seguinte: por um lado, que pelos prejuízos causados a terceiros, em consequência da construção, conservação e exploração das Auto-Estradas referida na Base citada ao Decreto-Lei n0294/97 de 24 de Outubro, o Estado nunca responde, mas sim a concessionária (pelas indemnizações decorrentes da concessão, domínio onde a responsabilidade é normalmente do Estado, a responsabilidade transfere-se para a concessionária); e por outro lado, a responsabilidade de indemnizar terceiros apenas caberá à concessionária desde que, pelos mecanismos da lei geral, tal dever de indemnizar exista.
27º) - Ora, em matéria de acidentes de viação ocorridos na auto-estrada, por motivo de entrada de animal na faixa de rodagem, arremesso de pedras ou lençóis de água, a Jurisprudência dos nossos mais Altos Tribunais inclina-se decisivamente para uma responsabilidade extra-contratual por factos ilícitos.

1.2.2. - Apelação da interveniente C... – conclusões:
1º) - No que concerne à matéria de facto, desde logo se diga que, v.g., com base nos depoimentos das testemunhas arroladas pela própria A, Fernando Assunção Costa (vide cassete n. 1, lado B, da volta 817 à volta 1699) e Gonçalo Guerreiro Pizarro de Sampaio e Melo (Vide cassete n. 2, lado A - da volta 000 à volta n. 1660 do lado A), e como consta da participação elaborada pela GNR que tomou conta da ocorrência, e junta aos autos também pela A com a p.i. (vide documento não numerado, mas situado entre o n. 2 e o n. 3) que tem que ser dado como provado o ponto 2 A da matéria de facto, aditado à base instrutória na sequência de reclamação apresentada pela seguradora "Fidelidade - Mundial", onde se pergunta a hora a que ocorreu o sinistro:
"Quando eram 23 horas?" - a resposta, pelo que supra ficou dito, só pode ser "provado".
2º) - Por outro lado, deviam ser dados como não provados os factos constantes dos pontos 4° e 5° da base instrutória (eliminando-se os pontos 12 e 13 dos factos provados, que lhes correspondem) e que correspondem ao alegado pela A nos art.s 12° e 13° da sua petição.
3º) - Enquanto a A / Apelada o animal surgiu inopinadamente a atravessar a estrada da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do EL, tendo ido embater no rodado esquerdo do veículo, enrolando-se sob o mesmo, o que ocasionou o despiste do EL, as testemunhas arroladas pela A, Fernando Costa e Gonçalo Melo, acima indicadas nos seus depoimentos vêm dizer que não houve qualquer embate entre o cão e o EL, mas antes que o condutor do EL se desviou dele, entrando em despiste, bem como que o cão não ficou enrolado sob o rodado do automóvel, mas antes "fugiu" do local do sinistro, o que são factos bem diversos dos alegados pela A .
4º) - Para além do mais, não deixa de ser estranho que a testemunha Fernando Costa, que vinha mais atrás em relação ao condutor do EL, Gonçalo Melo, tenha conseguido ver ainda o cão a caminhar pela via, enquanto o condutor Gonçalo Melo, que vinha mais à frente, (só) o tenha visto parado no meio da estrada.
5º) - É óbvio que as versões destas testemunhas arroladas pela A é muito conveniente para a ora Apelada, na medida em que permite ultrapassar a contradição entre a versão da A - atropelamento do cão - e a ausência de vestígios do animal no local, após o sinistro, contradição essa evidenciada nos art.s 17° a l9° da contestação da "B..."-veja-se, por todos, o auto elaborado pela GNR, bem como o facto de nenhuma das testemunhas ouvidas em julgamento ter referido que havia vestígios do cão no local - mas não corroboram a versão do acidente avançada pela A na sua petição: se assim foi, porque não disse logo ???
6º) - Assim sendo, porque a versão dos factos alegada pela A e que está subjacente aos pontos 4° e 5° da base instrutória não é corroborada pelos depoimentos das testemunhas por aquela indicadas e porque os depoimentos destas testemunhas são contraditórios, e porque, precisamente na parte em que não corroboram os factos alegados pela A, servem os interesses da mesma, a credibilidade destas testemunhas deve ser questionada, sendo dados como não provados os pontos 4° e 5° da base instrutória e, consequentemente eliminados os pontos 12° e 13° dos factos provados.
7º) - Para além do mais, sempre se devia julgar improcedente a presente acção, mesmo que assim não fosse, o que não se concede, pois impendendo sobre o condutor do veículo da A, seu filho, uma presunção de culpa, face ao que vem provado no ponto 9 dos factos constantes da douta sentença (cf. facto 1° da base instrutória) devia esta alegar e provar a ausência de culpa do condutor do veículo EL na produção deste acidente. Ora, não tendo a A / Apelada sequer alegado que velocidade é que o seu filho imprimia ao Mercedes 190, às 23 horas da noite, sendo que todos os indícios, quer os danos que o veículo sofreu, quer o facto de ter entrado em despiste, quer por vir em ultrapassagem a outro veículo que circulava a 100 / 110 km / hora (cf. depoimento da testemunha Fernando Costa, acima mencionado), este tinha necessariamente que circular a velocidade superior a 100 / 110 Km. /h., ou seja, próxima da velocidade máxima permitida, e completamente inadequada para quem circula às 23 horas da noite... impossibilitando o condutor do EL de se aperceber atempadamente do cão que, na sua versão até estava parado, encadeado pelas luzes do veículo, a fim de que se pudesse travar ou desviar do mesmo, sem despiste.
8º) - Mesmo que sobre o condutor do veículo EL não impendesse qualquer presunção de culpa, o que se admite sem conceder, a "B..." também não podia ser responsabilizada pela ocorrência deste sinistro, pois cumpriu todas as normas a que se encontrava adstrita. Na realidade,
9º) - A responsabilidade da "B..." não deriva, no caso presente do disposto no art. 493, n.1° do CC, uma vez que o dano não foi causado pela auto estrada em si mesma, pela coisa, como por exemplo, um buraco, a queda de um viaduto, etc., a coisa causadora do dano não foi a auto estrada, mas sim o animal, uma realidade exterior.
10º) - Nem deriva, igualmente, do pagamento da portagem, que consubstancia o pagamento de uma taxa e não traduz qualquer relação contratual; aliás, mesmo nas auto-estradas em que não se paga portagem, a "B..." encontra-se adstrita ao cumprimento das mesmas obrigações; obrigações essas que, no caso em apreço, se provou ter cumprido na íntegra.
1.2.3. - Contra-alegações da Autora e ampliação do objecto do recurso – conclusões:
1º) - A responsabilidade da ré B... não pode deixar de se considerar contratual ou obrigacional, com a inerente presunção legal de culpa que sobre ela impende nos termos do art. 799°, n° 1, do C.Civil.
2º) - Entre a B...., como concessionária de exploração de vários troços de auto-estradas, e os respectivos utentes, estabelece-se um contrato inominado em que o utente tem como prestação o pagamento de uma taxa e a B... a contraprestação de permitir que o utente «utilize» a auto-estrada, com comodidade e segurança.
3º) - O utente, no âmbito deste contrato inominado, tem o direito de exigir o cumprimento da prestação assumida pela B... e o de exigir indemnização pelos danos causados pelo incumprimento do contrato por parte da B..., se verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar.
4º) - O aparecimento de um cão na faixa de rodagem da auto-estrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula, cabendo à B... evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade.
5º) - Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da B... ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direcção efectiva, o poder de facto sobre a auto-estrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço.
6º) - Não é suficiente (ao devedor, a B...), para afastar a presunção de culpa, mostrar que foi diligente ou que não foi negligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não lhe deixou realizar o cumprimento.
7º) - É manifesto que, respondendo a B... em termos de responsabilidade civil contratual, não conseguiu minimamente ilidir a presunção de culpa do art. 799°, n.°1 do C. Civil.
8º) - Nestes termos, e nos melhores de direito, deve, em primeira análise, improceder o recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida, nos precisos termos que dela constam.
Sem prescindir, e mostrando-se necessário a apreciação do requerimento de ampliação do objecto do recurso, deve julgar-se de igual forma a apelação, confirmando-se, agora, por razões diferentes (responsabilidade contratual da ré) a mesma sentença.
II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto dos recursos:
Considerando que o objecto dos recursos é delimitado pelas respectivas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
1ª) – A impugnação da matéria de facto ( quesitos 2º-A, 4º e 5º da base instrutória );
2ª) – A natureza da responsabilidade civil da Ré;
3ª) – Se a Ré B... deve ser responsabilizada no caso concreto.

2.1. – 1ª QUESTÃO / A impugnação da matéria de facto:
À base instrutória foi aditado o quesito 2º-A, com a seguinte formulação “ Quando eram 23 horas? “ ( cf. fls.211 ), na sequência da reclamação apresentada pela interveniente ( fls.197 ), com vista a apurar-se a hora do acidente, face ao alegado na contestação.
Na decisão sobre a matéria de facto ( fls.236 ) omitiu-se a resposta a este quesito, pretendendo a apelante C... que se julgue provado, com base nos depoimentos das testemunhas Fernando Costa e Gonçalo Melo, conjugados com a participação da GNR, junta aos autos.
A omissão da resposta a um quesito constitui o grau máximo do vício da deficiência, implicando, em princípio, a anulação oficiosa do julgamento, a menos que o facto omisso seja irrelevante para a decisão da causa, o que não sucede.
Mas constando do processo todos os elementos probatórios, está a Relação legitimada a suprir tal deficiência, como determina o art.712 nº4 do CPC, carecendo de consistência a objecção levantada pela apelada.
Ao quesito 4º ( “ No momento em que efectuava tal ultrapassagem, surgiu inopinadamente na via uma animal de raça canídea a atravessar a faixa de rodagem da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do EL?”) - o tribunal respondeu – “ Provado apenas que no momento em que efectuava tal ultrapassagem surgiu inopinadamente na via e à sua frente uma animal de raça canina “.
Ao quesito 5º ( “ Tal canídeo foi embater no rodado esquerdo do EL, enrolando-se sob o mesmo, o que originou imediato despiste do veículo? “) – o tribunal respondeu – “ Provado apenas que em consequência da manobra que o condutor do EL efectuou para evitar embater no referido cão, perdeu o domínio do veículo, o qual entrou em despiste “.
Alegando erro notório na apreciação da prova, os apelantes pretendem que se considere não provados tais quesitos, indicando como prova que impõe decisão diversa os depoimentos das mesmas testemunhas.
Da participação do acidente elaborado pela GNR, junta a fls.15 e 16, consignou-se que o acidente ocorreu no dia 20 de Junho de 2002, às 23 horas, com a respectiva descrição baseada nas declarações prestadas no local pelo condutor do veículo e testemunha, Fernando da Assunção Costa.
Ouvida a gravação dos depoimentos em audiência, a testemunha Augusto José Rodrigues, cabo da GNR, que elaborou a participação, referiu não haver presenciado o acidente, tendo chegado ao local cerca de 20/30 minutos depois, confirmando o teor da participação, que lhe foi exibido, afirmando expressamente haver questionado o condutor sobre a hora do acidente, que mencionara.
A testemunha Gonçalo Melo, durante o seu depoimento, descreveu o acidente, referindo ter sido de noite, sem que tivesse mencionado a hora e estranhamente também ninguém lhe perguntou.
Contudo, já a testemunha Fernando Costa, que presenciou o acidente, questionado em audiência sobre o momento, situou-o de noite, por volta das 23 horas, tanto no início, como na parte final da inquirição, corroborando, assim, a menção constante da participação.
Neste contexto, os elementos probatórios disponíveis permitem responder ao quesito 2º-A como provado.
Quanto aos quesitos 4º e 5º, o tribunal justificou a sua convicção na conjugação dos depoimentos das testemunhas Gonçalo Melo e Fernando Costa ( cf. fls.243 ), sendo que, após a audição dos respectivos depoimentos, a também a nossa convicção é inteiramente coincidente.
A testemunha Fernando Costa presenciou o acidente, que descreveu pormenorizadamente em audiência, pois conduzia uma viatura, que acabara de ser ultrapassada pelo veículo sinistrado, confirmando ter visto um cão ( de cor amarela ) a atravessar a faixa de rodagem do lado esquerdo para o direito, atento o sentido sul/norte.
Foi para evitar embater no referido cão, que o condutor do Mercedes ( Gonçalo Melo ) se despistou, visto que surgiu a cerca de 10/15 metros à frente.. Depois de parar a sua viatura dirigiu-se ao condutor, que lhe perguntou pelo cão, sendo certo que o mesmo desaparecera, pois não o viram mais.
Esta versão foi corroborada pelo próprio Gonçalo Melo que também descreveu com pormenor o acidente, referindo, designadamente, que no momento em que acabara de ultrapassar a viatura conduzida pelo Fernando Costa, seguia em médios, surgiu repentinamente o cão, de porte médio/grande, à sua frente ( “ de repente fiquei surpreendido pelo cão “ ). Assim que o viu, a sua reacção foi evitar embatê-lo, pelo que guinou para a direita e de seguida para a esquerda, vindo a despistar-se. Confirmou não ter tocado no cão e não mais o viu.
Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.
Pois bem, tendo o tribunal objectivado a sua convicção de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, com uma análise criteriosa, sem que se mostrem violadas as regras da experiência comum, a indicada pelo recorrente não impõe decisão diversa sobre as respostas aos quesitos 4º e 5º da base instrutória.
Passa-se a descrever a matéria de facto provada, por ordem lógica e cronológica, com o aditamento da resposta ao quesito 2º-A.

2.2. – Os factos provados:
1. A autora é dona e legítima possuidora do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca. Mercedes, modelo 190, com a matrícula 40-57-EL. (A/)
2. A ré é uma sociedade anónima concessionária da Auto Estrada do Norte (A1), por força da outorga concedida pelo Estado Português através do DL 467/72 de 22.11, posteriormente alterado pelo DL 315/91, de 20.08. (B/)
3. Actualmente e por força do DL 294/97, de 24.10, é concessionária do Estado para a construção, conservação e exploração das auto-estradas referidas na Base I anexa ao referido diploma legal e de entre as auto-estradas ali referidas, conta-se a Auto-Estrada A1. ( C/)
4. A ré está, nessa qualidade, autorizada a cobrar dos utentes daquela via taxas de portagem 1 em contrapartida da respectiva utilização (Bases X. XVII e XVIII do citado DL 315/91 de 20.08, e para o efeito possui a ré, além de diversas outras, uma instalação no início da A1 (em Alverca) destinada à aquisição pelos automobilistas que pretendem por ela circular de um "ticket" de admissão, cujo quantitativo é pago noutra idêntica instalação situado no final da mesma (nos Carvalhos, para quem se desloca para o Porto, ou numa das diferentes saídas intermédias nela existentes).( D/)
5. Por seu turno, a ré está “obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem” (Base XXXIX do Dec. Lei nº 315/91 de 20.08, devendo manter as auto-estradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam (Base XXXV). ( E/)
6. Por causa das indemnizações que, nos termos da lei, em consequência das actividades da concessão, sejam devidas a terceiros, a B...., por contrato de seguro, transferiu a sua responsabilidade civil até ao montante de 150.000.000$00, pelas indemnizações que, de conformidade com a lei, possam ser-lhe exigidas como civilmente responsável pelos prejuízos e/ou danos causados a terceiros na sua qualidade de concessionária da exploração, conservação e manutenção da A1, para a Companhia de Seguros C..., conforme apólice nº 87/38.299. ( F/)
7. No dia 20 de Junho de 2002, Gonçalo Guerreiro Pizarro de Sampaio e Melo, filho da autora, deslocava-se de Lisboa para o Porto, pela A1, conduzindo, com o expresso consentimento desta, o veículo 40-57-EL.( r.q.1º)
8. Antes de entrar na A1, o condutor do EL parou na “Portagem de Alverca”, onde adquiriu o respectivo “ticket” de acesso, assim se comprometendo a pagar o preço devido a final.( r.q.2º)
9. Ao chegar ao Km 143 da referida A1,pelas 23 horas, sentido Lisboa-Porto, o condutor do EL, depois de se assegurar que o podia fazer sem perigo para o tráfego, iniciou uma ultrapassagem a uma outra viatura que circulava, com menor velocidade, no mesmo sentido de marcha. ( r.q.2º-A e 3º)
10. No momento em que efectuava tal ultrapassagem, surgiu, inopinadamente, na via e à sua frente, um animal de raça canina.( r.q.4º)
11. Em consequência da manobra que o condutor do EL efectuou para evitar embater no referido cão, perdeu o domínio do veículo, o qual entrou em despiste. (r.q.5º)
12. e de seguida foi embater no separador central, após o que veio a embater, de novo, nesse mesmo separador até que se foi imobilizar na berma da via.( r.q.6º).
13. Na ocasião do acidente em apreço nos autos, o veículo EL embateu no separador central da A1 ao Km 143,225 ( rq.14º),
14. e depois, mais de 75 metros à frente, voltou a bater no mesmo separador central. ( rq.15º),
15. indo após imobilizar-se na berma da via, a mais de 100 metros do local do embate. ( rq.16º)
16. O veículo a que se alude em A) foi ser rebocado para Leiria, tendo a autora pago por tal serviço de reboque a quantia de 130,25 €.( G/)
17. Esse mesmo veículo foi, posteriormente, rebocado de Leiria para Caminha, ou seja, para o local onde teve lugar a sua reparação, pelo que a autora pagou a quantia de 178,50 €. (H/)
18. Em consequência de tais embates, o EL ficou seriamente danificado, sofrendo designadamente a destruição do pára-choques frontal e traseiro, a quebra de ambos os faróis e luzes de pisca dianteiros e traseiro, bem como das luxes de pisca e stop, amolgadela da grelha da frente, empenamento da porta direita da frente, danificação da embaladeira, destruição dos frisos das portas laterais, amolgamento dos guarda lamas, chapa de matricula e blindagem do radiador, assim com quebra do vidro, para brisas dianteiro. ( rq.7º)
19. Tal reparação importou em 6.950,30 €, montante esse que a autora já liquidou, parcialmente, esperando liquidar o restante após o desfecho da presente acção. ( rq.8º)
20. Até ser concluída a reparação do EL, ele esteve imobilizado durante um mês na oficina "Delfauto" , em Seixas, Caminha, vendo-se em consequência a autora privada do seu uso diário. ( r.q.9º)
21. A autora é docente na Escola Secundária de Monserrate, em Viana do Castelo, onde trabalha todos os dias.( rq.10º)
22. A mesma encontra-se ainda a participar em curso de mestrado, em Ferrol, Espanha.( r.q.11º)
23. Na impossibilidade de utilizar o EL durante o tempo em que este esteve para reparar, a autora alugou um outro veículo, durante 30 dias, no que gastou mais de 600,00 €. ( r.q.12º)
24. Ao longo da A1, como em todas as outras que se encontram abrangidas pelo contrato de concessão, a ré efectua vigilância constante, através das suas patrulhas de oficiais mecânicos e através de um departamento denominado “Obra Civil”, quer das vedações que se encontram espalhadas pelas mesmas quer na detecção e verificação de situações anómalas, pondo termos às mesmas. ( r.q.17º)
25. Tais patrulhas circulam constantemente pelas auto-estradas, ou seja, 24 horas sobre 24 horas. ( r.q.18º)
26. O carro de patrulhamento da ré passou no local do embate pelas 22.45 minutos e não avistou qualquer cão na via. ( r.q.19º)

27. Posteriormente ninguém viu o cão no local do acidente ou nas imediações do mesmo. ( r.q.20º)
28. Junto ao local do aludido embate existe uma vedação que à altura se encontrava em bom estado de conservação. ( r.q.21º)



2.3. - 2ª QUESTÃO / A natureza da responsabilidade da B...:
A temática dos acidentes de viação nas auto-estradas provocados pelo aparecimento de animais, inserida no âmbito do direito da responsabilidade civil, tem sido objecto de larga indagação jurisprudencial e doutrinária, com soluções jurídicas antagónicas.
Segundo a Lei de Bases dos Sistema de Transportes ( Lei nº10/90 de 17/3 ), a rede de estradas nacionais constituem bens do domínio público do Estado, e a construção e exploração de auto-estradas podem ser objecto de concessão, constituída expressamente para esse fim ( arts.14º e 15º).
O contrato de concessão da construção, conservação e exploração da A1, celebrado entre o Estado e a B..., regula-se pelas Bases Anexas ao Dec-Lei nº 264/97, de 24 de Outubro, em cujo preâmbulo se refere expressamente “as bases anexas ao presente diploma consubstanciam o resultado da negociação mantida com a concessionária. O carácter contratual da concessão não é prejudicado pela integração no presente diploma das bases anexas, cuja necessidade resulta da circunstância de algumas dessas bases apresentarem eficácia externa relativamente às partes no contrato”.

Reproduzem-se aqui algumas das bases mais significativas:
“ Base XV
1 - As taxas de portagem para as diferentes classes de veículos definidas nos termos da base XVI são o produto da aplicação das tarifas de portagem à extensão de percurso a efectuar pêlos utentes, acrescido do IVA à taxa em vigor.
Base XXII
5 - As auto-estradas deverão ainda ser dotadas com as seguintes obras acessórias:
a) - Vedação em toda a sua extensão, devendo ser as passagens superiores em que o tráfego de peões seja exclusivo ou importante também vedadas lateralmente em toda a extensão;
Base XXXIII
1 - A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente.
Base XXXVI
2 - A concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem.

Base XLVII
1 - A concessionária fica isenta de responsabilidade por falta, deficiência ou atraso na execução do contrato quando se verifique caso de força maior devidamente comprovado.
2 - Para os efeitos indicados no número anterior, consideram-se casos de força maior unicamente os que resultam de acontecimentos imprevistos e irresistíveis cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da concessionária, nomeadamente actos de guerra ou subversão, epidemias, radiações atómicas, fogo, raio, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem os trabalhos da concessão.
Base XLIX
1 - Serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão. “

A pedra de toque, como se verá, situa-se sobretudo ao nível da culpa, quanto a saber se é ao lesado que compete o ónus da alegação e prova ( art.342 nº1 do CC ) ou se existe uma presunção legal de culpa por parte da B..., dependendo da prévia definição do regime jurídico adequado e da natureza da relação estabelecida entre a concessionária e o utente.
Numa sinopse, e para melhor percepção, vamos elencar, em termos esquemáticos, as três teses em confronto:

a) - Tese da responsabilidade civil extra-contratual ( arts.483 e 487 do CC ):
A responsabilidade da B... perante os utentes da auto-estrada, cuja exploração lhe foi concedida, é regulada, nos termos gerais dos arts.483 e 487 do CC.
Nesta medida, compete ao lesado, como facto constitutivo do seu direito, o ónus de alegação e prova da culpa, ainda que através da chamada “ prova da primeira aparência”, ou seja, de que o aparecimento do animal se deveu à omissão por parte da B... do dever de vigilância.
Para tanto, e consoante as circunstâncias peculiares do caso, terá o lesado de alegar e provar que a concessionária tinha ou podia ter tido conhecimento da existência do animal que apareceu na via, que apesar disso não removeu, sinalizou ou avisou os utentes, que não vedou, nem vigiou conveniente o respectivo troço da auto-estrada.
Argumenta-se, em síntese:
A responsabilidade da concessionária perante terceiros resulta do nº1 da Base LIII do DL nº315/91 de 20/8, sendo por isso aferida nos termos gerais da lei substantiva ( art.483 do CC ).
A responsabilidade depende da inobservância das obrigações prescritas nas referidas Bases, que pressupõe a culpa efectiva, já que a expressão genérica “ nos termos da lei “, plasmada no nº1 da Base LIII, constitui manifesta remissão para a lei geral, devendo entender-se como tal o regime geral da responsabilidade subjectiva.
Do conjunto normativo das citadas bases não resulta o estabelecimento de qualquer responsabilidade civil contratual.
Não pode convocar-se uma situação de responsabilidade contratual, designadamente um contrato inominado por pagamento de portagens, devido à ausência de liberdade de celebração e de estipulação, inexistindo concorrência de declarações.
O princípio da igualdade rodoviária, pois em todos os troços ( concluídos pela B... ou pelo Estado e com portagem ou sem ela ) e para todos os utentes, quaisquer que sejam os veículos, vigoram as mesmas regras de circulação e operam as mesmas responsabilidades, por exigência legal e de ordem pública.
( Neste sentido, por exemplo, Ac do STJ de 28/3/95, C.J. ano III, tomo I, pág.145, de 26/6/01, C.J. ano IX, tomo II, pág.127, de 14/10/04, www dgsi.pt/jstj, Ac RC de 26/9/00, Ac RP de 14/10/02, de 27/4/04, Ac RL de 9/6/05, Ac RC de 29/11/05 disponíveis na base de dados em www dgsi.pt. Prof. Menezes Cordeiro, Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, 2004, Prof. Carneiro da Frada, “ Sobre a Responsabilidade das Concessionárias por acidentes ocorridos em Auto-Estradas”, R.O.A, ano 65, pág.407 e segs. ).

b) - Tese da responsabilidade civil extra-contratualpresunção legal de culpa ( art.483 e 493 nº1 do CC):
Como regra geral, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art.487 nº1 C.C.).
O nº1 do art.493 do CC estabelece uma presunção legal de culpa ( presunção "juris tantum" ) por parte de - “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar … responde pelos danos que a coisa … causar, salvo se provar que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
Prevê-se aqui uma inversão do ónus da prova da culpa, sempre que se verifiquem os pressupostos da aplicação da norma, ou seja, quando haja o dever de vigilância sobre uma coisa e essa coisa seja fonte de danos para terceiros.
Abrindo uma excepção à regra do nº1 do art.487 CC, não se altera, contudo, o princípio do art.483 C.C. de que a responsabilidade depende de culpa, pelo que se configura ainda uma situação de responsabilidade delitual.
Argumenta-se, para tanto, com o “critério funcional ou globalizante da coisa ”, já que a auto-estrada visa a circulação rodoviária dentro de determinadas regras de segurança e comodidade, e é a concessionária que domina as fontes de risco.
Ao abordar o problema, também nesta perspectiva, elucida o Prof. SINDE MONTEIRO - “para que o dano se possa dizer causado pela coisa imóvel é necessário que a mesma apresente algum defeito ou anomalia (...) no caso da auto-estrada, a coisa tem de ser vista na sua globalidade, considerando todas as componentes que contribuem para a segurança, a fim de verificar se o funcionamento da coisa obedece aos parâmetros do direito positivo. Ora, se as bases de concessão impõem a vedação em toda a extensão é porque se pretende evitar a entrada de animais. Logo, a simples presença de um animal na auto-estrada é uma anomalia que faz presumir a culpa do encarregado da vigilância da coisa”, o que significa, para este autor, não só uma presunção de culpa, como ainda uma presunção da prática de um facto ilícito ( cf. RLJ ano 133, pág.66 ).
Assim, se um animal entra na auto-estrada e provoca um acidente a concessionária responde pelos danos, a menos que prove que não houve culpa da sua parte pelo facto de o animal ali surgir, ou que, mesmo que tivessem funcionado em pleno as condições de segurança, designadamente as vedações, o mesmo animal teria entrado e causado o acidente. Existe, assim, uma presunção de culpa da concessionária e o correspondente ónus de prova da inexistência de culpa ( cf., por ex., Ac RC de 13/1/04, Ac RG de 20/10/04, disponíveis na base de dados em www dgsi.pt ).

c) – Tese da responsabilidade contratual:
A responsabilidade da concessionária é de natureza contratual, visto que entre o utente da auto-estrada e a B... estabelece-se um contrato civil, ao lado do contrato de direito público ( contrato de concessão ) celebrado com o Estado.
Diverge-se sobre a natureza deste contrato, sendo qualificado, como “contrato inominado” ou como “contrato de utilização”, tendo como prestações principais, respectivamente o pagamento de uma portagem e a utilização da auto-estrada com comodidade e segurança.
Outros entendem, porém, tratar-se de um contrato com eficácia de protecção para terceiros, tal como resulta do próprio preâmbulo do DL nº294/97 ao aludir que algumas Bases “ têm eficácia externa relativamente às partes do contrato “.
Tópicos argumentativos:
As “ taxas portagens “ ( Bases XV e XVI do DL nº294/97 ) assumem uma qualificação privatística, tratando-se de um preço prefixado, em função do percurso, tanto assim que sobre elas incide IVA. Note-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem entendido que a colocação à disposição de uma infra-estrutura rodoviária mediante o pagamento de uma portagem constitui uma prestação de serviços efectuada a título oneroso, na acepção do art.2º nº1 da Sexta Directiva 77/388, a propósito da incidência do IVA, relativamente às actividades exercidas por operadores de direito privado ( cf., por ex. Ac de 18/1/2001, Colectânea de Jurisprudência 2001, pág.I-00445 )
Esta qualificação privatística é reforçada pelo facto da concessionária ser uma empresa de fim lucrativo.
O contrato celebrado entre o utente que pretende aceder à auto-estrada e a B...., sua concessionária, apresenta-se como uma afloração de relevância das relações contratuais de facto: as relações entre a concessionária e o utente não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, antes numa proposta tácita por parte do utente em aceder à auto-estrada, traduzido no pagamento da "taxa-portagem" e na aceitação tácita da B... a permitir a utilização da auto-estrada por parte do utente.
A circunstância de haver auto-estradas sem portagem não infirma a solução contratualista, visto que nestes casos se configura um contrato com eficácia de protecção para terceiros ( art.443 e segs. do CC ).
Escapando à gravosa sujeição ao estatuto da responsabilidade por actos de gestão pública, passando a responder por actos de gestão privada, logo assumindo a parte favorável ( os commoda ) e rejeitar a outra ( os incommoda ) atenta contra o princípio da igualdade;
A B... recorre ao processo de injunção para obter o pagamento coercivo das taxas/portagens.
( Neste sentido, cf., por ex., Ac STJ de 17/1/00, C.J. ano VIII, tomo I, pág.107, de 22/6/04, www dgsi.pt/jstj, Ac RC de 8/5/01, C.J. ano XXVI, tomo III, pág.9, de 5/11/02, C.J. ano XXVII, tomo V, pág.15, de 13/1/04, de 12/4/05, disponíveis em www dgsi.pt/jtrc; Prof. SINDE MONTEIRO, RLJ ano 131, pág.41, 132, pág.29, 133, pág.27, Cons. CARDONA FERREIRA, Acidentes de Viação em Auto-Estradas, 2004; Cons. ARMANDO TRIUNFANTE, Revista Direito e Justiça, vol.XV ( 2001), tomo 1º, pág.45 e segs. ).
Conscientes de que qualquer das teses não está isenta de críticas, temos por mais adequada, e segundo uma lógica de justiça material, a orientação de que sobre a B... impende uma presunção legal de culpa, tanto pelo regime do art.493 nº1, como sobretudo pela solução contratualista, nos termos do art.799 nº1 do CC.
Com efeito, no âmbito do direito probatório a atitude que melhor se compatibiliza com a teoria da função da norma, que torna obrigatória a vedação das auto-estradas em toda a sua extensão, pretendendo afastar uma fonte de perigos, é a de fazer impender o ónus da prova da ausência de culpa sobre quem tem a possibilidade e o dever de ligado à custódia, bem como os conhecimentos e meios técnicos e humanos para controlar a fonte de perigos, sendo que a presunção de culpa está ao serviço da justiça material, fazendo recair sobre o vigilante o ónus de uma situação excepcional ( cf. SINDE MONTEIRO, RLJ ano 131, pág.111 e ano 133, pág.66 ).
Em resumo, estamos perante uma situação de concurso aparente de responsabilidades, conferindo-se ao lesado a possibilidade de optar por um ou outro regime e até de cumular regras de uma e outra modalidade da responsabilidade, segundo a chamada “teoria da opção” ( cf., VAZ SERRA BMJ 85, pág.115, e RLJ ano 102, pág.313, PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, pág.714; RUI ALARCÃO, Direito das Obrigações, pág.209; MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, pág.411 ).
No direito brasileiro, para situações semelhantes, o problema da responsabilidade da concessionária está positivado no art.25º da Lei 8.987/95 ( “ Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usurários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilização” ) e segundo determinado entendimento doutrinário e jurisprudencial configura-se um contrato de consumo entre a concessionária e o utente, aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor ( Lei nº8.078 de 11/9/90 ), defendendo-se a existência de uma responsabilidade objectiva ( art.14º) ( cf. MARCOS MONTEIRO DA SILVA, “ A responsabilidade Objectiva das Concessionárias de serviços públicos frente a terceiros em face da aplicabilidade do Código de Protecção e Defesa do Consumidor às relações de prestação de serviços públicos”, Boletim Jurídico, Uberaba/MG ano 3, nº142 ).

2.4. – 3ª QUESTÃO/ A responsabilidade no caso concreto:
A sentença recorrida, após discernir as várias teses em confronto, considerou que a responsabilidade da B... é de natureza extra-contratual, mas sujeita ao regime do art.493 nº1 do CC e os factos apurados não são suficientes para ilidir a presunção de culpa, designadamente por não haver demonstrado em que circunstâncias surgiu o cão na auto-estrada.
A apelada corroborando tal enquadramento, alargou o objecto do recurso, situando o problema em sede de responsabilidade contratual, sem que as Rés tenham ilidido a presunção de culpa.
Em contrapartida, as apelantes sustentam a tese da responsabilidade extra-contratual, nos termos gerais ( art.483 e 487 nº1 do CC ), não estando comprovada a culpa da B....
A apelante C... sustenta existir uma presunção legal de culpa sobre o condutor do veículo, visto que o conduzia com o consentimento da Autora, sua mãe.
Porém, a presunção de culpa do art.503 nº3 do CC, na interpretação do Assento do STJ de 14/4/83 ( BMJ 326, pág.302 ) pressupõe uma relação de comissão ( art.500 CC ), que manifestamente não existe. A relação comissário/comitente é distinta do mero interesse ( económico ou moral ) na utilização do veículo, cuja direcção efectiva ( traduzida no poder de facto sobre o veículo ) pode coexistir entre o proprietário do veículo e o seu condutor, bastando recordar, entre outras, as figuras do comodato, mantendo, assim, a direcção efectiva do veículo.
Não estando posta em causa os restantes pressupostos da indemnização, a questão essencial consiste em saber se as apelantes ilidiram ou não a respectiva presunção de culpa.
O art.799 nº1 do CC ( tal como o art.493 nº1 ) estabelece uma presunção de culpa, mas não contem qualquer restrição sobre o modo da ilisão, contrariamente à norma similar do art.705 do Código de Seabra.
Segundo determinado entendimento, dispondo a Base XXVI nº2 do DL nº294/97 que a obrigação de assegurar “ boas condições de segurança “ só é afastada em “ caso de força maior devidamente verificado “, nela se englobando para além do “ caso fortuito “, o facto de terceiro ou do lesado.
Daí que a presunção só será ilidida se comprovar o modo concreto da intromissão do animal, pois a causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente, sendo insuficiente a prova de que as vedações se encontravam em bom estado de conservação na zona do acidente ( cf., por ex., SINDE MONTEIRO, RLJ ano 131, pág.111, e ano 133, pág.65, Ac do STJ de 22/6/04, www dgsi.pt/jstj ).
Com o devido respeito, não parece aceitável tal posição sobre o rigor da prova liberatória.
Em primeiro lugar, porque a comprovação necessária de caso de força maior, tal como prevista no contrato de concessão, será matéria específica no âmbito do regime administrativo concedente/concessionário ( cf. CARDONA FERREIRA, loc.cit., pág.94 ).
Em segundo lugar, fazer depender a ilisão da presunção do modo concreto da intromissão do animal é tornar impossível a prova, implicando na prática uma situação de responsabilidade objectiva, e a norma nesta dimensão interpretativa seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade.
Sendo assim, para além de determinar a inversão do ónus da prova (art.344 nº1 C.C.), tanto o nº1 do art.493, como o art.799 nº1 do CC, não agravam a medida da normal diligência do " bonus pater familias ", pois de contrário a previsibilidade do dano estaria “ re ipsa “ e seria inócua a relevância negativa da causa virtual do dano, tal como sucede para as hipóteses do nº2 do art.493 do CC ( actividades perigosas ).
O problema terá que ser equacionado perante o caso concreto, quanto a saber se os elementos factuais disponíveis são suficientes, segundo o princípio da exigibilidade, para afastar a presunção.
A este propósito, comprovou-se que ao longo da A1 a B... efectua vigilância constante ( 24 horas sobre 24 horas ), através das suas patrulhas de oficiais mecânicos e de um departamento de “ Obra Civil “, sobre as vedações espalhadas e com vista a detectar situações anómalas.
O carro de patrulhamento da B... passou no local cerca de 15 minutos antes e não avistou qualquer cão na via, sendo certo que posteriormente ao acidente, ninguém viu mais ali o canídeo ou nas imediações.
Muito embora o dever de vigilância haja sido observado, em termos razoáveis, já não é suficiente para a prova liberatória a comprovação genérica de que “ junto ao local do acidente existe vedação que estava em bom estado de conservação “.
É que a vedação não visa apenas delimitar as margens, destinando-se primordialmente a obstaculizar fontes de perigo, como a intromissão de animais, ou seja, a garantir as “ boas condições de segurança “.
Por conseguinte, impunha-se saber se a vedação era apta ou idónea a evitar a intromissão do canídeo, o que pressupunha a alegação das respectivas características, designadamente, qual o tipo de vedação, a sua estrutura material, a altura da mesma, pois só assim se poderia aquilatar da efectiva condição de segurança para afastar a presunção, cujo ónus de alegação e prova lhe incumbia, o que não fez.
Por isso, não tendo ilidido a presunção de culpa sobre ela impende a obrigação de indemnizar, reunidos que estão todos os demais pressupostos da obrigação de indemnização, improcedendo consequentemente as apelações.

Síntese conclusiva:
a) - A responsabilidade civil da B..., enquanto concessionária de auto -estradas, pelos danos decorrentes de um acidente de viação provocado pelo aparecimento súbito de um cão, é simultaneamente extra-contratual, com o regime previsto no art.493 nº1 do CC, e contratual, verificando-se uma situação de concurso aparente de responsabilidades, conferindo-se ao lesado a possibilidade de optar por um ou outro regime e até de cumular regras de uma e outra modalidade da responsabilidade, segundo a chamada “teoria da opção”.
b) - Em ambos os casos impende sobre a B... uma presunção legal de culpa ( arts.493 nº1 e 799 nº1 do CC ), mas sem qualquer restrição no modo de ilisão.
c) - Fazer depender a ilisão da presunção do modo concreto da intromissão do animal é tornar impossível a prova, implicando na prática uma situação de responsabilidade objectiva, e a norma nesta dimensão interpretativa seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade.
d) - Não é suficiente para ilidir a presunção a mera alegação genérica de que “ junto ao local do acidente existe vedação que estava em bom estado de conservação”, impondo-se a concreta alegação das características físicas da vedação, designadamente o tipo de vedação, a estrutura material, a altura da mesma, para se aquilatar da efectiva condição de segurança.
III - DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedentes as apelações e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar cada uma das apelantes nas custas.
+++
Coimbra, 10 de Janeiro de 2006.