Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
299/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO DE HOSPEDAGEM
ESTABELECIMENTO HOTELEIRO
INUNDAÇÃO DE GARAGEM
DANO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 03/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 406º E 799º, Nº 1, DO C. CIV. .
Sumário: I – O contrato de hospedagem é hoje um contrato atípico misto, que integra prestações dos contratos de locação e de prestação de serviços, obrigando-se a entidade hospedeira a ceder o gozo de um determinado espaço, durante um determinado período, e a prestar um determinado número de serviços, contra o pagamento de uma retribuição.
II – O contrato de hospedagem relativo a uma estadia numa unidade hoteleira envolve variados deveres acessórios ou laterais da prestação principal do hospedeiro, entre os quais se encontra o dever de assegurar ao hóspede e seus bens condições de segurança no gozo dos espaços daquela unidade ( com o que se visa a satisfação cabal do interesse do credor na prestação principal, uma vez que não tendo o hóspede o domínio do espaço onde está hospedado, tem o direito de exigir que o mesmo esteja dotado das condições de segurança que evitem a colocação em risco quer da sua integridade física quer do património que o acompanha) .

III – A ocorrência de uma inundação de grandes proporções na garagem do hotel onde se encontrava hospedada a autora e onde estava parqueada a sua viatura, constitui uma indiscutível violação do dever acessório de garantia das condições de segurança dos hóspedes desse hotel e dos seus bens, pelo que na apreciação da responsabilidade pelos danos causados à autora, enquanto hóspede do hotel, nos situamos no âmbito da responsabilidade contratual .

IV – Na definição do regime da responsabilidade civil aplicável deve atender-se à vontade das partes, expressa no clausulado contratual, uma vez que foi na execução da relação negocial estabelecida entre elas que ocorreu o facto lesivo, devendo respeitar-se essa vontade em tudo o que não contrarie normas imperativas – artº 406º do C. Civ. .

V – Nos casos em que ocorre um concurso ideal dos dois regimes de responsabilidade civil, consideramos que o regime da responsabilidade contratual consome o da responsabilidade extracontratual, sendo ele o aplicável, uma vez que entre lesante e lesado existe uma relação obrigacional na qual ocorreu o facto lesivo, justificando-se, pois, a sobreposição da responsabilidade adequada à violação dos contratos .

VI – Sendo aplicável o regime da responsabilidade contratual, presume-se a culpa do hospedeiro pelo verificado incumprimento do dever acessório de garantia das condições de segurança das pessoas hospedadas e dos seus bens no hotel por ele explorado, nos termos do artº 799º, nº 1, do C. Civ. .

VII – Mas provando-se que a inundação teve origem numa intempérie caracterizada pela queda torrencial, imprevista e absolutamente anormal de precipitação (uma autêntica tromba de água), tem-se por ilidida tal presunção de culpa, baseada esta refutação em “caso fortuito”, o que exclui a culpa do obrigado e, consequente, o dever de responder pelos estragados provocados pela intempérie no carro da autora .

Decisão Texto Integral:

Autora: A...

Ré: B...

Interveniente acessório: Estado Português

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A Autora instaurou contra a Ré uma acção declarativa, com forma de processo comum sumário, em que pediu a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização no valor de €. 4.985,82, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento, alegando, em síntese, o seguinte:
- A Ré dedica-se à actividade de hotelaria, fornecendo alojamento, refeições e parqueamento automóvel aos interessados que contratem estes serviços.
- No âmbito desta actividade, nos dias 5, 6 e 7 de Maio de 2000, forneceu à Autora alojamento, alimentação e estacionamento do veículo em que esta se deslocava, veículo esse que foi colocado no parque privativo da Ré e sob a guarda e vigilância desta.
- Entretanto, devido ao mau tempo, as instalações da Ré foram inundadas e para fugir à invasão da água a Autora e as restantes pessoas que lá se encontravam tiveram que se refugiar no piso superior do referido salão e, seguidamente, tal como as outras pessoas, foi evacuada num barco pneumático.
- As instalações do B... ficaram inundadas até à altura do primeiro andar e este complexo hoteleiro localiza-se a cerca de 25 metros duma linha de água, denominada Ribeira de Fervença.
- O caudal desta linha de água começou a subir de forma acentuada tendo transposto as bermas e invadiu o parque de estacionamento no qual se encontrava estacionado o veículo da Autora.
- O veículo foi arrastado pelas águas cerca de 50 metros, tendo ficado totalmente submerso.
- A Ré tinha o dever de guarda e vigilância dos diversos veículos dos clientes que se encontravam no parque de estacionamento do hotel.
- Na reparação dos danos sofrido pelo veículo em consequência da inundação, a Autora despendeu a quantia de 849.569$00 e apesar de reparada a viatura ficou desvalorizada em 150.000$00.

Contestou a Ré, alegando o seguinte:
- Antes das águas começarem a subir um funcionário da Ré pediu à Autora para retirar o seu veículo do parque avisando-a de que a subida das águas lhe podia causar danos, tendo a Autora se recusado a retirar o veículo do parque de estacionamento.
- A subida das águas foi anormal e imprevisível.
- Impugna os valores dos prejuízos que se dizem sofridos.
- A responsabilidade pela subida das águas cabe a diversos serviços do Estado que não efectuaram as obras necessárias para que tal não ocorresse.
Concluiu pela sua absolvição do pedido, tendo requerido a intervenção acessória na acção desses serviços do Estado.

Pelo despacho de fls. 68 a 72 foi admitida a intervenção acessória provo-cada do Estado.

O MP apresentou contestação, pedindo a absolvição do Estado, impug-nando os factos alegados pela Autora e pela Ré e acrescentando que a inundação referida se ficou a dever a uma queda torrencial, imprevista e anormal de precipi-tação.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo posteriormente sido profe-rida sentença que absolveu a Ré do pedido formulado pela Autora.

Desta sentença interpôs recurso a Autora, com os seguintes fundamen-tos:
“- Nos dias 5, 6 e 7 de Maio de 2000 a Autora contratou com a Ré o fornecimento de alojamento, alimentação e parqueamento do veículo que utilizava, no B...;
- Por este fornecimento pagou 8.500$00/pessoa pelo alojamento e 3.000$00 por cada refeição;
- O parqueamento do veículo foi feito no parque privativo do Hotel, o qual estava sob a guarda e vigilância da Ré;
- Pelas 11h30 do dia 5/05/2000 a Autora estacionou o veículo Audi 80 com matrícula PQ-94-53 nesse parque e pelas 14h00 dirigiu-se para uma sala de conferências do hotel para participar num curso que estava a ser ministrado;
- Enquanto decorria esse curso a Autora apercebeu-se de que chovia intensamente;
- A dada altura, a Autora e os demais participantes do curso tiverem que se refugiar no piso superior porque as instalações ficaram inundadas até ao nível do primeiro andar;
- A subida das águas demorou cerca de 30 minutos, tendo inundado o parque de esta-cionamento, com cerca de 1,80 metros de altura da água;
- O veículo da Autora ficou completamente submerso, tal como outros que não foram retirados do parque no decurso da subida das águas;
- Junto ao parque de estacionamento existe uma via pública a uma cota superior que ficou a salvo das inundações;
- Esta não foi a primeira vez que as instalações do Hotel ficaram inundadas pelas águas do Rio Alcoa e que se verificaram danos nas viaturas estacionadas no parque;
- A Ré não avisou a Autora para, em tempo útil, retirar o veículo do estacionamento;
- O Rio Alcoa tinha o leito assoreado e com árvores, silvas, erva e mato o que impe-dia a passagem das águas normalmente;
- A Ré B... tinha colocado terras na margem esquerda do rio para obstruir a subida das águas as quais foram mudadas pelo Ministério do Ambiente e Orde-namento do Território para a outra margem;
- Tais factos provam que a Ré tinha conhecimento do risco de inundação do parque de estacionamento do hotel e da possibilidade de ocorrerem prejuízos nos veículos que lá estavam;
- Todavia, não usou da diligência devida para que esses carros fossem retirados do local;
- Com a inundação, o veículo da Autora ficou submerso e sofreu danos para cuja reparação despendeu 849.569$00 (€. 4.237,63);
- No âmbito do contrato de alojamento existente entre a Autora e a Ré esta tinha o dever de guarda e vigilância do veículo;
- A subida das águas decorreu num decurso de tempo de cerca de 30 minutos, o que permitiu que alguns hóspedes do hotel retivessem os seus veículos, antes de sofrerem danos;
- A Ré, embora soubesse que a Autora estava na sala de conferências, não a avisou para o fazer;
- Quando, por experiência anterior, devia prever a subida das águas e o risco de danos no veículo que estava no parque;
- A Ré não cumpriu o dever de guarda e vigilância do veículo da Autora que, con-tratualmente, se tinha obrigado, cumprindo de forma defeituosa as obrigações emergentes do contrato de alojamento.
- A douta sentença recorrida fez incorrecta aplicação do direito, designadamente dos artigos 798°, 799° e 800° do C.C., pelo que deve ser revogada e a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €. 4.237,63, acrescida de juros de mora contados desde a citação”.
Concluiu pela revogação da sentença recorrida e pela condenação da Ré no peticionado.

Apenas o M.P. apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

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O objecto do recurso
Neste recurso cumpre verificar se a Ré pode ser responsabilizada pelos danos causados no veículo da Autora, quando este se encontrava no parque de estacionamento da Ré, na sequência da sua inundação provocada por chuvas tor-renciais.

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Os factos
Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

I - A Ré, B...., dedica-se à actividade de hotela-ria fornecendo alojamento, refeições e parqueamento automóvel aos interessados que contratem esses serviços (al. A dos Factos Assentes).

II - No âmbito dessa actividade, nos dias 5, 6 e 7 de Maio de 2000, for-neceu à Autora alojamento, alimentação e estacionamento do veículo em que esta se deslocava (al. B dos Factos Assentes).

III - Tais serviços foram prestados nas instalações do B..., em Alcobaça, mediante o custo acordado de esc. 8.500$00 por pessoa, pelo alojamento, e esc. 3.000$00, por cada refeição fornecida (al. C e D dos Fac-tos Assentes).

IV - Na prestação desses serviços estava incluído o estacionamento do veículo em que a Autora se deslocava, o qual foi feito no parque privativo do refe-rido hotel (al. E e F dos Factos Assentes).

V - Este parque estava sob a guarda e vigilância da Ré B.... (al. G dos Factos Assentes).

VI - No dia 5/05/2000, pelas 11,30 horas, a Autora estacionou no par-que do B... o veículo automóvel de marca Audi, mod. 80, com a matrícula PQ-94-53, do qual é proprietária, dirigindo-se, de seguida, para o quarto 215, onde depositou os utensílios de viagem que transportava (al. H e I dos Factos Assentes).

VII - Cerca das 14:00 horas, dirigiu-se para uma sala de conferências do referido complexo hoteleiro, onde participou num curso que decorria naquele local (al. J dos Factos Assentes).

VIII - Enquanto decorria esse curso, a Autora apercebeu-se do mau tempo que se fazia sentir na região (al. K dos Factos Assentes).

IX – Nesse dia caíram chuvas torrenciais anormais e muito fortes, que, na altura, inundaram todo o vale onde se situam as termas e terrenos limítrofes, numa extensão de mais de 10 Km de distância (respostas aos quesitos 12º e 13º).

X - A região onde se implanta o B... foi assolada por uma intempérie caracterizada pela queda torrencial, imprevista e absolutamente anormal de precipitação, uma autêntica tromba de água, de proporções fora do comum (respostas aos quesitos 28º e 29º).

XI - Intempérie de tal modo imprevista que nem os serviços do Instituto de Meteorologia a conseguiram antever e comunicar atempadamente (resposta ao quesito 31º).

XII - Esta situação deixou todas as autoridades sem possibilidade de providenciarem antecipadamente por uma resposta adequada, a qual, porém, logo veio a ser dada depois de conhecida a gravidade da situação, através da mobilização de todos os meios disponíveis, nomeadamente máquinas e pessoal da Câmara Municipal de Alcobaça, bombeiros, PSP e GNR (respostas aos quesitos 33º e 34º).

XIII - Enquanto isto, foi difundida informação à população civil, através da rádio local e montado, no quartel dos Bombeiros de Alcobaça, o Centro Muni-cipal de Operações de Emergência e Protecção Civil, no qual estiveram presentes, entre outros, os Srs. Governador Civil de Leiria, Presidente da Câmara de Alco-baça, Vereador do pelouro da protecção civil desta autarquia, Inspector Regional Adjunto dos Bombeiros de Lisboa e Vale do Tejo, Comandante do Destacamento da GNR de Caldas da Rainha e Comandante da PSP de Alcobaça (respostas aos quesitos 35º e 36º).

XIV - O referido em IX e X determinou que, de forma inesperada, engrossasse o caudal do rio que corre nas imediações do hotel (a 25 m), provo-cando que as águas extravasassem e transpusessem as suas margens e invadido o parque de estacionamento onde se encontrava o veículo da Autora e as instalações do hotel (resposta ao quesito 30º e alíneas P, Q, R e S dos factos assentes).

XV - Os primeiros estragos e inundações, designadamente ocorridos no B..., começaram a ser detectados passados cerca de 30 minutos depois de ter começado a chover (resposta ao quesito 32º).

XVI - Os participantes foram, a dada altura, alertados pelos empregados do hotel da invasão da água (al. L dos Factos Assentes).

XVII - O que obrigou a Autora e as outras pessoas que lá se encontra-vam a refugiar-se no piso superior do mencionado salão (al. M dos Factos Assentes).

XVIII - Tendo a Autora sido, tal como as outras pessoas, evacuada num barco pneumático (al. N dos Factos Assentes).

XIX - As instalações do B... ficaram inundadas até à altura do primeiro andar (al. O dos Factos Assentes).

XX - No parque de estacionamento, a água atingiu altura superior a 1,80 metros (al. T dos Factos Assentes).

XXI - As viaturas que nele se encontravam estacionadas foram desloca-das umas contra as outras e contra as construções existentes (al. U dos Factos Assentes).

XXII - O veículo da Autora foi arrastado pelas águas cerca de 50 metros, tendo ficado completamente submerso (al. V e W dos factos Assentes).

XXIII - Próximo do parque de estacionamento do hotel encontram-se locais abertos à circulação pública de veículos (al. X dos Factos Assentes).

XXIV - Alguns ocupantes do B... tiraram as suas viaturas automóveis (resposta ao quesito 16º).

XXV - Esta não foi a primeira vez que as instalações do Hotel ficaram inundadas pelas águas do Rio Alcoa e que se verificaram danos nas viaturas esta-cionadas no parque (al. Y dos Factos Assentes).

XXVI - A Ré B... tem todo o parque de estaciona-mento protegido com um muro em volta, mais alto do que os terrenos que o ladeiam, nomeadamente do lado do Rio Alcoa (al. Z dos Factos Assentes).

XXVII - A Ré B... mandou altear a margem do Rio Alcoa do seu lado, para o lado Nascente do mesmo rio, cerca de um ano antes da inundação (al. AA dos Factos Assentes).

XXVIII - Tal intervenção não se encontrava licenciada, de acordo com o preceituado no DL nº 46/94 de 22/02, tendo a Ré B... sido, por via disso, objecto de procedimentos contra-ordenacionais referentes aos seguintes autos de notícia:
- Auto de notícia nº 21/2000 (proc. nº 96/02/GJ): relativo a um depó-sito de materiais inertes que a R. efectuou em área abrangida pela Reserva Ecoló-gica Nacional, de acordo com o mapa de condicionante do Plano Director Munici-pal do concelho de Alcobaça;
- Auto de notícia nº 40/2001 (Proc. nº 463/02/GJ): referente à obstru-ção, por parte da R. à conclusão de trabalhos efectuados por máquinas contratadas pela DRAOT de Lisboa e Vale do Tejo, na margem esquerda do Rio Alcoa, e que constavam na remoção de terras e entulhos que haviam sido colocadas pela Ré na faixa do domínio hídrico, sem licença, daquela DRAOT (al. BB e CC dos Factos Assentes).

XXIX - No âmbito destes processos, foi a Ré B... expressamente notificada para proceder à retirada de todos os inertes por si depo-sitados, nomeadamente pedras provenientes de demolições de prédios, entulhos e terras, que se encontravam na faixa de jurisdição do Rio Alcoa em toda a área do leito de cheia, o que, porém, a mesma não fez (al. DD e EE dos Factos Assen-tes).

XXX - A Ré ..., depois da ocorrência da inunda-ção, enviou ao Governo Civil de Leiria dois ofícios solicitando a sua intervenção de modo a não se repetir tal ocorrência (resposta ao quesito 17º).

XXXI - O Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território durante vários anos não procedeu à limpeza, manutenção e administração do Rio Alcoa, estando este rio com o leito assoreado e com árvores, silvas, erva e mato, que impede a passagem das águas normalmente (respostas aos quesitos 22º e 23º).

XXXII - O Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território mudou as terras que a Ré B... havia colocado na margem esquerda do Rio Alcoa para a margem direita do mesmo rio, o que fez sem autori-zação da Ré B... (respostas aos quesitos 24º e 25º).

XXXIII - Na sequência dos acontecimentos de 5 de Maio de 2000 e das medidas de protecção civil então tomadas foram feitas algumas operações de limpeza a montante e a jusante do Rio Alcoa, em especial nas suas margens, no concelho de Alcobaça, pela DRAOT de Lisboa Vale do Tejo e pela Câmara Municipal de Alcobaça (resposta ao quesito 37º).

XXXIV - Não obstante o mencionado em XXIX a Ré B... chegou a impedir a remoção coerciva dos inertes por si depositados, por máquinas contratadas para o efeito pela DRAOT de Lisboa e Vale do Tejo (res-posta ao quesito 38º).

XXXV - Como consequência directa e necessária da inundação, o PQ-94-S3 ficou com o interior completamente encharcado de água e com danos no motor e no sistema eléctrico e electrónico (resposta ao quesito 4º).

XXXVI - Para reparar esses danos foi necessário desmontar o interior do veículo, designadamente os bancos, almofadas, painéis das portas e tablier (resposta ao quesito 5º).

XXXVII - Foi necessário reparar o sistema eléctrico e substituir as placas electrónicas (resposta ao quesito 7º).

XXXVIII - Na reparação dos danos sofridos pelo seu veiculo despen-deu a autora a quantia de Esc. 849.569$00 (resposta ao quesito 8º).

XXXIX - Antes do ocorrido o veículo encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento (resposta ao quesito 11º).

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O direito
A Autora, ao hospedar-se no B..., em 5-5-2000, celebrou um contrato de hospedagem em estabelecimento hoteleiro, efectuado com a sociedade que explorava esse hotel – a Ré.
O contrato de hospedagem é hoje [No Código de Seabra era um contrato típico, denominado contrato de albergaria ou pousada e com previsão nos artº 1419º a 1423º. Sobre este tipo contratual vide CUNHA GONÇALVES, em “Dos contratos em especial”, pág. 181-188, da ed. s.d., das Edições Ática, e em “Tratado de direito civil”, vol. VII, pág. 727-750, da ed. de 1933, da Coimbra Editora, e PINTO LOUREIRO, em “Tratado de locação”, vol. I, pág. 303-304, da ed. de 1946, da Coimbra Editora.] um contrato atípico misto, que integra prestações dos contratos de locação e prestação de serviços, obrigando-se a entidade hospedeira a ceder o gozo de um determinado espaço, durante um deter-minado período, e a prestar um determinado número de serviços, contra o paga-mento duma retribuição [JANUÁRIO GOMES, em “Constituição da relação de arrendamento urbano”, pág. 146-147, da ed. de 1980, da Coimbra Editora, PINTO FURTADO, em “Manual do arrendamento urbano”, pág. 70-72, da ed. de 1996, da Livraria Almedina, e GALVÃO TELLES, em “Direito das obrigações”, pág. 87, da 7ª ed., da Coimbra Editora.].
O contrato de hospedagem relativo a uma estadia numa unidade hote-leira, envolve variados deveres acessórios ou laterais [Sobre estes deveres vide MOTA PINTO, em “Cessão da posição contratual”, pág. 337-356, da ed. de 1982, da Livraria Almedina, e CARNEIRO DA FRADA, em Contrato e deveres de protecção, pág. 36-44, da separata de 1994, do suplemento ao vol. XXXVII, do B.F.D.U.C..] da prestação principal do hospedeiro, entre os quais se encontra o dever de assegurar ao hóspede e seus bens condições de segurança no gozo dos espaços daquela unidade. O reconhecimento deste dever visa a satisfação cabal do interesse do credor na prestação principal, uma vez que não tendo o hóspede o domínio do espaço onde está hospedado, tem o direito de exigir que o mesmo esteja dotado das condições de segurança que evitem a colocação em risco quer da sua integridade física, quer do património que o acompanha [Na anterior regulamentação específica do contrato de hospedagem constante do Código de Seabra, tal dever resultava da responsabilização do hospedeiro pelos prejuízos sofridos pelo hóspede nas instalações onde ocorria o alojamento, constante do artº 1421º. Vide sobre este dever relativo às bagagens do hóspede, CUNHA GONÇALVES, em “Tratado de direito civil”, vol. VII, pág. 739-745, da ed. de 1933, da Coimbra Editora.].
A ocorrência de uma inundação de grandes proporções no hotel onde se encontrava hospedada a Autora e onde esta tinha parqueado a sua viatura, constitui uma indiscutível violação desse dever acessório de garantia das condições de segu-rança dos hóspedes do hotel e dos seus bens, pelo que na apreciação da responsa-bilidade pelos danos causados à Autora, enquanto hóspede do hotel, nos situamos no âmbito da responsabilidade contratual.
É certo que tendo resultado dessa inundação danos na viatura da Autora, a violação do seu direito de propriedade sobre esse bem, também poderia funda-mentar a intervenção do instituto da responsabilidade extracontratual.
Enquanto a responsabilidade civil de natureza contratual resulta da viola-ção de um direito de crédito, a extracontratual tem origem na violação de direitos absolutos.
Ora, a responsabilidade pela provocação de danos no património de alguém pode ter uma origem contratual ou extracontratual, donde resultarão res-ponsabilizações com regimes algo diferentes [Apontando essas diferenças, ALMEIDA COSTA, em “Direito das obrigações”, pág. 485-490, da 8ª ed., da Livraria Almedina.], verificando-se muitas vezes, como sucede no presente caso, que o dano tem simultaneamente uma origem contratual e extracontratual.
Na definição do regime aplicável deve atender-se à vontade das partes, expressa no clausulado contratual, uma vez que foi na execução da relação negocial estabelecida entre elas que ocorreu o facto lesivo, devendo respeitar-se essa von-tade em tudo o que não contrarie normas imperativas (artº 406º, do C.C.).
Não sendo conhecida qualquer previsão neste âmbito, deve aplicar-se o regime subsidiário legal, especialmente previsto para as consequências da violação positiva do contrato. Nestes casos, em que ocorre um concurso ideal dos dois regimes de responsabilidade, consideramos que o da responsabilidade contratual consome o da responsabilidade extracontratual, sendo ele o aplicável, uma vez que entre lesante e lesado existe uma relação obrigacional na qual ocorreu o facto lesivo, justificando-se, pois, a sobreposição da responsabilidade adequada à violação dos contratos [ALMEIDA E COSTA, em “Direito das obrigações”, pág. 490-496, da 8ª ed., da Livraria Almedina, e em “O concurso da responsabilidade contratual e extracontratual”, em “Ab vno ad omnes - 75 anos da Coimbra Editora”, pág. 555-565, da ed. de 1998, da Coimbra Editora, e ÂNGELA CERDEIRA, em “Da responsabilidade civil dos cônjuges entre si”, pág. 113-114, da ed. de 2000, da Coimbra Editora. Esta posição também foi já apoiada pelo relator deste Acórdão, em “A providência cautelar de arbitramento de reparação provisória”, pág. 56, nota 103, da ed. de 2003, da Livraria Almedina, e em “Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra”, pág. 87-89, da 2ª ed., da Livraria Almedina.
É esta também a posição dominante da doutrina e da jurisprudência francesa. Por todos, ver FRANÇOIS CHABAS, em “Obligations - théorie générale”, em “Leçons de Droit Civil”, de Henri, Léon e Jean Mazeaud e François Chabas, tomo 2, 1º vol., pág. 402-404, da 9ª ed., da Montchrestien, e GENEVIÈVE VINEY, em “Les Obligations - La responsabilité: conditions”, pág. 259-274, em “Traité de Droit Civil”, vol. IV, sob a direcção de JACQUES GHESTIN, da ed. de 1982, da L.G.D.J., e em “Introduction à la responsabilité”, pág. 403-422, em “Traité de Droit Civil”, sob a direcção de JACQUES GHESTIN, 2ª ed., da L.G.D.J.
Defendendo a liberdade de opção do credor entre os dois regimes, VAZ SERRA, em “Responsabilidade contratual e extracontratual”, no B.M.J. nº 85, pág. 230-239, MOTA PINTO, em “Cessão da posição contratual”, pág. 411, da ed. de 1982, da Livraria Almedina, PINTO MONTEIRO, em “Cláusula penal e indemnização”, pág. 713-714, da ed. de 1990, da Livraria Almedina, e em “Cláusulas limitativas e de exclusão da responsabilidade civil”, pág. 429-433, da separata do Suplemento ao vol. XXVIII, do B.F.D.U.C., CALVÃO DA SILVA, em “Responsabilidade do produtor”, pág. 251, da ed. de 1990, da Livraria Almedina, e os seguintes Acórdãos:
? do S.T.J., de 6-11-1986, no B.M.J. nº 361, pág. 506, relatado por LIMA CLUNY.
? do S.T.J., de 22-10-1987, no B.M.J. nº 370, pág. 529, relatado por LIMA CLUNY.].
Sendo aplicável a esta situação o regime da responsabilidade contratual, presume-se a culpa da Ré pelo verificado incumprimento do dever acessório de garantia das condições de segurança das pessoas hospedadas e dos seus bens no hotel por ela explorado, nos termos do artº 799º, nº 1, do C.C..
Contudo, provou-se que a inundação teve origem numa intempérie caracterizada pela queda torrencial, imprevista e absolutamente anormal de preci-pitação. Uma autêntica tromba de água, de proporções fora do comum, que caiu sobre a região onde se implanta o B... e que determinou que, de forma inesperada, engrossasse o caudal do rio que corre nas imediações do hotel (a 25 m), provocando que as águas extravasassem e transpusessem as suas margens e invadido o parque de estacionamento onde se encontrava o veículo da Autora e as instalações do hotel.
Estamos perante a acção duma força natural imprevisível.
Ora, a presunção de culpa que recai sobre o hospedeiro pelo incumpri-mento do dever acessório de assegurar a segurança e protecção dos hóspedes e bens que os acompanham, pode ser ilidida pela demonstração de que o facto lesivo integra o conceito jurídico de “caso fortuito” [Vide ALMEIDA COSTA, em “Direito das obrigações”, pág. 989-990, da 8ª ed., da Livraria Almedina, ALBALADEJO, em “Derecho Civil”, vol. II, pág. 180, da 11ª ed., da Libreria Bosch, LACRUZ BERDEJO e outros, em “Elementos de derecho civil”, “Derecho de Obligaciones”, vol. 1º, pág. 176-177, da 2ª ed., da Dykinson, FRANCESCO GALGANO, em “Diritto civile e commerciale”, vol. 2º, tomo 1º, pág. 64, da 4ª ed., da CEDAM, e FRANÇOIS CHABAS, em “Obligations - théorie générale”, em “Leçons de Droit Civil”, de Henri, Léon e Jean Mazeaud e François Chabas, tomo 2, 1º vol., pág. 663, da 9ª ed., da Montchrestien.].
Os casos fortuitos, excluídores da culpa do obrigado a um dever incum-prido, seguindo o critério distintivo tradicional, relativamente aos chamados casos de força maior, são aqueles que, sendo estranhos aos sujeitos duma determi-nada relação jurídica, pela imprevisibilidade da sua verificação, não permitem que o obrigado adopte as medidas necessárias a cumprir o dever que o vincula [Vide ALMEIDA COSTA, em “Direito das obrigações”, pág. 990, da 8ª ed., da Livraria Almedina, ALBALADEJO, em “Derecho Civil”, vol. II, pág. 181, da 11ª ed., da Libreria Bosch,, LACRUZ BERDEJO e outros, em “Elementos de derecho civil”, “Derecho de Obligaciones”, vol. 1º, pág. 177-178, da 2ª ed., da Dykinson, e FRANCESCO GALGANO, em “Diritto civile e commerciale”, vol. 2º, tomo 1º, pág. 64-66, da 4ª ed., da CEDAM.
Actualmente verifica-se a tendência de considerar sinónimos os conceitos de caso] fortuito e força maior.
. Nestas situações não seria justo, com excepção das hipóteses em que se justifique a consa-gração duma responsabilidade objectiva, que o obrigado fosse responsabilizado pelas consequências danosas de tal evento. O respeito por uma exigência de culpa não o permite.
Como vimos o facto danoso foi uma tromba de água, de proporções fora do comum, que provocou que as águas do rio Alcoa, que passa a 25 m. do Hotel, extravasassem e transpusessem as suas margens, de forma inesperada, invadindo o parque de estacionamento onde se encontrava o veículo da Autora e as instalações do hotel.
Apesar de se ter provado que a Ré B... mandou altear a margem do Rio Alcoa do seu lado, para o lado Nascente do mesmo rio, cerca de um ano antes da inundação e que intimada pelas autoridades para retirar a obra efectuada não o fez, não se provou que essa obra tenha de algum modo influído na inundação ocorrida.
Podemos, pois, dizer que o dano em causa foi causado por um facto alheio, quer à Ré, quer à Autora, os sujeitos da relação jurídica de hospedagem.
E esse facto deve ser considerado imprevisível, uma vez que a intempérie de dimensões anormais que se verificou não tinha sequer sido prevista pelos serviços do Instituto de Meteorologia, que não a anteviram, o que deixou todas as autoridades e particulares sem possibilidade de providenciarem antecipadamente por uma res-posta adequada.
Assim, apesar desta não ter sido a primeira vez que as instalações do Hotel ficaram inundadas pelas águas do Rio Alcoa e que se verificaram danos nas viaturas estacionadas no parque de estacionamento do Hotel, não era exigível que a Ré tivesse adoptado quaisquer medidas preventivas que evitassem o sucedido, nomeadamente não permitindo que naquele dia se encontrassem veículos no refe-rido parque de estacionamento.
E o escasso tempo (30 m.) que mediou entre o início da chuva e a inun-dação do Hotel, sendo certo que só o decurso dos minutos, pela imprevisibilidade da dimensão anormal da intempérie, exigia a adopção de medidas de emergência, não permitia à Ré que alertasse todos os hóspedes que se encontravam no Hotel para retirarem atempadamente as viaturas que se encontravam no parque de esta-cionamento.
É certo que alguns dos hóspedes ainda o conseguiram fazer, mas a rapi-dez dos acontecimentos torna inexigível que a Ré conseguisse que todos os seus hóspedes, incluindo a Autora, fossem avisados com a antecedência necessária a poderem retirar a suas viaturas para local seguro, atempadamente e sem perigo para a sua integridade física.
Estamos, pois, perante um dano com origem em “caso fortuito”, que afasta a presunção de culpa que incidia sobre a Ré, ficando, assim, excluída a sua responsabilidade pelos estragos ocorridos na viatura da Autora.
Deste modo, improcedem as razões apresentadas pela recorrente, devendo manter-se a decisão recorrida.

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DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Autora, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas do recurso pela Autora.

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Coimbra, 21 de Março de 2006