Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3499/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Data do Acordão: 01/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º E 8º DO DEC. LEI Nº 47344, DE 25/11/1966 E ARTº 578º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I- Os privilégios creditórios previstos no Código Comercial, designadamente, os estabelecidos no artº 578º, mantêm-se vigentes porquanto o Código Civil de 1966 só revogou legislação civil, nos precisos termos do artº 3º do Dec. Lei nº 47344, de 25/11/1966, e os privilégios e legislação especial a que o artº 8º, nº 1 deste diploma legal se refere são apenas os de natureza civil e não os de natureza comercial.
II- Face ao disposto no § único do artº 578º do Código Comercial, os créditos originados pelas dívidas previstas nos números 1 a 9 do mesmo preceito legal só gozam de privilégio se estas tiverem sido contraídas durante a última viagem do navio e por motivo dela, o que inclui as dívidas contraídas antes e/ou depois da última viagem, desde que com ela relacionadas.
III- A data relevante para determinação da última viagem é a do concurso de credores em que os créditos originados pelas ditas dívidas devam ser reconhecidos e graduados.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de falência nº 499/2002, a correr termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ílhavo, em que é requerida “A...”, foi apresentada por “B...” reclamação de créditos, no montante de 41.464,71 euros, relativo ao fornecimento de combustíveis e óleos lubrificantes.
O crédito reclamado não foi impugnado e, consequentemente, por decisão de 17/05/2004, certificada de fls. 69 a 84, foi considerado verificado e graduado como comum.
Inconformada, a “B...” recorreu e, na alegação de recurso que apresentou, formulou as conclusões seguintes:
1) O crédito da B..., no valor de € 41.464,74, respeitante ao fornecimento de combustíveis e óleos lubrificantes de que carecia o navio “C...”, propriedade da Falida, foi identificado e declarado verificado.
2) O combustível e os óleos lubrificantes são indispensáveis à operacionalidade de qualquer navio, ao prosseguimento da sua viagem, ao funcionamento dos seus motores, e
3) Devem ser considerados abrangidos pelo nº 7 do art. 578º do Código Comercial, como “Despesas de custeio e conserto do navio e dos seus aprestos e aparelhos”.
4) O crédito da B... devia ter sido graduado, em relação ao produto da liquidação do navio “C...”, em 1º lugar, tal como aconteceu com os créditos de D... e E..., referentes a reparações efectuadas ao mencionado navio e seus motores.
5) De acordo com interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto Acórdão de 24-2-1992 (BMJ, 416° - 639), os créditos mencionados nos nºs 1 a 9 do Art. 578º do C. Comercial são sempre privilegiados, embora os referentes à última viagem prefiram aos que se constituíram em viagens anteriores ou por motivo delas.
6) A douta Sentença de Graduação de Créditos fez uma incorrecta aplicação do disposto no art. 578º nº 7 do Código Comercial.
Não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se o crédito da apelante goza ou não, relativamente ao produto da liquidação do navio “C...”, do privilégio previsto no artº 578º, nº 7 do Código Comercial, em termos de dever ser graduado em primeiro lugar, a par dos créditos reclamados por “D...” e por E....
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Com interesse para a decisão, considera-se assente a factualidade seguinte:
3.1.1. Por sentença de 04/12/2002, proferida nos autos de falência nº 499/2002, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Ílhavo, foi decretada a falência da sociedade “A...”, com sede no lugar da Gafanha da Encarnação, concelho e comarca de Ílhavo, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o nº 617;
3.1.2. Entre os bens que integram a massa falida encontra-se um navio denominado “C...”, destinado a pesca costeira, utilizando redes de emalhar e aparelhos de linhas de anzóis, com a arqueação bruta de trezentas e dez toneladas, arqueação líquida de noventa e três toneladas, comprimento de fora a fora de trinta e cinco metros, comprimento de sinal trinta virgula sessenta metros, boca de sinal sete vírgula trinta metros, pontal de sinal três vírgula setenta metros, com o sistema de propulsão da marca “Commins”, modelo KTA – 38 – G1 (m), número 33109137 1800 r. p. m. e 850HP, matriculado na Capitania do Porto de Peniche sob o número PE – dois mil cento e quarenta e sete – C, em nome da referida sociedade, por auto de registo de propriedade n.° L.° 18, fls. 94, e descrito na Conservatória do Registo Comercial de Peniche sob o número trezentos e quarenta e cinco a fls. cento e setenta e oito do Livro D – um, lá registada a favor da sociedade comercial por quotas “A...” pela inscrição três mil quatrocentos e cinquenta;
3.1.3. Nestes autos de reclamação de créditos, apensos aos autos de falência referidos em 3.1.1., foi julgado verificado, além de vários outros, o crédito de 41.464,71 euros, reclamado por “B...”;
3.1.4. Esse crédito é proveniente do fornecimento pela reclamante à falida de combustíveis e óleos lubrificantes de que carecia o navio “C...”.
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3.2. De direito
O artº 578º do Código Comercial estipula que:
“As dívidas que têm privilégio sobre o navio são graduadas pela ordem seguinte:
1.° As custas e despesas judiciais feitas no interesse comum dos credores;
2.° Os salários devidos por assistência e salvação;
3.° As despesas de pilotagem e reboque da entrada no porto;
4.° Os direitos de tonelagem, faróis, ancoradouro, saúde pública e quaisquer outros de porto;
5.° As despesas com a guarda do navio e com a armazenagem dos seus pertences;
6.° As soldadas do capitão e tripulantes;
7.° As despesas de custeio e conserto do navio e dos seus aprestos e aparelhos;
8.° O embolso do preço de fazendas do carregamento, que o capitão precisou vender;
9.° Os prémios do seguro;
10.° O preço em dívida da última aquisição do navio;
11.° As despesas com o conserto do navio e seus aprestos e aparelhos nos últimos três anos anteriores à viagem e a contar do dia em que o conserto terminou;
12.° As dívidas provenientes de contratos para a construção do navio;
13.° Os prémios dos seguros feitos sobre o navio, se todo foi segurado, ou sobre a parte e acessórios que o foram, não compreendidos no n.° 9.°;
14.° A indemnização devida aos carregadores por falta de entrega das fazendas ou por avarias que estas sofressem.
§ único. As dívidas mencionadas nos nºs 1.° a 9.° são as contraídas durante a última viagem e por motivo dela.”

Face à redacção dos artigos 3º e 8º do Dec. Lei nº 47344, de 25/11/1966, que aprovou o Código Civil, discutiu-se na doutrina e na jurisprudência se os privilégios creditórios previstos no Código Comercial, designadamente os estabelecidos pelo artº 578º, teriam ou não deixado de existir, por revogação da legislação que os concedia.
Essa discussão está hoje esgotada, sendo geralmente entendido que os privilégios creditórios aludidos se mantêm vigentes, porquanto o Código Civil só revogou legislação civil, nos precisos termos do artº 3º do Dec. Lei nº 47344, e os privilégios e legislação especial a que o artº 8º, nº 1 deste diploma legal se refere são apenas os de natureza civil, não os de natureza comercial Ac. STJ de 11/03/92, in www.dgsi.pt/jstj; Ac. STJ de 25/01/2000, in BMJ, 493, 390 e CJ(STJ), VIII, I, 50; e Prof. Fernando Olavo, Privilégios Creditórios sobre o Navio – Um Feixe de Questões, in CJ, IX, V, 15..

Entende a recorrente que o crédito por si reclamado – e reconhecido na decisão recorrida – goza, relativamente ao produto da liquidação do navio “C...”, do privilégio concedido pelo artº 578º, nº 7 do Cód. Comercial. Nesse sentido defende, por um lado, que aquele crédito, provindo do fornecimento de combustíveis e óleos lubrificantes indispensáveis à operacionalidade do navio, deve ser qualificado como despesa de custeio do mesmo e, por outro, que “de acordo com interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto Acórdão de 24-2-1992 (BMJ, 416° - 639), os créditos mencionados nos nºs 1 a 9 do Art. 578º do C. Comercial são sempre privilegiados, embora os referentes à última viagem prefiram aos que se constituíram em viagens anteriores ou por motivo delas”.

Custeio é o mesmo que custeamento, ou seja, o acto ou efeito de custear, o conjunto de despesas feitas com alguém ou alguma coisa, sendo que custear é pagar o custo, entrar com o importe das despesas, facultar o dinheiro necessário para Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 5ª edição e Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 8º, pág. 318..
Tradicionalmente, o custeio do navio compreendia a compra dos mantimentos de alimentação ou vitualhas destinados à viagem Prof. Fernando Olavo, obra e local citados., bem como “a própria compra dos aprestos e aparelhos e todas as urgências ou necessidades do navio, a que se referem o artº 511º e as fontes destas disposições” Prof. Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, Vol. III, pág. 306, citado pela recorrente.. Mas, a partir do momento histórico em que a força propulsora da maioria dos navios passou a ser gerada por motores que consomem combustíveis e óleos lubrificantes, afigura-se-nos que as despesas com esses produtos não poderão deixar de ser consideradas custeio do navio Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 02/04/1992, in BMJ, 416, 636.
Cfr. também o Ac. do STJ de 14/04/99, in BMJ, 486, 246, no qual foi decidido que as despesas feitas com o fornecimento de combustível a um navio constituem um crédito marítimo, atento o disposto no artigo 1º, al. k) da Convenção de Bruxelas sobre Arresto de Navios, de 10/05/1952., cuja operacionalidade deles está absolutamente dependente.
Aceitam-se, pois, as conclusões 1ª, 2ª e 3ª da alegação da recorrente.

Mas o § único do artº 578º do Código Comercial coloca, ao menos aparentemente, um entrave à pretensão da recorrente, pois estipula que as dívidas mencionadas nos nºs 1º a 9º, incluindo, portanto, as mencionadas no nº 7º, são as contraídas durante a última viagem e por motivo dela.
A recorrente contorna aquele escolho chamando à colação o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/1992 BMJ, 416, 636. em cujo sumário se afirma que “os privilégios dos credores sobre o navio não se extinguem com o termo da «última viagem», durante a qual ou por motivos da qual foi contraída a divida que dispõe de privilégios, e pelo facto de o navio efectuar outras viagens depois daquela”. Como a apelante refere, no texto do mesmo douto aresto pode ler-se: “Cremos, na verdade, em face da redacção do parágrafo único do artigo 578.° do Código Comercial, dever entender-se que os créditos mencionados nos nºs 1 a 9 desse preceito são sempre privilegiados, embora os referentes à última viagem prefiram aos que se constituíram em viagens anteriores ou por motivo delas. E afigura-se-nos, mesmo, absurdo que uma nova viagem do navio faça extinguir os privilégios das dívidas contraídas em viagens anteriores ou por motivo delas”.
A ser assim, não poderia deixar de reconhecer-se razão à recorrente, com a consequente procedência da apelação.

Mas, com todo o respeito, afigura-se-nos que a interpretação feita no douto acórdão a que a apelante se arrimou não será a melhor.
Com efeito, naquela decisão do nosso mais alto Tribunal partiu-se de uma premissa que – com todo o respeito, repete-se – carece de alicerces. É ela a de que o crédito resultante do fornecimento, em 29 de Janeiro de 1986, de gasóleo ao navio Lugela, em discussão naqueles autos, ficou desde logo com privilégio sobre o navio, em face do disposto no artigo 578º, nº 7 e parágrafo único. Conjugando essa premissa com a de que a extinção de privilégios creditórios não é matéria tratada no artº 578º, antes o sendo no artº 579º, concluiu-se que o privilégio existente não foi, nem podia ter sido, extinto por força do § único do artº 578.
Segundo a interpretação que, tendo em conta os critérios decorrentes do artº 9º do Cód. Civil, se nos apresenta como alcançando o espírito da lei, sem exceder a sua letra, a cada um dos nºs 1º a 9º do artº 578º do Cód. Comercial deveria acrescentar-se «contraídas durante a última viagem e por motivo dela». Assim, no que tange ao nº 7, teriam privilégio sobre o navio e seriam graduadas após as mencionadas nos nºs anteriores, as despesas de custeio e conserto do navio e dos seus aprestos e aparelhos contraídas durante a última viagem e por motivo dela.
A questão de saber se um crédito goza ou não de privilégio sobre o produto da venda de determinado bem só se coloca se e quando haja concurso de créditos sobre esse bem.
De acordo com a interpretação acima feita, os créditos mencionados nos nºs 1º a 9º do artº 578º não seriam originariamente privilegiados, apenas se colocando a questão da existência ou não de privilégio sobre o navio por altura do concurso de credores, sendo privilegiados os que consistissem em dívidas contraídas durante a última viagem e por motivo dela e, a não ser que o fossem por outras razões, não o sendo os demais.
Esta interpretação permite, além do mais, compatibilizar as previsões dos nºs 7º e 11º do artº 578º, fornecendo fundamento lógico para as despesas previstas no primeiro preferirem às previstas no segundo.

O que, no contexto do § único do artº 578º do Cód. Comercial, deve entender-se por «última viagem» é matéria que o Prof. Fernando Olavo abordou no estudo intitulado “Privilégios Creditórios sobre o Navio – Um Feixe de Questões”, já atrás referido.
Depois de aludir aos diferentes significados que àquela expressão têm sido atribuídos na doutrina nacional e estrangeira, aquele ilustre Professor conclui: “Deste modo, a expressão «última viagem» tem de ser interpretada «cum grano salis», pela própria força da realidade dos factos a que se reporta, de modo a abranger o período de armamento ou preparação do navio para largar e o de desarmamento após o respectivo regresso, pois o intérprete, nos precisos e expressos termos do art. 9.°-3 do Código Civil, deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”.
Esse entendimento abrangente encontra, quanto a nós, fundamento na expressão «e por motivo dela», usada no § único do artº 578º, a qual permite incluir as dívidas contraídas antes e/ou depois da última viagem, desde que com ela relacionadas.

Fazendo agora incidir a atenção sobre o caso concreto dos autos, há que constatar que o crédito da recorrente só gozaria do privilégio concedido pelo nº 7 do artº 578º do Cód. Comercial se os fornecimentos de combustíveis e óleos lubrificantes se tivessem destinado à última viagem do navio “C...”, ou seja, àquela que imediatamente precedeu a concorrência de créditos sobre o valor do dito navio.
Sucede, porém, que dos próprios termos da reclamação de créditos da apelante resulta, dada a dispersão temporal dos vários fornecimentos alegados (o primeiro em 22/05/1997 e o último em 05/10/2000), que não se tratará de dívidas contraídas com a última viagem. E, ainda que algum fornecimento, nomeadamente o feito em 05/10/2000, tivesse sido destinado à última viagem do “C...”, tal não foi alegado pela reclamante, nem resultou por qualquer forma provado nos autos.
Cabendo, no caso, de acordo com o disposto no artº 342º, nº 1 do Cód. Civil, à reclamante o ónus de prova dos factos constitutivos do pretendido privilégio do seu crédito e não tendo tais factos sido provados (nem, sequer, alegados), só podia ter-se decidido como se decidiu. Ou seja, considerar o dito crédito como comum e graduá-lo após os privilegiados e a par dos demais créditos comuns.
Improcedem, portanto, as conclusões 4ª, 5ª e 6ª da alegação da recorrente e, com elas, a apelação.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em manter a decisão sob recurso.
As custas são a cargo da apelante.
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Coimbra,