Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6600/04.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: PRINCÍPIO DISPOSITIVO
MATÉRIA DE FACTO
FRANQUIA
REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 10/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 4.º J. CÍVEL LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 655.º DO CPC E ARTIGO 258.º DO CC
Sumário: 1) A prova pericial tem razão de ser quando estejam em causa matérias que exijam conhecimentos especiais, o que não é necessariamente o caso de um vulgar contrato de compra e venda de mercadorias;

            2) A violação do princípio dispositivo não configura nulidade da sentença, mas nulidade de carácter geral, a apreciar nos termos do artigo 201.º do CPC;

            3) Por força do princípio da aquisição processual, a matéria carreada para os autos por uma das partes aproveita à outra;

            4) Só a desconformidade flagrante entre os elementos de prova e o julgamento de facto pode conduzir à alteração da matéria provada;

            5) Age como mero representante do comprador o franquiador que, por acordo com o franquiado, recebe as encomendas feitas por este e ordena ao fabricante a confecção de produtos, para serem entregues directamente ao franquiado, que assumiu a obrigação de os pagar.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

 
A..., sociedade comercial de direito espanhol com sede em ..., Espanha, instaurou acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra B...., com sede na .... Leiria, alegando, em resumo, que.
No exercício da sua actividade de confecção e comercialização de produtos têxteis, vendeu à ré, a pedido da mesma, artigos no valor de € 249.420,45, de que ela só pagou € 3.239,90, pelo que está em dívida a importância de € 246.180,55.
As mercadorias foram, de facto, entregues e deveriam ser pagas até às datas de vencimento apostas nas facturas emitidas, mas a ré não o fez, apesar de várias vezes interpelada para o efeito.
Concluiu pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe o montante de € 246.180,55, acrescido de juros de mora vencidos, no valor de € 55.877,35, e de juros de mora vincendos, à taxa legal, contados desde 30.10.04 e até efectivo pagamento.
Regularmente citada, a ré contestou por excepção e por impugnação.  

Excepcionando, alegou ter celebrado um contrato de franchising com a sociedade C....., ao abrigo do qual explorava em exclusivo os direitos de comercialização dos produtos da marca “D...” em Portugal; na qualidade de franquiador, a C..... fabricava ou mandava fabricar as mercadorias e entregava à ré as destinadas a Portugal, que, como master-franchising da marca D..., as distribuía pelos vários franquiados portugueses.

A autora era um dos fabricantes exclusivos da dita marca (provedor) que, como tal, recebia as encomendas da C...e não da ré, que não tinha qualquer autonomia e nem podia, sequer, a não ser em casos excepcionais, ter contactos directos com os fabricantes.

A ré nunca contratou com autora, razão pela qual não tem interesse directo em contradizer, sendo, nessa medida, parte ilegítima.

Acrescentou, ainda, que intentou em Espanha uma acção contra a C..., em que a autora é igualmente parte, que é prejudicial da presente e deve determinar a respectiva suspensão.

Impugnando, afirma que nada lhe foi fornecido pela autora e que só por uma questão de simplificação os artigos lhe foram facturados, já que a devedora é a C..., e se aceitou as mercadorias foi, apenas, por saber que as encomendas haviam sido efectuadas pela C..., única responsável pelo pagamento aos provedores, mas não recebia as mercadorias como se tivesse sido ela própria a fazer encomendas.

Replicando, reiterou a autora o peticionado, salientando que foi sempre a ré a pagar à autora as mercadorias que esta lhe entregava directamente, sendo que a ré solicitava à C...que esta transmitisse as encomendas à autora ao abrigo de contrato de mandato.

A autora não é parte na acção em Espanha, nem se verifica qualquer prejudicialidade.

Ademais, sempre a ré recebeu as mercadorias fornecidas pela autora, nunca tendo referido não ser destinatária da mesma, e nunca devolveu quaisquer facturas emitidas pela autora, sempre tendo pago (com excepção das presentes), estando a agir de má-fé ao pretender escusar-se ao pagamento mediante a invocação de contratos com estranhos à relação com a autora.        

Em resposta, a ré reiterou o anteriormente alegado, salientando não existir qualquer mandato da C... no que se refere às encomendas.

Referiu, ainda, a ré que a C...violou o contrato que celebrara consigo, pelo que deixou de querer suportar obrigações que não eram suas e que foi, apenas, tolerando.

Concluiu, requerendo a intervenção principal da C..., que foi indeferida, o mesmo sucedendo, aliás, com suspensão da instância.

            Estas decisões foram objecto de recurso de agravo, admitido, em qualquer dos casos, para subir em separado, e ambos julgados improcedentes por esta Relação.

Foi proferido despacho saneador, que arredou a excepção da ilegitimidade da ré e afirmou, no mais, a validade e regularidade da lide.

A selecção da matéria de facto – factos assentes e base instrutória – foi alvo de reclamação por parte da ré, parcialmente atendida.

            Em sede de prova, requereu a ré perícia à contabilidade da autora, à qual esta se opôs e que veio a ser indeferida, com o argumento de que a apreciação dos factos a submeter à prova pericial não exigiam conhecimentos especiais, podendo ser provados por outros meios de prova, designadamente testemunhal ou documental.
Da decisão de indeferimento interpôs a ré recurso, admitido como agravo, com subida diferida e efeito devolutivo, relativamente ao qual foram apresentadas alegações, rematadas por 19 conclusões, facilmente redutíveis a três:
a) Em face da posição das partes e, nomeadamente, do alegado contrato de franchising, interessa provar quem encomendava e quem vendia os produtos;
b) A percepção e apreciação de tais factos necessitam de conhecimentos especiais, mormente ao nível da contabilidade, que só os técnicos especializados e não os julgadores têm;
c) Aliás, a matéria controvertida implica relações entre várias empresas no seio de franchising internacional, configurando-se, previsivelmente, uma análise difícil de documentos e dados contabilísticos, tanto mais que a empresa objecto da perícia obedece a normas e regulamentos diferentes dos nossos.
            A autora não respondeu à alegação.
A decisão recorrida foi tabelarmente sustentada.                                                              
Efectuada a audiência de julgamento e fixada, sem reclamação, a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou a ré a pagar à autora a importância de € 246.180,55, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde as datas de vencimento das facturas e até integral pagamento.
Inconformada, a ré interpôs recurso (admitido como apelação, com efeito devolutivo), alegou e formulou, em sequência repetitiva, 43 conclusões, que se podem sintetizar em, apenas, três:
a) A matéria de facto constante dos pontos 23) e 27) da sentença foi erradamente julgada;
b) A sentença é nula, por ponderar factos que não foram objecto de discussão;
c) A sentença não aplicou correctamente o direito aos factos provados.
A autora respondeu à alegação da ré, tendo-se pronunciado pelo acerto da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
        Atento o preceituado no artigo 710.º do Código de Processo Civil[1], diploma a que pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem, terá de conhecer-se, em primeiro lugar, do agravo e, só depois, da apelação, que perderá, é óbvio, utilidade se o agravo for provido.
As questões a requerer solução são:
Quanto ao agravo, a admissibilidade da prova pericial.
Quanto à apelação, a nulidade da sentença, a alteração da matéria de facto e a verificação dos elementos do contrato de compra e venda.

            II. Na sentença impugnada foram dados por assentes os seguintes factos:                                                             

1) A Autora é uma sociedade comercial, de direito espanhol, que se dedica, nomeadamente, à confecção e comercialização de produtos têxteis – Alínea a) dos factos assentes.

2) A autora emitiu as seguintes facturas, em nome da ré, constando as respectivas cópias de fls. 21 a 73 dos autos, aqui se dando por integralmente reproduzido o seu demais teor:

a) - Factura n.º 02 000507, emitida em 02-08-2002, no montante de € 14.602,97, vencida em 1-Dez-02;

b) - Factura n.º 02 000519, emitida em 02-08-2002, no montante de € 16.366,25, vencida em 1-Dez-02;

c) - Factura n.º 02 000523, emitida em 02-08-2002, no montante de € 8.509,82, vencida em 1-Dez-02;

d) - Factura n.º 02 000526 emitida em 02-08-2002, no montante de € 16.064,96, vencida em 1-Dez-02;

e) - Factura n.º 02 000528, emitida em 21-08-2002, no montante de € 8.001,78, vencida em 1-Dez-02;

f) - Factura n.º 02 000583, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.435,04, vencida em 9-Dez-02;

g) - Factura n.º 02 000584, emitida em 09-09-2002, no montante de € 4.057,76, vencida em 9-Dez-02;

h) - Factura n.º 02 000585, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.951,00, vencida em 9-Dez-02;

i) - Factura n.º 02 000586 emitida em 09-09-2002, no montante de € 4.871,34, vencida em 9-Dez-02;

j) - Factura n.º 02 000587, emitida em 09-09-2002, no montante de € 4.079,12, vencida em 9-Dez-02;

k) - Factura n.º 02 000588, emitida em 09-09-2002, no montante de € 2.326,43, vencida em 9-Dez-02;

I) - Factura n.º 02 000589, emitida em 09-09-2002, no montante de € 4.421,36, vencida em 9-Dez-02;

m) - Factura n.º 02 000590, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.498,86, vencida em 17-Dez-02;

n) - Factura n.º 02 000591, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.138,97, vencida em 9-Dez-02;

o) - Factura n.º 02 000592, emitida em 09-09-2002, no montante de € 5.054,57, vencida em 9-Dez-02;

p) - Factura n.º 02 000593, emitida em 09-09-2002, no montante de € 3.590,80, vencida em 9-Dez-02;

q) - Factura n.º 02 000594, emitida em 09-09-2002, no montante de € 4.219,41, vencida em 9-Dez-02;

r) - Factura n.º 02 000595, emitida em 09-09-2002, no montante de € 3.369,20, vencida em 9-Dez-02;

s) - Factura n.º 02 000596, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.227,36, vencida em 25-Set-02;

t) - Factura nº 02 000597,emitida em 09-09-2002, no montante de € 2.836,82, vencida em 9-Dez-02;

u) - Factura n.º 02 000598, emitida em 09-09-2002, no montante de € 3.093,09, vencida em 9-Dez-02;

v) - Factura n.º 02 000599, emitida em 09-09-2002, no montante de € 1.213,20, vencida em 9-Dez-02;

w) - Factura n.º 02 000600, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.930,43, vencida em 9-Dez-02;

x) - Factura n.º 02 000601, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.883,11, vencida em 9-Dez-02;

y) - Factura n.º 02 000602, emitida em 09-09-2002, no montante de € 6.582,03, vencida em 9-Dez-02;

z) - Factura n.º 02 000603, emitida em 09-09-2002, no montante de € 3.041,00, vencida em 9-Dez-02;

aa) - Factura n.º 02 000604, emitida em 10-09-2002, no montante de € 2.124,06, vencida em 10-Dez-02;

bb) - Factura n.º 02 000669, emitida em 25-09-2002, no montante de € 5.226,58, vencida em 25-Dez-02;

cc) - Factura n.º 02 000670, emitida em 25-09-2002, no montante de € 4.289,68, vencida em 25-Dez-02;

dd) - Factura n.º 02 000671, emitida em 25-09-2002, no montante de € 4.385,35, vencida em 25-Dez-02;

ee) - Factura n.º 02 000672, emitida em 25-09-2002, no montante de € 6.693,03, vencida em 25-Dez-02;

ff) - Factura n.º 02 000673, emitida em 25-09-2002 , no montante de € 4.647,94, vencida em 25-Dez-02;

gg) - Factura n.º 02 000674, emitida em 25-09-2002, no montante de € 5.509,49, vencida em 25-Dez-02;

hh) - Factura n.º 02 000675, emitida em 25-09-2002, no montante de € 2.689,97, vencida em 25-Dez-02;

ii) - Factura n.º 02 000676, emitida em 25-09-2002, no montante de € 3.641,66, vencida em 25-Dez-02;

jj) - Factura n.º 02 000677, emitida em 25-09-2002, no montante de € 3.611,37, vencida em 25-Dez-02;

kk) - Factura n.º 02 000678, emitida em 25-09-2002, no montante de € 3.472,19, vencida em 25-Dez-02;

ll) - Factura n.º 02 000679, emitida em 25-09-2002, no montante de € 3.439,45, vencida em 25-Set-02;

mm) -Factura n.º 02000680, emitida em 25-09-2002, no montante de € 4.344,69, vencida em 25-Dez-02;

nn) - Factura n.º 02 000681, emitida em 25-09-2002, no montante de € 4.342,09, vencida em 25-Dez-02;

00) - Factura n.º 02 000682, emitida em 25-09-2002, no montante de € 5.351,53, vencida em 25-Dez-02;

pp) - Factura n.º 02 000683, emitida em 25-09-2002, no montante de € 3.562,13, vencida em 25-Dez-02;

qq) - Factura n.º 02 000684, emitida em 25-09-2002, no montante de € 4.267,58, vencida em 25-Dez-02;

rr) - Factura n.º 02 000685, emitida em 25-09-2002, no montante de € 3.425,59, vencida em 25-Dez-02;

ss) - Factura n.º 02 000686, emitida em 25-09-2002, no montante de € 2.915,48, vencida em 25-Dez-02;

tt) - Factura n.º 02 000687, emitida em 25-09-2002, no montante de € 3.799,77, vencida em 25-Dez-02;

uu) - Factura n.º 02 000688, emitida em 25-09-2002, no montante de € 434,53, vencida em 25-Dez-02;

vv) - Factura n.º 02 000689, emitida em 25-09-2002, no montante de € 4.879,61, vencida em 25-Dez-02 – Alínea B) dos factos assentes.

3) O montante das facturas identificadas ascende a € 249.420.45 (duzentos e quarenta e nove mil, quatrocentos e vinte euros e quarenta e cinco cêntimos), dos quais a ré pagou a quantia de € 3.239,90 (três mil, duzentos e trinta e nove euros e noventa cêntimos) – Alínea C) dos factos assentes.

4) As mercadorias fornecidas pela Autora, tituladas pelas referidas facturas, foram entregues à Ré e pela mesma recebidas, não tendo esta aposto qualquer reserva ou mencionado defeitos nas mercadorias, nem na data da sua recepção, nem posteriormente – Alínea D) dos factos assentes.

5) Apesar de repetidamente interpelada para pagar o preço da mercadoria vendida pela Autora, a Ré não efectuou até à data o pagamento do remanescente da quantia referida em 3) – Alínea E) dos factos assentes.

6) A autora era um dos fabricantes exclusivos da marca D... – Alínea F) dos factos assentes.

7) Cabia à Autora entregar as mercadorias nas instalações da Ré, procedendo esta à sua distribuição pelos diversos franquiados portugueses – Alínea G) dos factos assentes.

8) A ré aceitou as mercadorias produzidas pela autora – Alínea H) dos factos assentes.

9) A ré recebia a facturação enviada pelos fabricantes, pagando os produtos encomendados pela C... – Alínea I) dos factos assentes.

10) Os produtos descritos nas facturas referidas em B) foram, no exercício da actividade comercial da autora, entregues por esta à ré – Resposta ao facto 1.º da base instrutória.

11) O valor das referidas facturas, correspondente ao preço das mercadorias fornecidas, devia ser pago até às datas de vencimento nelas apostas – Resposta ao facto 2.º da BI.

12) A ré explorava os direitos de comercialização exclusiva dos produtos da marca D... – Resposta ao facto 3.º da BI.

13) Tal exploração era regulada nos termos de um acordo, que os contraentes denominaram de franchising, celebrado em 1 de Março de 1995 e renovado em 1 de Março de 1998, pela Ré com a sociedade C...., designada abreviadamente por C....l, o qual consta do escrito cuja cópia faz fls. 147 e seguintes dos autos, aqui se dando por integralmente reproduzido o seu demais teor – Resposta ao facto 4.º da BI.

14) Ao abrigo do aludido contrato, a Ré explorava os direitos exclusivos de comercialização dos produtos da marca “ D...” em Portugal – Resposta ao facto 5.º da BI.

15) A C... fazia a apresentação das colecções, apresentava os preços e colhia as encomendas da ré e mandava fabricar as mercadorias pretendidas, as quais eram entregues directamente pela autora à ré – Resposta ao facto 6.º da BI.

16) Por sua vez, a B... distribuía as entregas pelos vários franquiados portugueses e prestava o apoio logístico necessário à montagem e decoração das montras, assim como, prestava auxílio a todos os franqueados sempre que solicitado – Resposta ao facto 7.º da BI.

17) A ré recebia as mercadorias que eram encomendadas e mandadas produzir pela C...aos Provedores/Fabricantes que produziam os artigos da marca, entre os quais a autora – Resposta aos factos 8.º e 9.º BI.

18) Mediante encomenda prévia da ré à C..., esta encomendava directamente os artigos aos fabricantes – Resposta aos factos 10.º e 11.º da BI.

19) Consta do acordo referido em 13) que a C... venderia os produtos D... à ré e esta deveria encomendá-los àquela, podendo no entanto fazê-lo directamente ao Provedor se para isso obtivesse autorização expressa, por escrito, da C...– Resposta aos factos 13.º, 13.º-A e 14.º da BI.

20) A ré desconhecia em que condições a C... mandava produzir os artigos que lhe vendia – Resposta ao facto 15.º da BI.

21) Era apenas e só a C... que realizava as encomendas e acordava com os fabricantes, entre os quais a autora, as condições e termos comerciais da produção dos artigos encomendados, com excepção do referido nos factos 13.º a 14.º – Resposta ao facto 19.º da BI.

22) Consta do acordo referido em 13) que era a C... que controlava os volumes de vendas dos franqueados, calculando sobre esses montantes um rappel anual (inicialmente de 4% e posteriormente de 3%) e assumindo o compromisso de serem creditadas bonificações por parte de cada um dos fabricantes – Resposta ao facto 23.º da BI.

23) As mercadorias em causa foram facturadas à Ré ao abrigo do acordo referido em 13) – Resposta ao facto 27º da BI.

24) Quando seleccionava os artigos que pretendia, nomeadamente os produzidos pela autora, a ré ficava, nesse momento, conhecedora do preço que por eles teria de pagar – Resposta ao facto 30.º da BI.

25) Sabia também a Ré, no momento em que seleccionava a mercadoria que lhe interessava, as condições de pagamento dessas mercadorias – Resposta ao facto 32.º da BI.

27) A Autora produzia então a mercadoria encomendada, que entregava à Ré, nas instalações desta ou em locais e estabelecimentos por esta determinados, a qual sempre as recebia, sem levantar qualquer problema – Resposta ao facto 34.º da BI.

28) Toda a documentação de transporte se encontrava emitida em nome da Ré – Resposta ao facto 35.º da BI.

29) Sempre a Ré recebeu a mercadoria fornecida e a si dirigida pela Autora, nunca tendo referido não ser a destinatária da mesma – Resposta ao facto 40.º da BI.

30) Nunca a Ré devolveu quaisquer facturas emitidas pela Autora, alegando não ter recebido as mercadorias respectivas, as quais sempre foram encomendadas nos mesmos moldes – Resposta ao facto 41.º da BI.

31) Sempre a ré pagou as facturas que lhe foram apresentadas pela autora, facturas emitidas nas mesmas condições daquelas cujo pagamento ora lhe é pedido – Resposta ao facto 42.º da BI.

            III. O direito:

            A) O recurso de agravo

            A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial (artigo 388.º do Código Civil, designado, de futuro, abreviadamente, por CC).
            Traçando a distinção entre a prova pericial e os restantes procedimentos probatórios, diz Antunes Varela que (…) a nota típica, mais destacada, da prova pericial consiste em o perito não trazer ao tribunal apenas a perspectiva de factos, mas pode trazer também a apreciação ou valoração de factos, ou apenas esta” (Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 576).
            No mesmo sentido se pronuncia Anselmo de Castro, ao escrever que a prova pericial tem “uma dupla finalidade: fornecer ao tribunal a percepção dos factos susceptíveis de apreensão por qualquer dos sentidos – maxime a apreensão ocular – e sua apreciação ou tão só a sua apreciação, à luz das regras da experiência” (Direito Processual Civil Declaratório, volume III, página 333).
            E, igualmente, Alberto dos Reis, quando escreve: “o verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem” (Código de Processo Civil Anotado, volume IV, página 171).
            Essencial, de toda a maneira, é que a percepção dos factos assente sobre conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, seja qual for a natureza, nomeadamente, científica, técnica, artística, profissional ou de mera experiência desses conhecimentos (Antunes Varela, ob. cit., página 578).
            “Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação/inspecção de factos não ao alcance directo e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.11.2004, CJ/STJ, Ano XII, tomo II, página 123).
            Em causa nos autos está um alegado contrato de compra e venda de mercadorias, celebrado entre a autora, como vendedora, e a ré, como compradora.
            A posição da ré é de que a compradora era a C..., da qual era franquiada, sendo esta que encomendava os produtos à autora e lhos vendia a ela, posteriormente.
            A prova pericial foi requerida exactamente para procurar demonstrar a realidade da sua versão dos factos. Para tanto, formulou os seguintes quesitos:
            1) Nos anos de 1998,1999, 2000, 2001 e 2002 foram efectuados pagamentos entre a empresa A... e a C... ou qualquer outra empresa do grupo?
            2) Qual o seu valor?
            3) Nos anos de 1998, 1999, 2000, 2001 e 2002 constam notas de encomenda por parte da C... ou outras empresas do grupo espanhol?
            4) Qual o valor das mesmas?
            5) Constam contratos de produção, fabrico e distribuição de produtos da marca D... entre a Sociedade A... à C...?
            Ora, é bom de ver que as respostas aos quesitos, quaisquer que fossem, nada adiantariam quanto à prova da factualidade controversa em que a questão se analisa. Suposto que a perícia averiguava ter havido encomendas e pagamentos da C...ou de outras empresas do grupo (que a ré não identificou) à autora e contratos de produção, fabrico e distribuição entre as mesmas entidades, tal não significava que a ré nada comprasse à autora, pela liminar razão de que uma coisa não arredava a outra. A circunstância de a autora ter contratos de produção, fabrico e distribuição com a C...e de lhe vender artigos do seu comércio não obstava a que os tivesse, também, com a ré. A generalidade das empresas não negoceia com um só cliente.
            Por outro lado, não é exacto, ao contrário do que a ré alega, que a prova dos factos essenciais à decisão do pleito (no fundo, quem vendia e quem comprava) só pudesse ser feita por técnicos especializados no domínio da contabilidade e da economia.
            Em primeiro lugar, qualquer pessoa medianamente instruída, onde se incluem, com toda a certeza, os julgadores, consegue interpretar documentos relativos a encomenda e a pagamento de produtos; depois, nem só de prova documental se faz a prova de transacções comerciais; a prova testemunhal é um meio perfeitamente idóneo para o efeito, sobretudo quanto constituída por quem esteve mais directamente ligado ao negócio, como é o caso dos vendedores e dos contabilistas.
            Se, como parece ser a posição da ré, a dificuldade está na “análise de vários documentos do foro contabilístico de maior complexidade ou especificidade”, que exigiriam a intervenção de um TOC, a questão era facilmente ultrapassável por via da requisição ou designação de técnico, nos termos do artigo 649.º.
            Bastava, então, juntar os documentos pertinentes ou, estando eles em poder da parte contrária, requerer a respectiva apresentação, ao abrigo do artigo 528.º do mesmo diploma, que a sua interpretação estaria plenamente assegurada pela assistência do técnico requisitado ou designado; claro que se o notificado recusasse a apresentação, tal seria levado em conta para efeitos probatórios (artigos 529.º e 519.º, n.º 2).
            A verdade é que, nos termos em que a ré/recorrente delineia a questão, a perícia é totalmente inútil e só teria uma consequência prática: a de atrasar indefinidamente a resolução do litígio, tanto mais que, tendo a autora sede em Espanha, haveria a diligência de passar pelo crivo das entidades judiciais desse país.
            Seja porque a prova dos quesitos formulados não relevaria para a apreciação da matéria pertinente à decisão da causa, seja porque a percepção desta não exige conhecimentos especiais, a prova pericial é inútil e, como tal, inadmissível, pelo que o agravo não pode ser provido. 

            B) O recurso de apelação

            a) A nulidade da sentença

            Se bem se consegue perceber a alegação da recorrente, inusitadamente extensa (em especial, no que se refere às conclusões, em clara violação do sintetismo exigido pelo artigo 690.º, n.º 1), mas sem a clareza e a precisão que seriam desejáveis, a sentença seria nula por ponderar factos que não foram objecto de discussão, mais concretamente, por ter dado por provado a existência de um acordo de facturação, que não foi quesitado.

            Encontrando, porventura, dificuldades em situar legalmente a nulidade, preferiu a recorrente deixar essa tarefa para o tribunal (em infracção, mais uma vez, ao preceito antes citado, que, na alínea a) do seu n.º 2, impõe se indiquem as normas jurídicas violadas). Só que, nos termos em que a questão é colocada, não se configura, de facto, qualquer nulidade, já que se não está perante falta de assinatura do juiz, ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito, oposição entre os fundamentos e a decisão, omissão/excesso de pronúncia ou condenação para além do pedido (n.º 1 do artigo 668.º).

            Do que, rigorosamente, se trata (considerando o teor da alegação de recurso, como é óbvio), é da violação do princípio dispositivo, que impede o juiz de se servir de factos que não tenham sido alegados pelas partes (disposições conjugadas dos artigos 664.º e 264.º).

            Uma vez que a recorrente se refere, sem mais (sem indicar, como devia, o ponto ou pontos da sentença tidos em vista) a um acordo de facturação, parece evidente que discorda da consignação da matéria ínsita na segunda parte do ponto 23) dos factos provados, ou seja, que a facturação das mercadorias à ré foi feita ao abrigo do acordo referido no ponto 13) dos mesmos factos.

            Antes de prosseguir, vejamos, muito sumariamente, o desenho básico da acção: a autora pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe uma certa quantia, alegando ter-lhe fornecido, a pedido da mesma, mercadorias cujo preço ficou por liquidar; a versão da ré é a de que nada deve à autora, porque nada lhe encomendou; recebeu produtos fabricados por ela, mas encomendados pela C..., com quem celebrou um contrato de franchising, e que é o verdadeiro devedor; a facturação foi efectuada em seu nome, é verdade, mas, somente, por uma questão de simplificação e ao abrigo da relação contratual que vinculava a autora (fabricante autorizado de produtos D...) à C....

            A questão da facturação em nome da ré foi aceite pacificamente; a controvérsia só se suscitou em torno das respectivas razões, uma vez que aquela rejeitou qualquer tipo de relacionamento comercial com a autora.

            Em virtude dessa rejeição, foi formulado o artigo 27.º da BI (“as mercadorias em causa apenas foram facturadas à ré por mera questão de simplificação e ao abrigo da relação contratual que vinculava a autora à C...?”), do qual resultou a resposta que deu lastro ao ponto 23 dos factos assentes da sentença: “as mercadorias em causa foram facturadas à ré ao abrigo do acordo referido em 13” (este acordo, celebrado por escrito entre a ré e a autora, foi denominado pelas partes de franchising e consta do documento de folhas 147 e seguintes dos autos).

            Uma vez que a resposta dada ao ponto 27) da BI difere do que foi quesitado, a questão que se coloca é a de saber se tal configura ampliação da matéria de facto alegada.           

            Como se sabe, nas respostas aos pontos da base instrutória devem ter-se em conta, por princípio, apenas os factos alegados pelas partes, de modo a que não saia desrespeitado o princípio dispositivo, pilar básico do nosso ordenamento processual civil. Não quer isso dizer que estejam vedadas as respostas restritivas ou simplesmente explicativas, as quais são, por vezes, absolutamente necessárias para que a verdade dos factos tenha real expressão; o que, de todo, está vedado ao tribunal é que, a coberto da explicação, dê por adquirida matéria relevante para o desfecho da questão, que as partes não tiveram o cuidado de submeter à sua apreciação.

            A regra, afirmada no n.º 1 e na primeira parte do n.º 2 do artigo 264.º e reafirmada no artigo 664.º, é a de que a matéria de facto integrante das pretensões deduzidas há-de ser articulada pelas partes (o autor tem de alegar os factos constitutivos do direito invocado – ou seja, a causa de pedir – e o réu os que sejam impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito – que é como quem diz, os que respeitam às excepções) e a de que a decisão só pode levar em consideração esses factos e não outros.

            Mas a regra sofre excepções, como emerge da segunda parte do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 264.º. O primeiro permite a consideração, mesmo oficiosamente, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e o segundo a dos factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados, desde que o interessado manifeste o desejo de deles se aproveitar e tenha sido observado o contraditório.

            Factos essenciais são, como o nome indica, aqueles em que as partes se baseiam para deduzir as respectivas pretensões (tendentes à afirmação do direito, no caso do autor, e à sua aniquilação, no caso do réu), ou seja, “os factos integradores da previsão ou «tatbestand» da norma aplicável à pretensão ou à excepção” (Antunes Varela, ob. cit., página 416).

            Factos instrumentais ou indiciários, por sua vez, são, os que “não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção” (Anselmo de Castro, ob. cit., páginas 275/276); são factos que permitem estabelecer uma ligação com os factos essenciais e, por essa via, aferir da realidade destes; e, exactamente, porque de simples factos probatórios ou acessórios se trata, não precisam de ser alegados nem incluídos na base instrutória, sendo atendidos desde que venham à tona na instrução ou na discussão da causa (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, página 466).

            É indubitável que a resposta dada ao artigo 27) da base instrutória é de conteúdo explicativo; perguntava-se se a facturação foi feita ao abrigo de uma relação contratual existente entre a autora e a C...e respondeu-se que o fora ao abrigo de acordo celebrado entre a ré e a C....

            O que, de todo, se não afigura é que tenha sido violado o princípio dispositivo.

            E isto porque a matéria de facto em causa é de natureza meramente instrumental; permite estabelecer uma ligação com os elementos de facto que integram a previsão normativa do contrato de compra e venda, que é o que se discute, mas não a afirmação do contrato em si.

            Dizer que a facturação dos produtos à ré, que já estava assente, resultou do contrato de franchising celebrado entre esta e a C...não é o mesmo que dizer que autora e ré celebraram entre si um contrato de compra e venda, embora permita indiciar essa realidade; a versão da autora ganha, então, maior consistência, lógico que é que se a facturação foi acordada no contrato mediante o qual a ré e a C...iniciaram o seu relacionamento comercial é porque se quis que fosse aquela e não esta a verdadeira compradora.  

            Diga-se, de qualquer modo, que a falada matéria consta do contrato de franchising, junto aos autos pela própria ré, como adiante, ao tratar da questão da alteração da matéria de facto, melhor se esclarecerá, pelo que podia perfeitamente (e devia) ser aproveitada pelo tribunal, ao abrigo do princípio da aquisição processual (sobre o tema, cfr. Anselmo de Castro, ob. cit., páginas 173/175 e 303/304).

            Em conclusão, a resposta ao artigo 23.º da base instrutória não violou o princípio dispositivo, já que não ampliou a matéria de facto alegada, antes, e apenas, se limitou a consignar factos instrumentais com interesse para a decisão.

            Daí que haja de improceder a questão (que, a verificar-se nos termos expostos pelo recorrente, teria de ser solucionada por via do regime geral das nulidades, estabelecido no artigo 201.º, e não por apelo à nulidade da sentença).   

           

            b) A alteração da matéria de facto

            Nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 712.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

            a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;

            b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

            Prescreve, por sua vez, o n.º 1 do artigo 690.º-A que, quando se impugne a decisão de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – alíneas a) e b) –, acrescentando o n.º 2 que, no caso de terem sido invocados como fundamento do erro na apreciação das provas depoimentos gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicá-los por referência ao assinalado na acta, nos termos do artigo 522.º-C.

            Dispõe, finalmente, este último normativo, no seu n.º 2, que tendo havido registo áudio, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.

            Tal como a apelante configura a impugnação – errada interpretação da prova testemunhal – a disposição a ter em conta é a da segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º, a conjugar com o artigo 690.º-A.

            Os pontos em discussão são, como se disse, os n.ºs 23) e 27) da matéria de facto dada por assente, que resultaram das respostas dadas, respectivamente, aos artigos 27.º e 34.º da Base instrutória.

            Antes de prosseguir, caberá advertir que o princípio da livre apreciação da prova, afirmado no artigo 655.º do CPC, restringe fortemente as possibilidades de o tribunal de recurso modificar o que a 1.ª instância decidiu. Se a matéria declarada provada tiver arrimo na prova produzida e o raciocínio explicativo da convicção do julgador se mostrar logicamente fundamentado, a alteração será de todo inviável.

            Neste domínio, a regra é a estabilidade e a excepção a modificabilidade. Atribuindo ao princípio da prova livre o alcance de “prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 245), não se vê como alterar o julgamento de facto, se a solução encontrada reflectir, com razoabilidade, uma convicção fundada em provas consideradas credíveis à luz dos dados da experiência, da ciência e da razão.

            No rigor dos termos, só o erro notório, clamoroso, flagrantemente desconforme entre os elementos de prova recolhidos e a decisão de facto, permitirá à Relação alterar a decisão de facto.

            Prestado este esclarecimento, vejamos a redacção dos artigos dos quais emergiu a factualidade questionada e as respostas que lhe foram dadas pelo tribunal “a quo”:

            27.º – “As mercadorias em causa apenas foram facturadas à ré por mera questão de simplificação e ao abrigo da relação contratual que vinculava a autora à C...?

            Resposta: Provado apenas que as mercadoria em causa foram facturadas à ré ao abrigo do acordo referido em 4.º.

            34.º – A autora produzia então a mercadoria encomendada, que entregava à ré, nas instalações desta ou em locais e estabelecimentos por esta determinados, a qual sempre as recebia, sem levantar qualquer problema?

            Resposta: Provado.

            O litígio trazido aos autos centra-se numa questão razoavelmente simples: a de saber se as mercadorias que a autora fornecia à ré, mas cuja encomenda lhe era entregue por um terceiro ( C...) com o qual a ré, como franquiado, celebrara um acordo de franchising, deviam ser pagas por uma ou por outra, sendo certo que a ré entende que o pagamento estava a cargo do franquiador, enquanto que a autora pretende o contrário.

            No essencial, o ex.mo juiz deu por provada a versão da autora, do que resultou a procedência da acção.

Quanto à fundamentação referente aos falados quesitos, foi este o raciocínio prosseguido: foi sempre a ré quem efectuou os pagamentos dos fornecimentos da autora, como logo ficou assente na alínea H) da especificação e é confirmado pelos documentos de folhas 187 e 188 e pelos depoimentos das testemunhas E... , F... e G... ; a ré não demonstrou ter efectuado um único pagamento à C..., apesar de no contrato de franchising se dizer que esta se compromete a vender à ré e que a ré satisfará todas as compras da marca D...; por outro lado, do mesmo contrato consta como causa da sua resolução a falta de pagamento ao provedor autorizado, o que significa que os pagamentos podiam ser, como foram, efectuados directamente à autora. Quanto ao facto de as entregas serem feitas directamente à ré, todas as testemunhas desta o admitiram, bem como a sua própria administradora, em depoimento de parte, outro tanto sucedendo com as testemunhas da autora, uma das quais, H..., sublinhou que as guias de transporte eram emitidas em nome da ré; o mesmo resulta do documento de folhas 185, em que a empresa transportadora informa a autora de entregas de mercadorias à ré; das facturas de folhas 21 a 72 consta a data do respectivo vencimento, sendo que a proximidade das datas (entre 2 de Agosto e 25 de Setembro de 2002) permitia à ré estar ao corrente dos preços praticados, informação que obtinha, também, nos “show rooms” realizados em Madrid pela C..., conforme o referido pelas testemunhas E... e F....

A ré estriba a sua discordância em considerações baseadas naquilo a que chama “a relação piramidal constituída pela relação de franchising”, nos depoimentos das testemunhas da autora, H..., I... , J.... , que não conseguiram atestar a existência de uma relação comercial entre as partes, e nos depoimentos das suas próprias testemunhas, E..., F... e G..., que afirmaram não existir acordo algum de facturação entre autora e ré, e, ainda, M...., que disse serem as compras feitas à C....

            Mas é evidente a falta de razão da ré, quando analisada a prova produzida.

            Sobre os artigos em questão pronunciaram-se L..... (só o artigo 34.º), administradora da ré, em depoimento de parte, as testemunhas da autora, H..., I...e J..., as duas primeiras contabilistas da mesma e a terceira sua agente comercial, e as testemunhas da ré, E...., G..., M....(só ao artigo 34.º) e F... (só ao artigo 27.º).

            No que para o caso interessa, foram assim os respectivos depoimentos:

            L.... – é administradora da ré desde Setembro de 2004, mas trabalha por conta dela desde 1997; as encomendas dos produtos eram feitas à C...; os pagamentos não eram com ela, mas sim com um colega; pagavam à C..., que era o seu único fornecedor; não sabe explicar a razão pela qual existem pagamentos à autora; desconhece que acordo existia entre a C...e a autora; as entregas eram feitas directamente pela autora à ré, vindo as guias de transporte em nome desta; a ré não pagou o montante aqui peticionado à C..., por ser credora desta por valor superior.

            H... foi contabilista na autora; toda a mercadoria era facturada à ré; as facturas continham o prazo de pagamento; se houvesse atrasos, contactavam a ré; os pagamentos vinham em cheque da ré, passados à ordem da autora; para ele era claro que quem comprava era a ré; nada era facturado à C...; os documentos de transporte eram emitidos em nome da ré; a D...l também comprava produtos, mas destinados à América do Sul e ao Médio Oriente; aí, as facturas e as guias de transporte eram emitidas em nome dela;  

           I.... foi contabilista da autora desde Abril ou Maio de 2003 até Julho 2004; a ré era cliente da autora; viu cartas da ré para a autora, embora não recorde se se referiam a encomendas ou a pagamentos; a ré tinha uma dívida e foram feitos contactos com ele para receber o valor; crê que havia, também, facturas da autora para a C...; não tem a certeza se houve contactos com esta por causa da dívida da ré; as franquiadas espanholas da C... faziam encomendas directamente à autora e eram elas que pagavam.

            J... – foi agente comercial da autora durante 12 anos, de onde saiu há cerca de 5 anos; as encomendas vinham em carta, de um endereço de Madrid; eram feitas em nome de B... e a mercadoria era enviada directamente da autora para a ré; a B...viajava até Madrid, deixava as encomendas no escritório da C...e esta enviava-as à autora; a facturação era feita a Portugal; a autora vendia para outras lojas de Espanha pertencentes à franquia de D...; a C...fazia encomendas à autora, mas não para lojas de Portugal ou de Espanha.

           E... – foi administradora da ré até 2003; a C...era o único fornecedor da ré, até porque existia uma cláusula de exclusividade, nos termos do contrato existente entre ambas; mas a C..., por conveniência própria, daria, supostamente, ordens aos fabricantes, entre os quais se incluía a autora, para facturarem à ré; aliás, esta tinha cláusulas de rappel com a C..., que sempre foram atingidos, mas nunca pagos, razão pela qual a ré intentou uma acção contra a C...em Espanha, que lhe foi favorável em 1.ª instância; as facturas chegavam da autora, embora houvesse algumas da C...; a mercadoria era encomendada à C...em passagens de modelos, onde era indicado o preço; nessas passagens não estava ninguém da autora ou de outros fabricantes, só gente da C...; mas não se sabia quem era o fabricante; enquanto administradora, nunca contactou com a autora; se houvesse problemas falavam com o senhor N... da C...; o produto era entregue nas instalações da ré em Leiria, por ordem do dito N... por uma questão de rapidez; o transportador era indicado e pago pela ré; as facturas continham um prazo de vencimento, mas não ligavam a isso, porque, por vezes, os pagamentos eram antecipados, a pedido da C..., ou retardados, a pedido da ré; esta enviava os pagamentos por cheque para onde o senhor N...determinava; se a factura vinha em nome da autora era para ela que mandavam o cheque; a ré pagou alguns fornecimentos àC..., que a mesma facturou, mas poucos; não pagaram à autora os fornecimentos em causa nos autos, porque entraram em litígio com a C..., que lhes devia quantia superior.

            G... – foi funcionário administrativo da ré; a autora era fabricante da C...; a ré só a esta podia comprar mercadorias, sendo certo que nunca efectuou encomendas aos fabricantes; a compra era feita em passagens de modelos, onde ia gente da C..., mas não dos fabricantes; o preço era aí indicado; depois, recebiam a mercadoria, que vinha facturada pelo fabricante e o senhor N..., daC..., ligava-lhes e dizia que se tinha de pagar a este ou àquele fabricante; as datas de vencimento eram fixadas pelos fabricantes, mas o prazo era meramente indicativo, no sentido de que o dinheiro não podia ser exigido antes; na prática, nunca era respeitado, bastando falar com o senhor N...para o dilatar; houve cartas da ré para a autora a ordenar a carga da mercadoria; o transporte das mercadorias era contratado e pago pela ré; a C...concedia um rappel aos seus franquiados que atingissem um determinado volume de compras, mas a ré nunca recebeu o que quer que seja.

            M .... – teve uma loja de confecções que vendia a marca D...; a ré organizava viagens a Madrid, a fim de escolherem a roupa em desfiles efectuados pela C...; só estavam presentes os franquiados e representantes da D..., nomeadamente o senhor N...; os preços eram fixados pela D...; cada qual escolhia o que queria e entregava as encomendas àquela; a roupa era, depois, recebida por intermédio da ré; não sabe como é que a roupa era encomendada aos fabricantes.

            F... – foi administradora da ré desde 1998 até 2004; esta só comprava à C...; iam duas vezes por ano a Madrid escolher as colecções às instalações da C...e aí davam-lhes os preços; a ré tinha o exclusivo para Portugal da marca D..., que distribuía no nosso país por franquiados escolhidos por ela; os produtos vinham para Portugal por ordem do senhor N...., da C..., que definia, também, os prazos de pagamento; a facturação vinha em nome da autora, por acordo, provavelmente, entre ela e a C...; a ré só podia comprar à C...; não o podia fazer aos fabricantes; os prazos de entrega, as reclamações e eventuais devoluções eram tratados com o senhor N...; atingido um determinado valor de encomendas, a ré tinha direito a um rappel por parte da C....

            Vistos os precedentes depoimentos e conjugando-os com o teor do contrato de franchising celebrado entre a ré e a C..., não se percebem as dúvidas daquela quanto à identidade do credor dos fornecimentos.

            A situação desenha-se de uma forma que se pode considerar linear: a ré obrigou-se a comercializar em Portugal, em regime de exclusividade, a marca D..., detida pela C...(C...). Os produtos dessa marca eram fabricados por empresas (provedores) escolhidas pela C.... Os diversos franquiados efectuavam as encomendas por intermédio desta, entregando o pedido nos seus escritórios de Madrid, que, por sua vez, os remetia aos diferentes provedores, consoante o produto em questão, que os produziam e faziam chegar aos franquiados. A facturação era efectuada directamente do provedor/fabricante ao adquirente/franquiado e o pagamento era feito directamente por este àquele. Nisto, são os depoimentos absolutamente concordes, mormente os das testemunhas arroladas pela ré.

            A divergência está nisto: a facturação era efectuada aos franquiados por mera questão de simplificação (por conveniência da C...), ao abrigo de um acordo entre esta e o fabricante, como diz a ré, ou porque o acordo de franchising o previa, como se decidiu?

            Indubitavelmente, porque o acordo de franchising o previa. Convirá reparar que tal acordo, junto pela ré, não estipula que o pagamento seja efectuado à C...; o que consta do seu ponto 9.1.4 é que aB... satisfará todas as compras da marca D..., que se realizem para Portugal, mediante letra a 90 dias da factura, acrescentando o ponto 11, alínea b), que a falta de pagamento ao provedor autorizado (ao fabricante, portanto) é causa de resolução do contrato.

            A facturação nada tinha a ver com questões de simplificação, o que, aliás, não tinha qualquer lógica, se o credor fosse a C..., mas com os termos do contrato de franchising.

             A C... -se a receber as encomendas dos diversos franquiados e a distribui-las pelos provedores fabricantes, a quem teriam de ser pagas; era o que sucedia, de resto, com as franquiadas espanholas, como relataram as testemunhas H..., I... e J; a única facturação em nome da C... e que esta pagava era a relativa a produtos que se destinavam a lojas fora da Europa, nomeadamente na América do Sul e no Médio Oriente.

            A não ser assim, não se compreenderia que a ré tivesse pago, anos a fio, as encomendas de produtos satisfeitas pela autora. Bem vistas as coisas, a questão só surgiu, porque a ré, que entendia ter direito a receber da C... um montante elevado de rappel, decidiu deixar de pagar, ao contrário do que sempre fizera, como forma, muito provavelmente, de pressionar aquela a satisfazer a pretensa obrigação. Mas disto não tem a autora a menor culpa.

            A sua argumentação repetitiva e fastidiosa, agarrada à “relação piramidal constituída pela relação de franchising”, é completamente irrelevante, porque uma coisa nada tem a ver com a outra; ou melhor, terá tudo a ver, mas não no sentido pretendido por ela; o contrato de franchising regula as relações entre a ré e a C..., mas não entre a ré e a autora, para quem o mesmo é “res inter alios”.

            O que é certo é que a prova produzida, e contra isto nada pode a relação piramidal (nada sólida, no caso), é suficientemente clara e precisa no sentido de que as mercadorias foram facturadas à ré, porque ela as encomendou à autora, na sequência de compromisso assumido perante a C..., e não porque esta e a autora tivessem chegado a um entendimento nesse sentido.

            Como não valem os depoimentos das testemunhas E..., G... e F... (o depoimento da testemunha M.... é inócuo, porque não conhece o quadro contratual existente entre a C... e a ré nem sabe o que quer que seja acerca do modo de efectivação das encomendas), na parte em que afirmam a inexistência de relações comerciais entre a autora e a ré, não só porque contraditórios com a prática negocial por elas próprias afirmada (facturação da autora à ré e pagamento desta àquela), mas, também, porque infirmados pelos termos do contrato de franchising.

            A resposta ao artigo 27.º da BI não pode, pois, ser alterada.

            Mas, também, o não pode a resposta ao artigo 34.º, uma vez que a representante legal da ré aceitou os factos em depoimento de parte, que as testemunhas H... e J os confirmaram, que as testemunhas E... e G... os não contrariaram (o que disseram foi que o transporte era contratado e pago pela ré, o que é diferente de dizer que a entrega não era feita pela autora) e que os documentos juntos aos autos lhes dão plena cobertura (a folhas 185 consta um documento enviado por uma empresa de transportes espanhola à autora a dar conta da entrega das mercadorias à ré).  

            Em resumo, as respostas dadas logram apoio na prova produzida e estão devidamente fundamentadas, pelo que não merecem censura.

            Não existe, pelo menos, desconformidade flagrante entre os elementos de prova e o julgamento de facto, o que obsta à alteração da decisão, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova.

            Nesta parte terá o recurso de improceder.

            c) O contrato de compra e venda

            A autora estruturou a acção em diversos contratos de compra e venda, que, como vendedora, teria celebrado com a ré.

            A ré sustentou que nenhuma relação comercial manteve com a autora e que se limitava a receber as mercadorias que esta lhe entregava, a mando da C..., que era a verdadeira compradora e que, por sua vez, lhas vendia a ela, ré, ao abrigo de um contrato de franquia.

            Na sentença, atribuindo-se, embora, a qualidade de parte contratante, como comprador, à C...(é o que resulta da afirmação de ser esta a devedora), considerou-se que a ré assumiu o pagamento, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, alínea a), do CC, por força da alínea b) do ponto 11 do contrato de franquia, razão por que foi condenada a pagar a quantia peticionada.

              A ré, na sua alegação de recurso, criticou a decisão, por não ter valorado alguns dos factos provados, que configurariam a celebração do contrato de compra e venda entre a C...e a autora, nomeadamente os seguintes:

            A ré encomendou os produtos à C...; os produtos foram exibidos em convenções organizadas por esta, escolhidos perante ela e com ela acordados os tamanhos, quantidades e cores; também os preços e os prazos de entrega foram negociados com a C...; foi, ainda, por instruções desta que as mercadorias foram levantadas nas instalações da autora, facturadas directamente à ré e pagas por esta.

            Para bem decidir, o melhor será fazer uma breve resenha dos factos provados:

– A C...e a ré celebraram entre si um acordo denominado de franchising, nos termos do qual esta explorava os direitos de comercialização exclusiva em Portugal dos produtos da marca D..., propriedade daquela.

– Consta desse acordo que a C... venderia os produtos D... à ré e que esta deveria encomendá-los àquela, podendo, no entanto, fazê-lo directamente ao provedor (produtor autorizado pela C....), se para isso obtivesse autorização por escrito da C....

– Consta, ainda, do mesmo acordo que a B...satisfaria todas as compras da marca D... que se realizassem para Portugal, mediante letra a 90 dias da factura, e que a falta de pagamento ao provedor autorizado era causa de resolução do contrato.

– A C... apresentava aos respectivos franquiados as colecções e seus preços, colhia as encomendas que estes faziam e mandava fabricar as mercadorias encomendadas aos provedores, designadamente à autora, que eram, depois, entregues directamente pelo fabricante aos franquiados, entre eles a ré.

– A ré, por sua vez, distribuía os produtos assim recebidos pelos franquiados portugueses, que os colocavam para venda ao público.

– As mercadorias eram facturadas directamente à ré, ao abrigo do acordo de franchising, sendo que a documentação de transporte era, igualmente, emitida em seu nome.

– A ré sempre recebeu as mercadorias, nunca devolveu as facturas e sempre pagou o respectivo preço.

– As mercadorias em causa nos autos foram facturadas em nome da ré, foram-lhe entregues e esta recebeu-as sem reservas, mas não as pagou, apesar de interpelada para o efeito.

A primeira constatação que se pode fazer é que o acordo celebrado entre a C...e a ré tem duas cláusulas aparentemente contraditórias entre si: de um lado, a de que a C...venderia os produtos D... à ré e esta só a ela poderia encomendá-los e, do outro, a de que a falta de pagamento ao provedor autorizado era causa de resolução do contrato.

Se era a C...que vendia à ré, parece que a esta deveria ser feito o pagamento, dada a noção de compra e venda plasmada no artigo 874.º do CC.

A contradição é, no entanto, facilmente ultrapassável, se se interpretar a primeira daquelas cláusulas no sentido, apenas, de que todas as encomendas tinham de ser dirigidas ao franquiador e a mais ninguém.

Nesta interpretação, que é a que melhor se coaduna, quer com o teor do contrato de franchising, quer com a demais matéria de facto provada, o franquiador não surge como vendedor, mas como mero representante dos franquiados na aquisição das mercadorias; aceitando, por um lado, a intermediação do franquiador na encomenda dos produtos ao fabricante e vinculando-se, por outro, a pagá-los a este (como, evidentemente, deflui da circunstância de a falta de pagamento implicar a possibilidade de resolução do contrato de franchising), o franquiado mais não está do que a conferir ao franquiador os poderes necessários à celebração do contrato de compra e venda em seu nome; e, nesse caso, é claro que o negócio produz os seus efeitos na sua esfera jurídica (artigo 258.º do CC).

Seria pouco razoável, na verdade, que os contratantes quisessem assumir-se como comprador (o franquiado) e vendedor (o franquiador), mas atribuíssem a terceiro (o fabricante) a titularidade do crédito emergente da venda.

De resto, os factos resultantes da discussão da causa, nomeadamente em virtude da prova testemunhal produzida, apontam decisivamente nessa direcção.

Repare-se na sequência dos acontecimentos: a C...(franquiador) apresentava as colecções e os preços aos seus franquiados, recebia as encomendas que, após isso, eles entendiam fazer e mandava confeccionar os produtos encomendados aos fabricantes que, previamente, seleccionara (provedores); os provedores fabricavam os produtos e entregavam-nos directamente aos franquiados, emitindo em seu nome a facturação e os documentos de transporte; a ré, no caso concreto, sempre recebeu, sem reservas, as facturas e sempre pagou o preço das mercadorias.   

Se a ré não tivesse a noção de que o franquiador intervinha na aquisição dos produtos como seu simples representante, como compreender que admitisse a facturação em seu nome ao longo dos anos (sendo certo, como resultou nítido da prova produzida, que não foi por questões de simplificação que isso sucedeu, ao contrário do que alegou), que recebesse as mercadorias e que as pagasse sem questionar ou opor o que quer que seja?

Só a interiorização precisa de que se considerava parte contratante no negócio de compra e venda e, como tal, devedora do preço, pode explicar a sua conduta.

Nem faria sentido, de resto, que, julgando-se a ré devedora da C..., pagasse os produtos adquiridos ao fabricante, correndo o risco de vir a ser accionada judicialmente por aquela e de ter de pagar duas vezes a mesma mercadoria.

Em conclusão, a ré solicitou à autora as mercadorias descritas nos autos, esta forneceu-lhas, aquela está obrigada a pagá-las, como comprador que é (artigo 874.º do CC).

A prova do pagamento do preço, que cabe ao comprador (n.º 2 do artigo 342.º do CC), não foi feita, logo, a ré não pode deixar de ser condenada a satisfazer a pretensão da autora.

Deste modo, haverá a sentença de ser confirmada, embora não exactamente pelas razões na mesma expendidas.

            IV. Súmula final:

            1) A prova pericial tem razão de ser quando estejam em causa matérias que exijam conhecimentos especiais, o que não é necessariamente o caso de um vulgar contrato de compra e venda de mercadorias;

            2) A violação do princípio dispositivo não configura nulidade da sentença, mas nulidade de carácter geral, a apreciar nos termos do artigo 201.º do CPC;

            3) Por força do princípio da aquisição processual, a matéria carreada para os autos por uma das partes aproveita à outra;

            4) Só a desconformidade flagrante entre os elementos de prova e o julgamento de facto pode conduzir à alteração da matéria provada;

            5) Age como mero representante do comprador o franquiador que, por acordo com o franquiado, recebe as encomendas feitas por este e ordena ao fabricante a confecção de produtos, para serem entregues directamente ao franquiado, que assumiu a obrigação de os pagar.

            V. Decisão:

            Por tudo quanto se deixou exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, por conseguinte, em qualquer dos casos, a decisão recorrida.

            Custas de ambos os recursos pela recorrente.


[1] As disposições do CPC aplicáveis são as que estavam em vigor antes da redacção introduzida pelo decreto-lei 303/07, de 24 de Agosto.