Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2956/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 12/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZOS CÍVEIS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 20º Nº 1 DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE
Sumário: Cabe ao requerente da insolvência a alegação e prova dos factos que integram os pressupostos da declaração requerida, e enumerados nas diversas alíneas do nº 1 do artº 20º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE).
Com efeito, o legislador, através da enumeração desses factos-índice, pretendeu enunciar os critérios indispensáveis à identificação da insolvência e, por isso, o credor interessado na declaração da insolvência tem que demonstrar que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações, provando que tal impossibilidade se manifesta através de sintomas inequívocos que o legislador descreve.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A A..., requereu, em 31/03/2005, pelos Juízos Cíveis de Coimbra, se declare em situação de insolvência B..., nos termos do disposto no nº 1 do artº 3º e als. a), b), c), d) e e) do nº 1 do artº 20º do C.I.R.E., com os seguintes fundamentos, em síntese:
No exercício da sua actividade comercial celebrou com a sociedade “C..., um contrato de empréstimo no montante de 24.939,89 €.
O requerido outorgou o contrato na qualidade de fiador e principal pagador, encontrando-se em dívida, à data de 23/03/2005, a quantia de 23.022,78 €, correspondente a capital, juros de mora e acessórios.
O requerido, a mutuária e os demais garantes, apesar de interpelados, não pagaram à requerida a aludida quantia.
Ao requerido, para além de uma quota societária na sociedade mutuária, que também se encontra sob pedido de insolvência, apenas é conhecida uma outra quota societária no valor nominal de 1.000,00 €, não tendo qualquer outro património e não dispõe de crédito no meio bancário para solver as suas responsabilidades, nem se prevê que venha a obter meios próprios de liquidez para fazer face às suas obrigações.
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O requerido deduziu oposição, alegando que não deve ser declarada a sua insolvência, pois, que, além de a requerente não ter legitimidade para propor a presente acção, em virtude de ele, requerido, ser mero fiador e não verdadeiro devedor

daquela, ter meios próprios de liquidez para satisfazer as suas obrigações.
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Na audiência de discussão e julgamento foi proferido o despacho saneador - no qual as partes foram consideradas legítimas - e organizada a selecção dos factos assentes e dos que constituem a base instrutória, com reclamação da autora, indeferida, sendo, depois, inquiridas as testemunhas arroladas pelas partes.
Seguiu-se a decisão sobre a matéria de facto controvertida, sem reclamações, após o que foi proferida a sentença, que julgou a acção improcedente.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
1 - A requerente celebrou com a sociedade C..., um contrato de empréstimo do montante de 24.939,89 € (5.000.000$00), formalizado por documento particular e dado como perfeito em 16/03/2000.
2 - Clausulou-se no referido contrato que o empréstimo venceria juros a uma taxa correspondente à LISBOR a 1 mês com arredondamento ao oitavo superior, em vigor na data do início de cada período de contagem de juros, acrescida de um “spread” de 5,5 %, donde resultava, tomando como referência a informação conhecida das partes no momento da celebração do contrato, a taxa de juro nominal de 9,125 % ao ano.
3 - O referido empréstimo destinou-se a comércio – apoio de tesouraria e de investimento, com vista à reestruturação financeira da empresa.
4 - Em caso de mora, a Caixa poderia cobrar, sobre o capital exigível e juros correspondentes aos períodos mínimos legalmente previstos, comissões e outros encargos, juros calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que, em cada um dos dias em que se verificasse a mora, estivesse em vigor na Caixa para operações activas da mesma natureza (actualmente 11,45 %), acrescida de uma sobretaxa até 4%.
5 - Para garantia das obrigações decorrentes do empréstimo acima identificado, Fernando Manuel Madeira e mulher, Maria Isabel Malaguerra Rocha Madeira e B... e mulher, Isabel Maria Rocha Madeira, responsabilizaram-se solidariamente como fiadores e principais pagadores pelo pagamento de tudo o que, por força dele, viesse a ser devido à ora requerente.
6 - Uma vez que o requerido não cumpriu as obrigações emergentes da operação acima referida, encontra-se em dívida, nesta data, a quantia de 23.022,78 €.
7 - Tanto o requerido como a mutuária e demais garantes, apesar de interpelados, não pagaram à requerente.
8 - A sociedade mutuária encontra-se inactiva e também não lhe é conhecido qualquer património.
9 - O requerido é proprietário de uma quota de 1.000,00 €, da sociedade D....
10 - A referida sociedade tem como sócia, para além do requerido, uma irmã deste, requerida num processo de insolvência de pessoa singular, a correr termos no 2º Juízo deste Tribunal sob o nº 1491/05.9TJCBR, interposto também pela requerente.
11 - A sociedade D..., tem créditos já vencidos no montante de 90.473,79 €.
12 - O requerido aufere um vencimento mensal de 1.000,00 €.
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Inconformada com a sentença, interpôs a requerente recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes (extensas) conclusões:
1º- Nos termos do artº 3º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas, desde que o devedor se encontre na situação económica de impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, poderá ser requerido por “outros legitimados” a declaração de que o mesmo se encontra em situação de insolvência.
2º- A situação supra descrita é indiciada, além do mais, por um ou mais dos factos reveladores da impossibilidade de cumprir as obrigações nos termos do artº 20º do CIRE “verificando-se algum dos seguintes factos”, como diz o preceito.
3º- Nomeadamente a existência de “Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas”, ou “Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
4º- Sobre o ónus da prova – Ao credor/requerente apenas cumpre efectuar o pedido de declaração de insolvência, nos termos do artº 25º do CIRE. ”Requerimento por outro

legitimado”, invocando na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, ou a sua responsabilidade pelos créditos sobre a insolvência, consoante o caso, e oferecer com ela os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor, oferecendo todos os meios de prova de que disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas.
A sobriedade do pedido justifica-se pois ao credor não lhe seria possível proceder à devassa da vida familiar e económica do requerido, com o fim de obter elementos que lhe permitissem declarar o incumprimento generalizado, nomeadamente, dívidas para ocorrer a necessidades diárias ou familiares (Direito à intimidade).
5º- É o requerido que cabe impugnar o pedido de declaração em situação de insolvência, não apenas através dos elementos trazidos ao Tribunal pelo requerente, mas, fundamentando-se em qualquer um dos comandos previstos no artº 20º do CIRE, através de todos os meios que contrariem uma situação de insolvência. Como dispõe o artº 30º do CIRE, a oposição à declaração pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência. Cabendo-lhe provar a sua solvência, (…).
6º- A verificação da “Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor”, constitui apenas um indício que poderá levar a declaração em situação de insolvência, pois outro entendimento faria depender o pedido da prévia instauração de acção executiva o que seria contrário ao princípio da economia processual. No caso presente foi pacificamente aceita a determinação dos bens existentes no património da devedora.
7º- O fundamento contido no artº 20º al. b), do CIRE, não é a impossibilidade se saldar a dívida para com a requerente, mas deve ser entendido como se o mesmo saldar a dívida com a requerente, não poderá ficar impossibilitado de solver pontualmente a generalidade das suas obrigações, obrigações que o requerido deve demonstrar que não tem, mas que no caso em juízo se presume existirem (despesas com alimentação, calçado e outras).
8º- Existindo diversos devedores solidários de uma mesma dívida, não constitui fundamento para que se não declare a insolvência de qualquer um deles, a existência de probabilidade, mesmo remota, de qualquer um deles pagar. Na acção de insolvência de pessoa individual, apenas tem que analisar a existência ou não dos condicionalismos do artº 20º do CIRE e não hipotéticos pagamentos de corresponsáveis.

9º- A afirmação de que a requerida, que deve elevado montante a uma instituição bancária ou de crédito, não dispõe de crédito junto da banca, tem apenas em vista, por uma questão de razoabilidade, os bancos acessíveis por qualquer pessoa que se encontre nas circunstâncias do devedor no aspecto dos contactos comerciais, pois, existem milhares de bancos e instituições financeiras em todo o universo creditício (a lei não diz que a impossibilidade de obter crédito se limitará aos bancos que operam no mercado nacional, ou no espaço europeu.
10º- Nos termos do artº 83º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Entidades Financeiras, estas, além do sistema da Central de Responsabilidades de Crédito criado pelo D.L. nº 29/96, de 11 de Abril (cfr. também a Instrução do Banco de Portugal nº 16/2001), têm também entre si redes de informação, que obstam a que devedores à banca tenham acesso a crédito bancário. Assim, é de presumir que quem não possua bens e apresente uma dívida de 23.022,78 € no sistema bancário, não tenha acesso à concessão de qualquer crédito por parte de qualquer banco.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

Questão prévia.
A recorrente juntou dois documentos com a alegação, destinados a provar que o recorrido detinha uma quota de 740.000$00 na sociedade mutuária C..., e que o mesmo não dispõe de crédito bancário.
A junção de documentos na fase de recurso reveste carácter excepcional, só devendo ser admitida nos apertados limites dos artºs 524º e 706º..


O artº 524º dispõe que, no caso de recurso, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão (nº 1); os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo (nº 2).
As partes podem ainda juntar documentos às alegações no caso de apenas se tornar necessário em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artº 706º).
De qualquer modo, a admissão de documentos está sempre condicionada pelo interesse que os mesmos revistam para a decisão do recurso.
No presente caso a junção é extemporânea, visto que os documentos poderiam, e deveriam, ter sido juntos na 1ª instância, uma vez que a requerente, ora recorrente, já alegou no requerimento inicial que o requerido, ora recorrido, detinha uma quota na sociedade C... (artº 14º) e que não dispõe de crédito no meio bancário para solver as suas responsabilidades (artº 27º).
Não juntou tais documentos na devida altura e não invocou qualquer justificação para a apresentação dos mesmos apenas neste momento.
Os documentos não podem, assim, ser admitidos, pelo que terão que ser desentranhados dos autos e restituídos à recorrente e esta condenada nas custas a que deu causa, de acordo com o disposto nos artºs 543º, nº 1 e 706º, nº 3.
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Da apelação.
A ora apelante veio requerer a declaração de insolvência do requerido, nos termos do disposto nos artºs 3º, nº 1, e 20º, nº 1, als. a), b), c), d) e e) do CIRE.
A primeira destas normas dispõe que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Nas alíneas supra referidas do 2º preceito estão indicados alguns dos factos (não cumulativos) que integram os pressupostos da declaração requerida, a saber:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade
das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor.
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Cabe ao requerente a alegação de tais factos, como se vê do artº 23º, nº 1, do CIRE, segundo o qual o pedido de declaração de insolvência faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida.
E cabe-lhe, igualmente, a prova desses factos. Até porque seria completamente absurdo exigir que fosse o requerido a provar a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que revele a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, a fuga do titular da empresa, a dissipação, abandono liquidação apressada ou ruinosa de bens ou a insuficiência de bens penhoráveis, etc.
Com efeito, o legislador, através da enumeração dos aludidos factos - índice, pretendeu enunciar os critérios indispensáveis à identificação da insolvência.
Por isso, o credor interessado na declaração da insolvência tem que demonstrar que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as sua obrigações, provando que tal impossibilidade se manifesta através de sintomas inequívocos que o legislador descreve.

No presente caso, cabendo, portanto, à requerente provar a verificação dos pressupostos da declaração de insolvência, podemos concluir que tenha logrado obter tal prova ?
É óbvio que não.
Com efeito, e como bem se diz na sentença, a requerente nem, sequer, alegou qualquer facto que possa ser integrado nas alíneas supra referidas.

E, como também se refere, e bem, na mesma sentença, não se mostra provado que o requerido suspendeu, de forma generalizada, o pagamento das suas obrigações vencidas; nem que a falta de cumprimento de uma mais obrigações, por parte do requerido, que, pelo seu montante (o montante da dívida é de pequena monta e resultou de uma fiança) ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de aquele satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; nem que se verifique a fuga do requerido; nem que ocorra a dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens do requerido; nem, finalmente, que se verifique a insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor – já que nenhuma execução foi movida contra o requerido, ao contrário do que, de forma clara, é exigido por lei.

Conclui-se, assim, que não pode proceder a pretensão da recorrente de ver o requerido declarado insolvente, por falta de prova dos pressupostos legalmente exigidos.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em:
A) - Não admitir a junção dos documentos apresentados pela recorrente, mandando desentranhá-los e entregá-los à mesma.
Custas do incidente a seu cargo.
B) - Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.