Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1219/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA LEGAL
CRÉDITO LABORAL
Data do Acordão: 05/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS. 12º DA LEI Nº 17/86, DE 14/06; 686º, Nº 1; 749º E 751º DO C. CIV. ; 152º DO CPEREF.
Sumário: I – Deve-se aplicar aos privilégios imobiliários gerais o regime legal definido pelo artº 749º do C.Civ., afastando-se, assim, o regime estabelecido no artº 751º em relação aos privilégios imobiliários especiais .
II - O credor hipotecário tem o direito a ser pago pelo valor da coisa objecto da garantia, com preferência sobre os demais credores, desde que estes não gizem de qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo, pelo que um crédito garantido por hipoteca anteriormente registada tem prioridade no pagamento em relação aos créditos dos trabalhadores garantidos por privilégio imobiliário geral.

III – O legislador ao referir-se, no artº 152º do CPEREF, à extinção dos privilégios creditórios, não se quis referir às hipotecas voluntárias ( ou legais ) devidamente registadas .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- No processo que corre seus termos no Tribunal Judicial de Viseu sob o nº 2020/03, foi declarada a falência de A....
Após aberto o concurso de credores, veio a ser proferida sentença de verificação e graduação de créditos, tendo-se decidido o seguinte ( para o que aqui interessa ):
Em relação ao prédio urbano denominado por “Souto” e constituído por parcela de terreno para construção urbana ... descrito na CRP sob o nº 04796/20030117 e tendo em atenção a norma de rateio ( art. 745º do C.Civil ), os créditos supra mencionados são graduados da seguinte forma:
Os créditos dos trabalhadores supra-referidos;
O crédito do credor, B....
Todos os créditos supra-verificados e reconhecidos em pé de igualdade e em rateio, se necessário.
1-2- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer o reclamante, B..., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-3- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A douta sentença violou o disposto no art. 8º da Lei Preambular do C.Civil, no art. 12º da Lei 17/86 e nos arts. 686º nº 1 e 751º do C.Civil
2ª- A interpretação correcta destas normas do C.Civil e a norma do art. 12º da Lei 17/86 tem de ter em conta a doutrina emanada do disposto no art. 8º da citada Lei Preambular, que determina que não são reconhecidos para o futuro privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no Código Civil, mesmo quando são conferidos em legislação especial.
3ª- Assim o art. 12º da Lei 17/86 deve ser interpretado, como fez o STJ no seu acórdão de 17-1-95, no sentido de que o quando se fala em privilégio tem forçosamente de se entender que o legislador soube aplicar correctamente a terminologia legal e que, consequentemente, não estão abrangidas no nº 2 do art. 12º as restantes garantias especiais das obrigações.
4ª- Esta é a única interpretação compatível com a regra do art. 9º, segundo a qual ao interpretar a lei tem de se considerar que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
5ª- Temos assim que o penhor e a hipoteca não são contemplados no art. 12º citado, quando fala em privilégios.
6ª- A doutrina do art. 8º da Diploma Preambular influencia também a interpretação do disposto no art. 751º do C.Civil, que deve ser interpretado no sentido de que é inaplicável aos privilégios imobiliários gerais
7ª- Nesta conformidade, é directamente aplicável ao caso, o comando do art. 686º nº 1 do C.Civil.
8ª- Deve o crédito hipotecário ser graduado em primeiro lugar e só depois os créditos laborais.
1-4- Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II.- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- No presente recurso, o apelante entende que é titular de hipoteca legal sobre o imóvel em causa, não tendo porém sido assim considerado na graduação efectuada. A hipotecas, devem ser reconhecidas como garantias reais, não excluídas da preferência que consagram, da satisfação dos créditos do seu titular pelo produto da venda do bem objecto da garantia
Vejamos:
A questão a apreciar e decidir será a de se saber se na graduação, e em relação ao produto da venda resultante do bem imóvel, os créditos garantidos por hipoteca anteriormente registada, devem ou não prevalecer sobre os créditos ( de trabalhadores ) emergentes de contrato individual de trabalho. Na douta sentença recorrida e para o que importa, considerou-se que os créditos emergentes de contrato individual de trabalho gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral nos termos do art. l2°, do DL n°17/86, de 14/6. Por isso, foram graduados em primeiro lugar, em relação ao crédito da ora recorrente.
É precisamente em relação a esta circunstância de serem esses créditos graduados em primeiro lugar, que a recorrente mostra o seu inconformismo.
De sublinhar desde logo, como se referencia na douta sentença recorrida, que, sobre o prédio urbano denominado por “Souto” e constituído por parcela de terreno para construção urbana, descrito na CRP sob o nº 04796/20030117, foi constituída hipoteca ( voluntária ), registada, a favor da reclamante ( ora recorrente ), B....
Estabelece o art. 12º nº 1 da Lei 17/86 de 14/6 ( na redacção introduzida pela Lei 96/2001 de 20/8 ):
Os créditos emergentes do contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2- Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que resultantes de retribuição em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos da número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça.
3- A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do art. 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuição devidas à Segurança Social”.
Também a referida Lei 96/2001 de 20/8, estabelece, em relação aos créditos dos trabalhadores exceptuados pela Lei 17/86 de 14/6:
1- Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/86 de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2-...
3- Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos da número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
4- A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do art. 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidas à segurança social”.
Quer isto dizer que esta Lei ( 96/2001 ), que se aplica aos créditos dos trabalhadores não abrangidos pela Lei 17/86 ( sendo que o âmbito de aplicação deste normativo diz respeito às entidades cujos trabalhadores que estejam numa situação de salários em atraso ) estabelece um regime semelhante ao estabelecido por esta Lei (17/86).
Para o que aqui interessa, ambas as leis atribuem aos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho, o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário geral.
Nos termos do art. 733º do C.Civil, “ privilégio creditório é a faculdade, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros”.
Significa isto que a lei atribui a certos credores a possibilidade de serem pagos prevalentemente aos outros, em razão do seu crédito estar especialmente relacionado com determinados bens do devedor.
Os privilégios creditórios, são de duas espécies, os mobiliários e os imobiliários, sendo que os primeiros são gerais, quando abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente e especiais quando compreendem só o valor do determinados bens móveis. Os segundos são sempre especiais ( art. 735º nºs 1, 2 e 3 do C.Civil ).
De sublinhar aqui que, pese embora, esta disposição designe que os privilégios imobiliários são sempre especiais, o certo é que as leis acima referenciadas ( e outras como o Dec-Lei 512/76 de 16/6 e 103/80 de 9/5, publicadas posteriormente ao C.Civil ), vieram estabelecer que os mencionados créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral11 O Decs-Lei 512/76 e 103/80 de 9/5 estabeleceram o privilégio imobiliário geral, em relação aos créditos da Segurança Social .
O regime jurídico dos privilégios imobiliários ( especiais ) está definido no C.Civil, concretamente nos arts. 743º e segs.. Porém, os diplomas que estabeleceram os privilégios imobiliários gerais não regulam o respectivo regime jurídico. Daí que a doutrina, concretamente ( entre outros ) os Profs. Almeida Costa e Menezes Cordeiro, entendam que aos privilégios imobiliários gerais, se deve aplicar o regime estabelecido no Código Civil, para os privilégios mobiliários, isto é, o regime definido no art. 749º do diploma ( in Direito das Obrigações, 5ª edição pág. 824 e Direito das Obrigações, 2º Vol. págs. 500 e 501, respectivamente ). Como lapidarmente diz o Prof. Menezes Cordeiro “ a figura do privilégio imobiliário geral foi introduzida na nossa ordem jurídica pelo Dec-Lei 512/75 de 16 de Junho, em favor de instituições de previdência. Este diploma não indica o regime concreto dos privilégios imobiliários gerais que veio criar. Pensamos, no entanto, que o seu regime se deve aproximar dos privilégios gerais (mobiliários ) que consta do Código Civil. Isto porque, dada a sua generalidade, não são direitos reais de garantia - não incidem sobre coisas corpóreas certas e determinadas - nem sequer, verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas. Assim sendo, deve ser-lhe aplicado o regime constante do art. 749º do Cód. Civil, nomeadamente, eles não são oponíveis a quaisquer direitos reais anteriores ou posteriores aos débitos garantidos”.
Quer isto dizer que se deve aplicar aos privilégios imobiliários gerais, o regime definido no art. 749º do C.Civil, afastando-se assim o regime estabelecido no art. 751º em relação aos privilégios imobiliários especiais.
É a esta posição que tem vindo a aderir a mais recente jurisprudência dos nossos tribunais superiores ( entre outros, Acs. do STJ de 24-9-02 in Col. Jur. 2002, Tomo III, pág. 54 a 57, de 5-2-02 in Col. Jur. 2002, Tomo I, pág. 71, de 3-4- 2003 in www. djsi.pt/jstj e da Rel. do Porto de 26-1-04 in Col. Jur. 2004, Tomo I, pág. 171 ).
Nos termos do dito art. 749º “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”. Ou seja, e para o que aqui importa, o privilégio (imobiliário geral ) não poderá ser oponível a qualquer direito real anterior ou posterior ao débito garantido.
O crédito da recorrente está garantido por hipoteca registada.
Nos termos do art. 686º nº 1 “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes o devedor ou terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozam de privilégio especial ou de prioridade de registo”. Isto é, o credor hipotecário tem o direito a ser pago pelo valor da coisa objecto da garantia, com preferência sobre os demais credores (desde que estes não gozem de qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo ).
Relacionando o dispositivo desta norma, com o regime do art. 749º do C.Civil, temos que concluir que o crédito da entidade recorrente, garantido por hipoteca anteriormente registada, tem prioridade no pagamento em relação aos créditos dos trabalhadores, garantido por privilégio imobiliário geral.
Neste sentido vai também a orientação do Tribunal Constitucional tomada no acórdão 160/000 de 22-3-00 ( DR. II Série de 10-10-00 ) que considerou que “o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático ( a que se refere o art. 2º da Constituição ) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e relevantemente contar ... A esta luz pergunta-se ... que segurança jurídica constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real ( hipoteca ) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa”. Depois de outra argumentação, conclui que “a interpretação normativa em sindicância, viola o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2º da Constituição”. Assim julgou inconstitucionais as constantes dos arts. 2º do Dec-Lei 512/76 e 11º do Dec-Lei 103/80 de 9/5, interpretadas no sentido que o privilégio imobiliário geral neles conferida, prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C.Civil. Posteriormente o tribunal manteve a mesma posição designadamente nos acórdãos 354/00 de 5-7-00, 109/02 de 5-3-02, 387/02 de 2-10-02, todos acessíveis na internet através do sítio «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos». De salientar ainda que o acórdão 362/02 do mesmo tribunal, em relação ao art. 104º do Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares ( da primitiva versão, disposição agora contida no art. 111º do mesmo diploma ) que confere à Fazenda Nacional, igualmente, um privilégio imobiliário geral, e com o mesmo género de argumentação, considerou inconstitucional, com força obrigatória geral, tal norma, tendo exarado: “Nestes termos o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do art. 2º da Constituição, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares, aprovado pelo Dec-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Dec-Lei nº 198/2001 de 3 de Julho, do seu art.111º, na interpretação segundo o qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Nacional prefere hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil” ( in mesmo sítio ).
Nesta conformidade, já poderemos responder à questão acima colocada, afirmando que, em relação ao produto da venda resultante do bem imóvel, o crédito da recorrente garantido por hipoteca anteriormente registada, deve prevalecer sobre os créditos dos trabalhadores emergentes de contrato individual de trabalho ( garantido por privilégio imobiliário geral ), pelo que na respectiva graduação deve ficar ordenado à frente destes créditos.
Não ignoramos que o art. 377º do C. do Trabalho atribui hoje aos trabalhadores o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade ( sublinhado nosso ).
Este dispositivo não tem aplicação ao caso vertente pela razão de que não se demonstra ( ou sequer se indicia ) que o imóvel em causa fosse aquele onde os trabalhadores reclamantes dos créditos laborais, prestavam a sua actividade. Além disso, quando essa norma entrou em vigor ( em 1-12-2003 ) já a falência da requerida havia sido decretada ( foi-o em 12-11-2003 ). Assim, produzindo-se os direitos decorrentes da falência nesse momento, todas as ( eventuais ) alterações legais posteriores serão irrelevantes ( art. 12º nº 1 do C.Civil ).
Mesmo que assim não fosse, somos em crer, pelas razões ditas, que essa norma seria inconstitucional.
2-3- Estamos perante uma graduação de créditos sequente à declaração de falência da falida supra-indicada. Nesta conformidade haverá a atender ( e na douta sentença a tal se atendeu ) ao disposto no art. 152º do CPEREF ( Dec-Lei 132/93 de 23/4 ) que estipula que “com a declaração da falência extinguem-se imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, passando os respectivos créditos a ser exigíveis apenas como créditos comuns”.
Ficou pois claro que, declarada a falência, extinguem-se, de imediato, os privilégios creditórios das instituições de segurança social. Disto não temos a melhor dúvida.
Mas mesmo que assim não fosse, de igual modo não se poderia dar relevância a esses privilégios creditórios, caso concorressem com uma hipoteca, já que o Tribunal Constitucional decidiu declarar “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio de confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, das normas constantes do artigo 11º do Dec-Lei 103/80 de 9 de Maio e do artigo 2º do Decreto-Lei 512/76 de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil” ( Ac. 363/2002 in D.R. I Série A, de 16-10-2002 ).
O art. 200º nº 3 do CPEREF estabelece, na parte que interessa para o caso vertente, que “na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente da penhora ...”.
Omite pois a lei uma referência expressa à hipoteca legal e à hipoteca voluntária.
Mas será que esta omissão poderá ser interpretada no sentido que pretende o apelante, ou seja, de que os titulares de hipotecas voluntárias ( e legais ) continuam a ter preferência para satisfação dos seus créditos ?
Segundo uma corrente doutrinal, tal interpretação não é possível, sob pena de se atraiçoar o que pretendeu o legislador. E este teve em mente, ao produzir os indicados arts. 152º e 200º nº 3, extinguir as preferências e as derivadas de todas as hipotecas. Deste entendimento são Luís Carvalho Fernandes e João Labareda que explicitamente referem que “o preceito ( art. 152º ) deixa no olvido as hipotecas legais. Cumpre explicar o alcance da omissão. Atenta a «ratio legis» do preceito, não pode senão entender-se, por paridade de razão, que lhes é aplicável o regime do preceito, extinguindo-se imediatamente, com a declaração da falência, as hipotecas atribuídas como garantias de créditos das entidades nele referidas. A não ser assim, estaria o legislador a retirar com uma das mãos o que dava com outra. E essa não foi decerto as sua intenção, como decorre de várias reflexões e trabalhos preparatórios do Código ...” ( in CPEREF Anotado, 2ª edição, págs. 381 e 382 ).
Sustentando esta tese foram proferidos acórdãos nesta Relação, nas apelações 537/2000, em que o presente relator foi adjunto e 1928/00 em que foi relator o mesmo deste acórdão, aresto este que, porém, foi revogado por acórdão de 10-5-2001 do STJ, proferido no Rec. nº 1241/01- 7.
Em virtude desta circunstância, considerámos repensar a questão, decidindo mudar de orientação.
Como se vê pelo enunciado do art. 152º do CPEREF, com a declaração de falência, extinguem-se imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de Segurança Social. A lei fala claramente em privilégio creditório e não em hipoteca voluntária ( ou legal ).
Privilégio creditório e hipoteca voluntária são garantias com marcantes diferenças de regime. Na verdade, o privilégio creditório, nos termos art. 733º do C.Civil, “é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”. Actua pois este privilégio, independentemente de registo. Já que no que toca às hipotecas, estas poderão ser legais, judiciais e voluntárias. Para o que aqui importa, a hipoteca voluntária é “a que nasce de contrato ou declaração unilateral - art. 712º-. Por sua vez o art. 686º estabelece que “a hipoteca confere ao credor o direito a ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencente ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”. A hipoteca, para produzir efeitos, deve ser registada, como resulta do art. 687º, sempre do C.Civil.
Daqui resulta que as hipotecas voluntárias, têm que ser constituídas, através do acto de registo. “Antes do registo, elas não podem considerar-se constituídas, não têm existência legal. Há apenas, por parte do credor, o poder legal de as constituir mediante um acto de registo, que será o título de especificação dos bens e determinação do crédito” ( in C.Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. I, 4ª edição, pág. 726 ).
Por outro lado as hipotecas incidem ( apenas ) sobre bens imóveis (art.686º já referido ).
Por aqui se vê a distinção de regime entre os privilégios creditórios e as hipotecas. Ou seja, ao contrário dos privilégios creditórios, as hipotecas têm que ser registadas, dependendo a sua constituição desse registo e incidem somente sobre imóveis.
Em virtude destas claras diferenças, não nos parece crível que ao legislador ao referir-se, no mencionado art. 152º do CPEREF, à extinção dos privilégios creditórios, quisesse também referir-se às hipotecas voluntárias. A considerar-se esta circunstância, seria entender-se que o legislador não soube distingir o privilégio creditório, de uma hipoteca voluntária, o que não nos parece aceitável, dada a acentuada divergência de regimes a que já nos referimos. De resto, nos termos do art. 9º nº 3 do C.Civil “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador ... soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Ou seja, o legislador ao referir-se à extinção dos privilégios creditórios, só a estes se quis referir. Daí que não nos pareça acertada a interpretação de que aquela disposição, ao referir-se à extinção dos privilégios creditórios, se quis também abranger as hipotecas voluntárias. Mais, tal interpretação, é mesmo contra legem.
Como se refere no Ac. do STJ de 3-3-98 ( in BMJ, 475, 556 ), o legislador ao retirar, com a declaração de falência, os privilégios creditórios ao Estado, autarquias locais e instituições de segurança social, “quis incentivar os entes públicos a lutarem, também eles, pela viabilização da empresa, mas não a qualquer preço. Ponderou certamente as vantagens e inconvenientes de ir mais longe. Ficou-se pelos privilégios creditórios”. Isto é, também no prisma desse acórdão a extinção dos privilégios creditórios a que alude o mencionado art. 152º não abrange a hipoteca voluntária (no mesmo sentido decidiu ainda o Ac. do STJ de 10-5-01 proferido no Rec. nº 1241/01- 7, já acima referenciado ).
O mesmo se diga em relação ao art. 200º nº 3 do CPEREF acima referido. O legislador ao mencionar a hipoteca judicial e a resultante da penhora, só a estas se quis, na realidade, referir.
Em síntese:
Nos termos do art. 152º do CPEREF, a declaração de falência, determina apenas a extinção de privilégios creditórios, mas não a extinção de hipoteca voluntária de que goza a entidade mencionada. De igual modo, o art. 200º nº 3 do mesmo diploma determina, que na graduação de créditos ( em falência ) não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial ( e a resultante da penhora ), mas não já a resultante da hipoteca voluntária ( e legal ).
Nesta conformidade, o crédito da recorrente, garantido por hipoteca (voluntária ) devidamente registada, deverá ser pago com preferência aos créditos dos trabalhadores e dos outros credores comuns.
III- Decisão:
Por tudo o exposto dá-se provimento ao recurso e, em consequência, decide-se graduar, para pagamento, os créditos da seguinte forma:
Pelo produto da venda do prédio urbano denominado por “Souto” e constituído por parcela de terreno para construção urbana ... descrito na CRP sob o nº 04796/20030117
1º- O crédito de que é titular a recorrente, B....
2º- Os créditos dos trabalhadores indicados na douta sentença recorrida, emergentes de contrato de trabalho.
3º- Todos os demais créditos.
No mais, porque não objecto de impugnação neste recurso, mantém-se a douta decisão recorrida.
Custas na acção e na apelação pela massa falida.