Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2160/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: ACTO PROCESSUAL
CONTESTAÇÃO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 09/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 488.º, 201º, N.º1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ; E ART. 249º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1. Na contestação deve o réu individualizar a acção.
2. É de considerar validamente praticado o acto de contestar, se a parte, dentro do prazo legal, apresenta a contestação em Tribunal identificando erradamente nessa peça o Juízo e o número do processo, mas o sobrescrito remetido pelo correio, contendo a contestação, é dirigido ao Juízo e processo respectivo.

3. Apesar de a contestação ter sido junta pela secretaria ao processo indicado na contestação, e não ao processo mencionado no sobrescrito, a errada individualização da acção nessa peça constitui mera irregularidade processual imputável à parte, decorrendo de simples erro de escrita que jamais pode implicar a perda do direito de praticar o acto.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO

A... intentou, no Tribunal de Viseu, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário Distribuída ao 3º Juízo Cível, sob o n.º 862/03.OTBVIS, em 20.02.2003, contra B..., pedindo a condenação da Ré a reconhecer e assumir a responsabilidade pelo acidente sofrido pelo Autor no dia 13.10.99, ao abrigo da apólice de seguro de acidentes pessoais celebrado entre ambos, e, em consequência, condenada a pagar ao Autor uma indemnização pelos danos sofridos, no montante de € 78.916,06 acrescida esta quantia de juros de mora desde a primeira interpelação extrajudicial.

A Ré seguradora foi citada para contestar no dia 07.03.2003.
Não foi junta contestação ao processo no prazo legal de 30 dias, tendo sido proferido despacho a julgar confessados os factos articulados pelo Autor, ao abrigo do disposto no art. 484º, n.º1 do CPC.

Notificada a Ré nos termos e para efeitos do disposto no n.º2 do art. 484º do CPC, veio aquela agravar do despacho que considerou confessados os factos articulados pelo Autor, e arguir a nulidade processual consubstanciada na falta de junção aos autos da contestação por parte da Secretaria do Tribunal, alegando ter remetido a contestação, por carta registada, ao 3º Juízo Cível do Tribunal de Viseu, onde corre termos a acção, no dia 09.04.2003, tendo a carta sido entregue nesse Tribunal no dia 10.04.2003, pelo que contestou em tempo, uma vez que o prazo para contestar terminava no dia 11.04.2003. Reconhece, no entanto, ter havido lapso por parte dos Mandatários da Ré, pois no cabeçalho da contestação constava o 1º Juízo Cível e Proc. n.º 820/02, do Tribunal de Viseu, apesar de identificadas correctamente as partes na acção.
Notificado Autor, veio este pugnar pelo indeferimento da arguição da nulidade processual.

Tendo, entretanto, sido devolvida à Ré a contestação, por notificação de 07.07.2003, expedida pelo 1º Juízo Cível do Tribunal de Viseu, veio aquela informar nos autos que, conforme carimbo aposto, a contestação deu entrada na Secção Central daquele Tribunal, em 10.04.2003. Juntou, para o efeito, a mencionada contestação, onde consta o carimbo, com a data de 10.04.2003, comprovativo da entrada da contestação na Secção Central do Tribunal de Viseu.
Seguidamente foi proferido despacho a indeferir a arguição de nulidade processual, admitindo o agravo interposto contra o despacho que considerou confessados os factos articulados pelo Autor, mas que foi, depois, julgado deserto por falta de alegações.

Agravou a Ré contra o despacho que indeferiu a arguição da nulidade processual, recurso que foi recebido com subida diferida.
Prosseguindo os autos os seus regulares termos, foi, por fim, proferida sentença, nos termos da parte final do n.º2 do art. 484º do CPC, a julgar parcialmente procedente a acção, condenando a Ré a reconhecer que o acidente sofrido pelo Autor está abrangido pelo contrato de seguros de acidentes pessoais celebrado entre aquele e a Ré seguradora, mais condenando esta a pagar ao Autor uma indemnização no montante de € 78.916,06, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da decisão até integral pagamento.

A Ré não se conformou com tal decisão, interpondo recurso de apelação, e alegando com o fundamento expresso no recurso de agravo e divergindo, também, no tocante ao grau de IPP dado como provado.
O Autor não contra-alegou no concernente ao recurso de apelação.

Relativamente ao recurso de agravo interposto contra o despacho que indeferiu a arguição de nulidade processual, a Ré rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª- A Ré foi notificada em 08.06.2003 nos termos e para efeitos do disposto no art. 484º do CPC;
2ª-No despacho que ordena a referida notificação lê-se “considero confessados os factos articulados pelo autor art. 484, n.º1 do CPC”;
3ª-Tal artigo corresponde à sanção prevista na lei processual civil para a falta de contestação à petição inicial;
4ª-Por carta registada remetida ao 3º Juízo, Proc. 862/03.OTBVIS, em 09.04.2003, a Recorrente enviou a sua contestação ao pedido formulado pelo Autor;
5ª-Tal carta foi entregue nesse Tribunal no dia 10.04.2003, pelas 9h39;
6ª-A Recorrente foi citada para contestar a presente acção em 07.03.2003;
7ª-O prazo para contestar a acção terminava no dia 11.04.2003;
8ª-A contestação da ora Recorrente deu entrada dentro do prazo legal de que dispunha, o que para todos os devidos e legais efeitos se alega;
9ª-Considerou o Tribunal que a Ré não contestou a presente acção, considerando confessados os factos articulados pelo Autor, mais não restando à ora Recorrente do que alegar a competente nulidade processual, em momento próprio, pretensão essa que veio a ser indeferida pelo Tribunal;
10ª-Na verdade, o Tribunal omitiu um acto - junção da contestação ao processo que influiu dramaticamente na decisão da causa (art. 201º do CPC);
11ª-O que implica necessariamente a declaração de nulidade do processado posterior à citação da ora Recorrente;
12ª-Existiu um lapso dos Mandatários no cabeçalho da contestação dado que a endereçaram ao 1º Juízo Cível e ao Proc. 820/02;
13ª-No início da contestação dos Mandatários da ora Recorrente identificaram correctamente quer a Ré quer o Autor nos presentes autos;
14ª-Na Secretaria do 3º Juízo Cível, ao ser aberto o expediente, verificando o funcionário que no cabeçalho se dizia 1º Juízo Cível, de imediato e sem mais a remeteu para esse Juízo;
15ª-Como no 1º Juízo, o Proc. 820/02 não dizia respeito às partes, ou não foi junto ao processo, ou foi junto e por lá andou à espera de ser desentranhado, hipótese última esta já confirmada, conforme também já consta dos autos;
16ª-Seja como for, tendo a carta sido dirigida por CTT com registo ao 3º Juízo e ao processo correcto, estando as partes devidamente identificadas na contestação, pensa a Recorrente que a Secretaria tinha o dever de, por qualquer forma, tentar averiguar para onde efectivamente era dirigida a contestação;
17ª-A contradição entre a identificação do Juízo e o processo inscritos no envelope dos CTT e os constantes da contestação era manifesta e facilmente apreensível por quem abriu o correio na Secretaria;
18ª-O envelope dos CTT ia dirigido ao Juízo e processo correcto;
19ª-O funcionário do 3º Juízo Cível que recebeu o envelope endereçado a esse Juízo e a um determinado processo e que observa que a contestação está dirigida ao 1º Juízo Cível e a outro processo deveria ter-se interrogado sobre a disparidade que observou;
20ª- Mesmo que não se tenha interrogado, nessas circunstâncias, a troca de Juízo e número de processo não é merecedora de sanção tão grave quanto considerar-se não contestada a acção;
21ª-O prazo para contestar a acção terminava a 11.04.2003;
22ª-A contestação foi expedida a 09.04.2003 e deu entrada no Tribunal no dia 10;
23ª-Se a Secretaria, mediante a manifesta contradição tivesse avisado no próprio dia os Mandatários da ora Recorrente, nem que por telefone fosse, ainda poderiam estes, nesse dia ou no dia seguinte, corrigir o lapso cometido. Ou mesmo até ao dia 16 de Abril, ainda que pagando a respectiva multa;
24ª-Numa altura em que o CPC estabelece de forma categórica o primado da verdade material sobre o formalismo processual, admitindo inclusivamente que o autor seja convidado a corrigir os erros na alegação dos factos que sustentam a sua pretensão, mal se compreende que no caso em apreço não se considere atempadamente junta a contestação;
25ª-O princípio da cooperação plasmado no art. 266º do CPC também pode e deve ser invocado, atentas as circunstâncias em que se verificou o lapso;
26ª-Entende a Recorrente que se trata da violação do princípio da cooperação, e que no caso presente, se impunha o contacto com a Ré ou com os seus Mandatários, a fim de ser esclarecida a (possível) dúvida sobre a que processo se dirigia a contestação;
27ª- A jurisprudência vem entendendo em casos que apresentam alguma similaridade com o dos autos, a prática do acto como eficaz;
28ª- Foram violados os arts. 3º-A, 161º, 483º e 484º, a contrario, e 486º, todos do CPC.

O Autor não contra-alegou.
Foi mantido o despacho impugnado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL

Tendo o recurso de agravo subido com o recurso de apelação, importa conhecer em primeiro lugar do recurso de agravo, como impõe o n.º1 do art. 710º do CPC.
E delimitado, em princípio, o objecto do recurso pelas conclusões da alegação (arts. 390º, n.º1 e 384º, n.º3, ambos do CPC), importa averiguar e decidir se a contestação deve ou não ser considerada eficaz ou apresentada no prazo legal.

A este respeito, como acima já se relatou, decorre dos autos, a seguinte matéria factual:
-A Ré, ora Recorrente, foi notificada, no dia 7 de Março de 2003 para contestar a acção ordinária registada sob o n.º862/03.OTBVIS, pendente no 3º Juízo Cível do Tribunal de Viseu (cfr. fls. 56);
-Por carta registada de 09.04.2003, a Ré remeteu a contestação ao 3º Juízo Cível do Tribunal de Viseu, onde pendia a acção sob o n.º 862/03.OTBVIS, identificando na carta aquela acção (doc. de fls. 67);
- Tal contestação deu entrada, no dia 10.04.2003, na Secção Central do Tribunal de Viseu (cfr. fls. 74);
- Consta, porém, do cabeçalho da contestação o 1º Juízo Cível do Tribunal de Viseu, Proc. n.º 820/02, e figurando como Autor e Ré as partes do Proc. n.º 862/03.OTBVIS;
- A contestação foi junta ao Proc. 820/02 e, posteriormente, desentranhada e devolvida à Ré por notificação de 07.07.2003 (doc. de fls. 76).

Perante esta realidade processual, o Tribunal a quo indeferiu a arguição de nulidade, não reputou eficaz a contestação, entretanto, apresentada e proferiu sentença nos termos da parte final do n.º 2 do art. 484º do CPC.
Como é sabido, a nulidade processual consiste num desvio ao ritualismo prescrito na lei adjectiva, como seja, a prática de um acto que lei não admita, ou a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, sendo mister que a lei declare constituir nulidade essa irregularidade ou que a mesma irregularidade possa influir no exame ou decisão da causa (n.º1 do art. 201º do CPC).
Ora, no caso sub judice, verifica-se que houve lapso por banda da Ré, ora Recorrente, porquanto, embora tendo enviado a contestação para o 3º Juízo Cível do Tribunal de Viseu, onde corria termos a respectiva acção (Proc. 862/03.OTBVIS), endereço esse indicado na carta registada, todavia, nessa peça processual, por erro, mencionava o 1º Juízo Cível desse Tribunal e uma outra acção registada sob o n.º 820/02, mas coincidindo as partes identificadas em ambas as acções ordinárias.
E, salvo o devido respeito, nenhum erro pode ser imputado à Secção Central ao encaminhar a contestação para o Proc. n.º 820/02 do 1º Juízo Cível. Nenhuma irregularidade processual foi praticada pelo Tribunal, apesar de a carta registada, onde se continha a contestação, vir dirigido ao 3º Juízo e Proc. n.º 862/03.OTBVIS. Efectivamente, é na contestação que o réu deve individualizar a acção …. (art. 488º do CPC), e a Ré, nessa peça processual, identificou erradamente quer o Juízo Cível, quer a acção a que respeitava a contestação. Não era exigível à Secretaria do Tribunal, que, nessas circunstâncias, logo juntasse a contestação ao processo a que dizia respeito, sendo certo que as omissões e erros dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em caso algum, prejudicar as partes (n.º6 do art. 161º do CPC).

Nota-se, porém, que a Ré, embora erradamente individualizando a acção e Juízo Cível, fez entrar a contestação na Secção Central do Tribunal de Viseu, no dia 10 de Abril de 2003, terminando o prazo de 30 dias para contestar no dia 11 de Abril desse ano. A Ré fora citada para contestar no dia 7 de Março de 2003.
Face a esse lapso de individualização da acção, tal como vem sendo defendido maioritariamente na jurisprudência Neste sentido vejam-se os acórdãos do STJ publicados no BMJ n.º 464º, p. 458, no BMJ 498º, p. 170, no BMJ n.º 299º, p. 413, BMJ n.º 285º, p. 242, acórdão da Relação do Porto, publicado na CJ 1980, 4º, 186, da Relação de Lisboa na CJ 1980, 4º, p. 82, , não deixará, por isso, de ser válida e eficaz a contestação em apreço apresentada dentro do prazo legal, mas cujo destino não foi a acção e Juízo devidos, mas sim a acção e Juízo erradamente indicados nessa peça processual. Com efeito, inexiste na lei processual qualquer norma que estabeleça sanção para o caso de prática de acto, dentro do prazo legal, mas em processo ou tribunal diferente. E, embora se trate, in casu, de uma irregularidade processual imputável à parte, ao identificar erradamente a acção e o Juízo onde corre termos, em violação do disposto no art. 488º do CPC, decorre tal irregularidade de um simples erro de escrita que jamais pode implicar a perda do direito de praticar o acto.
Como prescreve o art. 249º do CC, o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através de circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta. E este princípio tanto é aplicável às declarações negociais da vontade regidas pela lei civil, como a actos judiciais, produzidas no decurso de um processo, logo permitindo o art. 667º do CPC a rectificação erros materiais contidos na sentença (cfr. Vaz Serra, na RLJ, 111º- 383 e Código Civil Anotado, 1º vol., pag. 234, de Pires de Lima e Antunes Varela e acórdão do STJ publicado no BMJ n.º 228º, p. 165, e desta Relação, sumariado no BMJ n.º 363º, p.612 ).
E junta a contestação ao processo e Juízo indicados, por lapso, no cabeçalho da contestação, tornava-se manifesto que não respeitava a tal processo, tanto assim que acabou tal peça processual por ser desentranhada e devolvida à Ré.

Conferindo a actual lei adjectiva especial primazia à justiça material sobre o formalismo processual, seria altamente gravoso para uma das partes considerar inválido um acto processual praticado em tempo, como é o caso da presente contestação, mas que, por lapso evidente imputável à parte, não foi revelado atempadamente na acção respectiva. Impõe-se, pois, concluir que a Ré contestou tempestivamente, e, consequentemente, não pode subsistir a ulterior tramitação processual baseada na falta de contestação, incluindo a sentença final que conheceu do mérito e que foi impugnada.
E a anulação processual subsequente prejudica o conhecimento do recurso de apelação.

Em suma, é de acolher a argumentação da Ré/Agravante no sentido da apresentação da contestação dentro do prazo legal, não podendo, pois, subsistir o despacho recorrido que diversamente decidiu.

III)- DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
1-Conceder provimento ao Agravo e revogar o despacho impugnado.
2-Julgar tempestivamente apresentada a contestação, anulando-se toda a tramitação baseada na falta de contestação, devendo o processo seguir os normais termos posteriores à apresentação daquela peça processual, desde logo a sua notificação ao Autor.
3- Custas a cargo do Autor/Agravado.
COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Vítor)