Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1624/08.2TBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
SOCIEDADE COMERCIAL
RESPONSABILIDADE
REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Processo no Tribunal Recurso: VARAS MISTAS - COIMBRA- 2ª S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3º, Nº2 E 458º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. No caso de litigância de má fé de sociedade comercial, a responsabilidade por multa e indemnização a tal título recai sobre o representante que esteja de má fé na causa.

2. A responsabilização do representante de sociedade comercial por litigância de má fé tem que ser precedida da sua prévia audição nos termos previstos no artigo 3º, nº 2, do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, os juízes da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

         A... deduziu oposição à acção executiva sob forma comum, para pagamento de quantia certa que lhe foi movida por B... alegando, em síntese, que a cláusula quinta do título exequendo constitui um abuso da posição dominante da exequente, excedendo os limites impostos pela boa fé, integrando deste modo abuso de direito, tal como previsto no artigo 334º do Código Civil e enfermando tal cláusula, por essa razão, de nulidade, que a cláusula em causa se subsume à figura do negócio usurário, permitindo a cobrança de juros usurários, arguindo por isso a anulabilidade da mesma cláusula, desta feita com base no artigo 282º do Código Civil e alegando que a mesma cláusula permite a cobrança pela exequente de um montante de juros excessivo e desproporcionado quer à culpa da devedora, quer ao valor do prejuízo efectivamente sofrido pelo credor, pelo que a mesma deve ser reduzida por recurso a um juízo de equidade, adequando-se o seu montante ao real valor económico do dano sofrido.

            Admitida liminarmente a oposição, a exequente contestou, pugnando pela total improcedência da oposição e invocou litigância de má fé da opoente, requerendo por isso a condenação desta em multa e indemnização, esta a liquidar ulteriormente.

            Não se realizou audiência preliminar, proferindo-se despacho saneador tabelar e conhecendo-se de imediato do mérito da oposição, julgando-se esta improcedente e condenando-se A... em multa no montante de quatro unidades de conta e em indemnização a favor de B......, abrangendo honorários de advogado e despesas com a oposição, a liquidar, oportunamente, por iniciativa da exequente.

            Inconformada com a sua condenação como litigante de má fé, a opoente interpôs recurso de apelação contra o referido segmento do saneador sentença pedindo a sua revogação e formulando, a final, as seguintes conclusões:

            “A – Com o devido respeito pela interpretação do teor da cláusula aposta ao contrato que obrigava ao pagamento dos juros devidos desde a data de vencimento das respectivas facturas e do mútuo, a apelante acredita ter agido em todo o processo com integral respeito pelo princípio da boa fé e sempre dentro dos limites exigíveis ao regular exercício de um direito que lhe assiste.

            B – A apelante apenas pretendia que o valor dos juros a pagar correspondesse àquele calculado com base na parte do capital em dívida e no efectivo período em que se deu a mora.

            C – Por outro lado a interpretação feita pelo Meritíssimo Juiz a quo da cláusula em questão que tem como resultado o cálculo da mora sobre a totalidade do valor em dívida, apesar de boa parte se encontrar pago, e desde a data de vencimento das facturas e do mútuo, não corresponde, no modesta entendimento da apelante, ao seu real sentido, quer literal, quer teleológico.

            D- Conclusão com a qual, com o devido respeito, não concorda a apelante, pois seria na mesma linha de raciocínio mais curial concluir-se que aí se pretendeu obrigar a executada, no caso de incumprimento do acordo, ao pagamento do capital (efectivamente) em dívida, acrescido dos juros de mora (sobre o capital em dívida e não sobre a totalidade, calculados à taxa legal, desde a data de vencimento das facturas e do mútuo, até efectivo e integral pagamento…” cfr. Cláusula 5ª do acordo extra judicial.

            E – Ou seja, que o valor de referência para o cálculo dos juros seja o capital em dívida e não a sua totalidade.

            F – O que corresponde ao resultado pretendido com a apelante com a sua oposição.

            G – Com a oposição apresentada, através da qual pretendia exercer um direito que lhe assiste, não procurou a apelante causar qualquer prejuízo à apelada, ou através de manobras dilatórias impedir o prosseguimento da instância executiva, uma vez que este articulado não tem efeitos suspensivos da mesma.

            H – Conformando-se também, no caso de uma eventual improcedência, com a obrigação de pagamento integral das custas judiciais que recai sobre a parte vencida na qual se incluem os honorários da Ilustre Mandatária da apelada, acrescida dos por si suportados.

            I – Pelo que seria inútil e até contraproducente para a apelante vir aos autos somente para, de forma dolosa ou gravemente negligente, deduzir oposição que entendesse claramente infundada.

            J – Assim sendo é manifesto que a apelante não teve com a sua actuação “o propósito de fraude, uma actuação com conhecimento ou consciência do possível prejuízo do acto, ou tenha feito do processo uma utilização maliciosa e abusiva”.

            A exequente não apresentou contra-alegações ao recurso interposto pela opoente.

            Admitiu-se a apelação interposta pela opoente, a subir nos próprios autos e no efeito devolutivo, fixando-se o valor da causa em montante equivalente ao da acção executiva.

            Recebidos os autos neste tribunal, as partes foram convidadas a pronunciar-se, querendo, sobre o efeito do recurso, bem como sobre a eventual aplicabilidade ao caso dos autos da previsão do artigo 458º do Código de Processo Civil.

            Alterou-se o efeito do recurso para o efeito suspensivo.

            Inexistindo quaisquer circunstâncias que obstem ao conhecimento do presente recurso, cumpre agora decidir.

            2. Questões a decidir, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso deste tribunal

            2.1 Determinação da lei processual aplicável ao caso dos autos;

            2.2 Preenchimento do tipo da litigância de má fé;

            2.3 Caso se conclua pela verificação do tipo da litigância de má fé, determinação do seu sujeito passivo.

            3. Fundamentos de facto (os fundamentos de facto não foram discriminados na decisão sob censura, sendo por isso inaplicável o disposto no artigo 713º, nº 6 do Código de Processo Civil, sendo estes os factos que pela argumentação nela contida se conclui terem sido considerados assentes e que este tribunal como instância julga provados)


3.1

            Com data de 30 de Junho de 2006, C... e D... , na qualidade de sócios e gerentes de B......, primeira outorgante, e E..., na qualidade de administrador de A..., segunda outorgante, subscreveram escrito intitulado “Acordo Extrajudicial”, no qual A... se confessou devedora a B...... da quantia de cento e quarenta e quatro mil e duzentos e vinte e três euros e dezoito cents, titulada nas facturas nº 23009, de 14 de Fevereiro de 2003, no valor de € 1.852,13, vencida em 16 de Março de 2003, na factura nº 230256, de 08 de Julho de 2003, no valor de € 88.988,20, vencida em 07 de Agosto de 2003, na factura nº 240017, de 31 de Dezembro de 2004, no valor de € 29.982,05, vencida em 30 de Janeiro de 2005 e na declaração de mútuo, datada de 08 de Julho de 2004, no valor de € 23.400,00, vencida em 31 de Dezembro de 2004.

3.2

            No escrito mencionado em 3.1, as outorgantes do mesmo acordaram no pagamento da quantia que A... se confessou devedora em trinta e seis prestações, sendo a primeira, a vencer-se a 01 de Julho de 2006, no montante de € 2.000,00, a segunda, a vencer-se no dia 20 de Agosto de 2006, no montante de € 2.000,00, a terceira, a vencer-se no dia 20 de Setembro de 2006, no montante de € 3.623,18, a quarta, a vencer-se no dia 20 de Outubro de 2006, no montante de € 3.800,00 e as restantes, a vencer-se ao dia vinte de cada um dos meses seguintes e até 20 de Junho de 2009, cada uma delas no montante de € 4.150,00, clausulando-se que a falta de pagamento de uma das prestações importará o imediato vencimento das demais.

3.3

            No escrito mencionado em 3.1, as outorgantes do mesmo exararam a cláusula quinta com o seguinte teor:

            “No caso de incumprimento dos termos da presente transacção por parte da Segunda Outorgante, fica esta obrigada a pagar à Primeira Outorgante o capital em dívida acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data do vencimento das facturas e do mútuo, até efectivo e integral pagamento, constituindo o presente documento título executivo, nos termos do artº. 46º nº. 1 alínea c) do Código de Processo Civil.”


3.4

           A..... não pagou a prestação vencida a 20 de Março de 2008 nem as subsequentes.  

            4. Fundamentos de direito

            4.1 A presente oposição foi deduzida a 08 de Janeiro de 2009 e respeita a acção executiva comum para pagamento de quantia certa instaurada no decurso do ano de 2008.

            Deste modo, é aplicável ao caso dos autos o Código de Processo Civil na redacção emergente do decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aplicável às acções intentadas a partir de 01 de Janeiro de 2008 (veja-se o artigo 11º, nº 1, do citado decreto-lei), sendo-lhe ainda aplicável, apenas nesta instância, relativamente a factos ocorridos após 20 de Abril de 2009, o artigo 447º-B do Código de Processo Civil introduzido pelo decreto-lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro, normativo aplicável aos processos pendentes em 20 de Abril de 2009 (artigos 26º e 27º, nº 3, alínea a), ambos do decreto-lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro, na redacção do artigo 156º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro), já que a decisão sob censura foi proferida a 30 de Março de 2009.

4.2 “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

            a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

            b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

            c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

            d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” (artigo 456º, nº 2, do Código de Processo Civil).

            O instituto da litigância de má fé visa que a conduta dos litigantes se afira por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade.

A concretização das situações de litigância de má fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental.

Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida.

Na verdade, com o passar dos tempos, tem-se verificado, com alguma frequência, que teses jurídicas inicialmente peregrinas vieram a tornar-se teses dominantes.

Assim, à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça.

Por isso, o tipo subjectivo da litigância de má fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.

No caso dos autos, entendeu-se que a dedução da oposição à acção executiva no caso dos autos integrava litigância de má fé em virtude da opoente deduzir oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar, já que a exequente não pediu na acção executiva mais do que lhe era originariamente devido e que os termos do contrato exequendo não colocam dúvidas razoáveis.

A fim de aferir se efectivamente foi deduzida oposição cuja falta de fundamento se não podia ignorar e estando em causa a interpretação do alcance da cláusula quinta do contrato exequendo, importa recordar que a interpretação do contrato se efectua de acordo com a denominada teoria da impressão do destinatário (artigo 236º, nº 1, do Código Civil). Deste modo, a declaração negocial valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, puder deduzir do comportamento do declarante, salvo se não puder razoavelmente contar com ele. Além disso, “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (artigo 236º, nº 2, do Código Civil). “Nos negócios formais [como é o caso dos autos] não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” (artigo 238º, nº 1, do Código Civil). “Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (artigo 238º, nº 1, do Código Civil).

Uma vez que a recorrente restringiu o recurso à questão da condenação da litigância de má fé, conformando-se com a interpretação do contrato exequendo efectuada pelo tribunal recorrido, não pondo deste modo em causa o montante da pretensão exequenda, não há que efectuar o cômputo exacto do que é devido à exequente, mediante a imputação das prestações efectuadas, em conformidade com as regras legais aplicáveis (artigo 785º, do Código Civil).

A cláusula interpretanda dispõe que “No caso de incumprimento dos termos da presente transacção por parte da Segunda Outorgante, fica esta obrigada a pagar à Primeira Outorgante o capital em dívida acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data do vencimento das facturas e do mútuo, até efectivo e integral pagamento, constituindo o presente documento título executivo, nos termos do artº. 46º nº. 1 alínea c) do Código de Processo Civil.”

A cláusula interpretanda foi outorgada numa altura em que a opoente se encontrava em mora no pagamento do capital de € 144.223,18. No contrato em que a mencionada cláusula se insere, as partes acordaram no pagamento daquele capital, em singelo, em trinta e seis prestações mensais e sucessivas.

A exequente, credora do capital e juros então em dívida, prescindiu dos juros de mora, obrigando-se a executada e opoente nestes autos ao pagamento do capital, em singelo, em trinta e seis prestações mensais e sucessivas.

No contrato exequendo, prevenindo-se a hipótese de incumprimento por parte da devedora, opoente nestes autos, consignou-se, além do vencimento imediato e antecipado de todo o montante em dívida no caso de falta de pagamento de uma das prestações, que esta mesma circunstância constituía a devedora na obrigação do pagamento do capital em dívida acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data do vencimento das facturas e do mútuo.

Pretende a opoente, se bem entendemos a sua argumentação, que o alcance desta cláusula é o de afastar o critério supletivo de imputação no cumprimento previsto no artigo 785º, nº 1, do Código Civil, devendo imputar-se as vinte prestações já pagas no capital confessadamente em dívida e considerar-se a sua constituição em mora apenas a partir de 20 de Março de 2008.

Repare-se que no presente recurso a opoente deixou “cair” a sua oposição fundada em abuso de direito e em contrato usurário, fundamentos que foram incisivamente “desmontados” na decisão sob censura e em termos que sufragamos integralmente.

A restrição dos fundamentos da oposição operada nesta sede contém já um certo reconhecimento pela opoente de que a sua oposição, naqueles segmentos, não tinha qualquer fundamento plausível.

Na verdade, com que base fáctica é lícito apelar aos institutos do abuso de direito e do negócio usurário se no contrato exequendo a única entidade que cedeu na sua posição jurídica foi a exequente, permitindo à opoente a liquidação, em singelo, do capital em dívida, de modo fraccionado e em trinta e seis prestações mensais e sucessivas, prescindindo dos juros já vencidos?

Além disso, salvo o devido respeito, a interpretação da opoente de que as prestações pagas são imputadas em primeiro lugar no capital em dívida, não tem o mínimo apoio na letra da cláusula contratual interpretanda, nem se conforma com aquilo que um contraente normal entenderia, nas circunstâncias em que o contrato exequendo foi outorgado.

De facto, a letra da cláusula interpretanda é clara na identificação dos diversos termos iniciais da mora da opoente em caso de incumprimento do plano de pagamento (vencimento das facturas e vencimento do mútuo), não consentindo leitura diversa da efectuada pela exequente e na decisão sob censura.

Por outro lado, se bem se percebe que a credora abdique dos juros vencidos na mira de que a devedora cumpra o plano de pagamento acordado, não se compreende que verificando-se o incumprimento do plano de pagamentos acordado, a credora ainda se mostre disponível para a concessão de mais uma benesse à contraente inadimplente, imputando as prestações entretanto cumpridas no capital em dívida.

Assim, atentas as concretas circunstâncias em que os outorgantes do contrato exequendo se encontravam aquando da sua outorga e o texto da cláusula interpretanda, não se pode concluir que a mesma afaste as regras supletivas de imputação no cumprimento decorrentes do artigo 785º, nº 1, do Código Civil e que deva entender-se no sentido das prestações já pagas serem imputadas, à cabeça, no capital em dívida.

Ao invés, o que resulta das aludidas circunstâncias e texto é o não afastamento das regras supletivas de imputação no cumprimento. Atente-se que a cláusula interpretanda tem um claro alcance económico, sendo o seu conteúdo facilmente perceptível pelos subscritores do contrato, sendo lícito presumir, por força das suas qualidades de representantes das sociedades comerciais outorgantes, que estarão bem cientes do objectivo visado com a referida cláusula. Vale por dizer que no caso em apreço, a opoente, por intermédio dos seus representantes e sem o recurso a qualquer técnico de direito, tinha condições para compreender perfeitamente a cláusula cujo sentido pretendeu discutir na oposição.

Neste contexto, afigura-se-nos inequívoco, como se concluiu na decisão sob censura, que a recorrente deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar, preenchendo-se o tipo objectivo da litigância de má fé previsto no artigo 456º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil.

Por outro lado, dados os factos objectivos conhecidos (circunstâncias em que o contrato exequendo foi celebrado e teor da cláusula contratual interpretanda), pode concluir-se, pelo menos, que só alguém que não tenha o mínimo cuidado exigível que todo o cidadão comum tem e deve ter no tráfico negocial, poderia sustentar a interpretação que a recorrente veiculou na sua oposição e em parte manteve nas suas alegações de recurso. Neste contexto, é segura a existência, pelo menos, de negligência grave, preenchendo-se por isso o tipo subjectivo da negligência grave.

O que precede permite-nos concluir que é infundada a pretensão da recorrente de que os factos apurados não integram litigância de má fé.

4.3 Nos termos do disposto no artigo 458º do Código de Processo Civil “quando a parte for um incapaz, um pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.”

A previsão legal que se acaba de reproduzir determina que sempre que nos casos de litigância de má fé a parte seja um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade pelas custas, multa e indemnização recai sobre o representante que esteja de má fé na causa[1].

No normativo em análise, não se prevê um mero direito de regresso do incapaz, da pessoa colectiva ou da sociedade relativamente ao seu representante que esteja de má fé na causa, por forma a fazer repercutir na esfera jurídica deste os montantes que tenham sido impostos àquelas entidades a título de multa e indemnização por litigância de má fé, como sucede, por exemplo, no artigo 500º, nº 3, do Código Civil. Também não se prevê uma responsabilidade alternativa, no sentido de responder o representante de qualquer destas entidades que esteja de má fé na causa ou, quando se não apure a existência de representante de má fé na causa, a responsabilidade do incapaz, da pessoa colectiva ou da sociedade. Antes se determina, salvo melhor opinião, que nestes casos o sujeito passivo da responsabilidade por litigância de má fé nunca é a parte que seja incapaz, pessoa colectiva ou sociedade, mas o seu representante que esteja de má fé na causa[2].

Assim, afigura-se-nos que mesmo nos casos em que se não logre a identificação do representante responsável pela litigância de má fé, nunca a sociedade poderá ser responsabilizada pela litigância de má fé eventualmente comprovada.

Ainda que a previsão legal em apreço possa ser criticável face a uma recente expansão da possibilidade de responsabilização criminal das pessoas colectivas (aludimos à revisão do Código Penal operada em 2007) e ao facto das eventuais vantagens da litigância de má fé se projectarem directamente na esfera jurídica da sociedade e apenas mediatamente na esfera jurídica dos sócios e accionistas, afigura-se-nos que apenas com uma derrogação ou integração da mesma metodologicamente infundada, se poderá sustentar a responsabilidade subsidiária da sociedade.

No caso dos autos, a opoente é uma sociedade comercial e a procuração forense junta aos autos foi outorgada por F..., na qualidade de administradora da opoente (veja-se folhas 22).

Assim, face ao normativo que se reproduziu, é manifesto que a sociedade recorrente não é sujeito passivo da responsabilidade emergente da litigância de má fé. Essa responsabilidade recai sobre a representante da recorrente que esteja de má fé na causa.

Porém, tal responsabilidade só poderá ser efectivada após ser facultado o exercício do contraditório à administradora da recorrente (artigo 3º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Pelo que antecede, conclui-se que o recurso procede, embora com fundamento jurídico diverso do invocado pela recorrente.

A questão que ora se coloca é a de saber se deve verificar-se nesta sede a mera procedência do recurso de apelação, pelos fundamentos que precedem, deixando-se impune uma situação de litigância de má fé ou se, ao invés, devem os autos baixar à 1ª instância a fim de se facultar o exercício do contraditório à representante da recorrente, ao que tudo indica responsável pelas instruções transmitidas ao seu mandatário judicial para adoptar a posição seguida nestes autos.

Na nossa perspectiva, o segundo procedimento enunciado é o correcto, devendo na primeira instância notificar-se a administradora da recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a existência de litigância de má fé, após o que se conhecerá, na primeira instância, de novo, da existência de litigância de má fé e consequências respectivas, caso se verifique na pessoa da aludida administradora. De facto, só com este procedimento se poderá tentar efectivar a responsabilidade pela litigância de má fé comprovada nos autos, não se compreendendo que verificada tal actuação, o tribunal se desinteresse pela efectivação da responsabilidade em causa, de acordo com as regras legais aplicáveis.

As custas do presente recurso, não obstante a não apresentação de contra-alegações pela exequente, são a cargo desta, por ter dado causa à decisão recorrida, ao menos no segmento referente à indemnização por litigância de má fé (veja-se o artigo 2º, nº 1, alínea g), do Código das Custas Judiciais).

5. Dispositivo   

Face ao exposto, acordam os juízes da segunda secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso de apelação interposto por A... e, em consequência, em revogar a condenação da recorrente na multa de quatro unidades de conta e em indemnização a favor de B......, abrangendo honorários de advogado e despesas com a oposição, a liquidar oportunamente por iniciativa da exequente, ordenando-se que em primeira instância se proceda à notificação da administradora da recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a existência de litigância de má fé, após o que aí se conhecerá, de novo, da existência de litigância de má fé e consequências respectivas, caso se verifique na pessoa da aludida administradora ou de outro a quem seja facultado o prévio exercício do contraditório. Custas do presente recurso a cargo da recorrida B...... Notifique.


***

            O presente acórdão compõe-se de doze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, o primeiro signatário.

Coimbra, 10 de Novembro de 2009


[1] Veja-se a análise crítica desta previsão legal em A Litigância de Má fé, Paula Costa e Silva, Coimbra Editora 2008, páginas 593 a 596, números 569 a 571; na jurisprudência, em termos não totalmente coincidentes vejam-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de Janeiro de 2006, relatado pelo Sr. Desembargador Cândido Lemos, que ainda admite a condenação da sociedade, depois de verificada a conduta censurável pelo seu representante e de facultado ao mesmo o exercício do contraditório e os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Março de 2009 e de 17 de Março de 2009, o primeiro relatado pela Sra. Desembargadora Maria João Romba e o segundo relatado pela Sra. Desembargadora Maria Rosário Barbosa, estes a decidirem no sentido propugnado nesta decisão, acórdãos todos acessíveis no site do ITIJ.
[2] Veja-se de modo incisivo neste sentido, com plena actualidade, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora 1981, reimpressão da 3ª edição, José Alberto dos Reis, página 271; no mesmo sentido, A Responsabilidade Processual Civil, Almedina 1987, Fernando Luso Soares, página 288; em sentido diverso, quando não se logre a identificação do representante responsável pela litigância de má fé, sem indicar os fundamentos para tal solução, limitando-se a remeter para um acórdão do Tribunal da Relação do Porto que por lapso vem indicado como publicado no tomo II da Colectânea de Jurisprudência de 1995, quando foi efectivamente publicado no tomo I dessa publicação desse ano, veja-se Temas Judiciários, I Volume, Almedina 1998, António Santos Abrantes Geraldes, página 338.