Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1135/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 04/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTIGOS 32°, N.º 1 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E 204° E 213°, DO CÓDI-GO DE PROCESSO PENAL
Sumário:

I - O nº 2 do art.213° do CPP ao estatuir que o juiz no reexame dos pressupostos da prisão preventiva ouve o Ministério Público e o arguido sempre que necessário, deixa claro que a audição destes não é obrigatória em todos os casos.
II- Só caso a caso se poderá concluir dessa necessidade, sendo que de um modo geral pode dizer-se que haverá necessidade quando ocorrer uma alteração dos factos ou das circunstâncias que determinaram a aplicação daquela medida de coacção.
III - Sendo os factos e as circunstâncias os mesmos que existiam aquando da aplicação da prisão preventiva, ahura em que o arguido teve oportunidade de expor as razões pelas quais não se justificaria, na sua óptica, a aplicação daquela medida de coacção - não é violado o princípio do contraditório quando o juiz, em des-pacho de reexame da prisão preventiva, decide manter a mesma sem ouvir o arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam , em conferência , na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra .

Nos autos de processo comum colectivo n.º 533/02.4JACBR-B , que correm na 1ª Secção da Vara Mista do Tribunal Judicial de Coimbra , o Ex.mo Juiz , por despacho de 23 de Dezembro de 2003 , decidiu que o arguido AA , divorciado , comerciante , nascido a 27-6-44 , filho de BB e de CC , natural de Arrifana , Vila Nova de Poiares , residente na Rua DD, Coimbra , continuaria a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva .

Não se conformando com este despacho de 23 de Dezembro de 2003 dele interpôs recurso o arguido AA , concluindo na sua motivação :
- O art. 213.º n.º 1 do CPP, ao referir, como sua finalidade, o reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, a fim de que o Juiz decida, i.a. , se a mesma é de manter, constitui a densificação, ao nível do direito legislado, do disposto no n.º 2 do art. 28.º da CRP
- norma esta directa e irrestritamente aplicável, como resulta das disposições conjugadas dos n.º 1 e 2 do art.18 da Constituição da República. Por isso,
- antes de proferir decisão, o Juiz deve ouvir o arguido através do respectivo defensor, nos restritos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 61.º do CPP
- uma vez que o referido direito de audição constitui elemento imprescindível da aparelhagem garantística de um processo penal democrático ( de estrutura acusatória), nos termos do n.º 1 do art. 32.º do Constituição da República. Com efeito,
- ao não ter procedido assim a Mma Juiz, fez com que quer a regra directamente aplicável do art. 28 n.º 2 do diploma fundamental redundasse violada, quer a aplicação e interpretação feita no n.º 1 do art. 213.º tornasse este normativo materialmente inconstitucional. Ora.
- sabido como é que nos feitos submetidos a julgamento está vedado aos Tribunais aplicar normas inconstitucionais, então cabe a Va.s Exa.s, Senhores Juizes Desembargadores, retirar da omissão a devida ilação a qual só pode ser, face ao cariz jurídico-constitucional do falado preceito do direito legislado e ao disposto no art. 28.º n.º 2 da Constituição, a de que a prisão preventiva a que está sujeito o recorrente é ilegal. Finalmente,
- ainda que Vas. Exas. não concordassem com o que vem de expor-se o despacho recorrido deveria ser revogado pois do mesmo não se desprende a existência, em concreto - isto é de modo objectivamente comprovável, face aos dados intra processualmente adquiridos - de qualquer um dos perigos a que alude o art. 204.º.
- Pelo que, em concreto, o despacho recorrido violou as normas do art. 204.º e 193.º n.º 1 do CPP, também por este motivo devendo ser revogado, com imediata restituição do arguido à liberdade.

Respondeu o Ministério Público na Vara Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção do arguido em prisão preventiva .

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no art.417.º , n.º 2 do Código de Processo .

Colhidos os vistos cumpre decidir .

*

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
Face às conclusões da motivação do recurso do arguido as questões a decidir são as seguintes :
- se antes do proferir despacho de reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva o Juiz deve ouvir o arguido , sob pena de violação do disposto nos art.s 213.º , n.º1 e 61.º , n.º1, al. b) do Código de Processo Penal e 28.º , n.º 2 e 32.º , n.º1 da Constituição da República Portuguesa ; e
- se , não se depreendendo do despacho recorrido a existência , em concreto , de qualquer dos perigos a que alude o art.204.º do Código de Processo Penal , violou o mesmo despacho o disposto neste preceito legal e no art.193.º , n.º 1 do Código de Processo Penal .
Comecemos por apreciar e decidir a primeira questão enunciada .
O art.27.º , n.ºs 1 e 2 , da Constituição da Republica Portuguesa consagra o direito à liberdade física das pessoas , formulando o principio de que « ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade , a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.».
Exceptua-se deste princípio , a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar , nomeadamente , no caso de « prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos. » ( art.27.º, n.º 3 , al. b) da C.R.P.
Em reforço do mesmo princípio , o n.º2 do art. 28.º da C.R.P. estatui que « A prisão preventiva tem natureza excepcional , não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.».
O Código de Processo Penal , no seu Livro IV , dá tradução àqueles ditames constitucionais , estabelecendo , no seu Titulo I , as disposições gerais relativas à aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial e , no seu Titulo II , nomeadamente , as concretas medidas de coacção admissíveis , as condições da sua aplicação , de revogação , alteração e extinção .
Na parte relativa à revogação , alteração e extinção das medidas de coacção , estatui o art.213.º do Código de Processo Penal a obrigatoriedade do reexame dos pressupostos da prisão preventiva nos seguintes termos :
« 1. Durante a execução da prisão preventiva o juiz procede oficiosamente , de três em três meses , ao reexame da subsistência dos pressupostos daquela , decidindo se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada .
2. Sempre que necessário , o juiz ouve o Ministério Público e o arguido. ».
Resulta do exposto que , dada a natureza excepcional da prisão preventiva , o juiz deve oficiosa e obrigatoriamente proceder ao reexame dos seus pressupostos , de modo a que entre cada apreciação não mediem mais de 3 meses , só devendo manter-se essa medida de coacção enquanto se verificarem as circunstâncias que justificaram a sua aplicação .
Ao dizer o n.º 2 do art.213.º do C.P.P. que no reexame dos pressupostos da prisão preventiva o juiz ouve o Ministério Público e o arguido , sempre que necessário , deixa claro que a audição do arguido não tem sempre lugar , não é obrigatória , como em princípio poderia resultar do disposto no art.61.º , n.º1 , al. b) do Código de Processo Penal .
No sentido de que a expressão “sempre que necessário” sugere uma possibilidade e não a obrigatoriedade de ouvir o arguido antes do reexame dos pressupostos da prisão preventiva decidiram , entre outros , os acórdãos da Relação de Coimbra , de 24-9-2003 ( CJ , n.º 169 , pág.42) e da Relação do Porto de 30-6-2001 ( www.dgsi.pt./jtrp ) .
Quando é que é o juiz deve considerar como necessário ouvir o arguido , e deve ouvi-lo , não o diz a lei.
Só caso a caso se poderá concluir dessa necessidade . De um modo geral , pode dizer-se que essa necessidade existe quando houver uma alteração dos factos ou circunstâncias que determinaram a aplicação ao arguido da prisão preventiva.
Se os factos ou circunstâncias são os que já ocorriam quando teve lugar a aplicação ao arguido da prisão preventiva , não vemos qualquer motivo para ouvir o arguido antes do reexame obrigatório dos pressupostos da prisão preventiva.
Sendo os factos e as circunstâncias os mesmos que existiam aquando da aplicação da medida de prisão preventiva , altura em que o arguido teve oportunidade de dizer ao juiz as razões pelas quais não se justificaria , na sua óptica , a aplicação da prisão preventiva , não se entende em que termos o princípio do contraditório é violado pela sua não audição antes do reexame oficioso e obrigatório a que alude o art.213.º do Código de Processo Penal .
As garantias de defesa a que alude o art.32.º , n.º1 da Constituição da República Portuguesa não são afectadas numa situação como a acabada de expor .
No presente caso , consta do despacho recorrido de 23 de Dezembro de 2003 que « Por se manterem inalterados os pressupostos em que se fundou a aplicação da medida de prisão preventiva , os arguidos continuarão a aguardar os ulteriores termos do processo nessa medida coactiva.» .
Assim , não tendo havido uma alteração do circunstancionalismo anterior à aplicação da prisão preventiva , momento em que foi facultado ao recorrente o contraditório , não se descortina qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade na não audição deste antes do reexame dos pressupostos da prisão preventiva ao abrigo do disposto no art.213.º do Código de Processo Penal .
Note-se que o arguido , em qualquer altura do processo , face a novos factos ou circunstâncias , pode fazer-se ouvir pelo Tribunal .
Passemos agora a conhecer da segunda questão .
O recorrente defende que o despacho recorrido violou o disposto nos art.s 193.º , n.º 1 e 204.º do Código de Processo Penal ao não se depreender deste despacho a existência , em concreto , de qualquer dos perigos a que alude o último destes preceitos legais .
Vejamos .
O reexame dos pressupostos processuais tem por fim verificar se se mantêm os mesmos factos ou circunstâncias que levaram à aplicação da medida de prisão preventiva ou se face a novos elementos deve ela ser substituída ou revogada .
Mantendo-se inalterados os pressupostos legais da medida coactiva aplicada anteriormente , deve essa medida manter-se .
No presente caso , as razões que determinaram a aplicação da medida de prisão preventiva foram ponderadas no despacho de 20-3-2003 – Cfr. folhas 19- , e já este as conhece , tendo tido possibilidade de as impugnar , nomeadamente através de recurso .
Referindo o despacho recorrido que se mantém inalterada a situação que determinou a aplicação da medida de prisão preventiva , não tinha o juiz que indicar , em concreto , no despacho recorrido , os concretos pressupostos a que alude o art.204.º do C.P.P. , tidos por verificados no despacho que determinou a prisão preventiva .
O despacho recorrido de reexame dos pressupostos da prisão preventiva , nos termos em que foi elaborado , não constitui qualquer agravamento da posição processual do arguido , que se mantém tal como foi definida no despacho que decretou a sua prisão preventiva .
Pelo exposto , considera este Tribunal da Relação que o despacho recorrido não padece de qualquer vício .

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso , mantendo-se a douta decisão recorrida .
Custas pelo recorrente , fixando em 5 Uc.s a taxa de justiça .

Coimbra ,