Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4246/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: DATA
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
RECURSO
RECURSO RETIDO
Data do Acordão: 03/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEITADO
Legislação Nacional: ART.ºS 312º, N.º 4, E 412º, N.º 5, DO C. P. PENAL
Sumário: 1.- O artº. 312, nº. 4, do Código de Processo Penal, tal como se encontra redigido, é inconstitucional, quando interpretado no sentido de que só o advogado constituído, e não já o defensor oficioso nomeado, goza da prerrogativa da concertação do prévio agendamento da data para efectivação da audiência de julgamento.
2.- A falta ou omissão de manifestação de vontade na motivação do recurso da decisão final, por parte do interessado, de que o tribunal de recurso tome conhecimento da impugnação interposta de uma decisão interlocutória, tem como consequência a rejeição dessa impugnação no tribunal superior.
Decisão Texto Integral:
Recorrente: A...
Recorridos: Ministério Público; e Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

Acordam os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. – Relatório.
Desavinda com a decisão que, no julgamento da procedência da acusação (pronunciada) do Ministério Público e do pedido cível que o Instituto de Gestão da Segurança Social, Delegação de Aveiro, movimentou contra a arguida e a firma “B...”, a condenou como autora material de um crime de abuso de confiança relativamente a bens da segurança social, p. e p. pelo art. 107º, nº1, com remissão para o art. 105º, nº1, com referência ao art. 6º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de cem (100) dias de multa, à taxa diária de três (3) euros, o que perfaz o montante global de trezentos (300) euros e no pagamento da quantia de catorze mil quinhentos e onze Euros e doze cêntimos (14.511,12), esta acrescida dos juros legais desde Maio de 2003, recorre a arguida A..., com os sinais constantes de fls. 153, pedindo que, por os factos provados na sentença condenatória “não integram em si, quer em termos documentais, quer em sede das declarações prestadas sede de audiência de julgamento, a prova suficiente e necessária para condenação da arguida, manifestando-se, então, um erro notório na apreciação da prova tal como o define o art. 410º do CP Penal, seja absolvida do crime em que vem condenada, com as legais consequências, designadamente, ao nível da condenação no correspectivo pedido de indemnização cível”.
Para o pedido que exora, alinha a recorrente as sequentes conclusões:
(…)
Nesta instância, o distinto Procurador-Geral Adjunto, depois de defender que o recurso interlocutório interposto pela recorrente do douto despacho, proferido na audiência de discussão e julgamento que se realizou no dia 14 de Outubro de 2004, que mandou prosseguir a audiência sem a presença da defensora oficiosa, e quando havia sido transferida da hora matinal (11h.) para hora vespertina (14 horas), sem que se tivesse atendido à imprescindibilidade desta numa outra diligência que lhe havia sido marcada no tribunal de Barcelos, não deve ser conhecido, por a recorrente não ter dado cumprimento ao art.412º,nº5 do CPP, acompanha as doutas contra-alegações produzidas pelo distinto Procurador-Adjunto na primeira instância.
Enunciado no precedente parágrafo, o recurso interposto pela arguida do despacho prolatado pelo M.mo Juiz, na audiência de discussão e julgamento, realizada no dia 14 de Outubro de 2004, pelas 14 horas, contesta a decisão assumida de mandar prosseguir a audiência sem a presença da ilustre defensora oficiosa, depois desta ter pedido para que fosse dada sem efeito a diligência marcada “tanto mais que não foi realizada à hora previamente designada (11.00 h.), ou caso assim não fosse entendido, fosse alterada a data, nos termos do art. 155º do CP Civil, “nomeadamente porque a arguida não prescinde do direito de ser representada pela defensora oficiosa nomeada, e não aceitará qualquer outro defensor oficioso” – cfr. requerimento de fls. 191.
No douto despacho impugnado, o M.mo Juiz, depois de referir que a data em que o julgamento se estava a realizar era a segunda das datas indicadas no despacho a que aludem os art.s 311º e 312º do CPP (14 de Outubro de 2004, 11 horas), que o julgamento só não se iniciara às 11 horas porque tinha estado impedido em reuniões com o Director Distrital de Coimbra dos Centro de Estudos Judiciários e com a Directora Adjunta do Centro de Estudos Judiciários e que o julgamento sempre poderia ter que se prolongar para a hora vespertina, pondera que a obrigação de concertação de agendamento da audiência só é imposta “se no processo existir advogado constituído”, nos termos do art.312ºnº 4 do CPP. Razoou, em consequência, que compreendendo, embora, as razões adiantadas pela ilustre defensora oficiosa, não existiam razões que atapetassem o pedido da arguida (de que fosse dado sem efeito a audiência de julgamento).
Vestibularmente à decisão que esta questão nos venha a merecer – conhecimento ou não do recurso (rejeição do recurso) – não deixaremos passar em claro o estatuído no nº4 do art. 312º do CPP, por nos parecer infractor do preceito constitucional contido no nº3 do art. 32 da Constituição da República Portuguesa.
Preceitua este artigo que “o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo …”. Da exegese interna deste normativo e da sua conjugação com os demais preceitos que regem para esta matéria não é possível, em nosso juízo, retirar a ideia, como o faz o preceito do ordenamento adjectivo, que os direitos de defesa só devem exercitados em pleno, maxime o do privilégio ínsito no art. 155º do CP Civil, quando o arguido haja constituído mandatário judicial, restringindo, limitando ou minimizando a defesa quando ela é exercida por advogado nomeado no âmbito do instituto da defesa oficiosa, que o tribunal está obrigado a vincular á defesa de qualquer suspeito da prática de um ilícito que seja sujeito a interrogatório judicial ou a acto judicial relevante. A norma constitucional não faz, e em nosso juízo não poderia fazer, privilegiando um tipo de defesa detrimento de outra, isto é não podia conferir mais direitos a uma defesa se assumida por mandatário constituído por arguido do que a uma outra em que o tribunal nomeia um defensor para exercer os mesmos direitos que aqueles estão consignados na lei para quem tem o dever e a função judicial de defender o arguido perante um órgão jurisdicional de uma acusação que lhe é conotada.
A decisão que iremos proferir não comporta maiores desenvolvimentos doutrinários, ou de outra índole, mas sempre deixaremos expresso, hic et nunc, que o preceito contido no art. 312º, nº 4 do CPP, tal como se encontra redigido é inconstitucional, quando interpretado no sentido de que só o advogado constituído, e não já o defensor oficioso nomeado, goza da prerrogativa da concertação do prévio agendamento da data para efectivação da audiência de julgamento.
De passagem, e porque a decisão que se irá proferir relativamente a este recurso, não deve comportar apreciações de fundo, dir-se-á que não é curial que um órgão jurisdicional ou uma entidade que com ele está intimamente conectada, programem uma reunião de trabalho para um período de funcionamento do tribunal, sem a devida antelação. A formação é axial para um bom desempenho, mas a entidade que a programa não pode dar o péssimo exemplo de interferir com o normal desempenho do órgão que tem o múnus de ministrar a formação e perturbar o funcionamento desse órgão dando um mau exemplo aos utentes. A reunião a que o senhor juiz esteve presente, certamente necessária e profícua, deveria ter sido programada com antelação, de modo a que o serviço normal do tribunal não tivesse sido perturbado, com óbvio prejuízo para a sua imagem e desconforto para as pessoas que não tem culpa da deficiente e destrambelhada programação que os organismos do Estado (todo poderoso) efectuam. Uma reunião com quem quer que seja não sobreleva perante os compromissos de um órgão de soberania que tem o dever de se resguardar perante aqueles que o demandam para a solução dos seus problemas. A ser conhecido o recurso que a arguida interpôs dos despachos de fls. 193-194, seria provido, por se reputar manifesto que o interesse atendido pelo senhor Juiz é incomensuravelmente inferior aquele que deixou de atender, qual fosse o de ter realizado o julgamento e satisfeito o seu dever de servir os utentes que tinha convocado para a hora prefixa. A ida á reunião seria legítima e justificada. No entanto, ela deveria ter sido convocada coma devida antelação de modo a que o tribunal tivesse podido desconvocar as pessoas, evitando, deste modo causar os incómodos que acabou por causar, com os custos para a vida profissional de todos e cada um. A economia contabiliza milhares de horas perdidas em actos não devidamente aproveitados e tão só porque uns se arrogam o direito de dispor do tempo de todos e cada um.
Para este recurso entendeu a arguida estender as seguintes conclusões:
- O M.mo Juiz entendeu preferível a postergação de uma audiência de julgamento aprazada com antecedência com que o despacho proferido ás 14.00 horas discrimina, em privilégio de uma reunião de foro corporativo, dando primazia a tal foro em detrimento das convocadas partes, testemunhas e mandatários das partes;
- Tal constitui uma derrogação dos princípios da lealdade e colaboração entre as partes previstos, por integração lacunar determinada no art. 4º do CPP, nos art.s 266º e 266º-A do CPC;
- Atento o facto da mandatária da arguida apenas ter sido notificada do despacho de 14.10.2004, cerca das 12 h.15 minutos, a manutenção do acto de julgamento para a hora alterada viola o disposto no art. 266º-A,nº 3 e 4 do CPC, aplicável por força do citado art. 4º do CPP, e institui enquanto privilégio das partes, se o supra citado não for cumprido, “4 – (…) a dispensa automática dos intervenientes processuais comprovadamente presentes, constando obrigatoriamente da acta tal ocorrência”;
- Não constitui fundamento de indeferimento do requerimento de adiamento por parte da mandatária da recorrente esta deveria ter previsto a continuação do acto da parte da tarde, já que o acto em causa, para além dos paramentos iniciais da audiência apenas previa a audição de três testemunhas de forma comprovadamente sumária, o que se atesta pelo facto de as respectivas e integrais declarações terem sido audiomagneticamente dispostas numa única cassete com a utilização única e incompleta do lado A do suporte áudio;
- Declarações de testemunhas que põe serem, em termos de número, alcance e de conhecimentos presumíveis dos factos da cognição da mandatária da arguida/recorrente – assim como do tribunal – apenas poderiam conduzir à lógica conclusão de que a audiência não sobreviveria ao período matinal, possibilitando à mandatária da recorrente deslocar-se para o acto judicial inadiável que se encontrava aprazado para tribunal distante, conforme admite e reconhece o despacho recorrido de 14.10.2004, ditado às 14 h.;
- A suficiência do processo penal em sede de marcação de audiências de julgamento, em 1ª e 2ª datas, não derroga, contrariamente ao expendido no despacho de 14.10.2004/14 h.,o disposto no art. 155º, nº 5 do CPC, aplicável aos actos processuais penais;
- O adiamento/marcação da audiência para as 14 h. do dia 14.10.2004, quando a mesma se encontrava aprazada para as 11h., constitui-se como uma verdadeira marcação de uma nova data, o que faz actuar, por sobreposição de datas, com as diligências da mandatária, o dispositivo contido no art. 155º, nº5 do CPC;
-O despacho impugnado constitui “pela relevância da garantia de defesa da recorrente, da confiança que detém na causídica que pretende ver adquirir integralmente a sua defesa, e ainda o facto de a sua defesa ser melhor assegurada pelo conhecimento técnico e factual que a mandatária detém dos autos, constitui uma evidente violação dos direitos da arguida/recorrente;
- E colocada em causa a substância e primordialidade de tal critério de garantia integral dos direitos de defesa da recorrente, o mesmo em si, é censurável, porquanto admite a maior importância da defesa da integridade da estrutura da indicação das datas de audiência em desfavor da defesa da óbvia incapacidade de a arguida nutrir pela defensora nomeada a confiança suficiente para que lhe seja permitida uma boa representação jurídica, através da sua presença em audiência de julgamento;
Ao decidir pela forma como o fez, o M.mo Juiz a quo violou o disposto nos art.s 155º, nº5, 266º, 266º-A e 266º-B, nº3 e 4 do CPC, aplicáveis por força do art. 4º do CPP, e ainda o disposto nos art.s 66º, nº3 do CPP e 13º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Ainda respondeu o Distinto Magistrado do MºPº junto do tribunal a quo para dizer, em síntese apertada, que o Senhor juiz teve uma reunião inadiável, no âmbito da formação, promovida pelo CEJ, o que é atendível, tendo o agendamento sido efectuado para o mesmo dia ás 14h., o que pode ser tido como uma mera interrupção. Discute a justeza legislativa que prescreve a consulta ao advogado constituído em detrimento do defensor oficioso e do próprio Ministério Público, (o que demonstra sentido de equidade, no mínimo), ainda que pondere que o julgamento deveria continuar para a parte da tarde, o que conduziria á solução adoptada pelo tribunal no despacho sob impugnação. A defesa foi assegurada por causídico experiente e arguida não podia deixar de ser condenada, pela falta á audiência, razoando ser ajustada a quantia de 2 UCs e não 3 (três), que lhe foram impostas.
Nesta instância é parecer do distinto Procurador-Geral Adjunto que o recurso deve ser rejeitado por a recorrente não ter dado cumprimento ao preceituado no art. 412º, nº5 do CPP, para o que convoca a jurisprudência do nosso mais alto tribunal (Ac. do STJ, de 10.1.2001, processo nº 3580/00) e acórdãos das relações do Porto e de Lisboa de 14.4.2004 e 6.2.202, proferidos, respectivamente, nos processos nº 11151/04 e 115603/00.
Para a economia dos recursos interpostos, é possível descortinar as seguintes questões:

- Rejeição do recurso interlocutório;
- Rejeição parcial do recurso principal, por incumprimento do preceituado no nº3 e 4 do art. 412º do CPP – não ter a recorrente especificado a matéria de facto que impugna e que pretende ver modificada por deficiente julgamento do tribunal a quo;
-Capacidade da arguida para a prática dos factos integradores do ilícito pelo qual veio a ser condenada;
- Vício da decisão por erro notório na apreciação e da prova;
- Aplicação do princípio in dubio pro reo;
II. – Fundamentação.
II. – A. Rejeição do recurso interlocutório – Fls. 249.
Preceitua o art. 412º, nº5 do CPP que “havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantém interesse”.
Diversamente do que acontece em processo civil em que, no caso de haver agravos retidos e que devessem subir com o recurso que pusesse fim á causa, se o interessado nada disser, a lei impõe uma concreta e determinada consequência jurídica, qual seja a de o recurso ficar sem efeito, no preceito acabado de citar a lei não extrai consequências jurídico-processuais para o caso de o recorrente não se pronunciar quanto aos recursos que hajam de subir com aquele que for interposto da decisão final, fixando apenas a obrigatoriedade de manifestar o interesse que neles mantém. Vale por dizer, que a lei apenas comina uma manifestação de vontade positiva direccionada à cognoscibilidade activa por parte do tribunal de recurso, não sancionando, i. é, não conformando negativamente, a falta manifestação de vontade do interessado com a contrapartida jurídico-processual do órgão de recurso no caso de omissão.
À míngua deste vazio consequencial entendemos que a falta ou omissão de manifestação de vontade por parte do interessado, em que o tribunal de recurso tome conhecimento da impugnação interposta de uma decisão interlocutória, deve considerar-se que o mesmo deixou de ter interesse na sua reapreciação, deixando o tribunal de recurso liberto da obrigação de sobre ele emitir decisão. A falta de manifestação do interessado/recorrente não pode deixar de ser entendida como uma tácita renúncia ao direito de impugnação, que em momento precedente havia manifestado, e que terá deixado de subsistir em face do desenvolvimento ulterior do processo, nomeadamente por considerar que o acto sob impugnação deixou de ter interesse em vista das questões que a decisão final coloca ou que a decisão impugnada não afecta a decisão de mérito proferida e o processo pôde atingir o seu justo e equilibrado objectivo, independentemente da referida decisão.
A final considerar-se-á, por ausência da manifestação de vontade a que se alude no nº 5 do art. 412º do CPP, que o recurso interposto com o requerimento de fls. 249 fica sem efeito.
II. – B. De Facto.
(…)
II. – C. De Direito.
II. C.1. – Rejeição Parcial do recurso por inobservância do preceituado nos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.
A recorrente incoa por impugnar a solução que o tribunal a quo deu à prova que terá sido produzida em audiência de discussão e julgamento, por, em seu juízo, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, que indica no ponto da motivação, não confortarem a facticidade provada nos pontos 1. a 9. do apartado atinente á matéria de facto provada.
Preceituam os nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP que o recorrente deve, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõe decisão diversa da recorrida. Tendo sido as provas gravadas, as especificações referidas devem ser feitas por referências aos suportes técnicos.
“A jurisprudência do Tribunal Constitucional, tanto a relativa aos recursos penais (ou contra-ordenacionais) como a relativa aos recursos não penais, aponta no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido e que é, lembre-se, a de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b), e c) do nº3 e no nº4 do art. 412º do CPP tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação”. [Neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional, prolatado no processo nº 259/20027T. Const. – Processo nº101/202, publicado na IIª Série do DR, nº 288, de 13 de Dezembro de 2002.]
Parece ser incontroverso que a falta de formalização do preceituado nos números 3 e 4 do art. 412º do CPP, conduzirá á rejeição do recurso na parte em que essa omissão se surpreende, e, ipso facto, considerando inalterada a matéria de facto fixada pelo tribunal, mantê-la inalterada, restando, no entanto, e de acordo com o proémio do art. 431º do CPP, a possibilidade de sindicar os erros de julgamento decorrentes dos vícios elencados no nº2 do art. 410º do CPP.
II. C.2. – Capacidade jurídico-social da arguida para os actos de gestão originários da responsabilidade criminal que lhe é imputada.
(…)
II. – C.3 – Vícios de erro de julgamento. Erro notório na apreciação da prova.
No enquadramento jurídico-processual que é feito dos vícios do artigo 410ºnº2 do CPP, estes assumem-se como erros de julgamento a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico – socialmente situado.
Consubstanciando-se o erro num desvio interpretativo de uma dada situação de facto que se apresenta à leitura lógico – racional do individuo, aqui consideradas as envolventes sociais, históricas, pessoais, económicas e/ou outras, a decisão que labore em erro notório há-de expressar esse desvio interpretativo, como evidente e detectável a uma análise perfunctória, de feição intuitivo – racional, do caso em que ele se manifesta ou patenteia. O erro notório torna-se, assim, numa calamidade interpretativa à luz dos princípios da razão histórica e do padrão cognoscente prevalente e socialmente instituído, i. é, das máximas da experiência comum.
Já a insuficiência da matéria de facto para a decisão se reconduz a uma ausência de materialidade substancial, isto é, uma omissão factual contextualizada que inviabiliza e impede que o tribunal possa validamente operar uma adequada e correcta subsunção à previsão ilícito – material contida no preceito incriminatório da facticidade adquirida para o teor decisório. O tribunal podia e devia ter apurado factos que lhe permitissem obter uma factualidade consistente donde fosse possível extrair um veredicto de direito ajustado ao caso.
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação ou entre esta e a decisão, tanto pode ocorrer entre a fundamentação de facto, em si, como entre esta e a fundamentação de direito ou entre esta mesma fundamentação, ou, ainda, entre todas, e cada uma, destas posições antinómicas e a decisão a que se chegou.
O erro notório de apreciação da prova, não é demais dizê-lo, só pode ser conhecido pelo tribunal de recurso, se, ou desde que,” o vício resulte do texto da decisão recorrida”. Vale por dizer que a ilogicidade e a desconformidade das asserções que sustentam a decisão nos seus pressupostos factuais e de direito e o seu desconchavo com a realidade vivencial comum tem de reverberar do conteúdo literal da decisão sob impugnação. Não se podem esgrimir argumentos opinativos quanto ao julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem criticar o processo formativo cognitivo - racional que arrimou uma tal ou qual apreciação factual ou valoração probatória, a menos que eles sejam cruciantes para o senso comum, et pour cause, o tornem inane para validação do acto de julgamento efectuado.
É consabido que na sentença o tribunal procede à reconstituição e interpretação de factos históricos, procedendo, depois, à sua integração e valoração á luz de normas jurídicas preexistentes, para logo ditar uma decisão.
Neste proceder/refazer histórico, o tribunal socorre-se de regras de experiência e de métodos lógico-racionais que possibilitam demonstrar a verosimilhança da situação reconstituída com o real acontecido. [Paolo Tonini,in La prova Penale, CEDAM, Padova, 2000, pag. 27 e segs.]
“Com base nas provas que foram adquiridas para o processo (ou no decurso do processo), (o juiz) reconstitui o facto histórico cometido pelo imputado (motivi “in fatti”); Logo interpreta a lei e precisa o “fatto típico”, previsto na norma penal incriminadora (motivi “in diritto”); finalmente valora (aprecia) se o facto histórico “rientra” no facto típico (giudizio di conformitá). [Apud Paolo Tonini, op. loc. cit., pag 28.]
No dizer de Andrea Antonio Dália e Marizia Ferraioli, “a sentença tem um duplo conteúdo, porque é a um tempo uma declaração de vontade e um acto de inteligência: exprime a aplicação da norma no caso concreto e dá a razão de tal aplicação”. [Cfr. autores citados in Manuale di Diritto Processuale Penale, CEDAM, 2002, pag. 749.]
Em processo penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, devendo o julgador vincular-se intelectualmente ao transcorrido pela produção da prova que for produzida em audiência de discussão e julgamento, por ser neste palco que se desenvolve com plenitude o conceito de compreensão cénica, que abarca “o caso produzido até ao próprio processo de produção”. [Winfried Hassemer, in Fundamentos del Derecho Penal, Bosch, Barcelona, 1984, pag.155.]
O juiz deve operar lógico-racionalmente e determinar-se por critérios que atinem com o experenciar comum do indivíduo histório-socialmente situado.
Segundo Francois Gorphe “a valoração de um acerto testemunhal em juízo efectua-se em três etapas possíveis: 1º) a asserção em si mesma, aceite provisoriamente como verdadeira; 2º) as circunstâncias que, aparte a realidade do facto, explicam a asserção, como parcialidade e dificuldade de percepção e, por tanto, diminuem transitoriamente o seu valor; 3º) as circunstâncias que corroboram a asserção e lhe devolvem assim todo o parte de seu valor”. [François Gorphe, in Apreciación judicial de las Pruebas, Temis, Bogotá, 2004, pag.289.]
Ainda a este propósito, convirá ter presente o ensinamento de Massimo Nobili, in “Il principio del Libero Convincimento del Giudice”, Giuffrè Editore, pag. 306 e segs., quando se refere à valoração judicial que se pode obter do testemunho de uma só testemunha, o que não sendo o caso dos autos não deixa de ser significante quando o tribunal adquire o seu convencimento a partir de um testemunho que pela sua inteireza e solidez se mostra conforme ao caso e o reverbera no experenciar comum.
Temos para nós que o depoimento das testemunhas e de outros sujeitos processuais há-de ser valorado com arrimo a este feixe de regras e padronizações e não por apelo a “coinvolgimenti esterni” que não intervêm, em nosso juízo, neste campo do agir e proceder judiciário. É por apelo às máximas da experiência, da logicidade e coerência intrínseca dos depoimentos dos sujeitos processuais, quando conexionados com a realidade que se pretende provar, que se há-de aferir a credibilidade e idoneidade dos depoimentos, e não, como proposto, por referência a critérios jurídico–normativos contidos em incriminações penais.
Tendo por base o discorrido, temos, para nós, que o Senhor Juiz não se desviou das regras de livre apreciação e valoração dos testemunhos que foram produzidos em audiência de julgamento e cuja transcrição consta do anexo (diga-se em abono da verdade que a gravação foi deficientemente efectuada, o que é atestado pela recorrente alusão á expressão “fora do alcance do microfone”, referido à locução do Senhor Juiz).
As testemunhas inquiridas, com poucos desvios e uma só voz dissonante, a da testemunha António Laranjeiro, todas referem que a arguida era quem detinha o controlo da burocracia administrativa da firma e que sabia perfeitamente o que assinava, sendo ela quem, inclusivamente, assumia os contactos com as instituições bancárias e os advogados. Não é credível que quem assim procedia não tivesse plena consciência dos actos que praticava, por conta de quem os praticava e com que fim os praticava.
A arguida era, de pleno direito a autora dos factos em que se consubstancia a tipicidade que lhe foi imputada, pelo não podiam, em nosso juízo, subsistir dúvidas que fizessem vacilar o tribunal na apreciação da prova que foi exibida perante si.
Este convencimento retira-se da prova produzida, testemunhal e documental, e encontra-se devidamente escrutinada e correctamente concatenada na decisão proferida, o que faz soçobrar alegação de erro notório na apreciação da prova e da possibilidade/necessidade de o tribunal se socorrer do princípio in dubio pro reo, como pretende a recorrente.
Não colhe, a decisão proferida, a esta luz, critica que seja susceptível de a abalar na sua estrutura e na justeza do julgamento efectuado.

III. – Decisão.
Na consonância com o que fica exposto, decidem o s juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, o tribunal da Relação de Coimbra, em:
- Rejeitar o recurso interlocutório, por falta de manifestação da vontade na sua apreciação – cfr. nº 5 do art. 412º do CPP;
- Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida A..., e, consequentemente, confirmar in totum a decisão sob impugnação;
- Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em dez (10) UCs.

Coimbra, 8 de Março de 2006