Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/09.5TVPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ENTREGA JUDICIAL
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
Data do Acordão: 09/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º E 21º DO DEC. LEI Nº 149/95, DE 24/06
Sumário: I – O contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte – artº 17º do D.L. nº 149/95, de 24/06, com as alterações nele introduzidas pelos D. L. nºs 265/97, de 2/10, 285/2001, de 3/11, e 30/2008, de 25/02.

II – Operada a resolução desse tipo contratual, o locatário deve restituir o bem ao locador – artº 7º do citado diploma.

III – Nos termos do artº 21º, nº 1, o locador pode requerer ao tribunal providência cautelar consistente na entrega imediata ao requerente do bem, se o locatário não proceder à restituição do mesmo findo o contrato.

IV – São pressupostos do decretamento judicial dessa medida: - que o contrato de locação financeira se tenha extinguido por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido pelo locatário o direito de compra; - que o locatário não tenha procedido à restituição do bem ao locador.

V – O periculum in mora presume-se de júris et de jure do facto de ter sido operada a resolução do contrato sem ter sido restituído ao locador o bem objecto do contrato.

Decisão Texto Integral:             ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I- RELATÓRIO

            I.1- «A...», requereu em 21.1.09 contra «B...», providência cautelar de entrega judicial, ao abrigo do D.L.nº149/95, de 24.6 (com as alterações que lhe foram introduzidas pelos D.L. nºs 265/97, de 2.10, 285/2001, de 3.11, e 30/2008, de 25.2).

         Em síntese, alega ter dado à requerida, em locação financeira, por contrato celebrado em 19.5.05, o prédio urbano que identifica, com destino à construção de um edifício industrial, contrato que a requerida incumpriu por não ter pago 29 das 240 prestações mensais acordadas, apesar de interpelada para o fazer, considerando assim a requerente resolvido em 26.9.08 o contrato. Pede que seja decretado judicialmente a entrega imediata do imóvel objecto do contrato ajuizado.

         A requerida deduziu oposição, alegando não estarem preenchidos os pressupostos da providência por não haver resolução válida do contrato, não estando, por isso, obrigada a proceder à restituição do imóvel, e também porque não existe justo receio de perda da garantia patrimonial na medida em que o imóvel não desaparece, não é ocultável, não é passível de venda a terceiro, nem se pode ceder a posição contratual.

         Produzida a prova, fixados os factos indiciários provados e não provados, proferiu-se em 1.6.09 decisão a indeferir a providência requerida.

         I.2- A requerente recorreu desta decisão, concluindo assim as suas alegações:

1ª/Sobre o recorrente não impende o ónus de provar a existência da provável lesão séria e irreparável do seu direito, bastando que fique provado que o contrato foi resolvido, e que o imóvel não lhe foi entregue;

2ª/Pelas razões expostas, não haverá que lançar mão da aplicação subsidiária das disposições gerais sobre providências cautelares previstas no CPC, designadamente da constante do art. 381º/1, por tal ser afastado pela aplicação da disposição especial que com as mesmas não é conciliável;

3ª/Ao decidir como se decidiu, não fez a douta sentença a melhor interpretação e aplicação da lei, pelo que a decisão viola as normas e os princípios jurídicos constantes do art. 21º do DL 149/95, de 24.6, alterado pelo DL 265/97, de 2.10;

4ª/Termos em que deverá revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que julgue o procedimento cautelar totalmente procedente.

         I.3- Não houve resposta.

         Dispensados os vistos, cumpre decidir.

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         II - FUNDAMENTOS

         II.1 - de facto

         A decisão assentou nestes factos indiciariamente provados:

1.A Requerente é uma sociedade anónima que desenvolve, quotidiana e profissionalmente, a actividade bancária, cabendo nela a actividade comercial de locação financeira;

2.No decurso dessa actividade de locação financeira, a Requerente celebra com terceiros, seus clientes, contratos através dos quais se obriga, mediante retribuição, a ceder-lhes o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desses clientes, e que os locatários poderão comprar, decorrido o prazo acordado, por preço determinado nos contratos ou determinável mediante simples aplicação dos critérios fixados nesses contratos.

3.A Requerente é proprietária do seguinte bem:

-prédio urbano composto de terreno destinado a construção designado por

Lote 3, sito no lugar de Barrigudos ou Almas da Clara, freguesia de Amoreira da Gândara, concelho de Anadia, inscrito na matriz predial urbana sob o art.828º e descrito na C.R.P. de Anadia sob o nº02523/28092000.

4.Conforme decorre do doc.nº2, no normal exercício da sua actividade comercial (de locação financeira), em 19.05.2005, a Requerente locou à Requerida, e esta tomou de locação, o bem identificado em 2), no qual se convencionou, além do mais, o seguinte:

a) A locação seria pelo prazo de 240 meses;

b) As rendas mensais, iguais e sucessivas a pagar pela Requerida seriam 240, no montante de 1.573,03 €;

c)As circunstâncias convencionadas que permitiriam a resolução contratual, por parte do locador, foram as previstas na cláusula 15ª das Condições Gerais do Contrato, designadamente, o facto de a agora Requerida se atrasar no pagamento (ou não pagar) as rendas mensais de locação;

d) A cláusula 15ª2 das Condições Gerais do Contrato plasmou que, em caso de incumprimento obrigacional por parte da locatária, se esta, interpelada para o efeito, por carta registada, não suprisse a sua falta no prazo de 30 dias contados da data de emissão daquela notificação, isso seria causa de resolução do contrato.

5.Na sequência do aludido contrato, foi entregue à Requerida, e esta recebeu e declarou que recebeu, o bem anteriormente identificado...

6. que a Requerida passou a utilizar, quotidianamente.

7.A Requerida não pagou à Requerente as rendas vencidas entre

7/01/2008(parte) e 07.08.2008 no montante de 16.753,73 €...

8.... que levou a Requerente a escrever à Requerida, em 26.08.2008 a missiva de fls.32, dando-lhe o prazo de 30 dias após a sua expedição para que efectuasse tais pagamentos em falta, sob pena de se considerar resolvido o contrato.

9.A Requerente enviou a missiva constante de 8) à Requerida para a morada por si indicada no contrato de locação junto aos autos no dia 27/08/2008...

10....a qual veio devolvida à Requerente com a menção de «Não Atendeu».

11.Posteriormente, a Requerente não enviou nova missiva do mesmo teor à Requerida.

12.Na presente data, a Requerida mantém-se na posse do imóvel identificado em 3), não obstante as interpelações para devolver o imóvel.

13.O imóvel identificado em 3) não desaparece, não é ocultável, não é passível de venda pela Requerida e não pode esta ceder a sua posição contratual.

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II.2 - de direito

Atentas as conclusões acima transcritas, uma única questão vem colocada: a de saber se, para o decretamento da providência cautelar prevista no regime jurídico do contrato de locação financeira, aprovado pelo DL 149/95 (como os demais a citar sem menção expressa), o locador/requerente tem de alegar e provar o justificado receio de lesão do seu direito.

Na decisão em crise entendeu-se indeferir a providência com fundamento na falta de preenchimento do pressuposto periculum in mora exigido na generalidade das providências. Argumentou-se que tal requisito não se retira automaticamente da circunstância de a requerente ser proprietária do imóvel e de dele se encontrar privada, e que da factualidade apurada não é legítimo presumir-se que a reparação do prejuízo por ela sofrido (pela mora na restituição), correrá sérios riscos de não vir a ter lugar.

A recorrente defende, na esteira de jurisprudência que nomeia, que sobre a locadora não impende o ónus de alegar e provar o referido requisito, que não é exigível no procedimento cautelar previsto no art.21º do citado DL.

Adianta-se desde já que tem razão.

Dispõe o art.17º que “ o contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte (…)”.

Na situação em análise, ao invés da posição jurídica defendida pela requerida, o tribunal considerou validamente resolvido o contrato. Portanto, o contrato ajuizado findou por resolução.

Nos termos do art.7º, findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem.

Como tal, operada a resolução o locatário deve restituir o bem ao locador.

No caso, a requerida mantém-se na posse do imóvel, não obstante as interpelações da requerente para que ele lhe seja devolvido.

De acordo com o estabelecido no art.21º/1, o locador pode requerer ao tribunal providência cautelar consistente na entrega imediata ao requerente do bem, se o locatário não proceder à restituição do mesmo findo o contrato.

A medida cautelar destina-se tão só a tutelar antecipadamente o cumprimento da obrigação do locatário de proceder à entrega do bem locado derivada da extinção do contrato por caducidade ou resolução.[1]

E nos termos do nº4 do mesmo art.21º, “o tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no nº1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.”.

Retira-se deste preceito que são, assim, pressupostos da aludida providência cautelar: 1- que o contrato de locação financeira se tenha extinguido por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido pelo locatário o direito de compra; 2- que o locatário não tenha procedido à restituição do bem ao locador.

O periculum in mora presume-se juris et de jure do facto de ter sido operada a resolução do contrato sem ter sido restituído ao locador o bem objecto do contrato.[2]

Como observa A. Abrantes Geraldes na obra citada, “não se exige a alegação e prova do periculum in mora, o qual resulta implícito da natureza do contrato e da natural e previsível degradação do bem na pendência da acção definitiva”. E mais adiante, acrescenta: “… ao invés da generalidade das providências, não se exige a prova de que a manutenção da situação seja causa de lesão ou de perigo de lesão grave e dificilmente reparável (…), o legislador presumiu que a continuação do bem locado na esfera do locatário, depois de extinto o contrato, era susceptível de afectar relevantemente os interesses do locador…”.

Compreende-se que seja assim. No contrato de locação financeira, o locador compra para si a coisa e esta fica no seu património, sendo sua obrigação principal a de conceder ao locatário o gozo da coisa, podendo este optar pela sua aquisição findo o prazo do contrato. Portanto, aquando da conclusão do contrato, o locatário não é ainda o proprietário da coisa locada. Esta é-lhe entregue para gozo pelo prazo do contrato, mantendo-se a propriedade na esfera do locador. Daí que a este seja conferido o direito de reclamar a imediata entrega do bem, apurados os pressupostos da providência cautelar consagrada no art.21º.

Na hipótese em análise, estão provados os requisitos exigidos para o deferimento da medida cautelar requerida - resolução do contrato e não entrega do imóvel -, não carecendo a requerente de provar o justificado receio de lesão do seu direito. Este receio – como bem se pondera no aresto citado - é presumido pela lei, pois que a não entrega da coisa locada, envolvendo a continuação do respectivo uso, determinará necessariamente a sua deterioração e desvalorização, com o inerente prejuízo para o seu proprietário.

         Atenta a prova sumária feita pela requerente, nada mais é preciso para que se profira decisão a ela favorável, sendo irrelevante que o imóvel não desaparece, não é ocultável nem passível de venda pela requerida.   

         O recurso reúne, pois, condições de procedência.

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         III - DECISÃO

         Acorda-se, pelo exposto, em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que, julgando procedente a providência cautelar, ordene a entrega do imóvel à requerente.

         Custas pela requerida.

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                                                                  COIMBRA,  


[1]   Cfr. A. Abrantes Geraldes, «Temas da reforma do processo civil», IV vol., pág.305
[2]   Cfr. Ac.R.L. de 28.1.99, CJ I/99-99