Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/09.JACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
TRÁFICO DE DROGA
FLAGRANTE DELITO
CONTINUAÇÃO CRIMINOSA
Data do Acordão: 10/14/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 204º, AL. C) , 256º DO CPP
Sumário: 1. A actividade de tráfico está em execução quando os agentes (fornecedor e adquirente) são interceptados com o produto destinado à venda.
2. Tendo sido detidos nesse momento, a detenção foi legal, em flagrante delito.
3. O perigo de continuação da actividade criminosa, não se confunde – não pode confundir-se, dada a sua natureza cautelar - com a consumação de novos actos criminosa.
4. Deve, antes, ser aferido em função de um juízo de prognose estabelecido em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido.
Decisão Texto Integral: I.
J..., arguido identificado nos autos, recorre do despacho que determinou a aplicação, ao recorrente, da medida de coacção de prisão preventiva – despacho preferido a fls. 470-473 dos autos e certificado a fls. 30-33 do presente recurso, instruído com subida em separado.
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Na respectiva motivação, formula as seguintes CONCLUSÕES:
1- O arguido, ora recorrente, foi submetido à mais pesada e gravosa medida de coacção – a prisão preventiva -, sem que no caos e em concreto as medidas de coacção não prisionais se mostrem inadequadas ou insuficientes e sem que se verifiquem sequer os pressupostos de que a Lei faz depender a aplicação desta medida.
2- No douto despacho que determina a aplicação da prisão preventiva ao arguido, o Mmº. Tribunal a quo fundamenta a imposição desta medida de coacção em vista das exigências cautelares que visam conter “o perigo de fuga, bem como de continuação da actividade criminosa idêntica” que resultam, “por um lado da natureza do crime, por outra da personalidade os arguidos revelada na prática dos factos, bem como das suas condições de vida.
3- Quanto ao perigo de fuga, entende aquele Tribunal que ele se verifica pela “reconhecida a extrema mobilidade das populações ou grupos de indivíduos de etnia cigana e emergindo para o arguido J... o perigo de condenação em pena de prisão pelos factos aqui em causa, resulta evidente o perigo de subtracção à acção da justiça”.
4- São, antes de mais, considerações genéricas, nada concretizadas, estereotipadas e preconceituosas que reconhecem em todos os indivíduos de etnia cigana pessoas incapazes de se integrar em qualquer comunidade e por conseguinte com predisposição para se subtraírem à acção da justiça!!!
5- Para chegar a esta conclusão o Mmº. Tribunal teve forçosamente que ignorar (!!) os factos, nomeadamente aqueles de onde resulta que o arguido “vive na Figueira da Foz há cerca de 40 anos - e há 4 na mesma casa - tem 10 filhos, sendo que pelo menos 6 se encontram a seu cargo”, em idade escolar e frequentam o ensino público oficial.
6- Esta conclusão, que mais não é do que uma mera presunção que tem por base preconceitos de carácter xenófobo, não só não se sustenta em factos concretos como ignora os que resultam directamente do processo e que só podem levar a concluir em sentido contrário. Alguém que vive há 40 anos no mesmo local e tem um agregado familiar composto por oito pessoas que dependem economicamente de si não pode ser concretamente considerado alguém com “extrema mobilidade”!
7- Também o perigo de continuação de actividade criminosa idêntica que a prisão preventiva aplicada ao arguido visa acautelar, tem de ser aferido a partir de elementos factuais concretos que o revelem ou indiciem, e terá que ser apreciado em função do contexto do caso presente em concreto.
8- Alias, no douto despacho recorrido afirma-se que não é conhecida ao arguido “qualquer actividade profissional remunerada “, o que também não é verdade.
9- Desconsiderou o tribunal a quo que tanto o arguido como a sua esposa vivem da “venda ambulante” donde chegam a retirar cerca de 1000 euros por mês e o arguido é ainda negociante de gado e cavalos, tendo actualmente oito, sendo que há pouco tempo vendeu um que 1he rendeu cerca de 2500 euros (tudo cfr. fls. 462 dos autos)
10-Por outro lado, o despacho recorrido não refere quais os factos concretos que lhe permitiram chegar àquela conclusão, até porque os factos que o processo inequivocamente demonstra apontam uma vez mais exactamente no sentido oposto!
11- O douto despacho fundamenta ainda a aplicação desta pesada medida de coacção com o “o alarme social causado pela prática de crimes como o agora indiciado, designadamente numa zona onde reconhecidamente o tráfico de produtos estupefacientes tem sido marcante”, “releva-se ainda estar a actividade de tráfico de estupefacientes na base da maior parte dos pequenos delitos que por aí se vão praticando, e que são fonte de grande intranquilidade pública”.
12- Ora, não só o artigo 204º do CPP, nomeadamente na sua aliena c) não incluiu o alarme social como um dos fundamentos da aplicação das medidas de coação em geral e da prisão preventiva em particular, como este conceito tem contornos vagos e imprecisos, facilmente manipulável e desconforme com o direito processual penal de um Estado de Direito Democrático (como foi reconhecido na decisão do TRL de 16/11/2005 in www.dgsi.pt, processo 8392/2005-5)
13- Por outro lado não está o arguido indiciado pela prática dos pequenos delitos que, de acordo com a fundamentação do despacho que se recorre, são a fonte de grande intranquilidade pública que se vive na comunidade em que o arguido está inserido, pelo que não pode cair sobre este a responsabilidade de crimes pelos quais não está sequer indiciado nunca foi condenado ou sequer julgado!
14- Além de que o fundamento da medida de coacção referido na alínea c) do artigo 204º do CPP tem uma função cautelar atinente ao próprio processo, não podendo ser utilizada para acautelar qualquer crime do arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pelo qual está indiciado e onde não se contam os “pequenos delitos” referidos no douto despacho.
15- Do auto de notícia por detenção em flagrante delito desde logo resulta a inexistência de flagrante delito!
16- O arguido J... foi detido dentro do seu veículo, sozinho, apenas com dois telemóveis, os documentos da viatura em que se fazia conduzir e dois euros (!) — que os Senhores Inspectores convenientemente terão esquecido de mencionar.
17- Ora, o simples facto de o arguido estar no mesmo local do arguido G..., a circular dentro da sua viatura e sem outros factos relevantes, não pode ser suficiente para concluir que se estava a prepara para efectuar uma transacção de estupefacientes.
18- Aliás, atentemos na conclusiva descrição feita pelos Senhores Inspectores da Policia Judiciária no auto de notícia por detenção em flagrante delito, que revela bem que à falta de concretos elementos factuais que permitissem relacionar o arguido J... com o arguido G... e a suposta transacção de estupefacientes, socorreram-se de presunções, hipóteses e suposições nada concretizadas, “Volvidos cerca de 10 minutos e vindo do posto de combustíveis da BP, próximo da estação, foi observado a circular o veículo de marca Ford, modelo Transit, de cor branca, com listas amarelas e matrícula 00-00-XX, habitualmente conduzido pelo arguido J... o qual foi imediatamente reconhecido a conduzir, sozinho, esta viatura.”, “Perante as suspeitas existentes nos autos que indiciavam fortemente que ambos iriam proceder a uma transacção de estupefacientes, decidiu-se avançar para os mesmos e proceder à sua abordagem”.
19- Ou seja, não se vislumbram factos donde se possa concluir pelo flagrante delito, mas apenas conclusões dos Senhores Inspectores da Policia Judiciária que presumivelmente, indiciariamente, conclusivamente, hipoteticamente se preparava para acontecer uma transacção de estupefacientes.
20- O que era para ser um auto de noticia por detenção em flagrante delito é na realidade, e de acordo com a descrição dos próprios agentes, um auto de noticia por detenção em eventual pré-flagrante delito, por presumivelmente, de acordo com as conclusões dos senhores inspectores, os arguidos, com toda a probabilidade, na firme certeza dos senhores inspectores estariam a preparar-se para efectuar uma transacção ilegal.
21- Na verdade, do referido auto não consta a descrição de qualquer facto donde objectivamente, sem margem para dúvidas possamos concluir que estávamos na presença da referida transacção.
22- Aliás, transacção que não existiu e nem sequer chegou a iniciar-se.!
23- Aliás, no entendimento dos Senhores Inspectores que procederam à detenção, a mais que provável transacção iria acontecer não na estação de comboios - ou sequer no veículo do arguido J... —, mas sim no local onde este habitava.
24- Dos factos relatados pelo Senhores inspectores resulta óbvia, antes de mais, a ilegalidade da detenção por inexistência de flagrante delito.
25- Não houve portanto qualquer transacção de estupefacientes, nem temos hoje a certeza que ela viesse a ocorrer, até porque o arguido G... identificou a pessoa com quem essa transacção iria ocorrer, que não era certamente o arguido J... – cfr. fls. 459 e 460 dos autos..
26- Ora, nos termos do disposto no artigo 256º do CPP, entende-se por flagrante delito o crime que se está cometendo, se acabou de cometer ou ainda o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar.
27- Em qualquer destas circunstâncias, de flagrante delito, quase flagrante delito ou presunção de flagrante delito, há um denominador comum, a consumação prévia do crime!
28- Em nenhuma circunstância a lei prevê a existência de flagrante delito em momento anterior à consumação deste, numa altura em que não sabemos sequer se ele vai efectivamente ter lugar e quem será o seu agente, como é manifestamente a circunstância em que o arguido foi detido.
29- Ora, fora de flagrante delito só é admissível a detenção “por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do ministério público, quando houver fundadas razões para considerar que o visado não se apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado” – Cfr. artigo 257º do Código de Processo Penal
30- Sendo óbvia a inexistência de flagrante delito, a detenção efectuada pelos senhores inspectores da polícia judiciária deveria ter sido precedida de mandado de detenção.
31- Se, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 258º do Código de Processo Penal, a falta dos requisitos formais referidos configura nulidade, o mesmo resultará, por maioria de razão, da sua inexistência tout court!
32- Nulidade essa, aliás, já invocada no primeiro interrogatório judicial do arguido (cfr. fls. 468 dos autos) e que aqui se reitera, com a consequente invalidade do acto de detenção bem como de todos os que dela dependem, nomeadamente do despacho que determinou a aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva na sequência do primeiro interrogatório judicial subsequente àquela detenção.
33- Ademais, e não obstante não se verificarem os requisitos gerais que legitimam a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva neste caso em concreto, não existem também factos fortemente indiciadores de prática de crime doloso que justifiquem a aplicação deste medida da coacção ao arguido, tal qual configura a alínea a) do nº1 do artigo 202º do CPP.
34- Do auto de apreensão e busca ao arguido J... não foi encontrado nenhum objecto que o pudesse relacionar com o arguido G... ou com a transacção que presumivelmente os senhores inspectores concluíram iria efectuar-se.
35- Não foi também encontrada qualquer quantia relevante que possa indiciar, sequer levemente, nem que o arguido J... se preparava para adquirir os referidos estupefacientes!
36- Pelo exposto só se pode concluir que em toda a prova que serve de fundamento à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva inexistem factos que indiciem a prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.
37- Sucede porém que o artigo 202º do CPP não se conforma com meros indícios, exigindo indícios fortes! Indícios fortes sustentados em factos concretamente identificados.
38- Os meios de prova e os factos que acabamos de indicar, e que servem de fundamento ao despacho que determina a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido, são manifestamente incompatíveis com a preconizada forte indiciação imposta pelo exigente artigo 202º do CPP.
39- Para aplicação da medida de coacção de prisão preventiva “A lei exige a verificação de indícios fortes da prática de crime e não apenas indícios suficientes” – vd. Acórdão do TRC de 23/02/2000, in www.dgsi.pt, processo 457/00.
40- Desses factos resultam ao invés de fortes indícios, grandes dúvidas, as quais terão que ser forçosamente valoradas em benefício do arguido, até por força do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º da CRP, no sentido de tornar desproporcional, inadequada, desnecessária e injusta a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido J....
41- Acresce que no douto despacho recorrido não está justificada nem factualmente concretizada a inadequação ou insuficiência das medidas de coacção não prisionais como, entre mais, a da obrigação de apresentação periódica a entidade judiciária ou a órgão de polícia criminal, como decorre imperativamente do nº2 do artigo 193º e 202º do CPP.
42- Do exposto decorre que o douto despacho em crise violou ou fez incorrecta aplicação do disposto nos artigos 191º/1, 193º /1/2/3, 194º /4, 202º/1, alínea a) - à contrario, 204º e 258º, todos do Código de Processo Penal, bem como dos artigos 27º, 28º/2 e 32º/2 da Constituição da República Portuguesa, que expressamente também se invocam.
TERMOS EM QUE deve a decisão recorrida ser revogada e consequentemente a medida de coacção de prisão preventiva ser também ela revogada.
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O digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido respondeu à argumentação do recorrente, ponto por ponto, concluindo, a final, que deve ser negado provimento ao recurso.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual manifesta a sua concordância com a resposta apresentada em 1ª instância.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, tendo respondido o recorrente renovando a argumatação apresentada na motivação do recurso.
Corridos os vistos e realizado o julgamento, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre decidir.
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II.
Como emerge das conclusões, que delimitam o objecto do recurso, o recorrente suscita as seguintes questões:
- inexistência dos pressupostos gerais de aplicação das medidas de coacção previstas no art. 204º do CPP (perigo de fuga e/ou de continuação da actividade criminosa - conclusões 1 a 14;
- inexistência de flagrante delito, fundamento de nulidade a detenção e posteriores termos do processo que têm radicam nesse pressuposto – conclusões 15 a 32;
- inexistência do pressuposto geral de aplicação da medida de coacção – conclusões 33 a 41.
As questões suscitadas serão apreciadas por ordem de precedência lógica, nos termos do disposto nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do art. 424º, n.º2 do mesmo diploma.
Para a sua apreciação, vejamos o teor do despacho recorrido.
É o seguinte – excertos relativos ao recorrente, com sublinhados e destaques do relator):
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Conforme despacho proferido anteriormente, tendo em consideração o teor do auto de noticia por detenção dos arguidos inserto a fls.325 a 341, auto de busca e apreensão de fls.360 a 366, auto de revista e apreensão de fls.369 a 370 e 373 a 393, a detenção dos arguidos é válida, uma vez que foi efectuada ao abrigo do disposto nos arts. 254º, nº 1, al. a), 255º, nº 1, al. a) e 256º, todos do C.P.P.
Apesar dos declarações prestadas pelos arguidos, G..., este quanto à participação e ligação com os demais arguidos, J..., M..., da conjugação dos diversos elementos probatórios constantes dos autos, nomeadamente auto de notícia por detenção dos arguidos inserto a fls.325 a 341, auto de busca e apreensão de fls.360 a 366, auto de revista e apreensão de fls.369 a 370 e 373 a 393, as diligências de investigação documentados em relatórios de vigilância de fls.23 a 28, 63 a 67, 82,105 a 109, 118 a 120, 128 a 130, 145 a 153, 166 a 173, 238 a 239, 241 a 243, 259 a 261 e 266 a 269, documentos insertos a fls.56 a 57, 68 a 69, 74 a 75, 83, 110 a 112, 142 a 143, 156 a 158, 160 e 240 e 248, conjugadas com os resultados das escutas telefónicas constantes do processo, produto estupefaciente, tendo em conta os testes rápidos efectuados e relatório da investigação de fls.342 a 345, 346 a 350 e 405 a 409, respectivamente, montante de dinheiro apreendido nas buscas e revistas realizadas já supra referenciadas e resultados das intercepções melhor descritas a fls.422 a 423 que se consideram aqui integralmente reproduzidas e nomeadamente as que foram confrontadas aos arguidos G...e J..., gravadas no Alvo com o código 1X514M, Sessões 22, 46 e 58, e ainda, com algumas das conversações telefónicas com o arguido G..., Sessões 308, 310, 312, 320 e 323; Sessão 36 do Alvo 1X514M, referente ao dia 24 de Junho; Sessão 354 do Alvo com o código 1X514M, referente ao passado dia 10; Sessão 197 do Alvo com o código 1X514IE do dia 11; Sessão 365 do mencionado Alvo 1X314M, também do dia 11; Sessão 381 do Alvo 1X314M, do dia 13; Sessão 383 do Alvo 1X314M, Sessões 387 e 388 do mesmo Alvo, referentes ao dia 14 e reportagem fotográfica de fls. 324 a 325, resulta claramente que os arguidos (…) e J..., se dedicavam a adquirir e ceder a terceiros heroína a troco de dinheiro.
O arguido (…) um dos fornecedores de heroína, em quantidades muito consideráveis, ao arguido J... e que este depois cedia, a troco de dinheiro, a terceiros que para o efeito o procuravam, nomeadamente na sua residência. Os contactos de preparação das transacções eram efectuados normalmente por telefone, conforme resulta das sessões que constam dos autos como relevantes, nomeadamente as confrontadas aos arguidos (…) e J.... (…)
O arguido J... tinha um papel igualmente relevante no tráfico de heroína, adquirindo grandes quantidades que revendia habitualmente na sua residência a terceiros, o que resulta claramente das intercepções telefónicas transcritas - veja-se uma das quais foi confrontada ao arguido J…-Alvolx5l4M, sessões 22/16 e 58 -, conjugadas com as vigilâncias efectuadas.
Apesar do que é referenciado pelo arguido J..., não é conhecida aos arguidos qualquer actividade profissional remunerada, fazendo modo de vida da actividade de tráfico de estupefacientes, conforme resulta das diligências efectuadas, designadamente das vigilâncias electrónicas.
Além do mais, resulta fortemente indiciado que o arguido (…) no dia da sua detenção tinha na sua posse 894.2 gramas de heroína que se preparava para entregar ao arguido J..., a troco de dinheiro que se encontrava na posse da arguida M.... Esta heroína era depois destinada, pelos co-arguidos J... e M... a venda a terceiros.
A versão apresentada pelos arguidos no seu interrogatório, no que respeita ao destino da droga apreendida, é inconsistente com as intercepções das conversações telefónicas entre os dois, com as vigilâncias efectuadas e com as regras da experiência comum e normalidade. Aliás, refira-se a incongruência das declarações do arguido J... quanto à forma e número de contactos com o arguido G…, numa primeira fase que refere três contactos telefónicos e apenas pelo arguido G…; E quando confrontado com as sessões supra referidas já prestadas novas declarações em outro sentido, tentando dar justificação ao conteúdo dessas conversações, sem que, no entanto, tenha merecido credibilidade, na sequência, desde logo, da referida incongruência, bem como ainda o motivo dos encontros, que o arguido J... arranjasse uma “arma” ao arguido G…, vindo de uma zona “Amadora”, que é, por demais, conhecida como local onde não existe qualquer dificuldade na obtenção de qualquer tipo de arma.
Veja-se que do resultado da investigação já efectuada, e que, ao que resulta, ainda não terminada, a residência dos arguidos J... e M... é referenciada como grande pólo de abastecimento de heroína, sendo aí procurados regularmente por pessoas ligadas ao tráfico e que aí se abastecem, o que foi constatado nas vigilâncias realizadas.
Aliás, a quantia pecuniária apreendida e a quantidade de heroína que ia ser entregue são esclarecedoras da dimensão da actividade de tráfico aqui em causa.
Com efeito, temos que considerar a elevada quantidade de heroína apreendida 894.2 gramas, quantidade que é suficiente para o consumo de cerca de 8.942 doses tendo por base a tabela anexa à Portaria no 94/96, de 26 de Março, que define como 0,1 gramas o limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária de heroína, bem como os elevados montantes pecuniários apreendidos na posse da co-arguida M... e que se entende fortemente indicia terem como proveniência os lucros da própria actividade de tráfico de heroína. A justificação que a arguida M... deu para se encontrar na posse de quantia de dinheiro tal elevada não se nos afigurou credível.
Os arguidos J... e (…)já foram condenados em penas de prisão efectivas por crimes de tráfico de estupefacientes, sendo certo que tais condenações não foram suficientes para os impedir de voltar à mesma actividade criminosa, dado que não pode deixar de se concluir, nesta fase proce5:sual, encontrar-se fortemente indiciada a prática pelos arguidos, em autoria material ou co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, sob a forma, pelo menos, de compra e venda de heroína, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/01, punível com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Em sede de medidas cautelares, resulta, por um lado da natureza do crime, por outro da personalidade demonstrada pelos arguidos na prática dos factos, bem como das suas condições de vida, ocorrer perigo de fuga, bem como de continuação de actividade criminosa idêntica.
Reconhecida a extrema mobilidade das populações ou grupos de indivíduos de etnia cigana e emergindo para o arguido J... o perigo de condenação em pena de prisão pelos factos aqui em causa, resulta evidente o perigo de subtracção à acção da justiça.
Sem esquecer, ainda, o alarme social causado pela prática de crimes como o agora indiciado, designadamente numa zona onde reconhecidamente o tráfico de produtos estupefacientes tem sido marcante e com grandes consequências negativas para a comunidade local.
Releve-se ainda estar a actividade de tráfico de estupefacientes na base da maior parte dos pequenos delitos que por aí se vão praticando, e que são fonte de grande intranquilidade pública.
A fim de satisfazer as exigências cautelares que ficaram expostas, não se nos afigura adequada qualquer outra medida de coacção que não a da prisão preventiva para os arguidos (…) e J....
Aliás, a mesma afigura-se proporcional à gravidade do delito, e bem assim à sanção que previsivelmente seja de aplicar a estes arguidos.
Deste modo, e ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, nºs 1 e 2, 194º, nºs 1 e 3, 195º, 202º, nº 1, alínea a) e 204º, alíneas a) e c) todos do C.P.P., determina-se, além da aplicação do Termo de Identidade e Residência, já prestado a fls. 352 e 368 dos autos, a aplicação da medida de prisão preventiva aos arguidos (…) e J... (…).
Passe os competentes mandados de condução.
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Enunciado o objecto do recurso e vista a decisão recorrida, apreciemos agora os fundamentos invocados

1. Inexistência de flagrante delito/nulidade da detenção e dos termos subsequentes que dela dependem.
Alega o recorrente cfr. síntese nas conclusões 15 a 32 - que, na descrição efectuada no próprio auto de detenção, não se vislumbram factos que permitam concluir pala existência de flagrante delito, porquanto não existiu qualquer transacção que nem chegou a iniciar-se.
Ora, relativamente à descrição dos factos, negada pelo recorrente, diz o auto de notícia, sob a epígrafe “MOTIVO DA DETENCÃO”, além do mais:
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No dia, hora e local designados, na sequência da informação existente no processo, nomeadamente colhida através de intercepções telefónicas e vigilâncias sobre os arguidos, que davam conta da forte possibilidade de, no dia de hoje, o arguido G…, se deslocar à zona da Figueira da Foi, a fim de proceder uma transacção de estupefaciente com ao arguido J..., foi montado dispositivo de vigilância na Estação da CP/Autocarros, da Figueira da Foz, local onde os mesmos já se haviam encontrado no dia 06/07/2009 (vide RDE e fotos de fis. 266 a 269).
Assim, pelas 11h25, foi observado a chegar àquela Estação um autocarro proveniente de Lisboa, que estacionou defronte da Estação. Pouco depois, o arguido G...saiu do autocarro, transportando consigo uma sacola azul, a tiracolo, do seu lado direito, parcialmente tapada com um casaco de cor escura, que o arguido apenas tinha vestido nesse braço. Usava na cabeça um boné de pala, de cor creme, trajava calças pretas e camisola clara e calçava sapatilhas brancas.
O arguido não vinha acompanhado, tendo logo efectuado uma chamada telefónica, acabando depois por vestir o casaco no outro braço e continuado a pé, em direcção à entrada de estacionamento daquela Estação, onde ficou nitidamente à espera de alguém, sempre numa atitude de desconfiança, olhando nervosamente em seu redor.
Volvidos cerca de 10 minutos e vindo do sentido do Posto de Combustível da BP, próximo da Estação, foi observado a circular o veiculo da marca Ford, modelo Transit, de cor branca, com listas amarelas e matrícula 00-00-XX, habitualmente conduzido pelo arguido J... o qual foi imediatamente reconhecido a conduzir, sozinho, esta viatura.
O arguido virou para a entrada do estacionamento da Estação e, acto contínuo, esbracejou para o G…, o qual, ao aperceber-se daquele, avançou ao seu encontro.
Perante as suspeitas existentes nos autos que indiciavam fortemente que ambos iriam proceder a uma transacção de estupefaciente, decidiu-se avançar para os mesmos e proceder à sua abordagem, sendo que o G…O, embora se preparasse para tal, não chegou a entrar na viatura do J....
Na revista pessoal, efectuada seguidamente ao G…, foram encontrados e apreendidos dentro da sacola que o mesmo transportava, quatro sacos individuais (pesados posteriormente), respectivamente com peso de 585.0 gramas, 259.2 gramas, 50.0 gramas e 9,6 gramas, acondicionando os três primeiros uma substância, de cor acastanhada, que, sujeita ao Teste Rápido Tipo A, reagiu positivamente para HEROÍNA e o último, uma substância acastanhada, que, sujeita ao mesmo Teste Rápido do Tipo A, resultou indeterminada.
Em face do exposto e porque os factos representam, em abstracto, o preenchimento do tipo objectivo do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21º, n.º1 do DL n.º15/93, de 22.01, foram os arguidos detidos em flagrante delito, nos termos dos artigos 255º, n.º1, alínea a) e 256º do CPP
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Reprodução efectuada resulta evidente que o auto descreve, identificando-os sob a epígrafe “Motivo da detenção”, não só os factos em que surge fundamentada a detenção do recorrente, bem como as provas em que assentam: escutas telefónicas (previamente autorizadas pela entidade competente, com a verificação dos rigorosos pressupostos matérias e formais) vigilâncias policiais, fotografias de um anterior encontro entre o “correio/fornecedor” da droga que foi receber à Estação, observação directa efectuada pelos agentes no local, efectiva apreensão da droga, confirmando a actividade de transacção de droga por parte do recorrente que resultava dos meios de prova previamente reunidos.
Aliás o recorrente, embora negando a descrição dos factos coloca a questão mais na inexistência de flagrante delito, por se não ter iniciado qualquer transacção.
Sobre o conceito de flagrante delito, preceitua o artigo 256º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Flagrante delito”:
1- É flagrante delito o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer. (…)

Verifica-se, assim, quando o crime é surpreendido durante a respectiva execução. Ainda que, como salientou Cavaleiro Ferreira (citado por Maia Gonçalves no seu CPP Anotado, 16ª Ed. em anotação ao preceito em questão) não é inteiramente exacta a noção de flagrante delito que o confunde com a prova directa do crime; trata-se de actualidade e não de visibilidade da infracção.

Para indagar se existe crime em execução ou “que se está cometendo”, importa tecer alguns considerandos sobre os elementos do tipo objectivo do crime.
O artº 21 nº 1 do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substâncias estupefacientes, descrevendo de forma assumidamente abrangente a respectiva factualidade típica: “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrém, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver (...), plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Constitui um crime de perigo abstracto, porque não pressupõe nem o dano efectivo, nem sequer o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo para um desses bens jurídicos.
Nesta perspectiva já no preâmbulo do DL 430/83, predecessor do DL 15/95, o legislador referia, citando um relatório da ONU, que “a luta contra o abuso de drogas é antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso das drogas é pois exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca”.
Daqui resulta que o escopo do legislador é o de evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia.
O tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e demais afecta a vida em sociedade na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos. – TC Ac. nº 426/91 de 6/11.
A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade) considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
No crime de tráfico punem-se, como realizações do crime consumado, comportamentos recuados, em relação à efectiva consumação, dado o caris particularmente perigoso das actividades em questão e a ideia do tráfico como processo e não como resultado dum processo – cfr. Ac. STJ de 15.12.2005, CJ/STJ, tomo III/2005, p. 235.
Preferindo o legislador antecipar a protecção penal para um momento anterior à verificação do dano – cfr. Acórdão do T. Constitucional de 06.11.91, no BMJ 411º, 56 e Acórdão do mesmo Tribunal de 07.06.94, no DR, II S. de 27.10.1994.
Sendo o crime de tráfico qualificado como crime exaurido – cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 18.04.96 e de 18.06.1998, respectivamente na CJ/STJ de 1996, vol. II e na CJ/STJ, 1998, vol. III,167. Pois que, como escreve CAVALEIRO FERREIRA (Lições de Direito Penal, Verbo Editora, 1985, I, 253) "Dentro do «iter criminis», esta consumação material ou exaurimento consiste na “produção dos efeitos ou consequências que, não sendo embora exigidos como elementos essenciais da incriminação, constituem a plena realização do objectivo pretendido pelo agente”.
Daí que a condenação pela prática deste crime pelo agente, durante determinado período de tempo, não mais do que a condenação múltipla e repetitiva, por tantos quantos os actos de aquisição/detenção/cedência ou venda, mas antes a apreciação global da actividade delituosa daquela natureza durante o período de tempo a que se reporta a acusação, independentemente da falta de consideração de alguns actos parcelares dessa época.



Ora, no caso, resulta da reprodução quer do auto de notícia quer do despacho recorrido supra efectuadas, além da acta do interrogatório dos arguidos onde o despacho recorrido se acha exarado (cfr. designadamente as diligência probatórias em destaque, já referidas, vigilâncias policiais, relatórios fotográficos, resultado das escutas telefónicas, observação dos agentes no local, auto de apreensão, teste rápido realizado aos produtos apreendidos) que o acto da detenção surge contextualizado numa acção mais vasta que se vinha desenvolvendo havia já algum tempo, com os termos do processo inerentes à autorização das escutas telefónicas. E que perante os meios de prova que indiciavam que o recorrente se dedicava, juntamente com a mulher, à venda de produtos estupefacientes a vários consumidores da área da sua residência e que no âmbito dessa actividade o recorrente iria encontrar-se com o fornecedor na Estação, foi montada a operação que confirmou o encontro e aprendeu o produto da transacção em vias de execução.
A ocorrência que determinou a detenção constitui, assim, apenas o culminar da actuação pré-existente e a apreensão do produto a confirmação da transacção em curso.
Por outro lado, quer o recorrente quer o co-arguido, foram confrontados, durante os respectivos interrogatórios judiciais a que foram submetidos, de forma expressa e especificada, com o resultado dessa investigação prévia que levou a PJ a surpreendê-los – tal como se encontra consignado nos respectivos autos.
A detenção, não ocorreu de forma inopinada, apenas por efeito do episódio ocorrido em frente à Estação. Esse episódio, como resulta claramente explicitado no auto de detenção acabado de reproduzir nos pontos com relevo, constituiu apenas um dos actos dentro da actividade continuada, traduzida em múltiplos actos de venda e aquisição prévia para o efeito.
A PJ não se encontrava no local, “por caso” mas antes porque sabia, pelas diligências probatórias previamente realizadas, que o vendedor/correio se deslocara, para o efeito, da zona a área metropolitana de Lisboa, à Figueira da Foz, para se encontrar com o recorrente na Estação e lhe fornecer o produto.
E o fornecedor compareceu – efectivamente - no local, tendo-se deslocado, efectiva e assumidamente, desde a Amadora.
Sendo certo que o fornecedor vinha efectivamente munido de droga – além do mais as 894,2 gramas de heroína, apreendida na hora.
Sucede ainda que – tal como indicavam os contactos telefónicos interceptados – o arguido compareceu (efectivamente) no local do encontro e estabeleceu efectivo contacto com o G…, para onde se deslocou na sua viatura: “- Entrou no estacionamento da Estação e esbracejou para o G...que, acto contínuo avançou ao seu encontro” – cfr. auto de notícia a fls. 337 dos autos/5 do recurso.
É certo que a transacção não chegou a realizar-se por efeito da intervenção da PJ (nem se realizaria no local, público) mas a actividade de tráfico estava em marcha: o fornecedor deslocara-se desde a Amadora e o recorrente compareceu, no local previamente combinado, ao encontro com esse fornecedor, deslocando-se, para o efeito, à Estação para o receber e transportar na sua viatura para local mais propício à entrega do produto e pagamento do preço
Assim a actividade de tráfico imputada/fortemente indiciada, estava em execução quando os agentes (fornecedor e adquirente) foram interceptados com o produto destinado à venda.
Pelo que tendo sido detidos nesse momento, a detenção foi legal, em flagrante delito, nos termos previstos no n.º1 do citado art. 256º do CPP.
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2. INDÍCIOS do crime
No quadro da negação da especificação dos factos que determinam a detenção e a inexistência de qualquer transacção, refere o recorrente a inexistência de indícios do crime.
De onde resulta que identificados os factos e verificada a existência de flagrante delito a afirmação fica sem o suporte em que assentava.
A apreciação do fundamento do flagrante delito obrigou já à análise da matéria de facto, dos meios de prova e do conceito de crime, em termos para que se remete e aqui se renovam.
Estando indiciada, com base nas intercepções telefónicas, vigilâncias policiais e apreensão de 894,2 gramas de heroína que o arguido, no âmbito da actividade de venda de produtos estupefacientes a que se dedicava juntamente com a mulher, no acampamento onde viviam, se deslocou à Estação da Figueira da Foz receber (mais) um fornecimento.
Estando, pois, fortemente indiciada a prática do crime, com o recorte típico de crime exaurido a que se fez referência supra.

Aliás, dando maior consistência ao que acaba de ser referido, na revista levada a cabo logo a seguir, no acampamento onde vivia o recorrente (cfr. auto de notícia a fls. 336 dos autos/fls. 5 do recurso) foi apreendida na posse da mulher do recorrente, em circunstâncias em circunstâncias que revelam que estava “sintonizada” com o marido, até pela forma como tentou a fuga, a quantia de € 10.750,00.
Quantia essa que esta tinha na sua posse em dinheiro contado, vivo - cfr. mesmo auto de notícia, bem como o auto de revista e apreensão que se lhe segue.
Que não podia ter outra finalidade que não a de pecúlio “preparado” para o pagamento da transacção anunciada. Pois que a “desculpa” da venda de uma pistola não passa disso mesmo – não só não foi vista nem achada qualquer pistola, como não justificaria, minimamente, uma deslocação de Lisboa à Figueira da Foz para adquirir um pistola de alarme, de fácil aquisição na zona de onde provinha.
Do mesmo modo a “desculpa” da junção do dinheiro, em notas para a aquisição de uma carrinha (o arguido tinha uma, aquela em se fazia transportar), quer porque a mulher do arguido era titular de uma conta bancária em seu nome, não sendo, pois, pessoa desconhecedora da segurança que representa o depósito bancário. Aliás o próprio recorrente disse, no interrogatório que ela era a gestora do dinheiro da família, sendo de todo injustificada, em termos de valoração da prova com base no critério do art. 127º do CPP, que tivesse em seu poder aquela quantia, em dinheiro vivo, para uma finalidade futura e incerta – além do mais o recorrente tinha já, pelo menos, as duas carrinhas apreendidas.

Acresce que, ao contrário do que sugerem as alegações de recurso, nada indicia que o casal tenha os rendimentos alardeados que lhe permitissem ter tamanha quantia, em carteira.
Pelo contrário, os rendimentos alardeados na motivação do recurso (que não, seguramente perante o fisco ou a entidade que gere o Rendimento Mínimo de Inserção) são contrariados pelos meios de prova carreados pêra o processo, a começar pelas declarações do próprio recorrente quando, no seu interrogatório, referiu, além do mais que “a esposa recebe da Segurança Social o montante mensal de 120 contos, com a condição de os filhos frequentarem a escola” – cfr. auto de interrogatório a fls. 462 dos autos/25 do recurso.
Situação típica de quem recebe o Rendimento Mínimo de Inserção.
Também o pormenor do alegado preço de venda de um cavalo (a que o recorrente atribui no recurso o valor de € 2.500,00) é contrariado pelo depoimento da própria a mulher, quando diz, no seu interrogatório, que foi de – apenas - € 1.500,00 - Cfr. fls. 443 dos autos/14 do recurso.

Ainda neste âmbito, a decisão recorrida valorou correctamente, face ao critério do art. 127º do CPP, o depoimento do co-arguido G...quanto ao destinatário da “encomenda”.
Quer porque, ao contrário do que alega o recorrente, não identificou minimamente qualquer (outro) destinatário - pela descrição feita no interrogatório podia ser seguramente qualquer cidadão da Figueira da Foz ou que ali se encontrasse em circulação.
Quer porque contrariado pela efectiva presença do recorrente a “recebê-lo” na Estação.
Quer porque a história da pistola, arranjada para dar cobertura à presença do recorrente na Estação, não tem qualquer fundamento, uma vez que o único produto existente para transaccionar era a droga apreendida, além de não fazer qualquer sentido a deslocação da Amadora à Figueira da Foz para comprar uma pistola de alarme.
Não tem o menor fundamento a asserção veladamente contida na fundamentação, de que o despacho recorrido fundamenta a prisão em “pequenos delitos”, não verificados, que o tribunal relaciona com o tráfico de droga.
Pois que claramente, tem por fundamento, exclusivamente, a forte indiciação do crime de tráfico – punido com pena de prisão de 4 a 12 anos, como resulta do tipo supra reproduzido.
Sendo inquestionável que a ilicitude do tráfico, como crime de perigo abstracto, põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos e, como refere o Ac. TC Ac. nº 426/91 supra citado, que o crime de tráfico possui efectivamente comprovados efeitos criminógenos.
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3. Pressupostos enunciados no art. 204º do CPP - perigo de fuga e continuação da actividade criminosa
Nos termos do artigo 28º, n.º 2 da Lei Fundamental, A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou qualquer outra medida mais favorável prevista na lei.
Princípio que saiu reforçado da 4ª Revisão (1997) que introduziu expressamente no texto do preceito a “natureza excepcional”, que já se extraía do texto original.

NO entanto, apesar de declará-la excepcional, a Constituição (art. 27º, n.º3) prevê, em conformidade com a lei ordinária que tem como referência o texto fundamental, a prisão preventiva por fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos.
Embora tendo deixado de existir a categoria de crimes incaucionáveis as medidas de coacção previstas nos artigos 196º e segs. do CPP encontram-se escalonadas de forma progressiva e proporcionada às penas abstractas aplicáveis aos crimes indiciados: art. 196 (termo de identidade) – mera constituição de arguido; art. 197º (caução) - crime punível com pena de prisão; art. 198º (apresentação periódica) - crime punível com pena de prisão de máximo superior a 6 meses; art. 199º (suspensão do exercício de funções) -crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 2 anos; art. 200º (proibição e imposição de condutas) – fortes indícios de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; art. 201º (permanência em habitação) – fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; 202º (prisão preventiva) – fortes indícios da prática de crime com pena de máximo superior a 5 anos - redacção dada pela Lei 48/2077 de 29.08.

Além dos pressupostos específicos previstos no citado art. 202º do CPP, a prisão preventiva obedece aos requisitos gerais das medidas de coacção enunciados nos artigos 191º a 194º do CPP, onde se destacam:

Art. 191º: a liberdade só pode ser limitada em função de exigências processais de natureza cautelar;

Art. 193º: As medidas de coacção devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

A que acrescem, cumulativamente, os requisitos enunciados no art. 204º do CPP: verificação, no momento da aplicação da medida, de: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
A prisão preventiva não constitui, assim, a antecipação do cumprimento da pena de prisão que venha ou possa vir a ser aplicada, mas apenas uma medida de coacção de natureza cautelar. Trata-se de uma medida de natureza estritamente cautelar, visando prevenir o perigo de violação de exigências de natureza processual [alíneas a) e b) do art. 204º] e o perigo continuação da actividade criminosa – al. c) do mesmo preceito.
Da sistematização dos textos legais efectuada emerge que o perigo de continuação da actividade criminosa, não se confunde – não pode confundir-se, dada a sua natureza cautelar - com a consumação de novos actos criminosa.

Deve, antes, ser aferido em função de um juízo de prognose estabelecido “em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido” – cfr. texto da alínea c) do art. 204º.

Como observa o Ac. RC de 02.06.99, sumário disponível em htt://www.trc.pt. – doc. 244/2 – o perigo “terá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstracta ou genérica) ... o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efectivo) de continuação da actividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coacção, maxime a prisão preventiva”.

A adequação da medida resulta, no caso, desde logo, da natureza do crime reconhecido como o “mal do século”. Que o alvorecer do presente vem confirmando, pela crescente mundialização do tráfico de droga. Bem como, pela moldura abstracta aplicável ao crime, da não assunção, pelo arguido, de qualquer censura do facto, apesar da anterior condenação e cumprimento de pena pela prática do mesmo tipo de crime.
No que respeita às necessidades cautelares que o caso impõe considerou o despacho recorrido que existia perigo de continuação de actividade criminosa idêntica, em face, além do mais, da natureza do ilícito, personalidade do arguido e seus antecedentes criminais por crime idêntico.
E na verdade o arguido/recorrente já foi condenado em pena de prisão efectiva, pela prática do mesmo tipo de crime.
Referindo, a propósito, que “Apesar do que é referenciado pelo arguido J..., não é conhecida aos arguidos qualquer actividade profissional remunerada, fazendo modo de vida da actividade do tráfico de estupefacientes, conforme resulta das diligências efectuadas, designadamente das vigilâncias electrónicas”.
Considera o recorrente que “desconsiderou o tribunal a quo que tanto o arguido como a sua esposa vivem da «venda ambulante» donde chegam a retirar cerca de 1000 euros por mês e o arguido é ainda negociante de gado e cavalos, tendo actualmente oito, sendo que há pouco tempo vendeu um que lhe rendeu cerca de 2.500 euros”.
Argumentos cuja inconsistência já foi apreciada supra e para que se remete.
O mesmo sucedendo com a garantia dada pela residência na Figueira há 40 anos, tanto mais resultando do auto de notícia que o casal vive num acampamento.
Por outro lado, nem o recorrente questiona que deve atender-se à personalidade do visado. Manifestada não só na natureza dos factos indiciados como em outros elementos de prova constantes do processo ou cognoscíveis pelo tribunal, como os relativos aos antecedentes criminais relativos ao mesmo tipo de crime.
Sendo certo que o sugerido exercício regular de outra actividade não tem qualquer suporte probatório, antes é negado pela análise supra efectuada.
O quadro focado pela decisão recorrida é ainda reforçado natureza do crime, de consenso, onde existem fortes relações de cumplicidade entre fornecedores e adquirentes que faz com que, mantendo-se em liberdade mantém os contactos com fornecedores e compradores, objectivamente indutores da continuação, “honrando” os compromissos estabelecidos.
O que, dento do critério apontado, evidencia um concreto perigo de continuação da actividade criminosa.
A manutenção do arguido em liberdade do arguido/recorrente não acautela as necessidades cautelares exigidas, nomeadamente a de obrigação de permanência na habitação, tanto mais que, no caso, se indicia que constituía o “centro” da actividade de tráfico, podendo, com facilidade manter uma actividade através de contactos dentro da residência ou por telefone.
O mesmo sucedendo com a vagamente sugerida apresentação periódica, pois que, para além da ausência de qualquer atitude de reprovação da conduta (que o recorrente não assume) deixaria intactos os perigos que se pretendem acautelar, fora das horas de apresentação. Se nem o cumprimento de pena de prisão efectiva por crime de tráfico foi suficiente para impedir a prática dos factos ora indiciados.

Considera o recorrente que inexiste tal perigo porque “vive na Figueira da Foz há cerca de 40 anos — e há 4 na mesma casa — tem 10 filhos, sendo que pelo menos 6 se encontram a seu cargo” e como tal não pode ser considerado como alguém com «extrema mobilidade».
Ora, o perigo de fuga não é da residência, nem dos filhos.
Mas do recorrente, atentas as circunstâncias concretas do caso e personalidade do arguido, posto perante a ameaça da pena aplicável e dos antecedentes pelo mesmo tipo de crime, tanto mais tendo já cumprido pena pelo mesmo tipo de crime.
O recorrente critica ainda as referências feitas no despacho recorrido ao “alarme social causado pela prática de crimes como o agora indiciado, designadamente numa zona onde reconhecidamente o tráfico de produtos estupefacientes tem sido marcante” e “releva-se ainda estar a actividade de tráfico de estupefacientes na base da maior parte dos pequenos delitos que por ai se vão praticando e que são fonte de grande intranquilidade pública”.
Ora, tais as afirmações em causa, além de constituírem meros argumentos de reforço, e não fundamento autónomo da medida de coacção (assente apenas no perigo de fuga e de continuação da actividade a que já se fez referência) reportam-se aos crimes associados pelas populações como meio ou por consequência do efeito de viciação do consumo. E, como se viu, é reconhecido o efeito criminógeno dos produtos estupefacintes.
Pelo que, em conclusão, improcedem todos os fundamentos do recurso.


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III
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso. ---
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC.