Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
96/21.1GBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: FURTO QUALIFICADO
TENTATIVA
DESISTÊNCIA
Data do Acordão: 01/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 22º, N.º 2, 24º, 203º, N.º 1, E 204º, N.º 2, ALS. A) E E), DO CÓDIGO PENAL.
Sumário:

I. Iniciada que foi a execução do propósito criminoso do arguido, em casos em que não fossem razões alheias à sua vontade seguramente aos atos praticados se seguiriam outros constitutivos do tipo de crime, o ato de execução aparece já como parte integrante da verdadeira ação típica.
II. Não é relevante, para os efeitos do art. 24º do C.P., a conduta do arguido que, surpreendido pelo dono da casa, desiste dos seus intentos e abandona o local sem consumar o crime de furto, por resultar a desistência da ponderação pelo arguido das desvantagens ligadas à continuação da execução do crime, não traduzindo um verdadeiro arrependimento.
Decisão Texto Integral:

          Acordam na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

          I.

          No processo comum com intervenção de tribunal coletivo que, com o nº 96/21.1GBMGL, corre termos pelo Juízo Central Criminal de Viseu foi decidido (transcrição parcial):

A- ARGUIDO AA:

1- Condenar o arguido AA, em co-autoria material, pela prática de um crime de violência depois da subtração, p. e p. pelo art. 211º C.Penal (por referência ao art. 210º, n.º 1 e 2, al. b), 204º, n.º 1, al. a) e 202º, al. a) em concurso aparente com um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts 203º, n.º 1, 204º, n.º 1, al. a) e 202º, al. a) todos do C.Penal e com um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 todos do C.Penal) numa pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão (NUIPC 16/21.3GANLS);

2- Absolver o arguido AA da prática, em coautoria material e na forma consumada, um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, als. a) e f), ambos do C.Penal - NUIPC’s 113/21.5GCSAT

3- Condenar o arguido AA em coautoria material pela prática de crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e), ambos do C.Penal, numa pena de 1 ano e 6 meses de prisão; - NUIPC’s 125/21.9GCSAT;

4- Absolver o arguido AA da prática em coautoria material e na forma consumada do crime de furto qualificado, p. e p. pelos art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) e 202º, al. f) ii, todos do C.Penal - NUIPC’s 96/21.1GBMGL e, em consequência, decide-se:

Convolar este crime (NUIPC’s 96/21.1GBMGL) para o crime de furto qualificado p. e p. pelo art 203º, 204º, nº1, al f) ambos do C.Penal e condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material deste crime, numa pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão

6- Condenar o arguido AA, em coautoria material e na forma consumada, um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f), ambos do C.Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão - NUIPC’s 135/21.6GCSAT,

7- Condenar o arguido AA, em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f), ambos do C.Penal numa pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão – NUIPC 387/21.1GAMLD;

8- Absolver o arguido AA da prática, em coautoria material e na forma tentada, de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art. 22º, 23º, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) por referência ao art. 202º, al. e), todos do C.Penal - NUIPC 368/21.4GATBU

9- Absolver o arguido AA da prática em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) e 202º, al. f) ii, todos do C.Penal – NUIPC 150/21.0GDSCD;

10- Condenar o arguido AA, pela prática, em coautoria material e na forma consumada um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art. 22º, 23º, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) por referência ao art. 202º, al. d), todos do C.Penal e um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191º do mesmo diploma legal, numa pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão - NUIPC 112/21.7GBMGL.

11- Absolver o arguido AA da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f), ambos do C.Penal - NUIPC 184/21.4GATBU.

Em cúmulo jurídico, decide-se condenar o arguido AA numa pena única de 7 (sete) anos de prisão.

* B- ARGUIDO BB

1- Absolver o arguido BB da prática em co-autoria material, de um crime de violência depois da subtração, p. e p. pelo art. 211º C.Penal (NUIPC 16/21.3GANLS)

2- Absolver o arguido BB da prática, em coautoria material e na forma consumada, um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, als. a) e f), ambos do C.Penal – (NUIPC’s 113/21.5GCSAT);  

3- Condenar o arguido BB em coautoria material pela prática de crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e), ambos do C.Penal, numa pena de 1 ano e 6 meses de prisão; - NUIPC’s 125/21.9GCSAT;

4- Absolver o arguido BB da prática em coautoria material e na forma consumada do crime de furto qualificado, p. e p. pelos art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) e 202º, al. f) ii, todos do C.Penal - NUIPC’s 96/21.1GBMGL e, em consequência, decide-se:

Convolar este crime (NUIPC’s 96/21.1GBMGL) para o crime de furto qualificado p. e p. pelo art 203º, 204º, nº1, al f) ambos do C.Penal e condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material deste crime, numa pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;

6- Condenar o arguido BB, em coautoria material e na forma consumada, um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f), ambos do C.Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão - NUIPC’s 135/21.6GCSAT,

7- Absolver o arguido BB da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f), ambos do C.Penal – NUIPC 387/21.1GAMLD;

8- Condenar o arguido BB, como autor material, de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art. 22º, 23º, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) por referência ao art. 202º, al. e), todos do C.Penal, numa pena de 1(um) ano e 6 (seis) meses de prisão - NUIPC 368/21.4GATBU

9- Absolver o arguido BB da prática em coautoria material e na forma consumada, um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) e 202º, al. f) ii, todos do C.Penal – NUIPC 150/21.0GDSCD.

10- Condenar o arguido BB, pela prática, em coautoria material e na forma consumada um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art. 22º, 23º, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) por referência ao art. 202º, al. d), todos do C.Penal e um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191º do mesmo diploma legal, numa pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão - NUIPC 112/21.7GBMGL .

11- Absolver o arguido BB da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f), ambos do C.Penal - NUIPC 184/21.4GATBU.


*

Em cúmulo jurídico, decide-se condenar o arguido BB numa pena única de 4 (quatro) anos e 6(seis) meses de prisão.

*

C- (…)

*

Condenar os arguidos nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artº8º nº9 do Reg. Custas Processuais e Tabela III anexa).

No que respeita ao pedido de perda de vantagens deduzido pelo Ministério Publico decide-se julgá-lo parcialmente procedente por parcialmente provado e em consequência decide-se:

» Declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 18.840,00 (dezoito mil oitocentos e quarenta euros), condenando os arguidos AA e BB no seu pagamento.

* Após transito:

(…)


*

          Inconformados com a respetivas condenações recorreram os arguidos  BB e AA concluindo as respetivas motivações do seguinte modo (transcrição):

                                                           *

(…)


*

Recebidos os recursos a eles respondeu, em primeira instância, o Ministério Público, defendendo a improcedência de ambos.

*

          Remetidos os autos a esta Relação, o Ministério Público emitiu parecer apenas quanto ao recurso do arguido BB, defendendo a sua improcedência, uma vez que o arguido AA requereu a realização de audiência.

*

           Foi designada data para realização da audiência, à qual se procedeu com observância do legal formalismo.

                                                           *

          II.

          Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões do recurso que delimitam a apreciação a fazer - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - e que, analisando as sínteses conclusivas, temos que:

          No recurso do arguido BB este tribunal é chamado a apreciar:

          (…)

          - se nos episódios 3º, 7º e 9º a tentativa não é punível por ser impossível por inexistência de bens e por ter havido desistência voluntária de atuar, vg no episódio 9º.

          (…)

                                                           *

          O recorrente AA pretende que este Tribunal aprecie:

          - se o acórdão recorrido é nulo no que concerne aos episódios 1º (NUIPC 16/21.3GANLS), 6º (NUIPC 387/21.1GAMLD) e 9º (NUIPC 112/21.7GBMGL) por violação do disposto nos artigos 358º, 359º e 379º, nº 1, alínea b) do CPP.

          (…)

                                                           *

         

                                                           *

          Apreciação do recurso do arguido BB.

(…)

          Vejamos agora se as tentativas provadas nos episódios 3, 7 e 9 não são puníveis nos termos do artigo 24º do Código Penal pelo facto de o recorrente ter "espontaneamente abandonado a execução do crime", isto é, ter alegadamente omitido "a prática de mais atos de execução" ou, no caso do episódio 9, ter "desistido da prática do crime".

          A pretensão invocada pelo recorrente impõe que se reflita sobre o iter criminis. Como se disse no processo 14/17.1 JAPRT.G1 in ww.dgsi.pt, trata-se de um caminho que, em regra, se percorre em crescendo: inicia-se com uma ideia, uma intenção, uma resolução de praticar um crime, ideia esta ainda não punível; passa à preparação do crime, preparação, em regra, também não punida (porque como diz Roxin in Problemas Fundamentais de Direito Penal – Coleção Vega Universidade, 296, ainda não é abalada a paz jurídica), mas já comportando exceções; continua pelos atos de execução (artigo 22º, nº 2 do Código Penal), até chegar à consumação.

          (Não tem, contudo, de ser sempre assim: nos crimes formais, o crime consuma-se com a própria ação; na decisão súbita não há lugar a atos preparatórios; nos crimes negligentes não há decisão de cometer o crime).

          Interessa-nos, então, a diferença entre atos preparatórios e atos de execução.

          O Código não define atos preparatórios. Diz apenas que não são puníveis, salvo disposição em contrário. Em jeito de definição diga-se que são atos preparatórios aqueles que delineiam ou programam o crime, mas que não são ainda atos de execução, por estarem ainda longe da consumação do crime.

          Os atos de execução, contêm eles próprios já “um momento de ilicitude”.

          De acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias haverá atos de execução e, portanto, tentativa, quando um certo ato preenche um elemento constitutivo de um tipo de ilícito, quer apreciado na base de um critério de idoneidade, normalidade ou experiência comum, quer na base do plano concreto da realização, aparecendo como parte integrante da execução típica.

          Encontramos no artigo 22º, nº 2 do Código Penal a objetivação deste entendimento.

          Aí se diz que são atos de execução:

            a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
            b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
            c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

          As alíneas a) e b) tanto podem funcionar cumulativa como alternativamente.

          Aproximemo-nos do caso em apreço. O recorrente e o outro arguido, conjugando esforços e vontades elaboraram um plano para se apropriar de objetos de valor e quantias monetárias que encontrassem no interior de residências.

          Para tanto no dia 16/09/2021  deslocaram-se à residência de CC (episódio 3) e depois de baterem à porta e não serem atendidos, deslocaram-se para as traseiras da residência e tentaram entrar por uma janela, o que só não conseguiram porque a filha do dono da residência a fechou; de igual modo no dia 18/09/2021 o recorrente entrou na residência de DD ( episódio 7) que se encontrava deitada, a ela acedendo por uma varanda e abrindo uma portada de uma janela tendo-se colocado em fuga quando interpelado pela dona da casa; no dia 06/12/2021 o arguido dirigiu-se a casa de EE ( episódio 9) sita em ... e percebendo não estar ninguém em casa (o saco do pão ainda estava na porta, como disse o filho do proprietário) o recorrente abriu o portão que dá acesso ao logradouro, depois acedeu à porta da garagem que estroncou, tendo sido surpreendido pelo filho do proprietário no momento em que saia da garagem, alegadamente à procura do cemitério.

          Ora, todos estes comportamentos já contêm eles próprios, momentos de ilicitude, porque se ainda não produzem a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, antecipam já, claramente, uma situação de perigo para esse bem.

          Tais atos são, inequivocamente, atos de execução e não apenas preparatórios. O arguido praticou atos constitutivos do tipo legal (a introdução na propriedade privada dos ofendidos) e, não fossem razões alheias à sua vontade, seguramente aos atos praticados se seguiriam outros constitutivos do tipo de crime. Portanto, iniciada que foi a execução do propósito criminoso, do plano concreto do arguido, o ato de execução aparece já como parte integrante da verdadeira ação típica.

          Estamos, pois, perante tentativas da prática de furtos qualificados p.p. artigo 203º, nº 1, 204, nº 2, alíneas a) e e) do Código Penal, tentativas estas que não eram inidóneas, nem impossíveis.

          Assim sendo improcede, também neste segmento, o recurso do arguido.

          Vejamos agora, finalmente, a invocada relevância da desistência.

          Defende o recorrente, especialmente no caso do episódio 9º, que tendo o arguido desistido voluntariamente de consumar o furto, a desistência tornou não punível a tentativa, nos termos do artigo 24º do Código Penal.

          Dispõe esta norma que: 

          1 - A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime.

            2 - Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra.

          Como se percebe da letra da Lei se o agente desistir de praticar um crime e a desistência for relevante a tentativa deixa de ser punível.

          E a desistência é relevante quando:

          - o agente abandona voluntária e espontaneamente a execução do crime (desistência voluntária) – artigo 24º, nº 1, 1ª parte.

          - o agente impede voluntária e espontaneamente a consumação, isto é, evita que o resultado do crime se produza (arrependimento ativo eficaz) – artigo 24º, nº 1, 2ª parte.

          - o agente impede a verificação do resultado não compreendido no tipo (desistência voluntária em crimes consumados formais) – artigo 24º, nº 1, 3ª parte.

          - o agente faz um esforço sério para evitar a consumação do crime ou o seu resultado (arrependimento ativo ineficaz) – artigo 24 nº 2.

          A desistência para ser relevante tem de ser espontânea e voluntária. E assume tais características quando parte de uma escolha livre do arguido que podia prosseguir na atuação e, por si mesmo, regride. Usando as palavras de Germano Marques da Silva o agente podia prosseguir, mas não quer.

          Será, então, relevante a desistência do arguido que, vendo-se surpreendido pelo dono da casa, desiste dos seus intentos? De facto, o arguido acabou por sair do local sem consumar o crime. No entanto, mesmo que se não entenda que mais do que uma desistência esteve em causa uma fuga, o que aconteceu é que perante a surpresa da chegada ao local do proprietário da residência, para o arguido foi manifesto que as desvantagens ligadas à continuação da execução, superavam as vantagens esperadas. Esta desproporção entre o que podia perder e iria ganhar, na perspetiva do arguido, não o compensava e, por isso, deixou o local. Portanto o arguido foi posto perante a possibilidade de eleger uma de duas condutas, mas uma delas apresentava riscos que uma qualquer pessoa razoavelmente não correria.

Assim pode dizer-se que, mesmo que desistência houvesse, tal desistência não é relevante, porque não traduz um verdadeiro arrependimento (em rigor só se pode falar de arrependimento na tentativa acabada e no crime consumado, mas não exaurido, e não se percebe que o arguido tenha sentido qualquer arrependimento, enquanto estado de alma decorrente da genuína contrição).

          A questão que se põe é, então, a de saber o que se exige para que, considerando que se está perante uma desistência, se considere tal desistência relevante ou, dito de outro modo, se são ou não indiferentes os motivos determinantes da desistência, quando, objetivamente, o arguido não foi impedido (pelo menos fisicamente) de prosseguir.

          Há quem entenda que são indiferentes os motivos da desistência. Isto é, que não é exigível que os motivos da desistência sejam nobres, podendo até ser pouco éticos. (Neste sentido Germano Marques da Silva in Direito Penal Português – Parte Geral – II – Teoria do Crime, 244, citando Nelson Hungria - Comentário ao Código Penal, I, Tomo II, 4ª edição, 95- a referência, feita a folhas 269 por Germano Marques da Silva contém lapso na referência à 4ª edição): “Não se faz mister que o agente proceda virtutis amore ou formidine poenae, por motivos nobres ou de índole ética (piedade, remorso, despertada repugnância pelo crime) ou por motivos subalternos, egoísticos (covardia, medo, receio de ser descoberto, deceção com o escasso proveito que pode auferir): é suficiente que não tenha sido obstado por causas exteriores, independentes da sua vontade”. Nelson Hungria chega também a invocar Feuerbach quando este afirma ser uma singular contradição da lei penal, esta não suspender ou atenuar o seu rigor contra aqueles que, por ela intimidados, abandonam a ação criminosa ou evitam os seus efeitos.

          Em idêntico sentido decidiu o Acórdão STJ de 26/03/92 citado também por Germano Marques da Silva “se o agente desiste do crime de violação que intentava, por ter acreditado na declaração da vítima de que sofria de doença sexualmente transmissível, esta desistência é relevante nos termos do artigo 24º do Código Penal (…). Não é necessário que tal desistência resulte de um ato volitivo espontâneo que nasça de circunstâncias ético-sociais que traduzam designadamente arrependimento e boa formação moral”.

          Este entendimento não é isolado. Encontramo-lo também em Mezger - in Tratado de Derecho Penal, Tomo II (tradução de Rodriguez Muñoz – Editorial Revista de Derecho Privado), 274- quando afirma que  a desistência não necessita de ter a sua base num motivo de índole ética; também Cuello Calon in Derecho Penal, Tomo I – Décimotercera edición, Bosch Casa Editorial, 592 refere, na sequência da discussão entre aceitar apenas motivos “bons e morais” ou também “de conveniência”, que a desistência é sempre bem vinda ainda que seja provocada por medo da pena, embora o arguido possa ter de responder pelos factos praticados antes da desistência, se puníveis (597). Para Jescheck in Tratado de Derecho Penal Parte General-Cuarta Edición –Editorial Comares – Granada, ao autor deve perdoar-se a pena já merecida se voluntariamente aceita de novo o império do direito.

É também a ideia de regresso ao direito por parte do desistente que é defendida, entre nós, por   Figueiredo Dias.

          Regressar ao direito não deverá ser apenas distanciar-se momentaneamente do ilícito, mas verdadeiramente alterar a vontade, radicalmente mudar a atitude, definitivamente inverter o rumo. É nesta mudança que terá de encontrar-se a voluntariedade e a espontaneidade, enquanto pressupostos de uma decisão livre e não condicionada por elementos exteriores que obriguem o arguido a desistir.

          Mas a avaliação deste regresso ao direito nem sempre é fácil de levar a cabo e pode até ser impossível, ou muito difícil, de afirmar com certeza, sobretudo em termos definitivos. Parece-nos, então, que em face do propósito legal em que a não punição aparece como recompensa pela desistência, para que esta seja considerada relevante, terá, pelo menos, de encontrar-se na desistência algum mérito que deva ser premiado, desde que se revele impactante na intenção criminosa do agente. (Sobre a necessidade de se perceber que o fundo motivador da desistência tem de ter reflexo na intenção criminosa do desistente cfr. a interessante dissertação de Rodrigo Duarte “A regra da desistência”- FDUC.)

          No caso em apreço é certo que o recorrente, em teoria, podia efetivamente prosseguir os seus intentos. Não foi, fisicamente, impedido pelo dono da casa que o surpreendeu no local. Mas na ponderação dos prós e contras da continuação, o recorrente optou por não arriscar, para evitar as consequências que seguramente teria de suportar. A desistência assim determinada não foi resultado de uma atitude meritória e, nessa medida, verdadeiramente, não foi nem voluntária, nem espontânea, nem um regresso ao direito. Na ausência de mérito com impacto na intenção criminosa do agente, que justifique o prémio da não punição, fica inviabilizado o afastamento da punição da tentativa.

          Improcede também este segmento do recurso do recorrente BB.


*

         

 (…)

         


*

          V.

DECISÃO.

Em face do exposto decide-se:

1.Julgar improcedente o recurso do arguido BB, confirmando-se, quanto a este arguido, a decisão de 1ª instância.

2. Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA e, consequentemente:

a) - altera-se a matéria de facto nos seguintes termos:

- Elimina-se do ponto 3 da matéria de facto provada o segmento “se necessário com recurso a violência”;

-Passa a constar da matéria de facto não provada a afirmação de que não se provou que o arguido AA e o indivíduo cuja identidade se não apurou e que o acompanhou no episódio 1º, tivessem acordado recorrer à violência se necessário;

          - Substitui-se nos pontos 31 a 37 da matéria de facto provada fixada em 1ª instância o nome do arguido FF pela designação individuo cuja identidade não se apurou,

- Passa a constar da matéria de facto não provada a afirmação de que arguido FF foi o autor do furto a que se reportam os pontos 31 a 37 da matéria de facto.

          b) Em consequência da alteração factual acima enunciada:

- Revoga-se a decisão de 1ª instância relativa ao episódio 1º - NUIPC 16/21.3GANLS e absolve-se o arguido AA da prática do crime de violência após a subtração p.p. art. 211º do CP, condenando-o pela prática em coautoria de um crime de furto qualificado p p 203 e 204 nº 1 a) e 202 a) do CP, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão;

- Revoga-se a decisão de 1ª instância relativa ao episódio 6º NUIPC 387/21.1GAMD e absolve-se o recorrente AA da prática do crime de furto qualificado por que foi condenado em 1ª instância;

- Reformula-se o cúmulo jurídico efetuado e condena-se o recorrente AA na pena única de 5 anos de prisão efetiva.

Em tudo o mais se mantém o decidido em 1ª instância.

          Custas pelo recorrente BB, fixando-se a taxa de justiça em 4 ucs.

O recorrente FF não suportará o pagamento de custas, dada a parcial procedência do recurso.

          Notifique.

          Coimbra, 10 de janeiro de 2024

          Maria Teresa Coimbra

          Capitolina Fernandes Rosa

          Rosa Pinto

          Olga Maurício