Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2455/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PARTICULAR
DEVER DE ARBITRAR INDEMNIZAÇÃO A FAVOR DO EXPROPRIADO
Data do Acordão: 10/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO - TRIBUNAL JUDICIAL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1554º DO C.CIV. .
Sumário: I – A obrigação de indemnizar é uma indemnização por acto lícito, sendo que para a determinação do dano ( ou prejuízo ) e fixação do montante indemnizatório valem as regras gerais aplicáveis à obrigação de indemnizar – artº 562º e segs. do C. Civ. .
II – Pretendendo o dono do prédio expropriado ser indemnizado terá ele de alegar factos consubstanciadores dos prejuízos ou danos causados pela constituição da servidão e seu uso, sem o que não cabe ao tribunal arbitrar qualquer indemnização no processo expropriativo .
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- A... e mulher B..., residentes em Toronto, Ontário, Canadá, instauraram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra C... e mulher D..., residentes no Lugar e freguesia de Ventosa do Bairro, concelho de Mealhada, pedindo que seja declarada a constituição, mediante expropriação por utilidade particular, de uma servidão de passagem a pé e com veículos agrícolas, que descrevem, a incidir sobre os prédios dos réus que identificam e a favor do prédio dos autores, referenciado no artigo 1.ºda petição inicial, e responsabilizando-se pelo pagamento da indemnização devida pelos prejuízos a causar aos RR..
Alegam, para tanto, que são donos de dois prédios sitos no lugar e freguesia de Ventosa do Bairro, e que entre estes interpõe-se o prédio dos réus. Invocam, ainda que um desses seus prédios não tem ligação com a rua pública, pelo que o caminho para esta se fazia passando, primeiro, pelo prédio dos réus e depois pelo outro prédio dos autores. Porém, há cerca de 3 ou 4 anos, os réus construíram um muro, impedindo desse modo a passagem para a via pública.
Terminam, assim, exigindo a constituição de uma servidão de passagem a pé e para máquinas agrícolas, a qual deverá ser constituída por uma faixa de terreno no prédio dos réus, e do modo que descrevem.
I.2- Citados, os réus contestaram, sustentando, em síntese, que o acesso ao prédio dos autores sempre se fez por outro prédio que não o dos réus, tendo os autores conscientemente perdido essa comunicação.
Organizada a peça saneador e condensadora, teve ligar o julgamento, após o que se respondeu à matéria de facto constante da base instrutória, a qual não sofreu qualquer reclamação.
Por último foi proferida sentença na qual se julgou parcialmente procedente a acção, condenando-se, em consequência, os réus Silvério Ferreira Lucas Batista e Maria Fernanda Ventura Soares:
a) A reconhecerem a existência de uma servidão de passagem a pé e com veículos agrícolas, a incidir sobre o prédio dos réus, identificado em 3), a favor do prédio dos autores, identificado em 1), que se declara constituída mediante expropriação por utilidade particular;
b) A qual deverá exercer-se sobre a faixa de terreno identificada em 19) e 26) a 28), devendo os autores proceder às obras necessárias ao exercício material do referido trânsito.
No mais absolveram-se os réus.
I.3- Apelaram os réus, tendo culminado a sua alegação com estas conclusões:
1ª- O prédio dos AA. inscrito na matriz sob o nº4.685, é encravado, tendo sido constituída a favor desse prédio uma servidão de passagem sobre o prédio rústico dos RR./apelantes;
2ª- Nos presentes autos foi efectuada uma perícia que determinou as obras a efectuar, o local por onde deverá ser exercida a servidão, a extensão desta, e valor do terreno a expropriar;
3ª- Em tal peritagem foi indicado um montante como sendo o valor do terreno a expropriar;
4ª- Pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao dano sofrido. No caso dos autos, já deles constam alguns elementos tendentes a quantificar o dano ou prejuízo sofrido;
5ª- O tribunal não podia ignorar a existência do prejuízo sofrido, embora não dispusesse do seu valor exacto;
6º- Devem os AA./apelados ser condenados a pagar aos apelantes a indemnização pelo prejuízo sofrido com a constituição da servidão de passagem, que vier a ser liquidada em execução de sentença.
I.4- Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
Foi a seguinte a factualidade dada como provada pela 1ª instância, e que não vem posta em causa neste recurso:
1- Encontra-se inscrito a favor do autor marido, na matriz rústica da freguesia de ventosa do Bairro, concelho de Mealhada, sob o n.º4685, o seguinte prédio:
“Um terreno a vinha com área aproximada de 1200 m2 no sítio dos Tapados, limite do Lugar e freguesia de Ventosa do Bairro, concelho de Mealhada, confinando a norte com Sidónio dos Santos Baptista, a nascente com Artur Ferreira dos Santos, a sul com Silvério Ferreira Lucas Baptista (os réus), e a poente com António Lopes Moreira e outros, com o valor patrimonial de Esc.8.380$00, e não descrito na Conservatória do registo Predial de Mealhada. (A))
2- Encontra-se também inscrito a favor do autor marido, na matriz rústica da freguesia referida, um outro prédio rústico no mesmo sítio dos Tapados que se identifica pela forma seguinte:
“Um terreno a vinha e pomar com a área aproximada de 11.700m2, confinando a norte com José Baptista e outro, a nascente com a estrada e a sul e poente com Silvério ferreira Lucas Baptista, não descrito na Conservatória do registo Predial de Mealhada.”.(B))
3- Entre este último imóvel e aquele identificado em 1) interpõe-se apenas a seguinte propriedade dos réus:
“Um terreno a vinha com oliveiras e terra de semeadura, no sítio dos Tapados, da referida freguesia de Ventosa, com a área aproximada de 7.120 m2, a confrontar do Norte com Herdeiros de António Pessoa de Campos, do nascente com Estrada, do sul com Maria Duarte Moreira e do poente com António Ferreira Baptista e Povo, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Mealhada e inscrito na respectiva matriz sob o artigo rústico n.º 1.656. (C)).
4- Há cerca de 3 ou 4 anos, os réus construíram um muro de vedação à face da estrema sul do seu prédio com a propriedade dos autores supra referenciada sob 2). (D)).
5- E aplicaram uma sebe de arame à face da estrema norte do mesmo prédio, junto ao limite sul da propriedade supra identificada sob 1). (E)).
6- Não permitindo com esses dois obstáculos o trânsito a pé entre os dois imóveis dos autores. (F)).
7- Desde então, a vinha referida em 1) ficou ao abandono, tomada por toda a espécie de arbustivas daninhas, tendo morrido a maior parte das suas cepas. (G).
8- O prédio referido em 1) veio ao domínio dos autores por o haverem adquirido onerosamente de Quirino Nogueira Coelho, viúvo, residente em Ventosa do Bairro e de Baptista Varandas e mulher Isaura de Almeida Coelho, residentes em Horta, Tamengos, Anadia, mediante contrato formalizado por escrito particular datado de 29/12/1976 e assinado pelo próprio punho dos alienantes, no qual estes declararam ter recebido, a título de sinal e pronto pagamento, o preço de Esc. 80.000$00 acordado para a venda. (1.º)
9- Os autores receberam de imediato o prédio que passaram a possuir em exclusividade na qualidade de donos, como se a escritura de venda se houvesse realizado na referida data.(2.º)
10-Cavando o terreno e mondando as ervas daninhas. (3.º)
11- Podando, empando e sulfatando as videiras. (4.º).
12-Recolhendo as respectivas uvas na época da colheita. (5.º).
13-Pagando pontualmente a respectiva contribuição autárquica. (6.º).
14-Tudo à luz do dia e sob a vista de toda a gente. (7.º).
15-Sem oposição ou reparo de quem quer que fosse. (8.º).
16-E sem qualquer interrupção até à presente data. (9.º).
17-O prédio referido em 2) confina em toda a sua estrema sul com a estrada principal da localidade de Ventosa do Bairro. (10.º).
18-Os dois prédios dos autores referidos em 1) e 2) estão separados, na medida mais curta, por uma distância de 33,20 metros. (11.º).
19-Que corresponde exactamente à largura da propriedade dos réus supra identificados em 3), tomada ao longo da sua estrema nascente. (12.º)
20-O prédio dos autores supra identificado em 1) não tem actualmente qualquer comunicação com a via pública. (13.º)
21-Como nunca teve. (14.º).
22-Em Dezembro de 1976, quando o prédio foi entregue aos autores pelos seus anteproprietários, David Baptista Varandas e mulher, existia nele uma vinha em plena produção. (15.º)
23-Os trabalhadores dos autores transportavam, manualmente e à cabeça, os utensílios de trabalho, as vides podadas, as estacas para a empa e as uvas na altura da colheita para o prédio descrito em 1). (17.º)
24-Sob as razões infra referidas sob 29.º a 33.º, os demandantes acediam a esse seu prédio atravessando a pé o imóvel dos réus. (18.º)
25-O muro e a sebe referidas em 4) e 5) impossibilitaram o amanho e a exploração da vinha isolada mencionada em 1). (20.º).
26-O troço mais curto, mais cómodo e causador de menores prejuízos para a sua constituição é sobre o prédio dos réus supra identificado em 3). (21.º).
27-Começando no prédio dos demandantes supra referido em 2) e atravessando o imóvel dos réus ao longo de toda a sua estrema nascente. (22.º).
28-Correndo numa faixa com a extensão de 33,20 metros, ao longo da regueira foreira aí existente, até entrar na estrema sul do prédio isolado. (23.º).
29-A configuração física dos terrenos no local não possibilita outra forma alternativa de acesso ao prédio. (24.º).
30-A sua estrema poente é definida por uma rampa e um muro divisório dos terrenos confinantes, com cerca de 3 metros de altura. (25.º).
31-E vai dar às traseiras da casa de habitação aí existentes. (26.º).
32-Enquanto pelos lados norte e nascente os terrenos apresentam um acentuado desnível. (27.º)
33-Que tornaria praticamente impossível o trânsito de pessoas e veículos agrícolas. (28.º).
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II.2 - de direito
A única questão que nos é submetida para decidir no presente recurso prende-se com a obrigação de indemnizar a cargo do dono do prédio dominante estabelecida no art.1554º/C.C. (como os demais que sem origem se referirão).
O tribunal recorrido considerou que o prédio descrito em 1) dos AA. é encravado, reconhecendo por isso a existência de uma servidão de passagem a pé e com veículos agrícolas, a incidir sobre o prédio dos RR., que declarou constituída mediante expropriação por utilidade particular, autorizando os AA. a proceder ás obras necessárias ao uso e conservação do direito de servidão.
Os RR. aceitaram, já que não discutem, o reconhecimento do direito de servidão, o local de exercício desse direito no seu prédio, bem como o direito a aí serem feitas as obras para tanto necessárias.
Como decorre das transcritas conclusões, os RR. limitam o desfavor da sentença à não condenação dos AA. à indemnização correspondente ao prejuízo sofrido.
Podemos desde já adiantar que não têm razão.
Dispõe o art.1554ºque pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido.
Como se salientou na sentença, esta obrigação de indemnizar é uma indemnização por acto lícito, sendo que para a determinação do dano (ou prejuízo) e fixação do montante indemnizatório, valem as regras gerais aplicáveis à obrigação de indemnizar (arts.562º e segs.).
Ponderou-se na sentença que “A atribuição de uma indemnização, ainda que por factos lícitos, pressupõe a existência de prejuízos sofridos. In casu, tal ainda não foi demonstrado, até porque não foram os réus que pediram que lhes fosse fixada uma indemnização. Por isso, neste momento, e por inexistência dos necessários pressupostos não é possível fixar a referida indemnização.
Fez-se ainda notar que “o artigo 661º/2, C.P.C., só tem aplicação quando o tribunal verifica a existência do dano mas não tem elementos para fixar o seu valor. Só neste caso deve relegar essa fixação para o que se liquidar em execução de sentença e isto quer se tenha peticionado um montante determinado, quer formulado um pedido genérico.”.
Assente nestes argumentos, entendeu a 1ª instância nenhuma indemnização há a arbitrar neste processo.
Não vemos motivo para não acolher esta fundamentação.
Do citado art.1554º decorre, pois, que a constituição coerciva da servidão de passagem obriga o dono do prédio encravado a indemnizar ao dono do prédio serviente o prejuízo causado por esse acto lícito. Prejuízo que tanto abrange os prejuízos resultantes da constituição da servidão, como os danos provenientes do exercício da mesma. Cfr. P. Lima e A. Varela «C.C. anotado», Vol.III, pág.643
Ora, valendo, como se disse, os princípios gerais que regem a obrigação de indemnizar, pretendendo ser indemnizado, o proprietário do prédio onerado terá de alegar, trazendo aos autos, factos consubstanciadores dos prejuízos ou danos (emergentes e lucros cessantes) causados pela constituição da servidão e seu uso.
Compreende-se que, opondo-se os RR. à obrigação de dar passagem pelo seu prédio como pretendiam os AA.- foi essa a posição que assumiram na contestação – não tenham previsto os prejuízos que poderiam resultar da previsível constituição da servidão, pedindo uma indemnização a cargo dos AA. conforme estabelecido no apontado art.1554º, ainda que se relegasse para a fase executiva o apuramento do montante da condenação.
É sabido que o nosso processo civil consagra o princípio do dispositivo ou do pedido, encontrando-se no art.3º a consagração desse princípio, segundo o qual “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes…”.
De harmonia com tal princípio, sobre as partes recai o impulso processual. E assim, cabia aos RR. a iniciativa da formulação de pedido indemnizatório pela via da reconvenção, o que não fizeram.
Mas isso não significa que tenham ficado inibidos de o fazer em outro momento. Para além de não terem cumprido o ónus da formulação do pedido, não havia neste processo elementos factuais com base nos quais se obrigassem os AA. a indemnizar os RR..
A condenação agora pretendida pressuporia a manifestação de vontade dos RR. com a necessária alegação e demonstração fáctica da existência de prejuízos ou da sua concreta possibilidade.
Mesmo a liquidação em execução de sentença (art.661º/2,C.P.C.) só é possível quando se trate de concretizar ou fixar o objecto que se sabe que existe, mas falta definir, ou quando há apenas que quantificar algo que já se evidenciou que existe.
Ora, como se referiu, nada alegaram nem pediram os RR./recorrentes quanto a actuais ou previsíveis prejuízos a sofrer com a passagem pelo seu prédio. Por isso que o tribunal não podia fixar a referida e agora almejada indemnização.
Nem se diga, como os recorrentes, que a resposta do perito era suficiente para se alcançar esse objectivo.
Na verdade, perguntou-se ao perito (quesitos apresentados pelos AA.) quais as obras necessárias à abertura da passagem sobre o prédio dos RR., respondendo ele serem o corte do muro na largura de 3m, da vedação de arame, de uma carreira de videiras na distância de 33,20m, e a terraplanagem do terreno.
Poder-se-ia dizer que estas obras constituiriam um dano a sofrer pelos RR.. É sabido, porém, que a perícia deve recair sobre factos do questionário, ou seja, factos que tenham sido articulados pelas partes, podendo também incidir sobre factos instrumentais.
Na situação concreta, malgrado a pergunta que fizeram, os AA. nada alegaram relativamente ás obras que a seu ver seriam necessárias levar a cabo no prédio serviente com a constituição da servidão de passagem. Razão pela qual não se incluiu na base instrutória qualquer matéria factual relacionada com a execução de obras.
Acresce ainda que, diversamente do sustentado pelos recorrentes, o valor do terreno a expropriar não pode servir para avaliar o prejuízo ou dano a indemnizar.
De resto, e como se assinalou na sentença, o art.1566º dá ao proprietário do prédio dominante o direito de fazer no prédio serviente as obras necessárias ao uso e conservação do direito de servidão, sem o dever de indemnizar o incómodo que as obras causem ao dono do prédio. O que quer dizer, que para o êxito da sua pretensão, os AA. não necessitavam de alegar os concretos trabalhos a efectuar no prédio dos RR..
Neste âmbito, não faz sentido que o quesito na prova pericial abordasse uma questão não incluída na base instrutória como facto essencial à decisão da causa. Nem se pode dizer que a pergunta nele feita encerrava um facto puramente instrumental. Se assim fosse, teria então de haver um facto fundamental invocado pelos AA., que, no caso, não existiu.
Por isso que na decisão não se mencionou as obras que aos AA., titulares da servidão, seria permitido levar a cabo, referindo-se genericamente aos meios necessários ao exercício desse direito.
A pretensão dos apelantes não merece, portanto, acolhimento, falecendo assim as conclusões da alegação recursiva.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pelos apelantes.
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COIMBRA,