Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1790/09.0T2AVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: LEGITIMIDADE PASSIVA
ACORDO
TERMO
CONTRATO-PROMESSA
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 26.º N.º 1 DO CPC
Sumário: Alegando-se que a ré participou no acordo que pôs fim a um contrato, em que não tinha intervindo, e que então se obrigou, conjuntamente com o réu, a pagar o dobro do sinal que, no âmbito desse contrato, havia sido entregue, tem aquela que ser considerada parte legítima, pois é sujeito na relação material controvertida configurada pelos autores.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... e B... instauraram, no Juízo de Grande Instância Cível de Aveiro, da comarca do Baixo Vouga, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra C... e D... , pedindo que se declare "resolvido o contrato-promessa celebrado por iniciativa dos réus, condenando estes a restituírem, em dobro, a quantia recebida a título de sinal", devendo, "assim, os réus ser solidariamente condenados a pagar aos autores, a quantia de 35.000,00 €, considerando que os mesmo já foram reembolsados de 15.000,00 €".

Alegaram, em síntese, que:

- a 8 de Maio de 2008 celebraram o contrato-promessa de "compra e venda e empreitada", nos termos do qual o réu se obrigou a vender um lote de terreno, na Rua ... , Ílhavo, e a nele construir uma "moradia tipo T4", estabelecendo-se 17 500,00 € como preço do lote e 135 000,00 € como preço da empreitada;

- esse imóvel pertencia à ré e esta participou nas "negociações com vista" à "transmissão" do mesmo;

- entregaram aos réus a "quantia de 25.000,00 €, a título de sinal";

- no mesmo dia em que foi celebrado o contrato-promessa, a ré, como proprietária do lote, subscreveu na CRP de Ílhavo, um "requerimento no sentido de se proceder ao registo provisório do mesmo lote em nome dos" autores;

- mais tarde, o autor, por entender que a construção da moradia não estava a obedecer ao contratado, manifestou ao réu "o propósito de resolver o contrato", ao que este respondeu estar também na "disposição de pôr termo ao contrato", propondo-se indemnizar os autores "entregando-lhes o sinal recebido em dobro";

- a 14 de Julho de 2008, "em reunião com os réus e aceite a cessação do contrato, foi acordado que o pagamento seria efectuado em duas prestações". Foram então logo pagos 15 000,00 € através de cheque, acordando-se que o pagamento da "parte restante (35.000,00 €) seria efectuado no prazo de trinta dias";

- os réus "foram sucessivamente adiando a entrega" destes 35 000,00 € "alegando dificuldades", mas "afirmando que logo que vendessem o lote, procederiam ao pagamento";

- o lote foi vendido a 5 de Maio de 2009 e aqueles 35 000,00 € não foram pagos aos autores[1].

A ré contestou dizendo que nunca falou com os autores e que não assumiu perante eles qualquer obrigação, realçando que não figura como parte no contrato-promessa, e considerando que, por isso, é parte ilegítima.

Os autores replicaram reafirmando que os réus acordaram pagar-lhes a quantia correspondente ao sinal em dobro e que a ré agiu "em perfeita colaboração com o réu" com quem se "solidarizou no cumprimento das obrigações resultantes do contrato-promessa e da respectiva ruptura contratual"[2].

Na tréplica a ré manteve o que já havia dito na contestação.

Proferiu-se despacho saneador em que se decidiu "absolver a ré D... do pedido contra si formulado nos autos".

Inconformados com tal decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

A) A Douta Sentença recorrida, sem a produção da prova em audiência, não poderia pronunciar-se pela ilegitimidade passiva da recorrida, D... e absolvê-la do pedido formulado contra si, nos autos;

B) A decisão em causa considerou apenas uma parte da matéria alegada, deixando de referenciar factualidade relevante descrita nos articulados que consubstancia a participação da ré nas negociações do contrato-promessa e da sua própria declaração no sentido de subscrever a mesma promessa;

C) Ou seja, a recorrida é a dona e legítima proprietária do lote de terreno para construção e do respectivo projecto arquitectónico, regista a promessa de venda a favor dos autores e declarando haver-lho prometido vender pelo preço de 17,500,00 €;

D) Nestas circunstâncias, não podemos ter dúvidas de que está reunido o pressuposto processual da legitimidade quer dos AA:, quer dos RR., nos termos definidos na lei: art.º 26.º do CPC, sendo que a mesma legitimidade tem de ser aferida pela forma como o autor configura a relação material controvertida;

E) Consequentemente, a mesma ré, nos presentes autos não assume a qualidade de terceiro em relação ao negócio - ao contrário, nele participou, assumindo as respectivas obrigações, como promitente vendedora - pelo que improcede a invocada excepção do direito material ou substantivo;

F) Assim não tendo decidido a Douta Sentença recorrida, foram violados os normativos legais acima invocados, designadamente, o arts. 26.º, 664.º e 264.º, todos do CPC.

Terminam dizendo que "deverão ser julgadas improcedentes as excepções invocadas e, em consequência, ser revogada a Douta Sentença recorrida, com remessa dos autos à primeira instância, para elaboração do Saneador e respectiva Base Instrutória".

A ré contra-alegou defendendo que deve ser "mantida a Douta Sentença recorrida".

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[3], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se, à luz do alegado pelos autores, a ré é parte legitima e se tem igualmente legitimidade substantiva.


II

1.º


Os factos a considerar são os que resultam do que acima se deixou dito em sede de relatório.

Na decisão recorrida a Meritíssima Juíza a quo começa por apreciar a excepção de ilegitimidade da ré, suscitada por esta, mas não chega a concluir se há, ou não, (i)legitimidade processual, pois, a dado passo, afirma que "a ré não é parte legitimada substantivamente para responder pelo incumprimento do" contrato-promessa, pelo que, "ao abrigo do disposto no art. 664.º do Código de Processo Civil" passa "a considerar a excepção, não só como direito processual, como excepção dilatória, mas também como excepção de direito material ou substantivo". E, não intervindo a ré no contrato-promessa, a Meritíssima Juíza entende que, quanto a este, ela tem a posição de terceiro, motivo por "que os autores não têm legitimação substantiva para demandar a ré D... , pelo que se imporia a absolvição da mesma do pedido".

Tendo sido deduzida a excepção de ilegitimidade da ré, a Meritíssima Juíza não podia deixar de a conhecer, concluindo pela sua procedência ou improcedência. O artigo 664.º, de que a Meritíssima Juíza se socorreu para passar "a considerar a excepção, não só como direito processual, como excepção dilatória, mas também como excepção de direito material ou substantivo", sem antes ter decidido se a ré é parte (i)legítima, não tem no caso, salvo melhor juízo, o alcance que lhe foi dado. Com efeito, esse preceito diz-nos que "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito[4]", o que significa que o aqui disposto se reporta apenas "à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito". Se a parte deduz a excepção dilatória de ilegitimidade o juiz, face ao disposto no artigo 510.º n.º 1 a), não pode deixar de conhecer tal excepção, dizendo se ela é ou não procedente, sem prejuízo de ao fazê-lo poder considerar que a parte enquadrou incorrectamente os factos, ao querer deles extrair uma ilegitimidade processual, por, nomeadamente, eles corresponderem a uma legitimidade substantiva ou a uma falta de personalidade ou de capacidade judiciária. Portanto, perante a alegação de que uma parte é ilegítima o juiz tem sempre que proferir decisão a julgar procedente ou improcedente essa excepção; o disposto no artigo 664.º não o isenta, em circunstância alguma, de o fazer, não obstante, para chegar a tal decisão, o juiz, nos termos desta norma, ter absoluta liberdade para enquadrar juridicamente os factos que para esse efeito considere relevantes, não estando, nessa parte, condicionado ou limitado pelo enquadramento operado pela parte.

No caso dos autos é pacífico que a ré não interveio[5] no contrato denominado de "contrato promessa de compra e venda com empreitada", celebrado em Março de 2008, que, neste apenso de recurso, se encontra nas folhas 44 a 47; esse negócio é subscrito unicamente pelos autores e pelo réu.

No entanto, nos artigos 29.º e 30.º da petição inicial alega-se que, em Julho de 2008, a ré participou no acordo que pôs fim àquele contrato e que nessa ocasião assumiu, conjuntamente com o réu, a obrigação de pagar aos autores o dobro do sinal que estes haviam entregue. Nos termos do então acordado foram logo pagos aos autores 15 000,00 €, através de cheque, tendo-se convencionado que os restantes 35 000,00 € seriam pagos no prazo de 30 dias. Há, portanto, uma obrigação assumida pela ré, que não decorre do contrato subscrito em Março de 2008, mas sim de um acordo posterior, celebrado em Julho de 2008.

Ora, o n.º 1 do artigo 26.º dispõe que "o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer", acrescentando o seu n.º 2 que o interesse em contradizer exprime-se pelo prejuízo que advenha da procedência da acção. E, segundo o n.º 3, "na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor".

É, assim, claro que "a revisão processual operada pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 Dezembro, tomou posição na controvérsia que até então se vinha debatendo sobre a legitimidade, passando esta a ser apreciada sob a perspectiva da relação da parte com o objecto da acção, aferida pela utilidade que da sua procedência ou improcedência possa advir para as partes e a posição que elas têm na relação jurídica controvertida, tal como o autor a configura. Assim, quem tem interesse em discutir o litígio são os sujeitos da relação jurídica controvertida tal como é apresentada no conflito de interesses pelo autor. A legitimidade processual -pressuposto de que depende o conhecimento do mérito da causa (art. 288º, nº 1, al. d) C.Pr.Civil)- e que se não confunde com legitimidade substantiva -requisito de procedência do pedido-, afere-se pelo interesse directo do autor em demandar e pelo interesse directo do réu em contradizer"[6].

Então, não há dúvidas de que a ré, perante o alegado nos artigos 29.º e 30.º da petição inicial, é sujeito na relação material controvertida configurada pelos autores, o mesmo é dizer que ela é parte legítima. E, provando-se que assumiu a obrigação que ali se alega, pode a mesma ser-lhe exigida pelos autores, como, aliás, o pretendem fazer através da presente acção.

Aqui chegados, dúvidas não restam quanto à procedência do recurso.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso e, julgando a ré parte legítima, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a sua substituição por outra que, apreciando as questões pendentes, dê andamento ao processo.

Custas pela ré.


                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro

                                                              Hélder Almeida


[1] Cfr. artigos 1.º, 8.º, 9.º, 25.º a 27.º e 29.º a 33.º da petição inicial.
[2] Cfr. artigos 9.º e 19.º da réplica.
[3] São do Código de Processo Civil todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[4] Jura novit cúria.
[5] Pese embora nesta parte os autores aleguem com alguma ambiguidade, ao aludirem à intervenção da ré nas negociações que conduziram a esse negócio, ao mencionarem a sua qualidade de proprietária do terreno, ao considerá-la promitente vendedora, ao dizerem que ela também recebeu o sinal e ao mencionarem a sua intervenção junto do registo predial para efeitos de um no registo provisório em nome daqueles. Cfr. artigos 1.º, 8.º a 12.º da petição inicial.
[6] Ac. S.T.J. de 16-11-06 no Proc. 06B3630, www.gde.mj.pt.