Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2294/06.9YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
DINHEIRO DE ACERVO HEREDITÁRIO DEPOSITADO EM BANCO
Data do Acordão: 12/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: PROCESSO DE LEVANTAMENTO DE SIGILO BANCÁRIO
Decisão: DEFERIDO
Legislação Nacional: ARTºS 135º, Nº 3 DO CPP; 519º, Nº 4, DO CPC; E 78º, NºS 1 E 2 DO REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS
Sumário: I – O dever de segredo reportado à actividade bancária, entendida esta como abrangendo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias, encontra-se consagrado no artº 78º, nºs 1 e 2 do RGICSF, sendo que, fora do quadro da autorização expressa do cliente, a revelação dos elementos cobertos pelo segredo depende da existência de outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo – artº 79º, al. e), do RGICSF.

II – No caso da jurisdição civil pode considerar-se conter uma limitação ao segredo desta natureza o nº 4 do artº 519º do CPC, sendo certo que manda aplicar, deduzida escusa com fundamento em violação do sigilo profissional, o disposto no processo penal (artº 135ºCPP) acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa.

III – Quando esteja em causa a determinação dos bens que compõem o acervo hereditário, cumpre determinar em que medida a informação bancária é instrumentalmente necessária a essa determinação, designadamente quando estela em causa, como passível de integrar a herança, dinheiro pertencente a tal acervo presumivelmente depositado nas contas de alguém num determinado banco.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I – A Causa


1. No inventário a que se procedeu por óbito de A... e de B... (proc. nº 30/2002 do Tribunal Judicial da Comarca de Trancoso), no qual são únicos interessados os filhos destes, C... (requerente do inventário) e D... (cabeça de casal), apresentou-se o interessado E..., na sequência do Despacho de fls. 310 [ “Notifique o interessado E... para, em 10 dias, e face aos elementos entretanto juntos aos autos, esclarecer se mantém as reclamações apresentadas”.], a requerer, relativamente aos bens dos inventariados – relacionados ou cuja falta foi reclamada – traduzidos em depósitos bancários, o seguinte:

“[…]
[C]omo consta da reclamação de bens apresentada, os falecidos possuíam outros depósitos bancários que o requerente desconhecia, e, só agora logrou tomar conhecimento dos mesmos.
Assim, os falecidos possuíam uma conta bancária com o nº 9919384 e com o NIB 001702250000991938447, no Banco Português do Atlântico, balcão de Aguiar da Beira, conforme documento nº 1, que ora se junta, onde possuíam, em 19/09/2000, a quantia de 12.001.000$00 (doze milhões e um mil escudos), conforme documento nº 2, que ora se junta, quantia essa que foi levantada em 19/09/2000, como se pode comprovar pelo documento nº 2, através de um talão de levantamento.
Levantamento esse que só poderia ter sido efectuado pela cabeça de casal, uma vez que os falecidos não se encontravam em Portugal.
[…]
Assim, vem o ora requerente reclamar a quantia de 12.001.000$00, que até à presente data tem sido omitida pela cabeça de casal.
[…]”
[transcrição de fls. 315/316]

Na sequência deste incidente respeitante à relação de bens, foram colhidos diversos elementos junto do Banco Comercial Português (entidade bancária sucessora do Banco Português do Atlântico), visando o esclarecimento do sucedido com a mencionada conta bancária e o levantamento referido pelo interessado E... (fls. 359/361), procedendo-se à inquirição do funcionário bancário que procedeu à operação de levantamento (fls. 630/631), da gerente do Banco e do procurador deste que assinou o talão de levantamento em causa (fls. 710/712). Procedeu-se, ainda, à tomada de declarações à interessada cabeça de casal (fls. 738/745), que declarou desconhecer o que sucedeu com o levantamento dos 12.000.001$00 referidos, “[…] não consegu[indo] explicar como é possível que os pais estivessem em Portugal no dia 14 de Setembro de 2000, para proceder à assinatura do talão de fls. 360; que a mãe estivesse em França no dia 17 de Setembro de 2000 […], nem como é que os pais estavam em Portugal no dia 19 de Setembro de 2000, para levantamento da dita quantia, conforme documento de fls. 361” (fls. 740).

1.1. Cumpre sublinhar que, anteriormente, no próprio requerimento em que solicitou o depoimento da cabeça de casal (fls. 389/3919), havia o interessado E... solicitado que se oficiasse ao Banco de Portugal para obtenção da informação de “[…] quais os balcões em que a requerida e o seu marido possu[íssem] contas bancárias, e que forne[cesse] os respectivos extractos das datas compreendidas entre 01/09/2000 e 31/12/2000 […]” (fls. 391) [ No mesmo requerimento afirmara o interessado “[…] concluir que quem procedeu ao levantamento da quantia [os 12.000.001$00] nunca poderia[m] ter sido os falecidos [inventariados], por os mesmos não se encontrarem em Portugal, mas sim em França, e por no pouco tempo de vida que tiveram, posterior ao levantamento efectuado, não terem efectuado despesas ou investimentos que justificassem o montante levantado. [Concluindo o interessado] que, quem efectuou o levantamento […] tenha sido a [cabeça de casal] que pouco tempo depois o investiu”. ].

Pronunciando-se relativamente a esta pretensão, declarou a cabeça de casal, a fls. 408, o seguinte:

“[…]
[D]esde já declara não aceitar […] que prestem declarações [referia-se aos funcionários bancários cuja inquirição fora requerida] sobre quaisquer contas em nome da cabeça de casal e/ou de seu marido de que tenham conhecimento.
[…]
Quanto à consulta das contas da cabeça de casal requerida pelo interessado […], não o consente a cabeça de casal por implicar a violação do sigilo bancário e a devassa da sua vida privada e de seu marido, que nem sequer é interessado neste inventário.
[…]”
[transcrição de fls. 408; ênfase no original omitido]

Foi na sequência disto, e após a inquirição documentada a fls. 740, que o interessado E... requereu que:

“[…] se ordena[sse] o levantamento do sigilo bancário da cabeça de casal e em conformidade [fosse] ordenado ao Banco de Portugal que indi[casse] quais os bancos em que a requerida e seu marido possuem/possuíam contas bancárias, e, que os mesmos forne[cessem] ao tribunal os respectivos extractos, com os depósitos efectuados nessas contas, entre as datas de 01/09/2000 e 31/12/2000, para [que] se p[udesse] apurar se depósitos de igual quantia foram efectuadas pela requerida.
[…]”
[transcrição de fls. 796]

Entretanto, no âmbito do apuramento das circunstâncias que rodearam o mencionado levantamento dos 12.000.001$00, foram solicitados ao Banco Millenium BCP (Despacho de fls. 800) diversos elementos respeitantes aos movimentos da referida conta dos inventariados (elementos estes que o banco tem estado a fornecer ao Tribunal; cfr. fls. 814/819), tendo a cabeça de casal reiterado, a fls. 805/806, a sua recusa em autorizar a quebra do sigilo das suas contas:

“[…]
O sigilo bancário é decorrente do direito à tutela geral da personalidade e reserva da vida privada dos cidadãos, direito esse protegido pela Constituição da República portuguesa, mais concretamente no seu artigo 26º, pelo que o seu levantamento é inconstitucional, inconstitucionalidade que, desde já, se alega.
Mais, o DL 298/92, de 31 de Dezembro, estabelece com rigor o âmbito do sigilo bancário e estabelece regras para ser autorizado o seu levantamento, e o alegado pelos interessados não se insere em nenhuma das alíneas […].
[transcrição de fls. 806]

1.2. Surge, então, o Despacho de fls. 821/823, aquele que originou a intervenção desta Relação, no qual se consignou:

“[…]
No que toca ao pedido de levantamento de sigilo bancário apresentado pelo interessado C..., o mesmo, atentos todos os elementos recolhidos nos autos, não é manifestamente infundado, razão pela qual não se indefere liminarmente.
Pelo exposto, a fim de ser conhecido o requerido levantamento do sigilo bancário, requerido pelo interessado C..., ao abrigo do disposto no artigo 135º do CPP, remeta os presentes autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, tribunal competente para o efeito.
[…]”
[transcrição de fls. 823]

II – Fundamentação

2. São estes, pois, os pressupostos desencadeadores da intervenção deste Tribunal, enquanto autoridade judiciária competente para o efeito de dispensa do sigilo bancário neste processo [nos termos do artigo 135º, nº 3 do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi do disposto no artigo 519º, nº 4 do Código de Processo Civil (CPC) [ A circunstância de ao Banco de Portugal – a entidade à qual, em primeira linha, devem ser solicitadas as informações cobertas pelo sigilo bancário – nunca terem sido pedidas as informações em causa, e de este, consequentemente, nunca se ter negado a prestá-las, não afasta a adequação do presente incidente à ultrapassagem do impasse criado pela recusa da cabeça de casal, sendo certo que tal recusa torna desde já impossível ao Banco de Portugal – e a outras instituições bancárias eventualmente inquiridas – prestar essas informações, fora do quadro da autorização judicial de quebra desse dever de sigilo (v. artigos 79º, nº 1 e 80º, nº 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro). ].

2.1. O dever de segredo reportado à actividade bancária, entendida esta, no que aqui apresenta relevância, como abrangendo – na obrigação de segredo da instituição de crédito – “[…] os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”, encontra-se consagrado no artigo 78º, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (RGICSF), sendo que, fora do quadro da autorização expressa do cliente – aqui ocorreu recusa expressa de autorização por parte do cliente –, a revelação dos elementos cobertos pelo segredo depende da existência de “[…] outra disposição legal [ Outra disposição legal, para além das disposições constantes da lei penal substantiva e adjectiva (cfr. alíneas d) e e) do nº 2 do artigo 79º do RGICSF).] que expressamente limite o dever de segredo” (artigo 79º, alínea e) do RGICSF).

No caso concreto da jurisdição civil, pode-se considerar conter uma limitação ao segredo desta natureza o nº 4 do artigo 519º do CPC, sendo certo que manda aplicar, deduzida escusa com fundamento em violação do sigilo profissional (nº 3, alínea c) do mesmo artigo), “[…] com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”. Ora, no processo penal, concretamente através do artigo 135º do CPP, “[o] tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado […] pode decidir da […] quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada […] face ao princípio da prevalência do interesse preponderante […]” (artigo 135º, nº 3 do CPP, na parte relevante para a presente situação).

Caracterizando o sentido das excepções ao dever de segredo bancário, sublinha Menezes Cordeiro – autor que, relativamente ao afastamento do dever de segredo, se situa numa perspectiva muito mais restritiva que a subjacente à nossa jurisprudência maioritária – que, “[p]erante o Direito privado, o segredo só cede em face de quem tenha um direito bastante relativo ao bem que esteja – ou possa estar – na posse do banqueiro” [ Manual de Direito Bancário, 3ª ed., Coimbra, 2006, p. 268.]. Neste caso, estando em causa, à partida, informação detida pelo banco (sobre identificação de contas e sobre os movimentos dessas contas), cumpre determinar em que medida essa informação é instrumentalmente necessária à determinação da existência de um bem relativamente ao qual alguém, que não o titular da conta, tenha um direito bastante.

2.1.1. Isso sucederá – e sucede em concreto neste caso – quando esteja em causa a determinação dos bens que compõem o acervo hereditário, na medida em que este possa ser integrado, por forma indiciariamente consistente, por bens à guarda do banco, designadamente quando esteja em causa, como passível de integrar a herança, dinheiro pertencente a tal acervo presumivelmente depositado nas contas de alguém num determinado banco [ Este Tribunal da Relação, no Acórdão de 14/02/2006 (Cura Mariano), entendeu justificar-se a dispensa do segredo bancário, para o efeito de apurar uma eventual sonegação de bens (Colectânea de Jurisprudência, Tomo I/2006, pp. 29/30).].

Revertendo à situação concreta colocada no presente incidente, dir-se-á estar em causa dinheiro (12.000.001$00), supostamente levantado (em circunstâncias no mínimo estranhas) pelos inventariados, pouco antes de falecerem, dinheiro este que, mesmo que entregue voluntariamente por estes à sua filha e tutora – a aqui interessada e cabeça de casal –, deverá ser por esta restituído à massa da herança para igualação da partilha, nos termos do artigo 2104º, nº 1 do Código Civil [ “Os descendentes que pretendem entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.”], sendo que a verificação da existência desta colação – que equivale à própria determinação dos bens que integram a herança – só se mostra possível determinando se nas contas da cabeça de casal existem rastos desse dinheiro. Assim, porque os bens da herança pertencem, antes de divididos, aos herdeiros, pode-se caracterizar como passível de existir, neste caso concreto, um direito bastante do interessado E..., concorrente com o de sua irmã, a algum valor à guarda do banco. É o que se poderá determinar – é o que aqui só se poderá determinar – através da análise das contas da cabeça de casal no período limitado aqui relevante.

2.2. Note-se que está em causa, relativamente à informação contida nas contas bancárias da cabeça de casal, a privacidade patrimonial desta, que, integrando o direito à reserva da sua vida particular, não implica, à partida, o círculo mais restrito e insondável da chamada “intimidade da vida privada” [ Assenta este entendimento na chamada teoria das esferas, caracterizada por Menezes Cordeiro nos seguintes termos: “Na precisa definição da privacidade, sói fazer-se apelo à teoria das esferas […]. De facto, faz todo o sentido contrapor aqui as esferas pública, individual-social, privada, secreta e íntima. Na concretização do direito haverá que lidar com estas esferas: elas concitam uma tutela diversificada” (Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, Coimbra, 2004, p. 206). ], entendida esta como correspondente ao “domínio mais particular que seria o que normalmente se exclui de todo o conhecimento alheio” [ Paulo Mota Pinto, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 69 (1993), p. 565.]. Círculo aquele – o da privacidade patrimonial –, que pode ser posicionado face a outros interesses legítimos e, numa ponderação equilibrada dos valores em jogo, ceder face a esses valores [ V. José Luís Saldanha Sanches, “A Situação Actual do Sigilo Bancário: A Singularidade do Regime Português”, nos Estudos de Direito Bancário, Coimbra, 1999, pp. 363/365.].

A medida dessa cedência, porém, deve ser aferida com base numa lógica de indispensabilidade e limitar-se ao minimum imprescindível à concretização desses valores [ Menezes Cordeiro, Manual…, cit., p. 269.]. Significa isto, nesta situação concreta, que se se justifica a quebra do sigilo relativamente às contas das quais seja titular única ou conjunta a cabeça de casal, outro tanto não sucede com as contas das quais só seja titular o seu marido.

É, pois, este o sentido e a medida da dispensa do sigilo bancário que, exclusivamente para o efeito de determinar se a cabeça de casal ingressou nas suas contas dinheiro proveniente do levantamento aqui em causa, este Tribunal autorizará, relativamente às contas – e só relativamente a elas – das quais seja (ou também seja) titular a mesma cabeça de casal, restringindo, porém, as informações a colher nessas contas ao período compreendido entre 13/09/2000 e 19/11/2000 [ E não relativamente, como pretende o interessado E..., abrangendo todo o ano de 2000. A data de 19/11/2000 (dois meses após o levantamento) projecta o lapso de tempo no qual é normal ter ocorrido – caso tenha ocorrido – o reingresso dessa importância numa conta da cabeça de casal.]. A dispensa do sigilo refere-se, num primeiro momento, à identificação das contas em causa por parte do Banco de Portugal, e, num segundo momento, à prestação das informações pertinentes respeitantes às contas detectadas, pelas entidades bancárias apuradas em função da informação do Banco de Portugal.

III – Decisão

3. Pelo exposto, concede o Tribunal da Relação de Coimbra a dispensa do dever de segredo bancário relativamente à informação bancária da cabeça de casal, Maria Cacilda Nunes Gonçalves Aguiar, concretizando-se essa dispensa na prestação de informações, por parte das entidades bancárias em causa, relativamente aos seguintes elementos:

A) Pelo Banco de Portugal, respeitantes à identificação das contas bancárias das quais, no período compreendido entre 13/09/2000 e 19/11/2000, a referida Maria Cacilda tenha sido titular, sozinha ou conjuntamente.

B) Relativamente a outras entidades bancárias que venham a ser indicadas pelo Banco de Portugal ao abrigo da alínea anterior, das informações respeitantes aos saldos e movimentos registados por essas contas no período situado entre 13/09/2000 e 19/11/2000.

Sem custas.