Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2374/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PAGAMENTO DO PREÇO E CONSEQUÊNCIAS DO NÃO PAGAMENTO NO ACTO DA ESCRITURA
Data do Acordão: 10/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 29º DA LU S/ CHEQUES ; 879º, AL. A) ; 885º, Nº 1, DO C. CIV. .
Sumário: I – Não pagando os promitentes compradores, na data da escritura, o preço integral da venda, apesar de na dita se dizer que “ fica liquidado o preço acordado “, tal situação é motivo para a recusa de outorga por parte do promitemte-vendedor .
II – A emissão e entrega de um cheque ao vendedor com o total ainda em débito, mas datado para dia futuro ao da celebração da escritura de compra e venda não configura uma forma de pagamento efectivo na data dessa escritura .
III – Contribuindo ambas as partes para o incumprimento definitivo do contrato-promessa, devem ser ambas responsabilizadas pelo facto, com as consequências resultantes da aplicação do artº 570º, nº 1, do C. Civ. .
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca da Lousã, A... e mulher B..., instauraram contra a sociedade C..., a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré no pagamento aos A. A. da quantia de Esc. 8.000.000$00, com o acréscimo de juros de mora, vencidos e vincendos, assim como de ser condenada a pagar o valor de uma escritura pública de compra e venda, no montante de Esc. 32.400$00, mais juros de mora .
Muito em resumo, alegaram os A.A. que em 7/02/1996, autores e Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda, relativo à fracção “U” – 1º andar direito -, destinada a habitação, do prédio sito na Rua General Humberto Delgado, lote 1 – 1º D.tº, Lousã, descrito na Conservatória do Registo Predial da Lousã sob o nº 5171 , que os A.A. prometeram adquirir pelo preço de Esc. 7.400.000$00 .
Que nessa mesma data os A.A. entregaram à Ré Esc. 3.500.000$00 a título de sinal, o que foi reforçado em 10/07/1996 , com mais Esc. 500.000$00 .
Que em 21/11/1997 foi celebrada escritura pública de compra e venda entre as partes , finda a qual o legal representante da Ré solicitou que a mesma fosse dada sem efeito, o que aconteceu, por falta de assinatura do notário que a redigiu .
Que no dia 30/04/1998 a Ré vendeu essa mesma fracção a um tal Paulo Jorge Vital Ribeiro , pelo que não é possível a execução específica do referido contrato-promessa .
Que os A.A. têm o direito de exigir o dobro do que entregaram a Ré, bem como as despesas inutilmente suportadas, como se pretende .

II
Contestou a Ré, alegando, muito em resumo, que na fracção em causa foram feitas obras para aí ser aberto um salão de cabeleireiro, a pedido dos A.A., as quais ascenderam a Esc. 1.600.000$00, valor este que os A.A. não liquidaram até à data da celebração da escritura pública .
Que, por outro lado, o cheque emitido pelos A.A. para pagamento do valor do contrato-prometido foi emitido com data posterior à da celebração da escritura de compra e venda, razão pela qual a Ré requereu que a dita fosse dada sem efeito .
Que no contrato-promessa celebrado ficou acordado que caso a Ré não criasse a possibilidade de ser aberto um salão de cabeleireiro no local, esse negócio ficaria sem efeito, devendo a Ré restituir o dinheiro ao promitente-comprador .
Razões pelas quais deve o contrato-promessa ser considerado resolvido, com devolução do sinal em singelo ou com a absolvição da Ré do pedido .
III
Replicaram os A.A. alegando, muito em resumo, que as obras de adaptação levadas a cabo pela Ré no apartamento em causa não têm valor superior a Esc. 15.000$00, para o que remeteram um cheque à Ré para pagamento, que não foi levantado .
IV
Findos os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade processual da acção, com selecção da matéria de facto alegada e tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da causa , do que não houve reclamações .

Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação .

Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido condenar a Ré a pagar aos A.A. a quantia de Esc. 4.000.000$00 referente à restituição, em singelo, do sinal entregue, e bem assim de Esc. 16.200$00 referente a metade das despesas realizadas com a escritura havida e dada sem efeito, com o acréscimo de juros de mora , sendo absolvida quanto ao mais .
V
Dessa sentença recorreram os A.A., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo .

Nas correspondentes alegações que apresentaram, os Apelantes concluíram do seguinte modo :
1ª - No dia da escritura pública os A.A. propuseram-se pagar o valor que faltava para finalizar o negócio .
2ª- Tal como se considera provado na sentença, o valor do cheque correspondia á parte do preço em falta acordado entre as partes .
3ª - Os cheques são pagáveis no dia da sua apresentação a desconto e não no dia da data de emissão .
4ª - O facto do cheque ter uma data posterior à data da realização da escritura não releva .
5ª - O entendimento expresso na sentença entra em clara contradição com o disposto no artº 28º da L.U. sobre Cheques .
6ª - Por outro lado, no dia da escritura a Ré apenas declarou que o cheque não correspondia ao valor acordado, nada dizendo relativamente à data do cheque .
7ª - De acordo com o artº 712º, nº 1, al. a), do CPC, deve o Tribunal da Relação alterar a decisão de 1ª Instância sobre a matéria de facto e considerar este facto como provado .
8ª - Ao não aceitar o referido cheque e desta forma ao não concluir o negócio, a Ré claramente violou o contrato-promessa de compra e venda .
9ª - Devido a este facto deve ser condenada a restituir o sinal em dobro, acrescido de juros .
10ª - Neste sentido a sentença viola o disposto no artº 442º, nº 2, do C. Civ. .
11ª - Deve ainda ser condenada a pagar as despesas da escritura pública, visto esta Ter ficado sem efeito, por sua exclusiva culpa .
12ª - Finalmente, deverá ser revogada a sentença, devendo ser proferido acórdão a condenar a Ré a restituir aos A.A. o valor do sinal em dobro, acrescido de juros, bem como a pagar o valor das despesas com a escritura .
VI
Não foram apresentadas contra-alegações .

Nesta Relação foi aceite o recurso interposto e admitido, tendo-se procedido à recolha dos “ vistos “ inerentes ao seu processamento, sem quaisquer observações .
Nada obsta, pois, ao conhecimento do seu objecto, o qual se resume às seguintes questões :
A – Poderá ou não haver lugar a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto ?
B – Reapreciação da decisão de mérito proferida, com ou sem alteração da matéria de facto dada como assente .

Começando pela apreciação da primeira questão enunciada, cumpre salientar que as decisões proferidas em 1ª instância sobre a matéria de facto podem ser alteradas pela Relação designadamente se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre pontos concretos ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida, nos termos do artº 690º-A, do CPC – é o que resulta do artº 712º, nº 1, al. a), do CPC .
Mas para que assim aconteça é necessário que o impugnante da decisão sobre matéria de facto especifique quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e que indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo gravado, que impunham decisão diversa sobre esses pontos concretos, sob pena de rejeição dessa impugnação, caso assim se não preceda – é o que resulta do disposto no artº 690º-A, nº 1, als. a) e b), do CPC .
Ora, os Apelantes-Impugnantes em ponto algum das suas alegações e respectivas conclusões formuladas indicam qual o quesito da base instrutória que reputam como incorrectamente decidido, nem qual o facto concreto que possa e deva ser considerado como provado por documento ou por confissão reduzida a escrito, nos termos do artº 659º, nº 3, do CPC .
Os Apelantes limitam-se a dizer que “ a Ré apenas declarou ( na escritura que esteve redigida e para ser celebrada entre as partes ) que o valor não correspondia ao preço convencionado, e que não colocou em causa a data do cheque no dia da escritura“, pretendendo, assim, que tal facto seja considerado como provado, por decorrer “claramente “ ( como defende ) da escritura de compra e venda .
Ora, o que decorre da referida outorga, conforme documento de fls. 170 a 173, é que pela aí primeira outorgante ( a aqui Ré ) foi dito que , “ pelo preço de sete milhões de escudos, que já recebeu, vende aos segundos outorgantes ... “, encontrando-se um aditamento a tal escritura, logo após as assinaturas dos outorgantes, do qual consta que “ foi entregue à primeira outorgante um cheque sobre o Banco Fonsecas & Burnay, ... , no valor de três mil e quatrocentos contos, com data de vinte e quatro do corrente mês ( a data de celebração dessa escritura é de 21/11/1997 ), tendo a primeira outorgante, acto contínuo e no momento em que a Senhora Notária se aprontava para assinar esse acto, declarado que deveria considerar-se sem efeito essa escritura , ... , uma vez que o cheque que acabava de lhe ser entregue não representava a liquidação do preço da venda“ .
Ora, face ao dado como assente sob as alíneas d) , e), g) e o) do despacho saneador e tendo sido respondido ao quesito primeiro que “ o valor do cheque que os A.A. pretendiam entregar ao representante da Ré correspondia ao que faltava para realizar integralmente o preço acordado, isto é Esc. 3.400.000$00 “, afigura-se que tal resposta abarca precisamente o teor desse aditamento à mencionada escritura e demais prova produzida, não sendo de dar como assente que “ a Ré não colocou em causa a data do cheque no dia da escritura “ , pois não resulta evidente do citado documento que assim tivesse sido ou que tivesse sido nesses precisos e exactos termos.
Logo, quer à luz das disposições processuais antes citadas quer considerando os elementos de prova disponíveis e referidos pelos Apelantes, não há que proceder a qualquer alteração da matéria de facto dada como assente, pelo que improcede a pretensão dos Apelantes no que respeita à presente questão ( alteração da matéria de facto ).
Pelo que se mantém inalterada a decisão proferida em 1ª instância sobre tal aspecto , sendo, pois, de considerar como matéria assente a seguinte :
1 – A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à construção civil .
2 – No desempenho da sua actividade, a Ré celebrou com os A.A., em 7/02/96, o contrato-promessa de compra e venda constante de fls. 9 e segs. do processo de arresto apenso, tendo por objecto a fracção autónoma designada pela letra “U “, correspondente ao 1º andar direito, destinado a habitação, de um prédio sito na Rua General Humberto Delgado, em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial da Lousã, sob o nº 5171, omisso na matriz, propriedade da Ré .
3 – Por via de tal contrato a Ré prometeu vender aos A.A. tal fracção, pelo preço de Esc. 7.400.000$00 .
4 – Dando cumprimento ao acordado, os A.A. entregaram nessa data ( 7/02/96 ) a quantia de Esc. 3.500.000$00, a título de sinal e princípio de pagamento .
5 – Em 10/07/96 os A.A. entregaram à Ré Esc. 500.000$00, a título de reforço do sinal e de princípio de pagamento, devendo o promitente comprador, de acordo com o clausulado, entregar ao vendedor, no acto da celebração da escritura, a quantia remanescente de Esc. 3.400.000$00 .
6 – A título de condição, a Ré deveria vender a fracção autónoma livre e desembaraçada de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, mas consignou-se que se teria de “ criar na construção a possibilidade de ser aberto um salão de cabeleireiro, sem o qual o negócio ficaria sem efeito e restituirá o dinheiro ao segundo outorgante “ .
7 – A.A. e Ré acordaram na celebração da escritura pública e encontraram-se em 21 de Novembro de 1997 no Cartório Notarial da Lousã para dar o devido cumprimento, tendo os A.A. emitido um cheque pós-datado .
8 – Na referida fracção foram efectuadas obras .
9 – Os A.A. foram notificados em 12/06/97, por carta registada com A/R, para procederem ao pedido de autorização de abertura de salão de cabeleireira .
10 – Os A.A. foram notificados para a realização da reunião de condóminos .
11 – Em 3/09/97 foram os A.A. novamente notificados da necessidade do pedido de autorização e de marcação de escritura .
12 – Os A.A. manifestaram intenção de prosseguir o negócio para habitação própria .
13 – E concordaram em indemnizar a Ré construtora das obras realizadas na fracção .
14 – A Ré requereu então as respectivas licenças e alvarás para fins de habitação da fracção em questão .
15 – Após os A.A. e a Ré terem assinado a escritura, o legal representante da Ré dirigiu-se ao notário dizendo que deveria considerar sem efeito a escritura e consequentemente deveria o mesmo abster-se de a assinar, face ao que tal escritura foi dada sem efeito .
16 – No dia 30/04/98 a Ré declarou vender a Paulo Jorge Vital Ribeiro e este declarou comprar-lhe, pelo preço de Esc. 9.250.000$00, a fracção em causa .
17 – Os A.A. intentaram no Tribunal de Círculo de Coimbra uma acção declarativa de condenação, pedindo a execução específica do contrato, acção essa que transitou para o Tribunal Judicial de Pampilhosa da Serra, sendo proferida a sentença constante de fls. 13 e segs. do processo de arresto apenso, em 3/07/2001 .
18 – O valor do cheque que os A.A. pretendiam entregar ao representante da Ré correspondia ao que faltava para realizar integralmente o preço acordado, isto é, Esc. 3.400.000$00 .
19 – O valor das canalizações não era superior a Esc. 15.000$00 .
20 – Aquando da assinatura da escritura, a representante legal da Ré constatou que o cheque entregue pelos A.A. era datado para três dias posteriores à data dessa escritura, não coincidindo a data do mesmo com a data da assinatura dessa escritura .
21 – Na fracção autónoma foram feitas as obras necessárias para ser aberto um salão de cabeleireiro .
22 – Foram instaladas duas tubagens de água quente e fria num dos quartos de tal fracção .
23 – O piso dos quartos foi alterado de acordo com as instruções dos A.A. ( cláusula 6ª do contrato-promessa ) .
24 – A Ré enviou aos A.A. as cartas juntas a fls. 52 e 58, datadas de 3/9/97 e de 4/12/97, respectivamente, aqui dadas como reproduzidas, a primeira dando conta da data da celebração da escritura e restituição do sinal se não houvesse autorização para a instalação do salão de cabeleireiro, e a segunda dando conta da intenção da Ré de que pretendia rescindir o contrato e fazer seu o sinal entregue, pelos motivos aí expostos .
25 – A carta de fls. 52 foi recebida pela A. e a de fls. 58 não foi reclamada pelos A.A. .
26 – Foi efectuada a venda referida no ponto 16 supra quando a Ré já tinha sido citada para a acção referida no ponto 17 supra .
27 – Os A.A. despenderam Esc. 32.400$00 com o custo da escritura referida no ponto 15 supra .
28 – Essa escritura foi marcada para uma sexta-feira de tarde .
***
Assentes os factos a considerar na abordagem da segunda das questões antes enunciadas, importa ponderar a fundamentação da sentença recorrida, face às conclusões apresentadas pelos Apelantes nas suas alegações , com vista a apurar da pertinência ou impertinência destas .
Desses factos dúvidas não restam de que entre as partes, em 7/02/1996, foi acordado um contrato-promessa de compra e venda, relativo ao 1º andar direito ( fracção U ) do prédio sito na Rua General Humberto Delgado, lote 1, Lousã, descrito na Conservatória do Registo Predial da Lousã sob o nº 5171 .
Por esse dito contrato, de que se encontra cópia no apenso de provimento cautelar de arresto, a aqui Ré prometeu vender tal fracção aos aqui A.A., pelo preço de Esc. 7.400.000$00 .
Os aqui A.A. entregaram à Ré, como sinal e princípio de pagamento, o montante global de Esc. 4.000.000$00, conforme pontos 4 e 5 supra, pelo que ficaram obrigados a pagar o remanescente, de Esc. 3.400.000$00, na data de celebração da escritura de compra e venda .
Porque entretanto a aqui Ré levou a cabo obras na referida fracção, com vista a poder ser nela aberto um salão de cabeleireiro, como foi pretendido pelos A.A. e foi consagrado no contrato-promessa ( sua cláusula 5ª ) , pelos A.A. foi aceite pagarem à Ré o custo dessas obras, conforme bem resulta dos pontos 8, 13, 21, 22 e 23 supra, apenas se sabendo que terão sido efectuadas pelo menos canalizações extras, no valor de Esc. 15.000$00, e que a Ré pretendia que os A.A., por essas obras, lhe pagassem mais Esc. 1.600.000$00, como bem resulta da sua própria contestação – artigos 3º a 12º e 15º.
O que é certo é que a Ré diligenciou na celebração da correspondente escritura pública, que foi marcada para 21/11/1997, no Cartório Notarial da Lousã, onde compareceram ambas as partes e onde foi redigida e até assinada pelas partes tal documento, conforme fls. 170 a 173 destes autos, escritura essa na qual a aqui Ré declarava vender aos aqui autores, a fracção em causa, pelo preço de sete milhões de escudos, valor esse então era dado como recebido ...
Porém, antes dessa escritura ter sido assinada pelo notário que a redigiu, o que não chegou a acontecer, a aqui Ré solicitou que fosse dada sem efeito tal escritura, uma vez que os A.A. apenas lhe faziam entrega de um cheque no valor de Esc. 3.400.000$00 e datado de 24/11/97, cheque esse de que se encontra cópia a fls. 173 destes autos .
Com efeito, podemos desde logo constatar que o valor do contrato-promessa de compra e venda foi de Esc. 7.400.000$00 e que as partes estavam a celebrar a escritura pública por apenas Esc. 7.000.000$00 ...
Mas também sabemos que face às entregas antes efectuadas pelos aqui autores à Ré e por conta do preço acordado, haviam ficado por liquidar Esc. 3.400.000$00 desse preço, que é exactamente o valor do cheque emitido e entregue na data da escritura .
Só que os aqui autores também haviam-se comprometido a pagar à Ré o valor das obras a mais levadas a cabo no andar a vender, dado o salão de cabeleireiro que aí se propunham abrir, valor esse que se desconhece mas que a Ré reclamava de Esc. 1.600.000$00 .
E apenas se sabe que o valor das canalizações extra efectuadas no andar é de Esc. 15.000$00, valor este que não é, de certo, o valor total dessas alterações, as quais até se desconhecem .
Seja como for, o que é seguro é que os A.A. não liquidaram, na data da escritura, o valor correspondente a essas alterações, seja ele qual for, nem tão pouco fizeram o pagamento do preço da compra e venda em consonância com o disposto na referida escritura, onde se dava como já liquidado o preço acordado, pois é certo que os A.A. apenas emitiram e entregaram à Ré um cheque normal ( não visado ) e datado para daí a três dias, isto é, nem sequer emitiram um cheque datado com o dia da outorga da escritura, sendo certo que o seu valor, embora correspondesse ao remanescente do valor acordado em sede de contrato-promessa e dos valores antes entregues, já não correspondia ao valor pelo qual era outorgada a dita escritura pública .
Ora, sendo um cheque um meio de pagamento indirecto, pois com ele apenas se dá uma ordem de pagamento a um banqueiro, no qual haverá depositados fundos do emitente disponíveis para esse efeito , e com cujo pagamento se opera a extinção da obrigação jurídica dele resultante, não se compreende que constando da escritura de compra e venda o recebimento do valor dessa venda o cheque destinado a assim liquidar tal valor não tenha a data respectiva, e o seu emitente não tenha antes providenciado pelo depósito bancário desse mesmo montante .
Ao emitir-se um cheque a ser pago mais tarde, não pode fazer-se constar da escritura o recebimento prévio desse valor, pois tal não aconteceu, como é bem evidente.
E não se diga que é indiferente o facto da referida data ser posterior à data da escritura de compra e venda, com o fundamento de que qualquer cheque é pagável à vista, mesmo antes do dia indicado como data da emissão, pois só assim sucede se houver fundos depositados para o efeito, o que, no caso, não se sabe se acontecia, mas decorre da data colocada no referido cheque que o mesmo apenas deveria ser apresentado a pagamento depois do dia 24/11/97 ( nos 8 dias seguintes a esta data ), em conformidade com o disposto no artº 29º da L.U. sobre Cheques, data essa a partir da qual o emitente do cheque se obrigou a ter capital depositado para o efeito, quando é certo que na escritura era dado como já liquidado o valor da compra e venda ...
Logo e porque, na realidade, os aqui autores não diligenciaram, como deviam e estavam obrigados, no cumprimento do pagamento oportuno do valor do contrato prometido e bem assim do montante das obras a mais, seja esse montante o que for, bem andou a Ré na não validação da referida escritura ( através da assinatura do senhor notário que a elaborou ), pois que os termos da dita não encontraram suporte fáctico com a realidade que os A.A. lhe apresentaram para o cumprimento das suas respectivas obrigações .
Donde se ter de concordar com o que consta da sentença recorrida, quando aí se escreve que “ o preço deve ser pago até ao momento da celebração da escritura, pois que na escritura respectiva já fica a constar que o preço se encontra pago, pelo que não era legítimo que a Ré fosse obrigada a considerar tal escritura como validamente realizada quando, de facto, lhe estava a ser entregue um cheque datado para uma data posterior à da realização da escritura, desconhecendo-se, nesse momento, se o mesmo tinha ou não boa cobrança, já que não se tratava de cheque visado, o que configura uma situação de mora por parte dos aqui autores ... “ .
Com efeito, sendo um dos efeitos do contrato de compra e venda a transmissão da propriedade da coisa ( artº 879º, al. a), do C. Civ. ), manifesto é que com a realização efectiva da apontada escritura pública se transmitiria a propriedade do apartamento objecto do contrato-promessa em questão, e até com declaração expressa da vendedora , na presença do notário, em como já recebera o valor dessa venda, isto em conformidade com o disposto no artº 885º, nº 1, do C. Civ. ( onde se preceitua que o preço da compra e venda deve ser pago no momento da entrega da coisa vendida ), o que não condizia com o que os aqui autores se predispuseram a fazer, pois que apenas estavam a entregar um cheque datado para daí a três dias, logo passível de não obter imediato pagamento no banco sacado ou até de poder ficar sem provisão, situação que até impediria ( havendo razões para tanto ) a aqui Ré de vir a considerar o contrato-promessa como definitivamente não cumprido por parte dos promitentes-compradores e de poder a vir considerar como seu o valor do sinal prestado, pois que a transmissão da propriedade seria uma imediata consequência da celebração da apontada escritura – artº 886 do C. Civ. .
Donde a correcção da atitude assumida pela aqui Ré, ao solicitar a não validação notarial da escritura de compra e venda redigida e até assinada por ambas as partes, face à atitude incorrecta e abusiva por partes dos aqui autores, já que não liquidaram, como deviam, o preço da compra e venda no momento dessa celebração e por meios tidos como idóneos e seguros .
Ora, face a esse incumprimento contratual por parte dos aqui autores, gerador de uma situação de mora da sua parte, seria natural e previsível que assumissem tal situação e diligenciassem no sentido de colocar fim a essa mora, nomeadamente convocando a promitente-vendedora para a celebração de nova escritura pública, com garantias de pagamento efectivo do preço acordado, o que não procuraram realizar, apesar de a aqui Ré estar apta a outorgar a escritura, como já sucedia aquando da outorga antes iniciada, pois que se limitaram a instaurar uma acção de execução específica do contrato contra a Ré, quando haviam sido eles os causadores do citado incumprimento do contrato prometido .
O que originou que a aqui Ré vendesse a fracção em causa a um terceiro, tanto mais que estava por receber o diferencial do preço acordado com os autores e na sua opinião haveria razões para considerar o contrato-promessa como definitivamente não cumprido, podendo fazer seu o valor dos montantes antes entregues pelos autores, como bem resulta da carta de fls. 58, que enviou aos aqui autores – facto supra nº 24 .
No entanto não se pode considerar como definitivo o incumprimento por parte dos aqui autores, tanto mais que a Ré também não voltou a convocá-los para nova escritura com carácter de definitiva e sob cominação de resolução do contrato-promessa por sua parte, caso aqueles não efectuassem o integral pagamento dos valores tidos como em débito, os quais, aliás, ainda não são passíveis de serem considerados como líquidos, como bem resulta dos factos dados como assentes e até da citada carta de fls. 58 ( que não chegou a ser recebida pelos seus destinatários ).
E só o incumprimento definitivo por parte dos aqui autores daria aso a que a Ré pudesse dar como resolvido o contrato-promessa e pudesse fazer seus os valores antes entregues pelos promitentes-compradores, nos termos dos artºs 801º e 442º, nº 2, 1ª parte, ambos do C. Civ. , como é defendido, de forma unânime, pela jurisprudência e pela doutrina .
O que é certo é que tem de se considerar como correcta a atitude da aqui Ré em relação à não validação notarial da escritura pública que chegou a ser redigida e até assinada por ambas as partes, sendo certo que nenhuma voltou a diligenciar na sua efectiva realização, o que conduziu a que a promitente-vendedora acabasse, dadas as circunstâncias , por vender a fracção prometida a um terceiro, com o que se tornou definitivamente impossível a celebração do contrato-prometido, mas para o que contribuíram, pois, ambas as partes, nos termos antes enunciados .
E como se refere no Ac. do STJ de 26/5/98, in RLJ ano 131º, pg. 216, para esse incumprimento contribuíram ambas as partes, pelo que devem ambas ser responsabilizadas , com as consequências daí resultantes, no que tem aplicação o artº 570º, nº 1, do CPC .
Solução esta que foi acolhida na sentença recorrida, e que cumpre manter, pelo que se tem como correcta a decisão recorrida, no sentido de condenar a Ré na restituição, em singelo, dos valores recebidos dos aqui autores, ou sejam Esc. 4.000.000$00 ( € 19.951,92 ) , com o acréscimo de juros compensatórios, além da obrigação de pagar metade do custo da “escritura “ que teve lugar e dada como não validada notarialmente - € 80,81 -, com o acréscimo de juros também fixado na sentença recorrida .
Ou seja, importa confirmar , em absoluto, a sentença recorrida, dada a sua adequação à lei aplicável, o que se decide , assim improcedendo a apelação deduzida pelos aqui autores .
VII
Decisão :
Face ao exposto, e sem necessidade de outras considerações, acorda-se em julgar improcedente a apelação interposta pelos aqui autores, confirmando, na sua globalidade, a sentença recorrida, que assim se mantém .

Custas pelos Apelantes .